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Em 10 de dezembro de 2025, a Austrália se tornou o primeiro país do mundo a proibir o uso de redes sociais por menores de 16 anos, marcando um ponto de virada na regulamentação das plataformas digitais. A lei, que exige que as empresas de tecnologia implementem medidas eficazes para impedir o acesso de menores de 16 anos ou arrisquem multas de até 50 milhões de dólares australianos, reacende o debate global sobre o impacto das redes sociais na saúde mental dos jovens. Mas talvez o aspecto mais revelador dessa discussão surja de um paradoxo inquietante: os mesmos líderes que criaram e gerenciam essas plataformas limitam drasticamente o uso delas por seus próprios filhos.
O paradoxo do Vale do Silício: líderes de tecnologia limitam o acesso dos filhos aos seus próprios produtos
Neal Mohan, CEO do YouTube desde 2023 e nomeado CEO do ano de 2025 pela revista Time, admitiu recentemente impor restrições rigorosas ao uso de redes sociais por seus três filhos. Em uma entrevista, Mohan declarou que ele e sua esposa limitam ativamente o tempo que seus filhos passam no YouTube e em outras plataformas, adotando regras mais severas durante os dias de semana e concedendo mais liberdade nos fins de semana.
Mohan expressou sua crença no princípio da moderação quando se trata de serviços e plataformas online para seus três filhos. Essa posição é particularmente significativa, considerando que Mohan lidera uma das plataformas de vídeo mais populares do mundo, com bilhões de usuários ativos. Sua abordagem pessoal revela uma profunda consciência dos riscos que essas ferramentas podem representar para o desenvolvimento dos jovens.
Mohan certamente não é um caso isolado. Sua antecessora, Susan Wojcicki, ex-CEO do YouTube, havia adotado uma política ainda mais restritiva. Wojcicki proibia seus filhos de navegar por vídeos no aplicativo principal, permitindo que usassem exclusivamente o YouTube Kids com limites de tempo rigidamente estabelecidos.
Sundar Pichai, CEO do Google e superior de Mohan, falou sobre monitorar cuidadosamente o uso de tecnologia por seus filhos.
Bill Gates, cofundador da Microsoft, representa outro exemplo emblemático dessa tendência. Gates falou abertamente sobre não ter dado smartphones a seus filhos até a adolescência. Gates contou que não deu celulares a seus filhos até os 14 anos, apesar de eles reclamarem que outras crianças os haviam recebido mais cedo. Além disso, a família Gates tinha regras rígidas, como a proibição de usar dispositivos à mesa durante as refeições.
Mark Cuban, o empresário bilionário, foi ainda mais longe, instalando roteadores Cisco e software de gerenciamento para monitorar quais aplicativos seus filhos usavam e interromper a atividade no celular quando necessário. Essa vigilância ativa demonstra o nível de preocupação que até os investidores mais experientes do setor de tecnologia têm em relação a seus próprios produtos.
Mais recentemente, Steve Chen, cofundador do YouTube, lançou um alerta específico sobre conteúdos em formato curto. Chen advertiu que vídeos curtos equivalem a períodos de atenção mais curtos e declarou que não gostaria que seus filhos consumissem exclusivamente esse tipo de conteúdo, citando preocupações sobre a incapacidade de assistir a vídeos com mais de 15 minutos.
Evan Spiegel, do Snapchat, limita o tempo de tela de seus filhos ao mínimo.
Steve Jobs, o falecido cofundador da Apple, era famoso por limitar o uso do iPad por seus filhos, conforme relatado em biografias.
Tim Cook, o atual CEO da Apple, expressou preocupações sobre o uso excessivo, apoiando ferramentas integradas como o Tempo de Uso (Screen Time).
O fato de os criadores e líderes das plataformas sociais limitarem o acesso de seus próprios filhos a seus produtos deveria fazer a sociedade refletir profundamente. Como observou um comentarista: As pessoas que construíram as redes sociais não confiam nelas para criar seus próprios filhos. Esse paradoxo levanta questões fundamentais sobre a responsabilidade ética das empresas de tecnologia e o dever de proteger os usuários mais vulneráveis.
Essas escolhas pessoais contrastam nitidamente com as estratégias corporativas que priorizam o crescimento em detrimento da moderação.
O impacto documentado na saúde mental
As preocupações desses líderes de tecnologia não são infundadas. A pesquisa científica produziu uma quantidade crescente de evidências sobre os riscos associados ao uso excessivo de redes sociais por jovens. Um estudo americano descobriu que adolescentes de 12 a 15 anos que usavam redes sociais por mais de três horas por dia enfrentavam o dobro do risco de ter resultados negativos na saúde mental, incluindo sintomas de depressão e ansiedade.
A Organização Mundial da Saúde documentou um aumento alarmante no uso problemático de redes sociais entre adolescentes na região europeia. As taxas passaram de 7% em 2018 para 11% em 2022, com as meninas relatando níveis mais altos do que os meninos (13% contra 9%). Esses dados destacam não apenas a magnitude do problema, mas também as diferenças de gênero no impacto das redes sociais.
A pesquisa identificou vários mecanismos pelos quais as redes sociais podem prejudicar a saúde mental dos jovens. A comparação social contínua representa um dos fatores mais insidiosos. Os adolescentes passam horas cuidando de suas identidades online, tentando projetar uma imagem idealizada de si mesmos. As meninas selecionam centenas de fotos, angustiadas sobre quais postar, enquanto os meninos competem por atenção tentando superar uns aos outros com conteúdos cada vez mais extremos.
O cyberbullying surge como outro fator crítico. A pesquisa demonstra que a exposição de adolescentes à discriminação e ao ódio online prediz aumentos nos sintomas de ansiedade e depressão, mesmo após controlar o quanto os adolescentes são expostos a experiências semelhantes offline. O bullying online pode ser mais grave e, portanto, mais prejudicial ao desenvolvimento psicológico do que o bullying tradicional.
Os algoritmos e a “cocaína comportamental”
Um aspecto particularmente preocupante diz respeito ao próprio design das plataformas sociais. O Ministro das Comunicações da Austrália usou uma metáfora poderosa, descrevendo os algoritmos das redes sociais como “cocaína comportamental”, citando as palavras de quem criou essa funcionalidade. Essa definição captura a essência do problema: as plataformas são projetadas para maximizar o engajamento dos usuários, muitas vezes em detrimento de seu bem-estar.
Os algoritmos são programados para promover qualquer conteúdo pelo qual o usuário demonstre interesse. Se um adolescente busca informações sobre condições de saúde mental como depressão ou suicídio, o algoritmo começará a fornecer cada vez mais conteúdo sobre esses temas, criando potencialmente um ambiente que reforça pensamentos negativos.
A lei australiana: um modelo para o mundo?
A decisão da Austrália de proibir as redes sociais para menores de 16 anos representa um experimento social sem precedentes. A lei, aprovada pelo Parlamento em novembro de 2024, entrou em vigor com um apoio público significativo: uma pesquisa revelou que 77% dos australianos apoiavam o limite de idade.
As plataformas afetadas pela proibição incluem Instagram, Facebook, Threads, Snapchat, TikTok, YouTube, X (antigo Twitter), Reddit, Twitch e Kick. Estão excluídos serviços como YouTube Kids, Google Classroom, WhatsApp e plataformas de jogos como Roblox e Discord. A responsabilidade pela aplicação recai inteiramente sobre as empresas de tecnologia, que devem adotar “medidas razoáveis” para impedir que menores de 16 anos criem ou mantenham contas.
O Primeiro-Ministro australiano declarou que a lei devolve o controle às famílias australianas, afirmando o direito das crianças de serem crianças e dando aos pais mais tranquilidade. O objetivo declarado é tirar os jovens das telas e levá-los de volta aos campos esportivos, às aulas de arte e às interações da vida real.
As críticas e as dúvidas sobre a eficácia
Apesar do apoio público, a lei australiana não está isenta de críticas. O UNICEF Austrália expressou preocupação de que a verdadeira solução deveria ser melhorar a segurança das redes sociais, e não simplesmente adiar o acesso. A organização ressalta que as redes sociais também têm aspectos positivos, como educação e manutenção de contato com amigos.
Os críticos argumentam que a proibição poderia levar os jovens para partes menos seguras da internet ou incentivá-los a usar VPNs para contornar as restrições. A lei poderia levar as crianças a plataformas alternativas ou aplicativos privados como o Telegram, empurrando-as para espaços online menos regulamentados.
O papel dos pais e da escola na educação digital
Além das legislações governamentais, emerge com clareza o papel crucial dos pais na educação dos filhos para um uso consciente das redes sociais. A supervisão ativa e limites claros são essenciais.
Jonathan Haidt, professor da Universidade de Nova York e autor de “The Anxious Generation”, defendeu que as crianças não deveriam ter smartphones até os 14 anos. Haidt recomenda dar às crianças celulares básicos em vez de smartphones, ressaltando que um smartphone não é realmente um telefone, é um dispositivo multiuso através do qual o mundo pode alcançar seus filhos.
A comunicação aberta é muito importante. Em vez de monitorar invasivamente o conteúdo do celular dos adolescentes, sugere-se manter linhas de comunicação abertas e estabelecer confiança, para que os jovens se sintam à vontade para procurar os pais em caso de problemas.
A OMS destacou que a educação para a alfabetização digital é fundamental, recomendando a implementação de programas nas escolas que cubram o uso responsável das redes sociais, a segurança online, o pensamento crítico e hábitos de jogo saudáveis.
As escolas deveriam incorporar a educação para a alfabetização digital em seus currículos, ensinando aos alunos como navegar nas redes sociais de forma saudável e produtiva. Essa abordagem multidisciplinar, que integra regulamentação política, alfabetização digital e intervenções focadas na saúde mental, será essencial para criar um ambiente digital mais saudável para os adolescentes.
Perspectivas futuras
A iniciativa australiana pode criar um efeito dominó global. Países como Noruega, França, Espanha, Malásia e Nova Zelândia estão explorando proibições semelhantes. A Dinamarca anunciou no mês passado que proibirá o acesso às redes sociais a qualquer pessoa com menos de 15 anos, com a lei podendo entrar em vigor já em meados do próximo ano.
No Reino Unido, regulamentações recentes impõem sanções severas às empresas online que não conseguem proteger os jovens usuários de conteúdos prejudiciais. Nos Estados Unidos, tentativas semelhantes, como as de Utah, enfrentaram desafios legais, evidenciando a natureza controversa de tais regulamentações.
A influência das redes sociais nos jovens representa um dos desafios mais complexos da nossa era digital. A decisão da Austrália de proibir o acesso a menores de 16 anos, apoiada pelo exemplo dos líderes de tecnologia que limitam seus próprios filhos, evidencia a gravidade do problema. No entanto, a solução não pode residir exclusivamente na proibição.
É necessária uma abordagem multifacetada que combine regulamentação eficaz, educação para a alfabetização digital, supervisão parental ativa e, acima de tudo, uma maior responsabilidade por parte das empresas de tecnologia em projetar plataformas que coloquem o bem-estar dos usuários acima do lucro. Como afirmou o Dr. Hans Henri P. Kluge, Diretor Regional da OMS para a Europa: os jovens deveriam dominar as redes sociais, não ser dominados por elas.
O comportamento dos líderes de tecnologia com seus próprios filhos talvez ofereça a lição mais clara: os aplicativos não imporão limites por si sós. As crianças precisam de regras, cuidado e orientação real em casa. Deixar as crianças sozinhas com as redes sociais não é liberdade, é negligência. Essa verdade incômoda deveria guiar pais, educadores e legisladores na criação de um futuro digital mais seguro para as próximas gerações.
O desafio agora é encontrar o equilíbrio certo entre proteger os jovens dos riscos reais das redes sociais e permitir que eles se beneficiem das oportunidades que a tecnologia digital pode oferecer. Enquanto o mundo observa o experimento australiano, uma coisa é certa: o debate sobre a regulamentação das redes sociais para menores está apenas começando, e as decisões que tomarmos hoje moldarão a saúde mental e o bem-estar das futuras gerações.

