A educação familiar

Ao lado do “sentimento pela criança”, o século XV viu o desenvolvimento de um sentimento pela família, que era pouco evidente na Idade Média, quando se dava prioridade às relações com a massa do povo, deixando pouco espaço para a intimidade e a vida privada. Por outro lado, assiste-se a uma reavaliação do casamento e da família em detrimento do celibato eclesiástico e monástico. Para os humanistas e reformadores, essas realidades favoreciam muito a vida da sociedade e da Igreja. Lutero e Calvino, não satisfeitos em denunciar o celibato de monges e sacerdotes como causa de imoralidade e hipocrisia, incentivaram o casamento para todos.
São Francisco de Sales, embora mantivesse a tradição do celibato religioso e sua superioridade evangélica, não deixou de ir além das convenções sociais da época. A maior parte de suas cartas de direção espiritual são dirigidas a homens e mulheres casados. Em sua Introdução à vida devota, escreveu dois capítulos de inegável originalidade em relação a toda a literatura espiritual do passado. Um contém “conselhos para pessoas casadas”, o outro trata da “honestidade da cama conjugal”.

O casamento é uma vocação
            O casamento é um “vínculo humano pelo qual coração, corpo e bens se comunicam mutuamente”. Depois de afirmar com firmeza que o casamento é “honrável por todos, em todos e para todos, ou seja, em todas as suas partes”, o autor da Filoteia explica: “Por todos, porque até os virgens devem honrá-lo com humildade; em todos, porque é igualmente santo entre pobres e ricos; para todos, porque são santos sua origem, seu fim, seus usos, sua forma e sua matéria”.
Ele não só considerava o casamento um grande sacramento da Igreja e o “berço do cristianismo”, mas também declarava que “a conservação do bem do casamento é extremamente importante para a república”. Destinado ao casamento pelo pai, Franisco de Sales o havia recusado, segundo a mãe de Chaugy, “não por desprezo ao casamento, que honrava perfeitamente como sacramento, mas por um certo ardor interior e espiritual que o impulsionava a dedicar-se totalmente ao serviço da Igreja, e a ser tudo para Deus sem ter um coração dividido”.
A dignidade do casamento exigia que o jovem, e sobretudo a jovem, fossem livres para escolher seu próprio “partido”? Na época, a questão não era tão clara e as práticas variavam. Persistiam antigas tradições, especialmente entre os nobres, onde as filhas eram frequentemente prometidas em tenra idade e o marido, muito mais velho, exercia uma autoridade indiscutível sobre o casal. Isso não significa que tudo fosse ruim, como podemos ver no caso dos pais de Francisco de Sales. Em outros lugares também se observava certa evolução da moral: os jovens casavam-se mais cedo e, consequentemente, exerciam maior liberdade.
Uma das contribuições mais significativas de Francisco de Sales foi ajudar os cônjuges a perceber que sua condição de vida é uma vocação. Ele mesmo escreveu à Filoteia, que era casada, a respeito do casamento: “Se todos devem honrá-lo, honre-o muito especialmente você que por vocação está nele”. Como o casamento é uma vocação, seu objetivo é a santidade dos cônjuges. “Você caminhará nessa vocação”, escreveu a uma jovem que acabara de se casar, “encontrará muita consolação nela e se tornará muito santa no final”.
O casamento é uma vocação porque envolve, antes de tudo, um dom e depois um chamado, uma responsabilidade. É isso que o autor da Introdução quer transmitir às pessoas casadas quando lhes diz: “Foi Deus, meus amigos, que com sua mão invisível apertou o nó sagrado do seu casamento e os deu um ao outro; por que vocês não se amam com um amor todo santo, todo sagrado, todo divino?” Ele também escreveu a uma jovem que acabara de se casar: “Ame ternamente seu marido, como se ele tivesse sido dado a você pela própria mão de Nosso Senhor”.

O amor no casamento
            Francisco de Sales era um defensor do casamento por amor em sua época. Rabelais e Montaigne, que exaltavam os sentimentos paternos, prestavam pouca atenção ao amor entre cônjuges. O casamento era frequentemente considerado incompatível com o amor, confundido com o amor-paixão, e a conclusão lógica era que se tratava apenas de uma instituição necessária para a sociedade. Para Francisco de Sales, o amor mútuo deveria ser a característica principal, com seus dois corolários de “união indissolúvel” dos corações e “fidelidade inviolável de um ao outro”.
Na Introdução, o autor exorta os cônjuges a aumentarem cada vez mais seu “amor mútuo”. Define logo o amor dos cônjuges como uma amizade recíproca na qual se pratica “a comunicação da vida, dos bens, dos afetos e da fidelidade indissolúvel”. Não devem faltar gestos de afeto. O modelo é o grande São Luís, que “era quase repreendido por ser abundante nessas carícias”.
No entanto, as qualidades do amor são diferentes para homens e mulheres. Os maridos devem amar suas esposas “ternamente, constantemente e cordialmente”, enquanto as esposas devem amar seus maridos “ternamente, cordialmente, mas com um amor respeitoso e reverente”. Francisco de Sales admirava as pessoas casadas que viviam “tão docemente juntas com respeito mútuo, que não pode existir sem uma grande caridade”.
Quanto ao sacramento, é uma ajuda poderosa contra a volubilidade de nossas resoluções. Quantos casamentos veríamos dissolver-se, exclamou, “se não fossem fortalecidos pelo sacramento que impede a variação desse tipo de vida! Com surpreendente realismo, dizia também: “Um homem que viveu em paz com sua esposa por toda a vida, se pudesse trocá-la, o teria feito uma dúzia de vezes”. De fato, “essa inconstância do espírito humano é extravagante, mas deve ser contida com a força de nossas primeiras resoluções”.
Embora defendesse a autoridade dos homens dentro da família, o bispo de Genebra estava bem ciente de que eles podiam abusar dela. Com uma doce ironia sobre as pretensões masculinas, recomenda à mulher compreensão e indulgência: “Meu Deus, que bom pai temos e que ótimo marido vocês têm! Ai de mim, eles são um pouco ciumentos de seu império e domínio, que lhes parece um pouco violado quando se faz algo sem sua autoridade e comando. O que você quer, devem permitir essa pequena humanidade”.
Deve-se dizer que essa “pequena humanidade” era comum nas famílias; daí essa observação um pouco desencantada, mas boa para consolar uma viúva: “É verdade, sem dúvida, que é de grande ajuda ter um bom marido; mas há poucos, e por mais que você tenha um bom, recebe mais submissão do que assistência.

O casamento é uma escola
            “Entre espinhos ou entre flores”, escreveu a Joana de Chantal, que era uma mulher felizmente casada antes de sofrer a tragédia e a solidão, “Deus nos faz ganhar na sua escola”. Tudo começa com uma “mudança de condição” e um novo começo que deve gerar gratidão e confiança. O casamento é um dom, mas um dom a ser cultivado: “Devemos, portanto, cultivar com muito cuidado esse coração amado”, escreveu a uma jovem esposa, “e não poupar nada que possa ser útil para sua felicidade”. Para proteger e promover “o progresso do casamento deles” e “santificá-lo cada vez mais com amizade e fidelidade recíproca”, dava aos cônjuges conselhos adequados à sua situação.
Em primeiro lugar, Francisco de Sales ensinava que as pessoas casadas devem amar seu estado de vida: “Devemos amar o que Deus ama: ele ama nossa vocação; amemo-la bem também e não nos divirtamos pensando na dos outros”. Muitas vezes percebemos que todos gostariam de mudar sua condição: “quem é casado gostaria de não ser, e quem não é gostaria de ser”. E o bispo de Genebra perguntava-se: “De onde vem essa inquietação geral das almas, senão de certo descontentamento pelas restrições e de uma malícia de espírito que nos faz pensar que todos são melhores do que nós? Como sempre, me vem à mente uma comparação: “Quem tem febre não consegue encontrar um bom lugar; não passou um quarto de hora numa cama quando gostaria de estar em outra: não é a cama que pode fazer isso, é a febre que o atormenta em qualquer lugar”. A conclusão é evidente: “Quem não tem a febre da própria vontade se contenta com tudo; contanto que sirva a Deus, não importa em que veste Deus o empregue. Contanto que faça a vontade de Deus, para ele é o mesmo.
Como poucos escritores espirituais antes dele, Francisco de Sales ousa falar de “comércio nupcial”, “prazeres carnais” e “cama nupcial”. Para isso, usa uma comparação tradicional, delicada mas transparente. Senta-se à mesa, explica, não apenas “para nutrir e conservar a pessoa”, mas também “pelo dever de conversa e condescendência recíproca que devemos uns aos outros”. As duas coisas a evitar são o excesso, que consiste em “comer demais”, e o desequilíbrio “na maneira e no modo de comer”.
Quando o casal estava em crise, ele apelava não apenas para a vontade de Deus, mas também para o dever e a razão. A uma mulher desgostosa com as ações de um marido “dissipador e despreocupado”, deu conselhos de sabedoria e prudência: “Disse-lhe que podia falar com força e resolução, nas ocasiões em que fosse necessário, para manter a pessoa que conhecia no dever, mas que a força era mais forte quando era calma e quando nascia da razão, sem mistura de paixão”.
Ele aconselhava maridos e esposas a ajudarem-se mutuamente na vida espiritual, caso contrário o homem se torna “um animal severo, áspero e duro”, e a mulher sem devoção “é muito frágil e propensa a decair ou a enfraquecer na virtude”. Pelo contrário, que bênção é quando o homem e a mulher “se santificam mutuamente no verdadeiro temor do Senhor!

Os pais são os “cooperadores” de Deus
            A concepção e o nascimento de um filho são dons maravilhosos que tornam os cônjuges “cooperadores numa tarefa tão digna”. Francisco de Sales chegou a compor uma oração especial – que se dizia repetir frequentemente – para aqueles que estavam impossibilitados de “consumar” o casamento. Tratava-se, na verdade, de um exorcismo, porque se pensava que a impotência e a esterilidade eram causadas pelo diabo e por feitiços malignos.
O amor dos pais deveria servir de modelo para todos aqueles que são responsáveis pelos outros, aos quais deveríamos desejar “o coração dos pais, sólido, firme e constante, sem esquecer a ternura das mães que fazem os filhos desejarem os doces, segundo a ordem divina que governa tudo com uma força toda doce e uma suavidade toda forte”.
Existe uma espécie de amor imitativo entre pais e filhos: “Os pais amam bem seus filhos, mas sobretudo quando estes se parecem com eles ou com algum antecessor deles; olham-nos como num espelho e divertem-se ao vê-los retratar seus modos, seus rostos e suas feições”. O amor das mães pelos filhos é surpreendente, especialmente nos momentos de perigo. O instinto certamente desempenha um papel importante. A galinha é um animal sem coragem e generosidade até se tornar mãe, mas quando o é “tem um coração de leão, sempre com a cabeça erguida, sempre com os olhos esgazeados, sempre girando o olhar para todos os lados, enquanto houver aparência de perigo para seus filhotes”.
Também Francisco de Sales sentia em si “os impulsos do amor paterno” quando cuidava de seu “filho”, o duque de Bellegarde. Para demonstrar sua constante preocupação pelo filho, uma vez lhe escreveu que “os bons filhos pensam frequentemente em seus pais; mas não é frequentemente, é sempre, que os pais têm seu espírito nos filhos”. Se um pai se comporta de maneira diferente com o filho mais velho, “um homem adulto, um soldado corajoso e generoso”, e com o mais novo, “um pequeno querido que ainda é uma criança, com boa graça”, isso não significa que ame menos o primeiro do que o segundo. Seu amor se expressa de uma forma que se adapta a cada pessoa.
Quanto à responsabilidade dos pais na educação, para Francisco de Sales era claro que seu fundamento era a religião, em termos bíblicos o temor de Deus. Daí esta recomendação urgente: “Quando as crianças vêm ao mundo e começam a usar a razão, os pais e as mães devem ter muito cuidado em incutir em seus corações o temor de Deus”.
Os pais têm uma grande responsabilidade na educação, a ponto de sua falta poder ser sua própria ruína. Em um sermão severo, ele os adverte: “Pecam se riem ao ver seus filhos se entregarem à linguagem ruim, aos piores começos da vaidade”. Há pais que, por um amor mal compreendido pelos filhos, estão dispostos a gastar todo tipo de dinheiro para eles, mas não têm “nada para educá-los nas letras e nos bons costumes”. Por fim, o amor dos pais também pode se tornar “amor desordenado” quando impedem os filhos de se tornarem sacerdotes ou de entrar na vida religiosa.

A criança é a “imagem viva” dos pais
            A criança é o “penhor precioso” do casamento e a “imagem viva” do pai e da mãe. Embora sejam herdeiros dos pais, não são antes de tudo herdeiros em sentido material. Falando à viúva do falecido duque de Mercœur, Francisco de Sales disse de sua filha que ela era “a legítima herdeira de suas virtudes, que ele deixou aos seus cuidados, senhora, para que as cultivasse através da educação nobre e cristã que lhe reservou”.
A primeira virtude das crianças é a obediência. Sua obediência é fonte de alegria para os pais, porque “todos conhecem a satisfação que os pais recebem da obediência que os filhos lhes demonstram, e quanto mais os filhos se mostram submissos e obedientes aos seus desejos, mais eles sentem prazer em amá-los”. Mas “um filho bem nascido não obedece ao pai pelo poder que ele tem de punir sua desobediência, nem porque pode deserdá-lo, mas simplesmente porque ele é seu pai”.
O contraponto da obediência é a confiança filial que os filhos têm em relação aos pais. Isso é ilustrado pela alegoria da filha do cirurgião. Quando estava doente, não pensava no tratamento doloroso que lhe estava sendo aplicado, mas confiava completamente nos cuidados do pai, dizendo simplesmente: “Meu pai me ama, e eu sou toda dele”.
À medida que as crianças se tornavam adolescentes e jovens, as recomendações do bispo de Genebra tornavam-se mais insistentes e exigentes. Aos jovens, disse em um sermão sobre o tema da cruz que cada um de nós deve carregar, “confio a cruz da obediência, da castidade e da moderação em seu comportamento, uma cruz salutar que crucifica os impulsos ardentes de um sangue jovem que começa a ferver e de uma coragem que ainda não tem a prudência como guia”. A essas virtudes deve-se acrescentar a piedade filial, da qual as cegonhas são um maravilhoso modelo, porque “carregam consigo seus velhos pais e suas velhas mães, como quando ainda eram jovens seus pais e suas mães os carregavam na mesma ocasião”.

A união da família
            Em seu livro sobre Saint François de Sales et notre cœur de chair [São Francisco de Sales e nosso coração de carne], Henry Bordeaux escreveu com razão: “É difícil imaginar um São Francisco de Sales que não venha de uma família numerosa e unida, que não tenha experimentado a ternura legítima do coração. Seria um santo diferente, não seria o consolador inteligente, o pai docemente autoritário, o restaurador do espírito familiar, o médico das feridas ocultas”.
A união familiar é muito facilitada pelos laços naturais de sangue e parentesco, mas isso não basta. De fato, “quando a união é natural, produz amor, e o amor que produz nos leva a uma nova união voluntária que aperfeiçoa a natural”.
Durante uma de suas estadias em Sales, Francisco ficou tão impressionado com a harmonia que reinava naquele lugar que sentiu o desejo de falar sobre isso à sua filha espiritual. Em uma carta a Joana de Chantal, escreveu: “Você ficaria feliz em ver uma harmonia tão estreita entre coisas que geralmente são tão discordantes: sogra, nora, cunhada, irmãos e cunhados. Entre todos esses, minha verdadeira filha, posso assegurar-lhe, para a glória de Deus, que aqui há um só coração e uma só alma”.
Os desentendimentos na família frequentemente surgiam por questões de herança. Quando, em 1608, a propriedade do Senhor de Boisy foi dividida entre seus filhos, havia o risco concreto de que o pai deixasse a primeira escolha ao mais jovem Bernard e que os filhos mais velhos se sentissem prejudicados. Francisco ficou muito aliviado ao ver que tudo ocorreu de forma amigável e harmoniosa.
Em caso de conflito entre marido e mulher, “o apoio mútuo deve ser tão grande que os dois nunca se amarguem juntos”. Com tenacidade, Francisco de Sales ensinava a superar as repugnâncias, a permanecer “no barco em que estamos” e a ficar aí “doce e voluntariamente”. Suas recomendações mais insistentes dizem respeito ao apoio mútuo, à amizade fiel não interrompida por “amores estranhos”, à preocupação com a educação dos filhos, sem esquecer o bom exemplo a ser dado a toda a família.
Em última análise, é o amor que melhor resume tudo o que Francisco de Sales disse sobre o casamento e a família, mas um amor que é ao mesmo tempo realista e ideal. A educação nesse âmbito consistirá, portanto, em ajudar os jovens a captar todas as dimensões do que torna a família o coração da existência humana.




A pastora, as ovelhas e os cordeiros (1867)

No trecho a seguir, Dom Bosco, fundador do Oratório de Valdocco, conta aos seus jovens um sonho que teve entre 29 e 30 de maio de 1867 e narrou na noite do Domingo da Santíssima Trindade. Numa planície sem fim, rebanhos e cordeiros tornam-se alegoria do mundo e dos jovens: prados exuberantes ou desertos áridos figuram a graça e o pecado; chifres e feridas denunciam escândalo e desonra; o número “3” prenuncia três fomes – espiritual, moral, material – que ameaçam quem se afasta de Deus. Do relato brota o apelo urgente do santo: guardar a inocência, voltar à graça com a penitência, para que cada jovem possa revestir-se das flores da pureza e participar da alegria prometida pelo bom Pastor.

No domingo da Santíssima Trindade, 16 de junho, em que Dom Bosco há vinte e seis anos atrás tinha celebrado sua primeira missa, os jovens estavam na expectativa do sonho, cuja narração havia sido anunciada no dia 13. Seu ardente desejo era o bem espiritual da grei, e sua norma, as admoestações e as promessas do livro dos Provérbios, 27, 23-25: Diligentes agnosce vultum pecoris tui, tuosque greges considera: non enim habebis iugiter potestatem: sed corona tribuetur in generationem et generationem. Aperta sunt prata, et apparuerunt herbae virentes, et collecta sunt foena de montibus (Com diligência reconhece o aspecto das tuas ovelhas e dá atenção aos teus rebanhos, pois nem sempre poderás fazê-lo e a coroa não passa de geração a geração! Roçaram-se os prados, apareceu a erva verde e foi recolhido o feno dos montes)… Nas suas orações pedia para conhecer bem as ovelhas, para ter a graça de vigiar com atenção, e garantir-lhes a guarda também após sua morte, vê-las providas de fácil e conveniente alimento espiritual e material. Então, depois das orações da noite, Dom Bosco falou assim:

Numa das últimas noites do mês de Maria, estando na cama e não conseguindo dormir, pensando nos meus queridos jovens, dizia para mim mesmo:
– Que bom se pudesse sonhar algo que fosse para o bem deles! Fiquei algum tempo refletindo e resolvi:
– Sim, agora eu quero sonhar em favor de meus jovens.
E eis que adormeci. Mal peguei no sono, me vi numa imensa planície cheia de infinita quantidade de grandes ovelhas, as quais, divididas em rebanhos, pastavam em prados extensos a perder de vista. Quis me aproximar delas e pus-me a procurar o pastor, cheio de espanto em imaginar que pudesse existir alguém no mundo dono de tantas ovelhas. Procurei por pouco tempo e me vi diante de um pastor apoiado em seu cajado.
Apressei-me a interrogá-lo, perguntando-lhe:
– A quem pertence este rebanho tão numeroso?
O pastor não respondeu. Repeti a pergunta; então me falou:
– Que interesse tem o senhor em saber?
– E por que – acrescentei – me responde desta maneira?
– Está bem, este rebanho é de seu dono.
– De seu dono? Isso eu já sabia – falei para mim mesmo. Porém continuei em voz alta:
– Quem é esse dono?
– Não se incomode – respondeu-me o pastor – sabê-lo-á.
Então, andando com ele por aquele vale, pus-me a examinar o rebanho, por todos os lugares por onde vagava. Em certos locais, o vale estava coberto por rica vegetação, com árvores que estendiam grandes copas com agradáveis sombras e gramados novíssimos nos quais belas e vigorosas ovelhas pastavam. Em outras partes a planície era estéril, arenosa, cheia de pedras com espinheiros sem folhas, gramíneas amareladas, não existindo sequer um fio de capim verde. Apesar disso, também aqui outras ovelhas pastavam, mas com miserável aparência.
Eu pedia que meu guia me explicasse várias coisas a respeito de seu rebanho. Sem nada me responder às minhas perguntas, me disse:
– Você não é destinado para elas. Não pense nestas. Vou conduzi-lo ao rebanho do qual você deve cuidar.
– Mas você, quem é?
– Sou o dono. Venha comigo para observar lá, daquele lado.
Conduziu-me a outro lugar da planície onde havia milhares e milhares somente de cordeirinhos. Eram tão numerosos que não dava para contá-los. Eram tão magros que mal e mal podiam andar. O campo estava seco, árido e arenoso; não se via um fiapo de capim verde, um regato. Somente algum raminho ressequido e moitas secas. Toda pastagem havia sido destruída pelos próprios cordeirinhos.
Notava-se à primeira vista que esses coitados cordeirinhos, cobertos de feridas, tinham sofrido muito, continuavam sofrendo. Coisa estranha! Cada um tinha dois chifres compridos e grossos na testa, como se fossem carneiros velhos. Na ponta dos chifres havia um apêndice em forma de “S”. Maravilhado, fiquei perplexo com este estranho apêndice. Não entendia porque esses cordeirinhos já tinham chifres tão compridos e grossos e tivessem destruído tão rapidamente toda a pastagem.
– Como se explica isto? – Falei ao pastor. – Esses cordeirinhos são tão pequenos e já com chifres assim?
– Olhe – respondeu-me; – observe.
Observando com mais atenção, vi que esses cordeirinhos carregavam enigmaticamente muitos números “3” estampados em todas as partes do corpo: no lombo, na cabeça, no focinho, nas orelhas, no nariz, nas pernas, nos cascos.
– Mas, o que isto significa? – Exclamei. – Não entendo nada.
– Como não entende? – Disse-me o pastor. – Então ouça e compreenderá tudo. Esta enorme planície é o mundo. Os locais revestidos de ervas, a palavra de Deus e sua graça. Os locais estéreis e áridos são onde não se ouve a palavra de Deus, procurando-se somente os prazeres do mundo. As ovelhas são os adultos; os cordeirinhos são os jovens; para estes Deus enviou Dom Bosco. Este ângulo da planície que você vê é o Oratório; os cordeirinhos aí reunidos são os seus meninos. Este lugar árido significa o estado de pecado. Os chifres significam a desonra. A letra “S” quer dizer scandalo (escândalo). Com o mau exemplo se dirigem para a ruína. No meio desses cordeirinhos há alguns com os chifres quebrados; foram escandalosos, e agora pararam de dar escândalo. O número “3” significa que carregam o castigo da culpa. Quer dizer que sofrerão três grandes carências: carência espiritual, moral, material. 1º A carência de auxílios espirituais; pedirão esta ajuda, e não a terão. 2º Carência da palavra de Deus. 3º Carência de pão material. O fato de os cordeirinhos terem comido tudo, quer dizer que nada mais lhes resta senão a desonra. O número “3” são as três ausências. Esse espetáculo mostra também os sofrimentos de muitos jovens no meio do mundo. No Oratório não falta pão material, também para os que seriam indignos.
Enquanto eu ouvia e observava tudo como que esquecido, nova maravilha
aparece. Todos os cordeirinhos mudam de aparência.
Ergueram-se sobre as patas traseiras ficando altos e tomando a forma de outros tantos jovens do Oratório. Aproximei-me para ver se conhecia algum. Todos eram alunos do Oratório. Muitos deles nunca os tinha visto, porém, todos afirmavam serem filhos do nosso Oratório. Entre os que eu não conhecia havia alguns poucos que presentemente estão no Oratório. São os que nunca se apresentam a Dom Bosco, que nunca vão buscar conselho com ele, os que fogem dele. Numa palavra, aqueles que Dom Bosco não conhece ainda! Entretanto, a maioria dos desconhecidos era dos que não foram nem estão ainda no Oratório.
Enquanto, com pena, observava essa multidão, quem me acompanhava tomou-me pela mão e me disse: – Venha comigo e verá outras coisas. – Conduziu-
-me a um canto remoto do vale, circundado por pequenas colinas, cercado por uma sebe de plantas viçosas, onde havia um grande prado verdejante, o mais agradável que se pode imaginar, cheio de toda espécie de ervas aromáticas, disseminado de flores campestres, com viçosas moitas e correntes de águas límpidas. Aqui encontrei outro imenso número de filhos, todos alegres, os quais com flores tinham-se feito ou estavam fazendo linda roupagem.
– Você tem ao menos esses que lhe dão grande satisfação.
– Quem são? – Perguntei.
– São os que estão na graça de Deus.
Ah, posso dizer que nunca vi coisas e pessoas tão bonitas e esplêndidas. Nem podia imaginar tais resplendores. É inútil que eu queira descrevê-los, pois seria impossível falar sem estar vendo. Porém, estava reservado um espetáculo mais surpreendente. Enquanto observava com grande alegria esses jovens, e entre eles via muitos que não conhecia ainda, meu guia acrescentou:
– Venha, venha comigo, e lhe mostrarei algo que lhe fará grande alegria e consolação maior. – Conduziu-me a outro campo completamente tomado das mais raras e perfumadas flores nunca vistas. Seu aspecto era como um jardim principesco. Aqui se via uma quantidade não tão grande de jovens, entretanto de extraordinária formosura e esplendor de maneira a fazer desaparecer os que há pouco eu tinha admirado. Alguns desses já estão aqui no Oratório, outros virão mais tarde.
O pastor me falou:
– Esses são os que conservam o lindo lírio da pureza. Estão ainda vestidos com a estola da inocência.
Olhava extático. Quase todos tinham na cabeça um coroa de flores indescritivelmente lindas. Estas flores eram formadas de outras minúsculas flores de surpreendente delicadeza. As cores eram de encantadora vivacidade e variedade, mais de mil cores numa única flor. Numa só flor se viam mil flores. Uma veste de deslumbrante brancura lhes descia até aos pés, também toda tecida de guirlandas de flores, semelhantes às da coroa. A luz que saía dessas flores revestia toda a pessoa e espelhava nela toda a alegria. As flores se refletiam umas nas outras, aqueles das coroas naquelas das guirlandas, reverberando cada uma os raios emitidos pelas outras. Um raio de uma cor, quebrando-se com raio de outra cor, formava outros novos raios, diferentes, brilhantes. Assim, de cada raio eram reproduzidos outros novos raios, de forma que eu nunca teria podido imaginar que no céu houvesse tantos variados encantos. Isto não é tudo. Os raios e as flores da coroa de uns se refletiam nas flores e nos raios da coroa de todos os outros: igualmente as guirlandas e o esplendor da veste de um refletiam-se nas guirlandas e vestes dos outros. E depois, os esplendores do rosto de um jovem, ricocheteando, se fundiam com os do rosto dos companheiros, de modo que, reverberando sobre todos aqueles rostinhos inocentes e redondos, produziam luz tão forte que ofuscava a visão e impedia de fixar o olhar.
Desta forma, em um só se concentravam as belezas de todos os outros companheiros com inefável harmonia de luz! Era a afortunada glória dos santos. Não há imagem humana para descrever, nem que seja fracamente, como estava belo cada um dos jovens no meio do oceano de esplendores. Entre estes observei alguns em particular, que hoje estão no Oratório. Tenho certeza que se pudessem contemplar ao menos um décimo de sua beleza atual, estariam prontos a sofrer o fogo, a se deixar cortar em pedaços, enfim, a ir ao encontro do mais atroz martírio para não perdê-la.
Assim que pude me recuperar deste espetáculo celeste, voltei-me para o pastor e disse:
– Então, entre tantos, meus jovens, são tão poucos os inocentes? São tão poucos os que nunca perderam a graça de Deus?
O pastor respondeu:
– Como? Não lhe parece bastante este elevado número? De mais, os que tiveram a desgraça de perder o lindo lírio da pureza, e com este a inocência, podem ainda seguir seus companheiros na penitência. O senhor vê lá? Naquele campo se encontram ainda muitas flores. Pois bem, eles podem fazer-se uma coroa e uma veste belíssima e acompanhar ainda os inocentes na glória.
– Sugira-me ainda alguma coisa para eu falar aos meus jovens – disse eu.
– Repita a seus jovens, que se soubessem como são belas a inocência e a pureza aos olhos de Deus, estariam prontos a fazer qualquer sacrifício para conservá-la. Diga-lhes que criem coragem para praticar esta virtude cândida, que supera as outras em beleza e esplendor. Pois os castos são os que crescunt tanquam lilia in conspectu Domini (Crescem como lírios na presença do Senhor).
Então quis me dirigir para o meio daqueles meus caríssimos, tão singularmente coroados, mas tropecei no terreno e, acordando, estava na cama.
Meus filhos, vocês são todos inocentes? Talvez alguns de vocês sejam. A estes dirijo minhas palavras. Não percam, por caridade, esta virtude de valor inestimável! É uma riqueza que tem o mesmo valor do Paraíso, o mesmo valor de Deus! Se vocês tivessem visto como eram belos esses jovens com suas flores. O conjunto desse espetáculo era tal que eu daria qualquer coisa do mundo para usufruir ainda dessa vista; mais, se fosse pintor, consideraria uma grande graça conseguir pintar de alguma maneira o que vi. Se soubessem como é a beleza de um inocente, se sujeitariam a qualquer grande esforço, até à morte, para conservar o tesouro da inocência.
O número dos que tinham voltado à graça, apesar de me terem dado contentamento, contudo eu esperava que fosse mais alto. Fiquei maravilhado ao ver que alguns que aqui na aparência parecem bons jovens, lá tinham os chifres compridos e grossos…

Dom Bosco encerrou com calorosa exortação para aqueles que tinham perdido a inocência, a fim de que se esforçassem com toda a vontade a recuperar a graça por meio da penitência.
Dois dias depois, em 18 de junho, subia à cátedra e explicava um pouco o sonho.

Não haveria necessidade de explicar o sonho, porém repetirei o que já falei. A grande planície é o mundo e também os lugares e a região de onde foram chamados para cá todos os nossos jovens. O lugar onde estavam os cordeirinhos é o Oratório. Os cordeirinhos são todos os jovens que estiveram, presentemente estão e estarão no Oratório. Os três prados nesse lugar, o árido, o verdejante, o florido, significam a situação de pecado, o estado de graça e o estado de inocência. Os chifres dos cordeirinhos são os escândalos dados no passado. Havia os que tinham os chifres quebrados; estes foram escandalosos, agora, porém, pararam de dar escândalo. Os enigmas “3”, estampados em cima de cada cordeirinho, são como aprendi do pastor, três castigos que o Senhor enviará para os jovens: 1 º Carência de auxílios espirituais. 2º Carência moral, isto é, falta de instrução religiosa e da palavra de Deus. 3º Carência material, quer dizer, falta de alimento. Os jovens reluzentes são os que estão na graça de Deus, sobretudo os que ainda conservam a inocência batismal e a bela virtude da pureza. Que glória os aguarda!
Disponhamo-nos, então, caros jovens, corajosamente a praticar a virtude.
Quem não está na graça de Deus coloque-se de boa vontade e, depois, com todas as suas forças e a ajuda de Deus, persevere até a morte. Se nem todos pudermos estar na companhia dos inocentes fazendo coroa ao Cordeiro Imaculado, Jesus, ao menos possamos segui-lo depois deles.
Um me perguntou se ele estava entre os inocentes, e eu lhe disse que não; que tinha os chifres, mas quebrados. Perguntou-me ainda se estava com feridas; respondi-lhe que sim.
– E o que significam essas feridas? – Acrescentou.
Respondi: – Não tenha medo. Estão tratadas, desaparecerão. Essas feridas agora não são mais de desonra, como as cicatrizes não trazem desonra a quem esteve no combate. Este, apesar de tantas feridas, perseguição e esforços do inimigo, soube vencer e conseguir a vitória. São, portanto, cicatrizes de honra!… Mas, tem mais honra quem, lutando no meio dos inimigos, fica sem nenhuma ferida. Sua incolumidade provoca a maravilha em todos.

Ao explicar este sonho, Dom Bosco afirmou que não levará muito tempo até que esses três males se façam sentir: – Peste, fome e falta de meios para trazer-nos o bem.
Acrescentou que não passarão três meses sem que aconteça algo de particular.
Este sonho produziu impressão nos jovens, com os frutos obtidos como tantas outras exposições similares.
(MB IT VIII 839-845 / MB PT VIII 903-909)




Rumo ao alto! São Pier Giorgio (Pedro Jorge) Frassati

“Queridos jovens, nossa esperança é Jesus. É Ele, como dizia São João Paulo II, «quem desperta em vocês o desejo de fazer da sua vida algo grandioso […], para melhorar a si mesmos e a sociedade, tornando-a mais humana e fraterna» (XV Jornada Mundial da Juventude, Vigília de Oração, 19 de agosto de 2000). Mantenham-se unidos a Ele, permaneçam em sua amizade, sempre, cultivando-a com a oração, a adoração, a Comunhão eucarística, a confissão frequente, a caridade generosa, como nos ensinaram os beatos Pedro Jorge Frassati e Carlos Acutis, que em breve serão proclamados Santos. Aspirai a coisas grandes, à santidade, onde quer que estejam. Não se contentem com menos. Então verão crescer a cada dia, em vocês e ao redor de vocês, a luz do Evangelho” (Papa Leão XIV – homilia do Jubileu dos jovens – 3 de agosto de 2025).

Pier Giorgio (Pedro Jorge) e P. Cojazzi
O senador Alfredo Frassati, embaixador do Reino da Itália em Berlim, era proprietário e diretor do jornal La Stampa de Turim. Os salesianos tinham uma grande dívida de gratidão para com ele. Na ocasião do grande escândalo conhecido como “Os fatos de Varazze”, em que tentaram manchar a honra dos salesianos, Frassati os defendeu. Enquanto até alguns jornais católicos pareciam perdidos e desorientados diante das graves e dolorosas acusações, o La Stampa, após uma rápida investigação, antecipou as conclusões da justiça proclamando a inocência dos salesianos. Assim, quando da casa dos Frassati chegou o pedido de um salesiano para acompanhar os estudos dos dois filhos do senador, Pedro Jorge e Luciana, o P. Paulo Álbera, Reitor-Maior, sentiu-se na obrigação de aceitar. Enviou o P. Antônio Cojazzi (1880-1953). Era o homem certo: boa cultura, temperamento jovem e uma capacidade comunicativa excepcional. O P. Cojazzi formou-se em letras em 1905, em filosofia em 1906, e obteve o diploma de habilitação para o ensino da língua inglesa após um sério aperfeiçoamento na Inglaterra.
Na casa dos Frassati, o P. Cojazzi tornou-se algo mais que o ‘preceptor’ que acompanha os jovens. Tornou-se um amigo, especialmente de Pedro Jorge, de quem diria: “Conheci-o com dez anos e o acompanhei por quase todo o ginásio e o liceu com aulas que nos primeiros anos eram diárias; o acompanhei com interesse e afeto crescentes”. Pedro Jorge, que se tornou um dos jovens de destaque da Ação Católica de Turim, ouvia as conferências e aulas que o P. Cojazzi dava aos sócios do Círculo C. Balbo, acompanhava com interesse a Revista dos Jovens, subia às vezes a Valsalice em busca de luz e conselho nos momentos decisivos.

Um momento de notoriedade
Pedro Jorge o teve durante o Congresso Nacional da Juventude Católica italiana, em 1921: cinquenta mil jovens desfilando por Roma, cantando e rezando. Pedro Jorge, estudante do politécnico, segurava a bandeira tricolor do círculo turinense C. Balbo. As tropas reais, de repente, cercaram a enorme procissão e a atacaram para arrancar as bandeiras. Queriam impedir distúrbios. Uma testemunha relatou: “Eles batiam com os canos dos mosquetes, agarravam, quebravam, arrancavam nossas bandeiras. Vi Pedro Jorge lutando com dois guardas. Corremos para ajudá-lo, e a bandeira, com o mastro quebrado, ficou em suas mãos. Presos à força em um pátio, os jovens católicos foram interrogados pela polícia. A testemunha lembra o diálogo conduzido com os modos e as cortesias utilizadas nessas situações:
– E você, como se chama?
– Pedro Jorge Frassati, filho de Alfredo.
– O que seu pai faz?
– Embaixador da Itália em Berlim.
Surpresa, mudança de tom, desculpas, oferta de liberdade imediata.
– Sairei quando saírem os outros.
Enquanto isso, o espetáculo brutal continuava. Um sacerdote foi jogado, literalmente jogado no pátio com a batina rasgada e uma bochecha sangrando… Juntos nos ajoelhamos no chão, no pátio, quando aquele padre maltrapilho ergueu o rosário e disse: “Rapazes, por nós e por aqueles que nos espancaram, vamos rezar!”.

Amava os pobres
Pedro Jorge amava os pobres, ia procurá-los nos bairros mais distantes da cidade; subia as escadas estreitas e escuras; entrava nos sótãos onde só habitam a miséria e a dor. Tudo o que tinha no bolso era para os outros, assim como tudo o que guardava no coração. Chegava a passar as noites ao lado de doentes desconhecidos. Numa noite em que não voltou para casa, o pai, cada vez mais ansioso, telefonou para a delegacia, para os hospitais. Às duas horas ouviu a chave girar na porta e Pedro Jorge entrou. O pai explodiu:
– Escuta, você pode ficar fora de dia, de noite, ninguém diz nada. Mas quando chega tão tarde, avisa, telefona!
Pedro Jorge olhou para ele e, com a simplicidade de sempre, respondeu:
– Papai, onde eu estava, não havia telefone.
As Conferências de São Vicente de Paulo o viram como colaborador assíduo; os pobres o conheceram como consolador e socorrista; os miseráveis sótãos o acolheram frequentemente entre suas paredes sombrias como um raio de sol para seus habitantes desamparados. Dominado por uma profunda humildade, o que fazia não queria que fosse conhecido por ninguém.

Jorginho belo e santo
Nos primeiros dias de julho de 1925, Pedro Jorge foi atacado e derrubado por um violento surto de poliomielite. Tinha 24 anos. Na cama de morte, enquanto uma doença terrível devastava suas costas, ainda pensava nos seus pobres. Em um bilhete, com uma grafia quase ilegível, escreveu para o engenheiro Grimaldi, seu amigo: Aqui estão as injeções para Converso, a apólice é de Sappa. Esqueci, renove você.
De volta do funeral de Pedro Jorge, o P. Cojazzi escreveu rapidamente um artigo para a Revista dos Jovens: “Vou repetir a velha frase, mas muito sincera: não acreditava que o amaria tanto. Jorginho belo e santo! Por que essas palavras insistentes cantam no meu coração? Porque as ouvi repetir, ouvi pronunciar por quase dois dias, pelo pai, pela mãe, pela irmã, com uma voz que dizia sempre e nunca repetia. E porque surgem certos versos de uma balada de Deroulède: «Falarão dele por muito tempo, nos palácios dourados e nas casinhas perdidas! Porque dele falarão também os barracos e os sótãos, onde passou tantas vezes como anjo consolador». Conheci-o com dez anos e o acompanhei por quase todo o ginásio e parte do liceu… o acompanhei com interesse crescente e afeto até sua atual transfiguração… Escreverei sua vida. Trata-se da coleta de testemunhos que apresentam a figura desse jovem na plenitude de sua luz, na verdade espiritual e moral, no testemunho luminoso e contagiante de bondade e generosidade”.

O best-seller da editoria católica
Incentivado e impulsionado também pelo arcebispo de Turim, Dom José Gamba, o P. Cojazzi pôs-se a trabalhar com afinco. Os testemunhos chegaram numerosos e qualificados, foram organizados e cuidadosamente avaliados. A mãe de Pedro Jorge acompanhava o trabalho, dava sugestões, fornecia material. Em março de 1928 saiu a vida de Pedro Jorge. Luís Gedda escreve: “Foi um sucesso estrondoso. Em apenas nove meses, 30 mil cópias do livro foram esgotadas. Em 1932, já haviam sido distribuídas 70 mil cópias. Em 15 anos, o livro sobre Pedro Jorge alcançou 11 edições, e talvez tenha sido o best-seller da editoria católica naquele período”.
A figura iluminada pelo P. Cojazzi foi uma bandeira para a Ação Católica durante o difícil tempo do fascismo. Em 1942, tinham adotado o nome de Pedro Jorge Frassati: 771 associações juvenis da Ação Católica, 178 seções aspirantes, 21 associações universitárias, 60 grupos de estudantes do ensino médio, 29 conferências de São Vicente, 23 grupos do Evangelho… O livro foi traduzido para pelo menos 19 idiomas.
O livro do P. Cojazzi marcou uma virada na história da juventude italiana. Pedro Jorge foi o ideal apontado sem reservas: alguém que soube demonstrar que ser cristão em profundidade não é de fato utópico, nem fantasioso.
Pedro Jorge Frassati também marcou uma virada na história do P. Cojazzi. Aquele bilhete escrito por Pedro Jorge na cama de morte revelou-lhe de forma concreta, quase brutal, o mundo dos pobres. Escreve o próprio P. Cojazzi: “Na Sexta-feira Santa desse ano (1928), com dois universitários, visitei por quatro horas os pobres fora da Porta Metrônia. Essa visita me proporcionou uma lição e humilhação muito saudáveis. Eu tinha escrito e falado muito sobre as Conferências de São Vicente… e, no entanto, nunca tinha ido uma única vez visitar os pobres. Naqueles barracos imundos, muitas vezes me vieram lágrimas aos olhos… A conclusão? Aqui está clara e crua para mim e para vocês: menos palavras bonitas e mais obras de bondade”.
O contato vivo com os pobres não é apenas uma aplicação imediata do Evangelho, mas uma escola de vida para os jovens. São a melhor escola para os jovens, para educá-los e mantê-los na seriedade da vida. Quem vai visitar os pobres e toca com as próprias mãos suas feridas materiais e morais, como pode desperdiçar seu dinheiro, seu tempo, sua juventude? Como pode reclamar de seus trabalhos e dores, quando conhece, por experiência direta, que outros sofrem mais do que ele?

Não sobreviva, viva!
Pedro Jorge Frassati é um exemplo luminoso de santidade juvenil, atual, “enquadrado” em nosso tempo. Ele atesta mais uma vez que a fé em Jesus Cristo é a religião dos fortes e dos verdadeiramente jovens, que só ela pode iluminar todas as verdades com a luz do “mistério” e que somente ela pode oferecer a perfeita alegria. Sua existência é o modelo perfeito da vida normal ao alcance de todos. Ele, como todos os seguidores de Jesus e do Evangelho, começou pelas pequenas coisas; chegou às alturas mais sublimes ao se afastar dos compromissos de uma vida medíocre e sem sentido, empregando a natural teimosia em seus firmes propósitos. Tudo, em sua vida, foi degrau para subir; até aquilo que deveria ter sido um obstáculo. Entre os companheiros, era o intrépido e exuberante animador de toda empreitada, reunindo ao seu redor tanta simpatia e admiração. A natureza lhe foi generosa: de família renomada, rico, de engenho sólido e prático, físico forte e robusto, educação completa, nada lhe faltava para se destacar na vida. Mas ele não queria apenas sobreviver, queria conquistar seu lugar ao sol, lutando. Era um homem de fibra e uma alma de cristão.
Sua vida tinha em si uma coerência que repousava na unidade do espírito e da existência, da fé e das obras. A fonte dessa personalidade tão luminosa estava na profunda vida interior. Frassati rezava. Sua sede da Graça o fazia amar tudo o que preenche e enriquece o espírito. Aproximava-se todos os dias da Santa Comunhão, depois permanecia aos pés do altar, por muito tempo, sem que nada o distraísse. Rezava nas montanhas e pelo caminho. Porém, sua fé não era ostentação, embora os sinais da cruz feitos na rua pública ao passar diante das igrejas fossem grandes e seguros, embora o Rosário fosse rezado em voz alta, em um vagão de trem ou no quarto de um hotel. Mas era, antes, uma fé vivida tão intensamente e sinceramente que brotava de sua alma generosa e franca com uma simplicidade de atitude que convencia e emocionava. Sua formação espiritual se fortaleceu nas adorações noturnas, das quais foi fervoroso defensor e participante assíduo. Fez mais de uma vez os exercícios espirituais, deles tirando serenidade e vigor espiritual.
O livro do P. Cojazzi termina com a frase: “Conhecê-lo ou ouvir falar dele significa amá-lo, e amá-lo significa segui-lo”. O desejo é que o testemunho de Pedro Jorge Frassati seja “sal e luz” para todos, especialmente para os jovens de hoje.




O grilo e a moeda

Um sábio indiano tinha um amigo próximo que morava em Milão. Eles se conheceram na Índia, onde o italiano tinha ido com sua família em uma viagem de turismo. O indiano serviu de guia para o italiano, levando-o para explorar os cantos mais característicos de sua terra natal.
Agradecido, o amigo milanês convidou o indiano para ir à sua casa. Ele queria retribuir o favor e apresentá-lo à sua cidade. O indiano relutou muito em ir, mas acabou cedendo à insistência do amigo italiano e, em um belo dia, desembarcou de um avião em Malpensa.
No dia seguinte, o milanês e o indiano estavam caminhando pelo centro da cidade. O indiano, com seu rosto cor de chocolate, barba preta e turbante amarelo, atraía os olhares dos transeuntes, e o milanês caminhava orgulhoso por ter um amigo tão exótico.
De repente, na Praça São Babila, o indiano parou e disse: “O senhor está ouvindo o que eu estou ouvindo?”. O milanês, um pouco desnorteado, esforçou os ouvidos o máximo que pôde, mas admitiu que não ouvia nada além do grande barulho do trânsito da cidade.
“Há um grilo cantando aqui perto”, continuou o indiano, confiante.
“O senhor está enganado”, respondeu o milanês. “Eu só ouço o barulho da cidade. Além disso, imagine se há grilos por aqui”.

“Não estou enganado. Estou ouvindo o canto de um grilo”, retrucou o indiano e, resoluto, começou a procurar entre as folhas de algumas plantinhas miúdas. Depois de algum tempo, ele apontou para seu amigo, que o observava com ceticismo, um pequeno inseto, um esplêndido grilo cantante, que se encolhia resmungando contra os perturbadores de seu concerto.
“O senhor viu como havia um grilo?”, disse o indiano.
“É verdade”, admitiu o milanês. “Os senhores indianos têm uma audição muito mais aguçada do que nós, brancos…”.
“Desta vez o senhor está errado”, sorriu o sábio indiano. “Tenha cuidado…” O indiano tirou uma moeda do bolso e, fingindo não perceber, deixou-a cair na calçada.
Imediatamente, quatro ou cinco pessoas se viraram para olhar.
“O senhor viu isso?”, explicou o indiano. “Essa moeda fez um tilintar mais leve e mais fraco do que o cantar do grilo. Mas o senhor já notou quantos brancos a ouviram?”

“Onde estiver o seu tesouro, ali estará também o seu coração.”




Educar as faculdades do nosso espírito com São Francisco de Sales

São Francisco de Sales apresenta o espírito como a parte mais elevada da alma, governada pelo intelecto, memória e vontade. O coração de sua pedagogia é a autoridade da razão, “tocha divina” que torna o homem verdadeiramente humano e deve guiar, iluminar e disciplinar as paixões, a imaginação e os sentidos. Educar o espírito significa, portanto, cultivar o intelecto por meio do estudo, meditação e contemplação, exercitar a memória como depósito das graças recebidas e fortalecer a vontade para que escolha constantemente o bem. Dessa harmonia nascem as virtudes cardeais – prudência, justiça, fortaleza e temperança – que formam pessoas livres, equilibradas e capazes de caridade autêntica.

O espírito é considerado, por Francisco de Sales, como a parte superior da alma. Suas faculdades são o intelecto, a memória e a vontade. A imaginação poderia fazer parte na medida em que a razão e a vontade intervêm em seu funcionamento. A vontade, por sua vez, é a faculdade mestra à qual convém reservar um tratamento particular. O espírito faz com que o ser humano se torne, segundo a definição clássica, um «animal racional». «Somos seres humanos somente mediante a razão», escreve Francisco de Sales. Depois das «graças corporais», há «os dons do espírito», que deveriam ser objeto de nossas reflexões e de nosso reconhecimento. Entre eles, o autor da Filotea distingue os dons recebidos da natureza e aqueles adquiridos com a educação:

Considerai os dons do espírito: quanta gente há no mundo idiota, tolas, mentalmente perturbadas. Por que não vos encontrais entre eles? Deus vos favoreceu. Quantos foram educados grosseiramente e na mais extrema ignorância: mas vós, a Providência divina vos fez crescer de um modo civil e honrado.

A razão, “divina tocha”
No texto Esercizio del sonno o riposo spirituale (Exercício do sono ou repouso espiritual), escrito em Pádua, quando tinha vinte e três anos, Francisco se propunha a meditar um argumento que surpreende:

Farei uma pausa para admirar a beleza da razão que Deus concedeu ao ser humano, para que, iluminado e instruído pelo seu maravilhoso esplendor, odiasse o vício e amasse a virtude. Oh! Sigamos a resplandecente luz desta divina tocha, porque nos é dada em uso para ver por onde caminhamos! Ah! Se nos deixarmos conduzir pelos seus ditames, raramente tropeçaremos, dificilmente nos machucaremos.

«A razão natural é uma árvore boa que Deus plantou em nós, os frutos dela só podem ser bons», afirma o autor do livro Teotimo; é verdade que ela está «gravemente ferida e quase morta por causa do pecado», mas seu exercício não é fundamentalmente impedido.
No reino interior do ser humano, «a razão deve ser a rainha, à qual todas as faculdades do nosso espírito, todos os nossos sentidos e o próprio corpo devem permanecer absolutamente submissos». É a razão que distingue o ser humano do animal, por isso é preciso ter cuidado para não imitar «os macacos e os símios que estão sempre amuados, tristes e lamentosos quando falta a lua; depois, ao contrário, na lua nova, saltam, dançam e fazem todas as caretas possíveis». É necessário fazer reinar «a autoridade da razão», reitera Francisco de Sales.
Entre a parte superior do espírito, que deve reinar, e a parte inferior do nosso ser, designada às vezes por Francisco de Sales com o termo bíblico de «carne», a luta por vezes se torna áspera. Cada frente tem seus aliados. O espírito, «fortaleza da alma», é acompanhado «por três soldados: o intelecto, a memória e a vontade». Atentos, portanto, à «carne» que conspira e busca aliados no local:

A carne usa ora o intelecto, ora a vontade, ora a imaginação, as quais, associando-se contra a razão, lhe deixam o campo livre, criando divisão e fazendo um mau serviço à razão. […]. A carne atrai a vontade, às vezes, com os prazeres e, às vezes, com as riquezas; ora solicita a imaginação a criar pretensões, ora suscita no intelecto uma grande curiosidade, tudo com o pretexto do bem.

Nesta luta, mesmo quando todas as paixões da alma parecem transtornadas, nada está perdido enquanto o espírito resiste: «Se estes soldados fossem fiéis, o espírito não teria nenhum temor e não daria nenhum peso aos próprios inimigos: como soldados que, dispondo de suficientes munições, resistem no bastião de uma fortaleza inexpugnável, apesar de os inimigos se encontrarem nos subúrbios ou até mesmo já terem tomado a cidade; aconteceu à cidadela de Nice, diante da qual a força de três grandes príncipes não conseguiu superar a resistência dos defensores». A causa de todas estas lacerações interiores é o amor-próprio. Com efeito, «os nossos raciocínios ordinariamente estão cheios de motivações, opiniões e considerações sugeridas pelo amor-próprio, e isso causa grandes conflitos na alma».
No âmbito educativo, é importante fazer sentir a superioridade do espírito. «Aqui está o princípio de uma educação humana», diz o P. Lajeunie, «mostrar à criança, assim que sua razão desperta, o que é belo e bom, e afastá-la do que é mau; criar deste modo em seu coração o hábito de controlar seus reflexos instintivos, em vez de segui-los servilmente; é assim, de fato, que se forma este processo de sensualização que a torna escrava de seus desejos espontâneos. No momento de escolhas decisivas, tal hábito de ceder sempre às pulsões instintivas, sem se controlar, pode se revelar catastrófico».

O intelecto, “olho da alma”
O intelecto, faculdade tipicamente humana e racional, que consente conhecer e compreender, frequentemente é comparado à visão. Afirma-se, por exemplo: «Eu vejo», para dizer: «Eu compreendo». Para Francisco de Sales, o intelecto é «o olho da alma»; daí sua expressão «o olho do vosso intelecto». A incrível atividade de que é capaz o torna semelhante a «um operário, o qual, com as centenas de milhares de olhos e de mãos, como um outro ‘Argo’, cumpre mais obras do que todos os trabalhadores do mundo, porque não há nada no mundo que não seja capaz de representar».
Como funciona o intelecto humano? Francisco de Sales analisou, com precisão, as quatro operações de que ele é capaz: o pensamento simples, o estudo, a meditação e a contemplação. O pensamento simples se faz sobre uma grande diversidade de coisas, sem nenhum fim, «como fazem as moscas que pousam sobre as flores sem querer extrair nenhum suco, mas somente porque as encontram». Quando o intelecto passa de um pensamento ao outro, os pensamentos que assim o entulham são ordinariamente «inúteis e danosos». O estudo, ao contrário, visa considerar as coisas «para conhecê-las, para compreendê-las e para falar bem delas», com o objetivo de «encher a memória», como fazem os besouros que «pousam sobre as rosas para nenhum outro fim senão para saciar-se e encher o ventre».
Francisco de Sales podia parar aqui, mas conhecia e recomendava outras duas formas mais elevadas. Enquanto o estudo visa aumentar os conhecimentos, a meditação tem como objetivo «mover os afetos e, em particular, o amor»: «Fixemos o nosso intelecto sobre o mistério do qual esperamos poder extrair bons afetos», como a pomba que «arrulha retendo a respiração e, mediante o murmúrio que produz na garganta sem deixar sair a respiração, produz o seu típico canto».
A atividade suprema do intelecto é a contemplação, que consiste em alegrar-se do bem conhecido, através da meditação, e amado, mediante tal conhecimento; desta vez assemelhamo-nos aos passarinhos que se divertem na gaiola somente para «agradar ao mestre». Com a contemplação o espírito humano atinge o seu vértice; o autor do Teotimo afirma que a razão «vivifica, enfim, o intelecto, com a contemplação».
Retornemos ao estudo, a atividade intelectual que nos interessa mais de perto. «Há um velho axioma dos filósofos, segundo o qual todo ser humano deseja conhecer». Retomando, por sua vez, esta afirmação de Aristóteles, como também o exemplo de Platão, Francisco de Sales pretende demonstrar que isso constitui um grande privilégio. O que o ser humano quer conhecer é a verdade. A verdade é mais bela do que aquela «famosa Helena, pela cuja beleza morreram tantos gregos e troianos». O espírito é feito para a busca da verdade: «A verdade é o objeto do nosso intelecto, o qual, por conseguinte, descobrindo e conhecendo a verdade das coisas, se sente plenamente satisfeito e contente». Quando o espírito encontra algo de novo experimenta uma alegria intensa e quando começa a encontrar alguma coisa de belo, é impelido a continuar a busca, «como aqueles que encontraram uma mina de ouro e são estimulados a ir sempre em frente para encontrar muito mais deste precioso metal». O espanto que produz a descoberta é um potente estímulo; «a admiração, de fato, deu origem à filosofia e à atenta busca das coisas naturais». Sendo Deus a verdade suprema, o conhecimento de Deus é a ciência suprema que preenche o nosso espírito. É ele que nos «doou o intelecto para conhecê-lo»; fora dele há somente «pensamentos vãos e reflexões inúteis!».

Cultivar a própria inteligência
O que caracteriza o ser humano é o grande desejo de conhecer. Foi esse desejo que «induziu o grande Platão a sair de Atenas e correr tanto», e «a induzir esses antigos filósofos a renunciarem às suas comodidades corporais». Alguns chegam até a jejuar diligentemente «para poder estudar melhor». O estudo, de fato, produz um prazer intelectual, superior aos prazeres sensuais e difícil de deter: «O amor intelectual, encontrando na união com o seu objeto uma satisfação inesperada, aperfeiçoa o conhecimento, continuando assim a unir-se a ele, e unindo-se cada vez mais, não cessa de continuar a fazê-lo».
Trata-se de «iluminar bem o intelecto», esforçando-se para «purgá-lo» das trevas da «ignorância». Ele denuncia «a obtusidade e a indolência de espírito, que não quer saber o que é necessário» e insiste no valor do estudo e do aprendizado: «Estudem sempre mais, com diligência e humildade», escrevia a um estudante. Mas não basta «purgar» o intelecto da ignorância, é preciso também «embelezá-lo e adorná-lo», «decorá-lo com considerações». Para conhecer perfeitamente uma coisa, é necessário aprender bem, dedicar tempo a «sujeitar» o intelecto, ou seja, a fixá-lo em uma coisa, antes de passar a outra.
O jovem Francisco de Sales aplicava a sua inteligência não só aos estudos e aos conteúdos intelectuais, mas também a certos assuntos essenciais para a vida do ser humano na terra, e, em particular, à «consideração da vaidade da grandeza, das riquezas, das honras, das comodidades e dos prazeres voluptuosos deste mundo»; à «consideração da maldade, abjeta e deplorável miséria, presentes no vício e no pecado», e ao «conhecimento da excelência da virtude».
O espírito humano é frequentemente distraído, esquece, contenta-se com um conhecimento vago ou vão. Através da meditação, não só das verdades eternas, mas também dos fenômenos e dos acontecimentos do mundo, é capaz de alcançar uma visão mais realista e mais profunda da realidade. Por este motivo, nas Meditações propostas pelo autor a Filotéia, há uma primeira parte dedicada a ela intitulada Considerações.
Considerar significa aplicar o espírito a um objeto preciso, examinar com atenção os seus diversos aspectos. Francisco de Sales convida Filotéia a «pensar», a «ver», a examinar os diferentes «pontos», alguns dos quais merecem ser considerados «à parte». Exorta a ver as coisas em geral e a descer depois aos casos particulares. Quer que se examinem os princípios, as causas e as consequências de uma determinada verdade, de uma dada situação, como também as circunstâncias que a acompanham. É preciso também saber «pesar» certas palavras ou sentenças, cuja importância corre o risco de nos escapar, considerá-las uma a uma, confrontá-las uma com a outra.
Assim como acontece com tudo, também no desejo de conhecer pode haver excessos e deformações. Atenção à vaidade de falsos sábios: alguns, de fato, «pelo pouco de ciência que têm, querem ser honrados e respeitados por todos, como se cada um devesse ir à sua escola e tê-los como mestres: por isso são chamados arrogantes». Ora, «a ciência nos desonra quando nos infla, tornando-nos arrogantes». Que coisa ridícula querer instruir Minerva, Minervam docere, a deusa da sabedoria! «A peste da ciência é a presunção, que infla os espíritos e os torna hidrópicos, como são ordinariamente os sábios do mundo».
Quando se trata de problemas que nos superam e que se enquadram no âmbito dos mistérios da fé, é necessário «purificá-los de toda a curiosidade», é preciso «mantê-los bem fechados e cobertos diante de tais vãs e tolas questões e curiosidades». É a «pureza intelectual», a «segunda modéstia» ou a «modéstia interior». Enfim, deve-se saber que o intelecto pode errar e que existe o «pecado do intelecto», como aquele que Francisco de Sales repreende à senhora de Chantal, a qual havia cometido um erro depositando uma exagerada estima no seu diretor.

A memória e os seus «armazéns»
Assim como o intelecto, a memória é uma faculdade do espírito que suscita admiração. Francisco de Sales a compara a um armazém «que vale mais do que os de Antuérpia ou de Veneza». Não se diz porventura «armazenar» na memória? A memória é um soldado cuja fidelidade nos é muito útil. É um dom de Deus, declara o autor da Introdução à vida devota: Deus a concedeu «para que vos recordeis dele», diz a Filotéia, convidando-a a fugir «das recordações detestáveis e frívolas».
Esta faculdade do espírito humano precisa ser treinada. Quando era estudante em Pádua, o jovem Francisco exercitava a sua memória não só nos estudos, mas também na vida espiritual, na qual a memória dos benefícios recebidos é um elemento fundamental:

Antes de tudo, dedicar-me-ei a refrescar a minha memória com todas as boas motivações, desejos, afetos, propósitos, projetos, sentimentos e doçuras que, no passado, a divina Majestade me inspirou e me fez experimentar, considerando os seus santos mistérios, a beleza da virtude, a nobreza do seu serviço e uma infinidade de benefícios que me concedeu livremente; porei ordem, também, nas minhas recordações acerca das obrigações que tenho para com ela pelo fato de que, pela sua santa graça, às vezes debilitou os meus sentidos enviando-me algumas doenças e enfermidades, das quais tirei grande proveito.

Nas dificuldades e nos medos é indispensável servir-se dela «para recordar-se das promessas» e para «permanecer firmes confiando que tudo perecerá, mesmo que as promessas não tenham sido cumpridas». Todavia, a memória do passado nem sempre é boa, porque pode gerar tristeza, como aconteceu a um discípulo de São Bernardo, que foi assaltado por uma má tentação quando começou «a recordar os amigos do mundo, os parentes, os bens que havia deixado». Em certas circunstâncias excepcionais da vida espiritual «é necessário purificá-la da recordação de coisas caducas e de assuntos mundanos, e esquecer por um certo tempo as coisas materiais e temporais, ainda que boas e úteis». No campo moral, para exercer a virtude, a pessoa que se sentiu ofendida tomará uma medida radical: «Recordo-me demais das flechadas e injúrias, de agora em diante perderei a memória».

«Devemos ter um espírito justo e razoável»
As capacidades do espírito humano, em particular do intelecto e da memória, não são destinadas só a gloriosas empresas intelectuais, mas também e sobretudo à condução da vida. Procurar conhecer o ser humano, compreender a vida e definir as normas referentes aos comportamentos conformes à razão, estes deveriam ser os deveres fundamentais do espírito humano e da sua educação. A parte central da Filotea, que trata do «exercício das virtudes», contém, quase no fim, um capítulo que resume de certo modo o ensinamento de Francisco de Sales sobre as virtudes: «Devemos ter um espírito justo e razoável».
Com fineza e uma pitada de humor, o autor denuncia numerosas condutas bizarras, insanas ou simplesmente injustas: «Acusamos o próximo por pouco, e desculpamos nós mesmos por muito mais»; «queremos vender com um preço alto e comprar a bom preço»; «o que fazemos pelos outros nos parece sempre muito, e o que fazem os outros por nós é nada»; «temos um coração doce, gracioso e cortês para conosco, e um coração duro, severo e rigoroso para com o próximo»; «temos dois pesos: um para pesar as nossas comodidades, com a maior vantagem possível para nós, o outro para pesar as do próximo, com a maior desvantagem que se pode». Para julgar bem, aconselha a Filotéia, é necessário sempre colocar-se no lugar do próximo: «Façam-se vendedoras ao comprar e compradoras ao vender». Não se perde nada em viver como pessoas «generosas, nobres, corteses, com um coração real, constante e razoável».
A razão está na base do edifício da educação. Certos pais não têm uma atitude mental justa; de fato, «há rapazes virtuosos que pais e mães não conseguem quase suportar porque têm algum defeito corporal; e há outros rapazes, ao contrário, mal-acostumados e continuamente mimados porque têm algum tipo de beleza física». Há educadores e responsáveis que se deixam levar a preferências. «Mantenham a balança bem direita entre as vossas filhas», recomendava a uma superiora das irmãs visitandinas, para que «os dons naturais não vos façam distribuir injustamente os afetos e os favores». E acrescentava: «A beleza, a boa graça e a palavra amável conferem frequentemente uma grande força de atração às pessoas que vivem segundo as suas inclinações naturais; a caridade tem como objeto a verdadeira virtude e a beleza do coração, e se estende a todos sem particularismos».
Mas é sobretudo a juventude aquela que corre os riscos maiores, porque se «o amor-próprio nos afasta geralmente da razão», isso acontece talvez ainda mais nos jovens tentados pela vaidade e pela ambição. A razão de um jovem corre o risco de perder-se sobretudo quando se deixa «levar por paixões». Atenção, portanto, escreve o bispo a um jovem, «a não permitir que os vossos afetos sejam mais fortes que o juízo e a razão na escolha dos sujeitos a amar; pois, uma vez que se pôs em marcha, o afeto arrasta o juízo, como se arrastaria um escravo, a escolhas muito deploráveis, das quais poderia arrepender-se muito em breve». Explicava também às visitandinas que «os nossos pensamentos estão geralmente cheios de razões, opiniões e considerações sugeridas pelo amor-próprio, que causa grandes conflitos na alma».

A razão, fonte das quatro virtudes cardeais
A razão assemelha-se ao rio do paraíso «que Deus faz correr para irrigar todo o ser humano em todas as suas faculdades e atividades»; ele se divide em quatro braços correspondentes às quatro virtudes que a tradição filosófica chama virtudes cardeais: a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança.
A prudência «inclina o nosso intelecto a discernir verdadeiramente o mal a evitar e o bem a cumprir». Ela consiste em «discernir quais são os meios mais apropriados para alcançar o bem e a virtude». Atenção às paixões que correm o risco de deformar o nosso juízo e de provocar a ruína da prudência! A prudência não se opõe à simplicidade: seremos, conjuntamente, «prudentes como serpentes para não sermos enganados; simples como pombas para não enganar ninguém».
A justiça consiste em «render a Deus, ao próximo e a si mesmos o que se deve». Francisco de Sales começa com a justiça para com Deus, conectada com a virtude da religião, «mediante a qual rendemos a Deus o respeito, a honra, a homenagem e a submissão a ele devidos como nosso soberano Senhor e primeiro princípio». A justiça para com os pais comporta o dever da piedade, a qual «se estende a todos os ofícios que se podem legitimamente render a eles, seja em honra, seja em serviço».
A virtude da fortaleza ajuda a «superar as dificuldades que se encontram ao cumprir o bem e ao repelir o mal». É bem necessária, porque o apetite sensitivo é «verdadeiramente um sujeito rebelde, sedicioso, turbulento». Quando a razão domina as paixões, a ira dá lugar à doçura, grande aliada da razão. A fortaleza é acompanhada frequentemente pela magnanimidade, «uma virtude que nos impele e inclina a cumprir ações de grande importância».
Enfim, a temperança é indispensável «para reprimir as inclinações desordenadas da sensualidade», para «governar o apetite da avidez» e «frear as paixões conectadas». Com efeito, se a alma se apaixona demais por um prazer e por uma alegria sensível, degrada-se, tornando-se incapaz de alegrias mais elevadas.
Em conclusão, as quatro virtudes cardeais são como as manifestações desta luz natural que nos fornece a razão. Praticando estas virtudes, a razão exerce «a sua superioridade e a sua autoridade no regular os apetites sensuais».




Ainda é necessário confessar-se?

O Sacramento da Confissão, frequentemente negligenciado na agitação contemporânea, continua sendo para a Igreja Católica uma fonte insubstituível de graça e renovação interior. Convidamos a redescobrir seu significado original: não um rito formal, mas um encontro pessoal com a misericórdia de Deus, instituído pelo próprio Cristo e confiado ao ministério da Igreja. Em uma época que relativiza o pecado, a Confissão se revela como bússola para a consciência, remédio para a alma e porta aberta para a paz do coração.

O Sacramento da Confissão: uma necessidade para a alma
Na tradição católica, o Sacramento da Confissão – também chamado Sacramento da Reconciliação ou da Penitência – ocupa um lugar central no caminho da fé. Não se trata de um simples ato formal ou de uma prática reservada a poucos fiéis particularmente devotos, mas de uma necessidade profunda que envolve todo cristão, chamado a viver na graça de Deus. Num tempo que tende a relativizar a noção de pecado, redescobrir a beleza e a força libertadora da Confissão é fundamental para responder plenamente ao amor de Deus.

O próprio Jesus Cristo instituiu o Sacramento da Confissão. Após sua Ressurreição, Ele apareceu aos Apóstolos e disse: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, serão perdoados; a quem os retiverdes, lhes serão retidos” (Jo 20,22-23). Essas palavras não são simbólicas: estabelecem um poder real e concreto confiado aos Apóstolos e, por sucessão, aos seus sucessores, os bispos e presbíteros.

O perdão dos pecados, portanto, não acontece apenas entre o homem e Deus de forma privada, mas também passa pelo ministério da Igreja. Deus, em seu plano de salvação, quis que a confissão pessoal diante de um sacerdote fosse o meio ordinário para receber Seu perdão.

A realidade do pecado
Para compreender a necessidade da Confissão, é preciso primeiro tomar consciência da realidade do pecado.
São Paulo afirma: “Todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23). E: “Se dissermos que não temos pecado, estamos enganando a nós mesmos, e a verdade não está em nós” (1Jo 1,8).
Ninguém pode se dizer imune ao pecado, nem mesmo após o Batismo, que nos purificou da culpa original. Nossa natureza humana, ferida pela concupiscência, nos leva continuamente a cair, a trair o amor de Deus com atos, palavras, omissões e pensamentos.
Escreve Santo Agostinho: “É verdade: a natureza do homem foi criada originalmente sem culpa e sem nenhum vício; ao contrário, a natureza atual do homem, pela qual cada um nasce de Adão, já precisa do Médico, porque não está saudável. Certamente, todos os bens que têm em sua estrutura, na vida, nos sentidos e na mente, os recebe do sumo Deus, seu criador e artífice. O vício, porém, que obscurece e enfraquece esses bens naturais, tornando a natureza humana necessitada de iluminação e cuidado, não o tirou de seu irrepreensível artífice, mas do pecado original cometido com o livre arbítrio.” (A natureza e a graça).

Negar a existência do pecado equivale a negar a verdade sobre nós mesmos. Só reconhecendo nossa necessidade de perdão podemos nos abrir à misericórdia de Deus, que nunca se cansa de nos chamar para Si.

A Confissão: encontro com a Misericórdia Divina
O Sacramento da Confissão é, antes de tudo, um encontro pessoal com a Misericórdia divina. Não é simplesmente uma autoacusação ou uma sessão de autoanálise; é um ato de amor por parte de Deus que, como o pai na parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32), corre ao encontro do filho arrependido, o abraça e o reveste de nova dignidade.

O Catecismo da Igreja Católica afirma: “Aqueles que se aproximam do sacramento da Penitência obtêm da misericórdia divina o perdão da ofensa feita a Deus e ao mesmo tempo são reconciliados com a Igreja que feriram pecando, e a qual colabora para sua conversão com caridade, exemplo e orações.” (CIC, 1422).

Confessar-se é deixar-se amar, curar e renovar. É acolher o dom de um coração novo.

Por que confessar-se a um sacerdote?
Uma das objeções mais comuns é: “Por que devo confessar-me a um sacerdote? Não posso confessar-me diretamente a Deus?” Certamente, todo fiel pode – e deve – dirigir-se diretamente a Deus com a oração de arrependimento. Contudo, Jesus estabeleceu um meio concreto, visível e sacramental para o perdão: a confissão a um ministro ordenado. E isso vale para todo cristão, ou seja, também para sacerdotes, bispos e papas.

O sacerdote age in persona Christi, isto é, na pessoa de Cristo mesmo. Ele escuta, julga, absolve e oferece conselhos espirituais. Não se trata de uma mediação humana que limita o amor de Deus, mas de uma garantia oferecida pelo próprio Cristo: o perdão é comunicado visivelmente, e o fiel pode ter certeza disso.

Além disso, confessar-se diante de um sacerdote exige humildade, uma virtude indispensável para o crescimento espiritual. Reconhecer abertamente suas culpas nos liberta do jugo do orgulho e nos abre à verdadeira liberdade dos filhos de Deus.

Não basta confessar-se apenas uma vez por ano, como exige o mínimo da lei eclesiástica. Os santos e mestres de espiritualidade sempre recomendaram a confissão frequente – até quinzenal ou semanal – como meio de progresso na vida cristã.

São João Paulo II se confessava toda semana. Santa Teresa de Lisieux, embora fosse monja carmelita e vivesse em clausura, confessava-se regularmente. A confissão frequente permite afinar a consciência, corrigir defeitos enraizados e receber novas graças.

Obstáculos à confissão
Infelizmente, muitos fiéis hoje negligenciam o Sacramento da Reconciliação. Entre os principais motivos estão:

Vergonha: medo do julgamento do sacerdote. Mas o sacerdote não está ali para condenar, e sim para ser instrumento de misericórdia.

Medo de que os pecados confessados venham a ser divulgados: os sacerdotes confessores não podem revelar a ninguém, em nenhuma circunstância (incluindo as maiores autoridades eclesiásticas), os pecados ouvidos na confissão, nem mesmo que percam a própria vida. Se o fizerem, incorrem imediatamente na excomunhão latae sententiaeisto é, automática, por força da própria lei – (cânon 1386, Código de Direito Canônico). A inviolabilidade do sigilo sacramental não admite exceções nem dispensas. E as condições são as mesmas mesmo que a Confissão não tenha terminado com a absolvição sacramental. Mesmo após a morte do penitente, o confessor é obrigado a observar o sigilo sacramental.

Falta de sentido do pecado: em uma cultura que minimiza o mal, corre-se o risco de não reconhecer mais a gravidade das próprias culpas.

Preguiça espiritual: adiar a Confissão é uma tentação comum que leva a esfriar o relacionamento com Deus.

Convicções teológicas erradas: alguns acreditam erroneamente que basta “arrepender-se no coração” sem necessidade da Confissão sacramental.

O desespero da salvação: alguns pensam que para eles não haverá mais perdão. Diz Santo Agostinho: “Alguns, depois de caírem no pecado, se perdem ainda mais pelo desespero e não só negligenciam o remédio do arrependimento, mas se tornam escravos de luxúrias e desejos desregrados para satisfazer apetites desonestos e reprováveis, como se, ao não o fazer, perdessem até aquilo a que a luxúria os incita, convencidos de já estarem à beira da condenação certa. Contra essa doença extremamente perigosa e prejudicial, ajuda a lembrança dos pecados em que caíram também os justos e os santos.” (ibid.)

Para superar esses obstáculos, é preciso pedir conselhos a quem pode dá-los, instruir-se e rezar.

Preparar-se bem para a confissão
Uma boa confissão requer uma preparação adequada, que inclui:

1. Exame de consciência: refletir sinceramente sobre os próprios pecados, ajudando-se também com listas baseadas nos Dez Mandamentos, nos pecados capitais ou nas Bem-aventuranças.

2. Contrição: dor sincera por ter ofendido a Deus, não apenas medo da punição.

3. Propósito de emendar-se: desejo real de mudar de vida, de evitar o pecado futuro.

4. Confissão integral dos pecados: confessar todos os pecados mortais de forma completa, especificando a natureza e o número (se possível).

5. Penitência: aceitar e cumprir a obra reparadora proposta pelo confessor.

Os efeitos da Confissão
Confessar-se não produz apenas o cancelamento externo do pecado. Os efeitos interiores são profundos e transformadores:

Reconciliação com Deus: O pecado rompe a comunhão com Deus; a Confissão a restabelece, trazendo-nos de volta à plena amizade divina.

Paz e serenidade interior: Receber a absolvição traz uma paz profunda. A consciência é libertada do peso da culpa e experimenta uma nova alegria.

Força espiritual: Por meio da graça sacramental, o penitente recebe uma força especial para combater as tentações futuras e crescer nas virtudes.

Reconciliação com a Igreja: Como todo pecado também prejudica o Corpo Místico de Cristo, a Confissão recompõe também nosso vínculo com a comunidade eclesial.

A vitalidade espiritual da Igreja depende também da renovação pessoal de seus membros. Os cristãos que redescobrem o Sacramento da Confissão tornam-se, quase sem perceber, mais abertos ao próximo, mais missionários, mais capazes de irradiar a luz do Evangelho no mundo. 
Só quem experimentou o perdão de Deus pode anunciá-lo com convicção aos outros.

O Sacramento da Confissão é um dom imenso e insubstituível. É o caminho ordinário pelo qual o cristão pode voltar a Deus sempre que se afasta. Não é um peso, mas um privilégio; não uma humilhação, mas uma libertação.

Somos chamados, portanto, a redescobrir este Sacramento em sua verdade e beleza, a praticá-lo com coração aberto e confiante, e a oferecê-lo com alegria também àqueles que se afastaram. Como afirma o salmista: “Feliz aquele cuja culpa foi cancelada e cujo pecado foi perdoado” (Sl 32,1).

Hoje, mais do que nunca, o mundo precisa de almas purificadas e reconciliadas, capazes de testemunhar que a misericórdia de Deus é mais forte que o pecado. Se não o fizemos na Páscoa, aproveitemos o mês mariano de maio e aproximemo-nos sem medo da Confissão: lá nos espera o sorriso de um Pai que nunca deixa de nos amar.




Presentes dos jovens a Maria (1865)

No sonho narrado por Dom Bosco na Crônica do Oratório, datado de 30 de maio, a devoção mariana converte-se num vívido juízo simbólico sobre os jovens do Oratório: um cortejo de jovens apresenta-se, cada qual com um dom, diante de um altar esplendidamente adornado para a Virgem. Um anjo, guardião da comunidade, acolhe ou rejeita as oferendas, desvendando-lhes o significado moral – flores perfumadas ou murchas, espinhos de desobediência, animais que personificam vícios graves como a impureza, o roubo e o escândalo. No âmago da visão, ecoa a mensagem educativa de Dom Bosco: humildade, obediência e castidade são os três pilares para se merecer a coroa de rosas de Maria.

            O Servo de Deus se consolava com a devoção a Maria Santíssima, honrada no mês de maio pela comunidade inteira de maneira especial. De suas pequenas falas à noite, a Crônica tem-nos conservado somente aquela do dia 30 do mês, que, entretanto, é de enorme preciosidade.

30 de maio

            Vi um grande altar dedicado a Maria, magnificamente decorado. Vi todos os jovens do Oratório, que em procissão se dirigiam para ele. Cantavam os louvores à Virgem Celeste, mas nem todos do mesmo modo, ainda que cantassem o mesmo hino. Muitos cantavam verdadeiramente bem e com precisão de ritmo, alguns mais forte outros mais suave. Outros cantavam com vozes péssimas e roucas. Uns destoavam. Havia os que avançavam silenciosos e saíam da fila. Uns bocejavam e pareciam enjoados; uns se empurravam e riam entre si. Todos também levavam seus presentes para oferecer a Maria. Todos tinham um ramalhete de flores, uns grandes e outros menores, diferentes um do outro. Quem tinha rosas, quem cravos, outro, violetas etc. Alguns levavam à Virgem presentes de fato estranhos: um a cabeça de um porco, outro um gato, quem um prato de sapos, quem um coelho, outro um cordeiro e outras ofertas.
            Um belo jovem estava na frente do altar, o qual, se observado com atenção se via que tinha asas nas costas. Talvez fosse o Anjo da Guarda do Oratório. À medida que os jovens chegavam, ele pegava as ofertas e as colocava sobre o altar.
            Os primeiros ofereceram magníficos buquês de flores; o anjo, sem nada dizer, os colocou no altar. Muitos outros trouxeram seus ramalhetes. O anjo os olhou, mandou desmanchar o ramalhete, fez tirar algumas flores que estavam estragadas, jogando-as fora e, refeito o ramalhete, o colocou sobre o altar. A outros que tinham flores bonitas, mas sem aroma, como seriam as dálias, as camélias etc., o anjo as fez jogar fora, pois Maria quer a realidade e não as aparências. E assim, refeito o ramalhete, o anjo o ofereceu à Virgem. Dentre as flores, muitas tinham espinhos, poucos ou muitos. Outras tinham pregos, e o anjo retirou estes e aqueles.
            Chegou, então, aquele trazia o porco, e o anjo lhe disse: – Tem coragem de oferecer a Maria este presente? Sabe o que significa o porco? Significa o vício feio da impureza. Maria que é toda pura não pode aceitar este dom. Retire-se, portanto, pois você não é digno de ficar na frente dela.
            Aproximaram-se os que tinham um gato. O anjo lhes disse: – Vocês também ousam trazer a Maria estes presentes? Sabem o que significa o gato? Simboliza o roubo, e vocês o oferecem à Virgem? São ladrões os que pegam dinheiro, coisas, livros dos companheiros; os que roubam comida do Oratório; que estragam as roupas por despeito, e desperdiçam o dinheiro dos pais porque não estudam. – E fez que estes também se retirassem à parte.
            Vieram os que tinham os pratos com sapos, e o anjo, indignado, disse: – Os sapos significam os vergonhosos pecados de escândalo, e vocês vêm para oferecê-los à Vigem? Voltem; retirem-se com os outros indignos. – Retiraram-se confusos.
            Alguns vinham com um punhal cravado no coração. Este punhal significava os sacrilégios. O anjo lhes disse: – Vocês não percebem que estão com a morte na alma? Que se estão com vida, é por misericórdia especial de Deus? De outra maneira estariam perdidos. Por favor, façam arrancar esse punhal! – E estes também foram rejeitados.
            Aos poucos todos os jovens se aproximaram. Há quem ofereceu cordeiros, coelhos, peixes, nozes, uva etc., etc. O anjo aceitou tudo e tudo colocou sobre o altar. E, após ter separados os jovens bons dos maus, mandou todos, dos quais foram aceitos os presentes a Maria, fazerem fila diante do altar. Os que tinham sido postos à parte, foram, para minha dor, muito mais numerosos do que acreditava.
            Apareceram, então, de um e de outro lado do altar, outros dois anjos. Seguravam duas riquíssimas cestas cheias de coroas feitas de rosas estupendas. Essas rosas não eram propriamente rosas da terra, mas sim, eram como que artificiais, símbolos da imortalidade.
            E o Anjo da Guarda pegou uma por uma daquelas coroas, e coroou todos os jovens que estavam enfileirados diante do altar. Entre as coroas havia umas maiores e outras menores, mas todas de admirável beleza. Notem que não estavam presentes somente os jovens atualmente da casa, mas também muitos outros que eu nunca vi. Pois bem, aconteceu uma coisa maravilhosa! Havia jovens de fisionomia tão feia que quase causavam nojo e repugnância. As estes couberam as coroas mais bonitas, significando que um exterior tão feio era suprido pelo presente, a virtude da castidade em grau eminente. Muitos se distinguiam por outras virtudes, como obediência, humildade, amor a Deus, e todos, de acordo com a grandeza destas virtudes, recebiam coroas correspondentes. E o anjo lhes disse:
            – Maria hoje quis que vocês fossem coroados com tão belas rosas. Recordem-se, contudo, de continuar de forma que não lhes sejam tiradas. Os meios para conservá-las são três. Pratiquem: 1º a humildade; 2º a obediência; 3º a castidade. Três virtudes que os farão sempre aceitos por Maria e, um dia, os tornarão dignos de receber uma coroa infinitamente mais linda do que estas.
            Então os jovens começaram a entoar diante do altar o Ave, Maris Stella (Ave, estrela do mar).
            E, tendo cantado a primeira estrofe, se movimentaram para retornar em procissão como tinham vindo, cantando o hino: Lodate Maria! Suas vozes eram tão fortes que eu fiquei espantado e maravilhado. Segui-os ainda por alguns instantes, voltando para ver os jovens separados pelo anjo. Porém não os vi mais.
            Meus caros! Sei quem foi coroado e quem o anjo expulsou. Di-lo-ei aos interessados, a fim de que procurem levar à Virgem presentes que ela se digne aceitar.
            Enquanto isso, algumas observações. – A primeira: Todos levavam flores à Virgem; havia flores de todos os tipos. Porém, observei que todos, quem mais quem menos, no meio das flores tinham espinhos. Pensei e pensei o que significariam aqueles espinhos, e descobri que realmente significavam a desobediência. Conservar dinheiro sem autorização e sem querer entregá-lo ao Prefeito [ecônomo]; solicitar permissão para ir a um lugar e depois ir num outro; ir para a aula quando os outros lá já se encontram há algum tempo; preparar saladas e outras comidas às escondidas; ir aos dormitórios dos outros quando é absolutamente proibido, qualquer que seja o motivo que possam ter; levantar-se tarde de manhã; deixar as práticas de piedade prescritas; conversar quando é tempo de fazer silêncio; comprar livros sem os mostrar; enviar sem licença cartas por meio de terceiros, para que não sejam vistas, e recebê-las usando o mesmo expediente; fazer contratos de compra e venda um com o outro. Eis o que significam os espinhos. Muitos de vocês perguntarão: é então pecado transgredir as regras da casa? Pensei seriamente nesta questão; respondo-lhes absolutamente, sim. Não lhes digo se grave ou leve: as circunstâncias dirão, mas é pecado. Alguém me dirá: mas na lei de Deus não está que devemos obedecer às regras da casa! Ouçam: está nos mandamentos: – honra pai e mãe! Sabem o que significam estas palavras pai e mãe? Referem-se também a quem lhes faz as vezes. Não está também escrito na sagrada escritura: oboedite praepositis vestris (Obedecei aos vossos dirigentes – Hb 13,17)? Se vocês têm de obedecer, é natural que eles têm de mandar. Eis a origem das regras de um Oratório, e eis se são obrigatórias ou não.
            Segunda observação: – Alguns tinham pregos no meio de suas flores, pregos que tinham servido para pregar o Senhor Jesus. E como? Sempre se começa pelas pequenas coisas e depois se chega às grandes. Aquele um queria ter dinheiro para satisfazer seus caprichos, portanto, para gastá-lo à sua maneira, não quis entregá-lo; depois começou a roubar livros de aula e terminou por furtar dinheiro e coisas dos colegas. Esse outro queria satisfazer a gula, e por isso garrafas etc., depois se permitiu licenças, em suma, caiu em pecado mortal. Eis como se acharam pregos naqueles ramalhetes; eis como o bom Jesus foi crucificado. O apóstolo diz que os pecados colocam de novo o Salvador na Cruz: Rursus crucifigentes filium Dei (Crucificam novamente o Filho e Deus – Hb 6,6).
            Terceira observação. – Muitos jovens tinham, entre as flores frescas e odoríferas, também flores murchas e podres, ou flores bonitas, mas sem aroma. Aquelas significavam as obras boas, mas feitas em pecado mortal, obras que não ajudam a aumentar seus merecimentos. As flores sem aroma são as obras realizadas por objetivos humanos, por ambição, somente para agradar aos professores e aos superiores. Então o anjo os censurava por ousarem levar semelhantes ofertas a Maria, e os mandava de volta para refazer o ramalhete. Eles se retiravam, o desfaziam, tiravam as flores estragadas e, depois, ajeitadas de novo as flores, as amarravam como antes, e as levavam ao anjo que, então, as aceitava e as colocava na mesa. Estes ao voltar não seguiam nenhuma ordem de fila, mas mal estavam prontos, quem antes, quem depois, cada um trazia de volta seu ramalhete e ia se colocar com aqueles que deviam receber a coroa.
            Neste sonho eu vi tudo o que foi e o que será de meus jovens. Para muitos já o disse. Aos outros, di-lo-ei. Por enquanto, procurem que esta Virgem Celeste sempre receba de vocês presentes que nunca tenham de ser recusados.
(MBp VIII, 157-161)

Foto de abertura: Carlo Acutis durante uma visita ao Santuário Mariano de Fátima.




São Domingos Sávio. Os lugares da infância

São Domingos Sávio, o “pequeno grande santo”, viveu sua breve mas intensa infância entre as colinas do Piemonte, em lugares hoje repletos de memória e espiritualidade. Por ocasião de sua beatificação em 1950, a figura deste jovem discípulo de Dom Bosco foi celebrada como símbolo de pureza, fé e dedicação evangélica. Percorremos os principais lugares de sua infância — Riva presso Chieri, Morialdo e Mondonio — através de testemunhos históricos e relatos vívidos, revelando o ambiente familiar, escolar e espiritual que forjou seu caminho rumo à santidade.

            O Ano Santo de 1950 foi também o da beatificação de Domingos Sávio, que ocorreu em 5 de março. O discípulo de Dom Bosco, de 15 anos de idade, foi o primeiro santo leigo “confessor” a subir aos altares em uma idade tão jovem.
            Naquele dia, a Basílica de São Pedro estava repleta de jovens que deram testemunho, com sua presença em Roma, de uma juventude cristã totalmente aberta aos ideais mais sublimes do Evangelho. Segundo a Rádio Vaticana, a Basílica se transformou em um imenso e barulhento oratório salesiano. Quando o véu que cobria a figura do novo Beato caiu dos raios de Bernini, um aplauso frenético se elevou de toda a basílica e o eco chegou até a praça, onde a tapeçaria que representava o Beato foi descoberta na “Loggia” [balcão] das Bênçãos.
            Naquele dia, o sistema educativo de Dom Bosco recebeu seu maior reconhecimento. Quisemos revisitar os lugares da infância de Domingos, depois de reler as informações detalhadas do P. Miguel Molineris naquela Nova Vida de Domingos Sávio, na qual ele descreve com a sua conhecida seriedade de documentação o que as biografias de São Domingos Sávio não dizem.

Em Riva perto de Chieri
            Em primeiro lugar, estamos em São João de Riva perto de Chieri, o vilarejo onde nosso “pequeno grande santo” nasceu em 2 de abril de 1842, filho de Carlos Sávio e Brígida Gaiato, o segundo de dez filhos, herdando do primeiro, que sobreviveu apenas 15 dias após seu nascimento, seu nome e seu direito de primogenitura.
            Seu pai, como sabemos, veio de Ranello, um vilarejo de Castelnuovo d’Asti, e quando jovem foi morar com seu tio Carlos, um ferreiro em Mondonio, em uma casa na atual Rua Junípero, no número 1, ainda chamada de “ca dèlfré” ou casa do ferreiro. Lá, com o “Barba Carlòto” [Tio Carlòto”], ele aprendeu o ofício. Algum tempo depois de seu casamento, contraído em 2 de março de 1840, ele se tornou independente, mudando-se para a casa dos Gastaldi em São João de Riva. Ele alugou uma acomodação com cômodos no andar térreo adequados para uma cozinha, depósito e oficina, e quartos no primeiro andar, acessíveis por uma escada externa que agora desapareceu.
            Os herdeiros de Gastaldi venderam a casinha e o rancho adjacente para os salesianos em 1978. E hoje um moderno centro de acolhida juvenil, administrado por ex-alunos e cooperadores salesianos, dá memória e nova vida à pequena casa onde Domingos nasceu.

Em Morialdo
            Em novembro de 1843, ou seja, quando Domingos ainda não tinha completado dois anos de idade, a família Sávio, por motivos de trabalho, mudou-se para Morialdo, o vilarejo de Castelnuovo ligado ao nome de São João Bosco, que nasceu na propriedade Biglione, um vilarejo no distrito de Becchi.
            Em Morialdo, os Sávio alugaram alguns quartos pequenos perto da varanda de entrada da propriedade de Joana Viale, que havia se casado com Estêvão Persoglio. Mais tarde, todo o campo foi vendido por seu filho, Alberto Persoglio, para José Pianta e família.
            Atualmente, esse terreno também é, em sua maior parte, propriedade dos salesianos que, depois de restaurá-la, a utilizam para encontros de crianças e adolescentes e para visitas de peregrinos. A menos de 2 km do Colle Don Bosco, ela está situada em um ambiente campestre, em meio a parreirais, campos férteis e prados ondulantes, com um ar de alegria na primavera e nostalgia no outono, quando as folhas amareladas são douradas pelos raios do sol, com um panorama encantador em dias bonitos, quando a cadeia dos Alpes se estende no horizonte desde o pico do Monte Rosa, perto de Albugnano, até o Gran Paradiso, Rocciamelone e Monviso, é realmente um lugar para se visitar e usar em dias de intensa vida espiritual, uma escola de santidade no estilo de Dom Bosco.
            A família Sávio permaneceu em Morialdo até fevereiro de 1853, ou seja, por nove anos e três meses. Domingos, que viveu apenas 14 anos e 11 meses, passou quase dois terços de sua curta existência lá. Portanto, ele pode ser considerado não apenas o aluno e filho espiritual de Dom Bosco, mas também seu conterrâneo.

Em Mondonio
            O P. Molineris sugere a razão de a família Sávio ter deixado Morialdo. Seu tio, o ferreiro, havia morrido e o pai de Domingos poderia herdar não apenas as ferramentas do ofício, mas também a clientela em Mondonio. Esse foi provavelmente o motivo da mudança, que ocorreu, no entanto, não para a casa na Rua Junípero, mas para a parte baixa da vila, onde alugaram dos irmãos Bertello a primeira casa à esquerda da rua principal da vila. A pequena casa consistia, e é assim ainda hoje, em um andar térreo com dois cômodos, adaptados como cozinha e sala de trabalho, e um andar superior, acima da cozinha, com dois quartos e espaço suficiente para uma oficina com uma porta na rampa da rua.
            Sabemos que o Sr. e a Sra. Sávio tiveram dez filhos, três dos quais morreram muito jovens e outros três, incluindo o nosso, não chegaram a completar 15 anos de idade. A mãe morreu em 1871, aos 51 anos de idade. O pai, ficando sozinho em casa com o filho João, depois de ter acolhido as três filhas sobreviventes, pediu hospitalidade a Dom Bosco em 1879 e morreu em Valdocco em 16 de dezembro de 1891.
            Domingos havia entrado em Valdocco aos 29 de outubro de 1854, permanecendo lá, exceto por curtos períodos de férias, até 1º de março de 1857. Ele morreu oito dias depois em Mondonio, no pequeno quarto ao lado da cozinha, em 9 de março daquele ano. Sua permanência em Mondonio foi, portanto, de cerca de 20 meses no total, e em Valdocco, de 2 anos e 4 meses.

Lembranças de Morialdo
            A partir dessa breve análise das três casas da família Sávio, fica claro que a de Morialdo deve ser a mais rica em lembranças. São João de Riva lembra o nascimento de Domingos, e Mondonio um ano na escola e de sua santa morte; mas Morialdo lembra sua vida na família, na igreja e na escola. Quantas coisas “Minòt”, como era chamado lá, deve ter ouvido, visto e aprendido com seu pai e sua mãe, quanta fé e amor ele demonstrou na pequena igreja de São Pedro, quanta inteligência e bondade na escola do P. João Zucca, e quanta diversão e vivacidade no parquinho com seus companheiros da vila.
            Foi em Morialdo que Domingos Sávio se preparou para a Primeira Comunhão, que ele fez na igreja paroquial de Castelnuovo em 8 de abril de 1849. Foi lá, quando tinha apenas 7 anos de idade, que ele escreveu as “Lembranças”, ou seja, os propósitos de sua Primeira Comunhão:
            1. Irei me confessar com muita frequência e comungarei sempre que o confessor me der permissão;
            2. Quero santificar os dias de festa;
            3. Meus amigos serão Jesus e Maria;
            4. A morte, mas não os pecados.
            Lembranças que foram o guia de suas ações até o fim de sua vida.
            O comportamento, a maneira de pensar e de agir de um menino refletem o ambiente em que ele viveu e, especialmente, a família em que passou a infância. Portanto, para entender algo sobre Domingos, é sempre bom refletir sobre sua vida naquela propriedade de Morialdo.

A família
            Sua família não era de agricultores. Seu pai era ferreiro e sua mãe costureira. Seus pais não eram de constituição robusta. Os sinais de cansaço podiam ser vistos no rosto de seu pai, enquanto a delicadeza das linhas distinguia o rosto de sua mãe. O pai de Domingos era um homem de iniciativa e coragem. Sua mãe veio da não muito distante Cerreto d’Asti, onde mantinha uma oficina de costura “e, com sua habilidade, livrava aqueles habitantes da chateação de descer ao vale para comprar tecidos”. E ela ainda era costureira em Morialdo também. Será que Dom Bosco sabia disso? Curioso, porém, o seu diálogo com o pequeno Domingos, que tinha ido procurá-lo nos Becchi:
– Bem, o que você acha?
            – Eh, parece-me que seja um bom tecido
(em piem.: Eh, m’a smia ch’a-j’sia bon-a stòfa!).
– Para que pode servir esse tecido?
            – Para fazer uma linda roupa para oferecer ao Senhor.
            – Então, eu sou o tecido: o senhor seja o alfaiate; leve-me consigo
(em piem.: ch’èmpija ansema a chiel) e fará uma bela roupa para o Senhor” (OE XI, 185).
            Um diálogo inestimável entre dois conterrâneos que se entenderam à primeira vista. E a linguagem deles era perfeita para o filho da costureira.
            Quando sua mãe morreu, em 14 de julho de 1871, o pároco de Mondonio, P. João Pastrone, dizia às filhas chorosas para consolá-las: “Não chorem, porque a mãe de vocês era uma mulher santa; e agora ela já está no Paraíso”.
            Seu filho Domingos, que a precedeu no céu por vários anos, também disse a ela e a seu pai, antes de falecer: “Não chorem, já vejo o Senhor e Nossa Senhora de braços abertos esperando por mim”. Essas suas últimas palavras, testemunhadas por sua vizinha Anastácia Molino, que estava presente no momento de sua morte, foram o selo de uma vida alegre, o sinal manifesto daquela santidade que a Igreja reconheceu solenemente em 5 de março de 1950, dando-lhe mais tarde a confirmação definitiva em 12 de junho de 1954 com sua canonização.

Foto na página de rosto. A casa onde Domingos morreu em 1857. É uma construção de tipo rural, datada provavelmente do final de 1600. Reconstruída sobre outra casa ainda mais antiga, é um dos monumentos mais queridos pelos Mondonienses.




Propósitos ineficazes: caminho para o inferno (1873)

São João Bosco relata em uma “boa noite” o resultado de uma longa súplica à Madonna Auxiliadora: compreender a causa principal da condenação eterna. A resposta, recebida em sonhos repetidos, é chocante em sua simplicidade: a falta de uma firme e concreta resolução ao final da Confissão. Sem uma decisão sincera de mudar de vida, até mesmo o sacramento se torna estéril e os pecados se repetem.

            Uma advertência solene: Por que tantos jovens se perdem?… Porque não fazem bons propósitos quando se confessam.

            Na noite de 31 de maio de 1873, após as orações, ao dar a boa-noite aos jovens, o Santo fez esta importante declaração, dizendo que ela era “o resultado de suas pobres orações” e “que ela vinha de Deus!”

            Durante todo o tempo da novena de Maria Auxiliadora, aliás, durante todo o mês de maio, na Missa e nas outras orações, pedi a Deus e a Nossa Senhora a graça de conhecer um pouco o que é que leva mais pessoas para o inferno.           Agora não digo se isso vem diretamente de Deus ou não. Só posso dizer que quase todas as noites eu sonhei que a razão principal era a falta de propósitos firmes na Confissão. Assim, parecia-me ver jovens que saíam da igreja para se confessar e, no entanto, tinham dois chifres. Eu dizia a mim mesmo:
            – Como isso é possível? – Ah! Isso provém da ineficácia dos propósitos feitos na Confissão!
            Este é motivo pelo qual tantos jovens vão se confessar, até mesmo com frequência, mas não se emendam nunca, confessam sempre as mesmas coisas. Há alguns (falo de forma hipotética, não me sirvo em nada da Confissão, porque há o segredo) que no princípio do ano tomaram um propósito e agora têm ainda o mesmo propósito. Outros murmuravam no princípio do ano e continuam sempre com as mesmas faltas.
            Eu julguei que podia dizer-lhes essas coisas porque este é o resultado das pobres orações de Dom Bosco, e vem de Deus.

            A respeito deste sonho não forneceu em público outros detalhes, mas sem dúvida serviu-se dele privadamente para encorajar e advertir. Para nós também, o pouco que disse e a forma como disse continua sendo uma grave advertência a ser lembrada com frequência aos jovens.
(MBp X, 62-63)




Educar nossas emoções com São Francisco de Sales

A psicologia moderna demonstrou a importância e a influência das emoções na vida da psique humana e se sabe que as emoções são particularmente fortes durante a juventude. Mas quase não se fala das «paixões da alma», que a antropologia clássica analisou cuidadosamente, como testemunha a obra de Francisco de Sales, particularmente quando escreve que «a alma, enquanto tal, é a fonte das paixões». Em seu vocabulário, o termo «emoção» não aparece ainda com as conotações que lhe atribuímos hoje. Dirá, em vez disso, que as nossas «paixões» em certas circunstâncias são «moções». No âmbito educativo, a questão que se coloca diz respeito à atitude que convém ter diante dessas manifestações involuntárias da nossa sensibilidade, que têm sempre um componente fisiológico.

«Eu sou um pobre homem e nada mais»
         Todos aqueles que conheceram Francisco de Sales notaram sua grande sensibilidade e emotividade. O sangue lhe subia à cabeça e o rosto ficava todo vermelho. Conhecemos seus acessos de ira contra os «hereges» e a cortesã de Pádua. Como toda pessoa nascida na Saboia, era «habitualmente calmo e doce, mas capaz de terríveis acessos de ira; era um vulcão sob a neve». Sua sensibilidade era muito viva. Por ocasião da morte de Jeanne, sua irmã mais nova, escrevia a Joana Francisca Frémiot de Chantal, também consternada:

         Ai de mim, minha filha: eu sou um pobre homem e nada mais. Meu coração se enterneceu muito mais do que jamais imaginei; mas a verdade é que muito contribuiu o desgosto vosso e de minha mãe: tive medo pelo vosso coração e pelo de minha mãe.

         Na morte da mãe, não escondeu que aquela separação lhe havia feito derramar lágrimas; teve a dura coragem de lhe fechar os olhos e a boca e de lhe dar um último beijo, mas depois disso, confidenciava a Joana Francisca Frémiot de Chantal, «o coração se encheu de emoção e chorei por esta boa mãe mais do que jamais havia feito desde o dia em que abracei o sacerdócio». Ele, de fato, não freava as constantes manifestações exteriores de seus sentimentos, que seu humanismo aceitava tranquilamente. Um precioso testemunho de Joana Francisca Frémiot de Chantal nos informa que «o nosso santo não era isento de sentimentos e de muitas das paixões, dos quais não queria ser libertado».
         Sabe-se bem que as paixões da alma têm influência sobre o corpo, provocando reações exteriores aos seus movimentos interiores: «Nós externamos e manifestamos nossas paixões e os movimentos que nossas almas têm em comum com os animais por meio dos olhos, com movimentos das sobrancelhas, da fronte e de todo o rosto». Assim, não está em nosso poder não sentir medo em determinadas circunstâncias: «É como se alguém dissesse a uma pessoa que está vendo vir em sua direção um leão ou um urso: Não tenha medo». Ora, «quando se sente temor, fica-se pálido, e quando somos repreendidos por uma coisa que nos contraria, o sangue sobe ao rosto e ficamos vermelhos, e quando somos contrariados brotam lágrimas de nossos olhos». As crianças «se veem um cão que late, imediatamente começam a gritar e não param até que estejam perto da mamãe».
         Quando a senhora de Chantal encontrar o assassino do marido, como reagirá seu «coração»? «Sei que, sem dúvida, vosso coração saltará e se sentirá abalado, e vosso sangue ferverá», prevê o seu diretor espiritual, acrescentando esta lição de sabedoria: «Deus nos faz tocar com a mão, nessas emoções, o quanto é verdade que somos feitos de carne, de ossos e de espírito».

As doze paixões da alma
         Na antiguidade, Virgílio, Cícero e Boécio reduziam a quatro as paixões da alma, enquanto Santo Agostinho conhecia uma só paixão dominante, o amor, articulado por sua vez em quatro paixões secundárias: «O amor que tende a possuir aquilo que ama, chama-se cupidez ou desejo; quando o consegue e o possui, chama-se alegria; quando foge daquilo que lhe é contrário, chama-se temor; se lhe acontece de perdê-lo e se sente o peso disso, chama-se tristeza».
         No seu livro “Filoteia”, Francisco de Sales assinala sete paixões da alma, comparando-as às cordas que o tocador de alaúde deve afinar, de vez em quando: o amor, o ódio, o desejo, o temor, a esperança, a tristeza e a alegria.
         No seu livro “Teótimo”, vai além e enumera até doze. Surpreende que «esta multidão de paixões […] seja deixada em nossas almas!». As primeiras cinco têm por objeto o bem, ou seja, tudo aquilo que nossa sensibilidade nos faz espontaneamente buscar e apreciar como bom para nós (pensemos nos bens fundamentais da vida, da saúde e da alegria):

         Se o bem é considerado em si mesmo, segundo sua bondade natural, gera o amor, primeira e principal paixão; se o bem é considerado na sua falta, provoca o desejo; se, desejando-o, se pensa de poder consegui-lo, tem-se a esperança; se se teme não poder obtê-lo, entra-se no desespero; e quando, de fato, o possuímos, temos a alegria.

         As outras sete paixões são aquelas que nos fazem espontaneamente reagir negativamente diante de tudo aquilo que entendemos como mal a evitar e a combater (pensemos na doença, no sofrimento e na morte):

Assim que conhecemos o mal, o odiemos; se está ausente, fujamos dele; se acreditamos de não poder evitá-lo, o temamos; se achamos que podemos evitá-lo, nos animemos e tenhamos coragem; mas se o sentimos presente, nos entristecemos, e então a ira e o desgosto intervêm repentinamente para repeli-lo e afastá-lo ou, ao menos,  vingar-se dele; e, se isso não acontece, permanecemos na tristeza; mas, se conseguimos repeli-lo ou nos vingarmos, provamos satisfação e uma sensação de paz, que é o prazer do triunfo, porque assim como a posse do bem alegra o coração, a vitória sobre o mal satisfaz a coragem.

         Como se vê, às onze paixões da alma propostas por São Tomás de Aquino, Francisco de Sales acrescenta a vitória sobre o mal, que «satisfaz a coragem» e provoca a alegria do triunfo.

O amor, primeira e principal paixão
         Como se imaginava, o amor é apresentado como a «primeira e principal paixão»: «O amor vem em primeiro lugar, entre as paixões da alma: é o rei de todos os movimentos do coração, transforma em si todo o resto e nos faz ser aquilo que ele ama». «O amor é a primeira paixão da alma», repete.
         Ele se manifesta de mil maneiras e sua linguagem é muito diversificada; de fato, «não se expressa somente com palavras, mas também com os olhos, com os gestos e com as ações. No que diz respeito aos olhos, as lágrimas que brotam deles são provas de amor». Há também os «suspiros de amor». Mas tais manifestações de amor são diferentes. A mais habitual e superficial é a emoção ou paixão, a qual põe em movimento quase involuntariamente a sensibilidade.
         E o ódio? Odiamos espontaneamente aquilo que para nós parece um mal. É preciso saber que, entre as pessoas, há formas de ódio e de aversões instintivas, irracionais, inconscientes, como aquelas existentes entre o burro e o cavalo, entre a vinha e os repolhos. Não temos nenhum domínio sobre eles porque não dependem de nossa vontade.

O desejo e a fuga
         O desejo é outra realidade fundamental de nossa psique. A vida cotidiana provoca múltiplos desejos, porque o desejo consiste na «esperança de um bem futuro». Os mais comuns desejos naturais são aqueles que «dizem respeito aos bens, aos prazeres e às honras».
         Ao contrário, nós fugimos espontaneamente dos males da vida. A vontade humana de Cristo o impelia a fugir das dores e dos sofrimentos da paixão; daí o tremor, a angústia e o suor de sangue.

A esperança e o desespero
         A esperança diz respeito a um bem que se pensa poder obter. Filoteia é convidada a examinar como se comportou em referência à «esperança, talvez muito frequentemente depositada no mundo e na criatura, e muito pouco em Deus e nas coisas eternas».
         Quanto ao desespero, vejam por exemplo aquele dos «jovens aspirantes à perfeição»: «Assim encontram uma dificuldade em seu caminho, logo surge uma sensação de desapontamento que os impele a lamentar-se muito, tal a dar a impressão de serem perturbados por grandes tormentos. O orgulho e a vaidade não podem tolerar o mínimo defeito sem se sentirem logo fortemente perturbados, a ponto de chegar ao desespero».

A alegria e a tristeza
         A alegria é «a satisfação pelo bem obtido». Assim, «quando encontramos aqueles que amamos, não é possível não se comover pela alegria e pela satisfação». A posse de um bem produz infalivelmente uma complacência ou alegria, assim como a lei da gravidade move a pedra: «É o peso que sacode as coisas, as move e as detém: é o peso que move a pedra e a arrasta na descida, assim que são removidos os obstáculos; é o mesmo peso que a faz continuar o movimento para baixo; enfim, é sempre o mesmo peso que a faz parar e se assentar quando chega ao seu lugar».
         A alegria leva, por vezes, ao riso. «O riso é uma paixão que irrompe sem que o queiramos e não está em nosso poder retê-lo, tanto damos risadas e somos levados a rir por circunstâncias imprevistas». Nosso Senhor riu? O bispo de Genebra pensa que Jesus sorria quando queria: «Nosso Senhor não podia rir, porque para ele nada era imprevisto, dado que conhecia tudo antes que acontecesse; podia, certamente, sorrir, mas o fazia voluntariamente».
         As jovens visitandinas, tomadas às vezes por um irrefreável riso quando uma companheira batia no peito ou uma leitora cometia um erro durante a leitura à mesa, precisavam de uma pequena lição sobre este ponto: «Os loucos riem de qualquer situação, porque tudo os surpreende, não conseguindo prever nada; mas os sábios não riem com tanta leviandade, porque usam muito mais a reflexão, que faz com que prevejam as coisas que devem acontecer». Dito isso, não é um defeito rir de alguma imperfeição, «desde que não seja algo exagerado».
         A tristeza é «a dor por um mal presente». Ela «perturba a alma, provoca temores desmedidos, faz experimentar desgosto pela oração, enfraquece e adormece o cérebro, priva a alma de sabedoria, de resolução, de juízo e coragem, e aniquila as forças»; é «como um duro inverno que arruína toda a beleza da terra e torna indolentes todos os animais; porque tira toda a suavidade da alma e a torna preguiçosa e impotente em todas as suas faculdades».
         Algumas vezes podem cair no choro: um pai, ao enviar o filho à côrte ou aos estudos, não consegue se conter «de chorar ao se despedir dele»; e «uma filha, embora tenha se casado com a permissão do pai e da mãe, os comove até as lágrimas ao momento de receber a bênção nupcial». Alexandre Magno chorou quando veio a saber que havia outras terras que nunca poderia conquistar: «Como uma criança que chora por uma maçã que lhe é negada, aquele Alexandre, que os historiadores chamam o Grande, mais infantil do que uma criança, começa a chorar copiosamente, porque lhe parece impossível conquistar os outros mundos».

A coragem e o medo
         O temor se refere a um «mal futuro». Alguns, querendo ser corajosos, andam por aí durante a noite, mas «assim que ouvem uma pedra cair ou o barulho de um rato fugindo, começam a gritar: Meu Deus! – O que houve? O que aconteceu? – Ouvi um barulho. – Mas o era? – Não sei». É necessário ser cauteloso, porque «o medo é um mal maior do que o próprio mal».
         Quanto à coragem, antes de ser uma virtude, é um sentimento que nos sustenta diante de dificuldades que normalmente deveriam nos abater. Francisco de Sales a experimentou ao empreender uma longa e arriscada visita à sua montanhosa diocese:

Estou prestes a montar a cavalo para a visita pastoral, que durará cerca de cinco meses. […] Parto cheio de coragem e, desde esta manhã, senti uma grande alegria de poder começar, embora que antes, por vários dias, tivesse sentido vãos temores e tristezas.

A cólera e o sentimento do triunfo
         Quanto à ira ou cólera, não podemos impedir de sermos tomados por ela em certas circunstâncias: «Se me dizem que alguém falou mal de mim ou que me causem alguma outra contrariedade, imediatamente explode a cólera e não me resta nem uma veia que não se contorça, porque o sangue ferve». Mesmo nos mosteiros da Visitação, as ocasiões de irritar-se e zangar-se não faltavam, e os ataques do «apetite irascível» se faziam sentir prepotentes. Nada de estranho nisso: «Impedir que o ressentimento da cólera se desperte em nós e que o sangue nos suba à cabeça, nunca será possível; seremos afortunados se pudermos ter essa perfeição um pouco antes de morrer». Pode também acontecer «que a ira perturbe e vire de cabeça para baixo o meu pobre coração, que faça sair fumaça pela minha cabeça e que faça o sangue ferver como uma panela no fogo».
         O aplacamento da ira, após ter superado o mal, causa a euforia do triunfo. Aquele que triunfa «não pode conter o transbordamento de sua alegria».

Em busca do equilíbrio
         As paixões e os movimentos da alma são, na maioria das vezes, independentes da nossa vontade: «Não se pretende que vocês que não tenham paixões; não depende de vocês», dizia às filhas da Visitação, acrescentando: «O que pode fazer uma pessoa para ter este ou aquele temperamento, ser sujeita a esta ou aquela paixão? Tudo está, portanto, nas ações que fazemos derivar por meio daquele movimento, que depende da nossa vontade».
         Uma coisa é certa, os movimentos da alma e as paixões fazem do ser humano um ser extremamente sujeito a variações da «temperatura» psicológica, como se fossem variações climáticas. «A sua vida corre sobre esta terra como as águas, flutuando e ondulando em uma perpétua variedade de movimentos». «Hoje se estará feliz ao extremo e, logo depois, exageradamente tristes. Em tempo de carnaval serão vistas demonstrações de alegria e de entusiasmo, com ações tolas e meio loucas, mas depois, logo depois, serão vistos sinais de tristeza e de tédio tão exagerados a ponto de fazer pensar que se trata de coisas terríveis e, aparentemente, irremediáveis. Um outro, no presente, será demasiadamente confiante e nada o assustará, e, logo depois, será tomado por uma angústia que o levará para debaixo da terra».
         O diretor espiritual de Joana de Chantal identificou bem as diversas «estações da alma» atravessadas por esta nos inícios de sua fervorosa vida:

Vejo que se encontram em sua alma todas as estações do ano. Ora sentes o inverno através das muitas esterilidades, distrações, cansaços e aborrecimentos; ora os orvalhos do mês de maio, com o perfume das santas florezinhas, e ora o calor dos desejos de agradar ao nosso bom Deus. Não resta senão o outono do qual, como dizes, não vês muitos frutos. Frequentemente acontece que, debulhando o grão ou esmagando a uva, se encontra um fruto mais abundante do que prometiam as colheitas e a vindima. Você gostaria que fosse sempre primavera ou verão; mas não, minha Filha: é preciso que aconteça a alternância das estações no nosso interior assim como no nosso exterior. Somente no céu tudo será primavera quanto à beleza, tudo será outono, quanto ao gozo, e tudo será verão quanto ao amor. No céu não haverá mais inverno, mas aqui ele é necessário para o exercício da abnegação e de mil pequenas e belas virtudes, que se exercitam no tempo da escassez.

         A saúde da alma como a do corpo não pode consistir em eliminar estes quatro humores, mas em alcançar uma «invariabilidade de humor». Quando uma paixão predomina sobre as outras, causa as doenças da alma; e como é extremamente difícil controlá-la, acontece que as pessoas são bizarras e variáveis, e por isso não se vê outra coisa entre elas senão fantasias, inconstâncias e estupidez.
         As paixões têm de bom o fato de nos consentir «exercitar a vontade na aquisição da virtude e na vigilância espiritual». Apesar de certas manifestações, nas quais se deve «sufocar e reprimir as paixões», para Francisco de Sales não se trata de eliminá-las, coisa impossível, mas de controlá-las o máximo que se consegue, ou seja, moderá-las e orientá-las a um fim que seja bom.
         Não se trata, portanto, de fingir ignorar as nossas manifestações psíquicas, como se não existissem (o que, mais uma vez, é impossível), mas de «vigiar continuamente sobre o próprio coração e sobre o próprio espírito para manter as paixões na norma e sob o controle da razão; caso contrário, sempre se terá coisas novas e comportamentos desiguais». Filoteia só será feliz quando tiver «apaziguado e pacificado tantas paixões que [lhe] provocavam inquietude».
         Ter um espírito constante é um dos melhores ornamentos da vida cristã e um dos mais amáveis meios para adquirir e conservar a graça de Deus, e também para edificar o próximo. «A perfeição, portanto, não consiste na ausência das paixões, mas sim na sua correta regulação; as paixões estão para o coração como as cordas para uma harpa: é preciso que estejam afinadas para que possamos dizer: Te louvaremos com a harpa».
         Quando as paixões nos fazem perder o equilíbrio interior e exterior, dois métodos são possíveis: «opor paixões contrárias, ou então, opor paixões maiores, mas do mesmo tipo». Se sou perturbado pelo «desejo das riquezas ou do prazer voluptuoso», combaterei tal paixão com o desprezo e a fuga, ou então aspirarei a riquezas e prazeres superiores. Posso lutar contra o medo físico com o seu contrário, que é a coragem, ou então desenvolvendo um temor salutar referente à alma.
         O amor de Deus, por sua vez, imprime às paixões uma verdadeira e própria conversão, mudando-lhes a orientação natural e apresentando-lhes um fim espiritual. Por exemplo, «o apetite pelos alimentos pode se tornar muito espiritual se, antes de satisfazê-lo, lhe é dado o motivo do amor: e não, Senhor, não é para contentar este pobre ventre e nem para satisfazer este apetite que vou à mesa, mas, segundo a tua Providência, é para manter este corpo que tu fizeste sujeito a tal miséria; sim, Senhor, porque assim agradou a ti».
         A transformação assim operada se assemelhará a um «artifício» utilizado na alquimia que muda o ferro em ouro. «Ó santa e sacra alquimia!», – escreve o bispo de Genebra – «ó pó divino da fusão, com a qual todos os metais das nossas paixões, afetos e ações se transformam no ouro puríssimo da celeste dileção!».
         Mudanças de humor, paixões e imaginações estão profundamente radicados na alma humana: representam um recurso excepcional para a vida da alma. Será tarefa das faculdades superiores, a razão e, sobretudo, a vontade, moderá-las e governá-las. Mesmo sendo difícil, Francisco de Sales a cumpriu com sucesso, porque, segundo quanto afirma a Madre de Chantal, «possuía um tal domínio absoluto sobre suas paixões a ponto de torná-las obedientes como se fossem suas escravas; e no fim quase não se faziam mais perceber».