A educação familiar

Ao lado do “sentimento pela criança”, o século XV viu o desenvolvimento de um sentimento pela família, que era pouco evidente na Idade Média, quando se dava prioridade às relações com a massa do povo, deixando pouco espaço para a intimidade e a vida privada. Por outro lado, assiste-se a uma reavaliação do casamento e da família em detrimento do celibato eclesiástico e monástico. Para os humanistas e reformadores, essas realidades favoreciam muito a vida da sociedade e da Igreja. Lutero e Calvino, não satisfeitos em denunciar o celibato de monges e sacerdotes como causa de imoralidade e hipocrisia, incentivaram o casamento para todos.
São Francisco de Sales, embora mantivesse a tradição do celibato religioso e sua superioridade evangélica, não deixou de ir além das convenções sociais da época. A maior parte de suas cartas de direção espiritual são dirigidas a homens e mulheres casados. Em sua Introdução à vida devota, escreveu dois capítulos de inegável originalidade em relação a toda a literatura espiritual do passado. Um contém “conselhos para pessoas casadas”, o outro trata da “honestidade da cama conjugal”.

O casamento é uma vocação
            O casamento é um “vínculo humano pelo qual coração, corpo e bens se comunicam mutuamente”. Depois de afirmar com firmeza que o casamento é “honrável por todos, em todos e para todos, ou seja, em todas as suas partes”, o autor da Filoteia explica: “Por todos, porque até os virgens devem honrá-lo com humildade; em todos, porque é igualmente santo entre pobres e ricos; para todos, porque são santos sua origem, seu fim, seus usos, sua forma e sua matéria”.
Ele não só considerava o casamento um grande sacramento da Igreja e o “berço do cristianismo”, mas também declarava que “a conservação do bem do casamento é extremamente importante para a república”. Destinado ao casamento pelo pai, Franisco de Sales o havia recusado, segundo a mãe de Chaugy, “não por desprezo ao casamento, que honrava perfeitamente como sacramento, mas por um certo ardor interior e espiritual que o impulsionava a dedicar-se totalmente ao serviço da Igreja, e a ser tudo para Deus sem ter um coração dividido”.
A dignidade do casamento exigia que o jovem, e sobretudo a jovem, fossem livres para escolher seu próprio “partido”? Na época, a questão não era tão clara e as práticas variavam. Persistiam antigas tradições, especialmente entre os nobres, onde as filhas eram frequentemente prometidas em tenra idade e o marido, muito mais velho, exercia uma autoridade indiscutível sobre o casal. Isso não significa que tudo fosse ruim, como podemos ver no caso dos pais de Francisco de Sales. Em outros lugares também se observava certa evolução da moral: os jovens casavam-se mais cedo e, consequentemente, exerciam maior liberdade.
Uma das contribuições mais significativas de Francisco de Sales foi ajudar os cônjuges a perceber que sua condição de vida é uma vocação. Ele mesmo escreveu à Filoteia, que era casada, a respeito do casamento: “Se todos devem honrá-lo, honre-o muito especialmente você que por vocação está nele”. Como o casamento é uma vocação, seu objetivo é a santidade dos cônjuges. “Você caminhará nessa vocação”, escreveu a uma jovem que acabara de se casar, “encontrará muita consolação nela e se tornará muito santa no final”.
O casamento é uma vocação porque envolve, antes de tudo, um dom e depois um chamado, uma responsabilidade. É isso que o autor da Introdução quer transmitir às pessoas casadas quando lhes diz: “Foi Deus, meus amigos, que com sua mão invisível apertou o nó sagrado do seu casamento e os deu um ao outro; por que vocês não se amam com um amor todo santo, todo sagrado, todo divino?” Ele também escreveu a uma jovem que acabara de se casar: “Ame ternamente seu marido, como se ele tivesse sido dado a você pela própria mão de Nosso Senhor”.

O amor no casamento
            Francisco de Sales era um defensor do casamento por amor em sua época. Rabelais e Montaigne, que exaltavam os sentimentos paternos, prestavam pouca atenção ao amor entre cônjuges. O casamento era frequentemente considerado incompatível com o amor, confundido com o amor-paixão, e a conclusão lógica era que se tratava apenas de uma instituição necessária para a sociedade. Para Francisco de Sales, o amor mútuo deveria ser a característica principal, com seus dois corolários de “união indissolúvel” dos corações e “fidelidade inviolável de um ao outro”.
Na Introdução, o autor exorta os cônjuges a aumentarem cada vez mais seu “amor mútuo”. Define logo o amor dos cônjuges como uma amizade recíproca na qual se pratica “a comunicação da vida, dos bens, dos afetos e da fidelidade indissolúvel”. Não devem faltar gestos de afeto. O modelo é o grande São Luís, que “era quase repreendido por ser abundante nessas carícias”.
No entanto, as qualidades do amor são diferentes para homens e mulheres. Os maridos devem amar suas esposas “ternamente, constantemente e cordialmente”, enquanto as esposas devem amar seus maridos “ternamente, cordialmente, mas com um amor respeitoso e reverente”. Francisco de Sales admirava as pessoas casadas que viviam “tão docemente juntas com respeito mútuo, que não pode existir sem uma grande caridade”.
Quanto ao sacramento, é uma ajuda poderosa contra a volubilidade de nossas resoluções. Quantos casamentos veríamos dissolver-se, exclamou, “se não fossem fortalecidos pelo sacramento que impede a variação desse tipo de vida! Com surpreendente realismo, dizia também: “Um homem que viveu em paz com sua esposa por toda a vida, se pudesse trocá-la, o teria feito uma dúzia de vezes”. De fato, “essa inconstância do espírito humano é extravagante, mas deve ser contida com a força de nossas primeiras resoluções”.
Embora defendesse a autoridade dos homens dentro da família, o bispo de Genebra estava bem ciente de que eles podiam abusar dela. Com uma doce ironia sobre as pretensões masculinas, recomenda à mulher compreensão e indulgência: “Meu Deus, que bom pai temos e que ótimo marido vocês têm! Ai de mim, eles são um pouco ciumentos de seu império e domínio, que lhes parece um pouco violado quando se faz algo sem sua autoridade e comando. O que você quer, devem permitir essa pequena humanidade”.
Deve-se dizer que essa “pequena humanidade” era comum nas famílias; daí essa observação um pouco desencantada, mas boa para consolar uma viúva: “É verdade, sem dúvida, que é de grande ajuda ter um bom marido; mas há poucos, e por mais que você tenha um bom, recebe mais submissão do que assistência.

O casamento é uma escola
            “Entre espinhos ou entre flores”, escreveu a Joana de Chantal, que era uma mulher felizmente casada antes de sofrer a tragédia e a solidão, “Deus nos faz ganhar na sua escola”. Tudo começa com uma “mudança de condição” e um novo começo que deve gerar gratidão e confiança. O casamento é um dom, mas um dom a ser cultivado: “Devemos, portanto, cultivar com muito cuidado esse coração amado”, escreveu a uma jovem esposa, “e não poupar nada que possa ser útil para sua felicidade”. Para proteger e promover “o progresso do casamento deles” e “santificá-lo cada vez mais com amizade e fidelidade recíproca”, dava aos cônjuges conselhos adequados à sua situação.
Em primeiro lugar, Francisco de Sales ensinava que as pessoas casadas devem amar seu estado de vida: “Devemos amar o que Deus ama: ele ama nossa vocação; amemo-la bem também e não nos divirtamos pensando na dos outros”. Muitas vezes percebemos que todos gostariam de mudar sua condição: “quem é casado gostaria de não ser, e quem não é gostaria de ser”. E o bispo de Genebra perguntava-se: “De onde vem essa inquietação geral das almas, senão de certo descontentamento pelas restrições e de uma malícia de espírito que nos faz pensar que todos são melhores do que nós? Como sempre, me vem à mente uma comparação: “Quem tem febre não consegue encontrar um bom lugar; não passou um quarto de hora numa cama quando gostaria de estar em outra: não é a cama que pode fazer isso, é a febre que o atormenta em qualquer lugar”. A conclusão é evidente: “Quem não tem a febre da própria vontade se contenta com tudo; contanto que sirva a Deus, não importa em que veste Deus o empregue. Contanto que faça a vontade de Deus, para ele é o mesmo.
Como poucos escritores espirituais antes dele, Francisco de Sales ousa falar de “comércio nupcial”, “prazeres carnais” e “cama nupcial”. Para isso, usa uma comparação tradicional, delicada mas transparente. Senta-se à mesa, explica, não apenas “para nutrir e conservar a pessoa”, mas também “pelo dever de conversa e condescendência recíproca que devemos uns aos outros”. As duas coisas a evitar são o excesso, que consiste em “comer demais”, e o desequilíbrio “na maneira e no modo de comer”.
Quando o casal estava em crise, ele apelava não apenas para a vontade de Deus, mas também para o dever e a razão. A uma mulher desgostosa com as ações de um marido “dissipador e despreocupado”, deu conselhos de sabedoria e prudência: “Disse-lhe que podia falar com força e resolução, nas ocasiões em que fosse necessário, para manter a pessoa que conhecia no dever, mas que a força era mais forte quando era calma e quando nascia da razão, sem mistura de paixão”.
Ele aconselhava maridos e esposas a ajudarem-se mutuamente na vida espiritual, caso contrário o homem se torna “um animal severo, áspero e duro”, e a mulher sem devoção “é muito frágil e propensa a decair ou a enfraquecer na virtude”. Pelo contrário, que bênção é quando o homem e a mulher “se santificam mutuamente no verdadeiro temor do Senhor!

Os pais são os “cooperadores” de Deus
            A concepção e o nascimento de um filho são dons maravilhosos que tornam os cônjuges “cooperadores numa tarefa tão digna”. Francisco de Sales chegou a compor uma oração especial – que se dizia repetir frequentemente – para aqueles que estavam impossibilitados de “consumar” o casamento. Tratava-se, na verdade, de um exorcismo, porque se pensava que a impotência e a esterilidade eram causadas pelo diabo e por feitiços malignos.
O amor dos pais deveria servir de modelo para todos aqueles que são responsáveis pelos outros, aos quais deveríamos desejar “o coração dos pais, sólido, firme e constante, sem esquecer a ternura das mães que fazem os filhos desejarem os doces, segundo a ordem divina que governa tudo com uma força toda doce e uma suavidade toda forte”.
Existe uma espécie de amor imitativo entre pais e filhos: “Os pais amam bem seus filhos, mas sobretudo quando estes se parecem com eles ou com algum antecessor deles; olham-nos como num espelho e divertem-se ao vê-los retratar seus modos, seus rostos e suas feições”. O amor das mães pelos filhos é surpreendente, especialmente nos momentos de perigo. O instinto certamente desempenha um papel importante. A galinha é um animal sem coragem e generosidade até se tornar mãe, mas quando o é “tem um coração de leão, sempre com a cabeça erguida, sempre com os olhos esgazeados, sempre girando o olhar para todos os lados, enquanto houver aparência de perigo para seus filhotes”.
Também Francisco de Sales sentia em si “os impulsos do amor paterno” quando cuidava de seu “filho”, o duque de Bellegarde. Para demonstrar sua constante preocupação pelo filho, uma vez lhe escreveu que “os bons filhos pensam frequentemente em seus pais; mas não é frequentemente, é sempre, que os pais têm seu espírito nos filhos”. Se um pai se comporta de maneira diferente com o filho mais velho, “um homem adulto, um soldado corajoso e generoso”, e com o mais novo, “um pequeno querido que ainda é uma criança, com boa graça”, isso não significa que ame menos o primeiro do que o segundo. Seu amor se expressa de uma forma que se adapta a cada pessoa.
Quanto à responsabilidade dos pais na educação, para Francisco de Sales era claro que seu fundamento era a religião, em termos bíblicos o temor de Deus. Daí esta recomendação urgente: “Quando as crianças vêm ao mundo e começam a usar a razão, os pais e as mães devem ter muito cuidado em incutir em seus corações o temor de Deus”.
Os pais têm uma grande responsabilidade na educação, a ponto de sua falta poder ser sua própria ruína. Em um sermão severo, ele os adverte: “Pecam se riem ao ver seus filhos se entregarem à linguagem ruim, aos piores começos da vaidade”. Há pais que, por um amor mal compreendido pelos filhos, estão dispostos a gastar todo tipo de dinheiro para eles, mas não têm “nada para educá-los nas letras e nos bons costumes”. Por fim, o amor dos pais também pode se tornar “amor desordenado” quando impedem os filhos de se tornarem sacerdotes ou de entrar na vida religiosa.

A criança é a “imagem viva” dos pais
            A criança é o “penhor precioso” do casamento e a “imagem viva” do pai e da mãe. Embora sejam herdeiros dos pais, não são antes de tudo herdeiros em sentido material. Falando à viúva do falecido duque de Mercœur, Francisco de Sales disse de sua filha que ela era “a legítima herdeira de suas virtudes, que ele deixou aos seus cuidados, senhora, para que as cultivasse através da educação nobre e cristã que lhe reservou”.
A primeira virtude das crianças é a obediência. Sua obediência é fonte de alegria para os pais, porque “todos conhecem a satisfação que os pais recebem da obediência que os filhos lhes demonstram, e quanto mais os filhos se mostram submissos e obedientes aos seus desejos, mais eles sentem prazer em amá-los”. Mas “um filho bem nascido não obedece ao pai pelo poder que ele tem de punir sua desobediência, nem porque pode deserdá-lo, mas simplesmente porque ele é seu pai”.
O contraponto da obediência é a confiança filial que os filhos têm em relação aos pais. Isso é ilustrado pela alegoria da filha do cirurgião. Quando estava doente, não pensava no tratamento doloroso que lhe estava sendo aplicado, mas confiava completamente nos cuidados do pai, dizendo simplesmente: “Meu pai me ama, e eu sou toda dele”.
À medida que as crianças se tornavam adolescentes e jovens, as recomendações do bispo de Genebra tornavam-se mais insistentes e exigentes. Aos jovens, disse em um sermão sobre o tema da cruz que cada um de nós deve carregar, “confio a cruz da obediência, da castidade e da moderação em seu comportamento, uma cruz salutar que crucifica os impulsos ardentes de um sangue jovem que começa a ferver e de uma coragem que ainda não tem a prudência como guia”. A essas virtudes deve-se acrescentar a piedade filial, da qual as cegonhas são um maravilhoso modelo, porque “carregam consigo seus velhos pais e suas velhas mães, como quando ainda eram jovens seus pais e suas mães os carregavam na mesma ocasião”.

A união da família
            Em seu livro sobre Saint François de Sales et notre cœur de chair [São Francisco de Sales e nosso coração de carne], Henry Bordeaux escreveu com razão: “É difícil imaginar um São Francisco de Sales que não venha de uma família numerosa e unida, que não tenha experimentado a ternura legítima do coração. Seria um santo diferente, não seria o consolador inteligente, o pai docemente autoritário, o restaurador do espírito familiar, o médico das feridas ocultas”.
A união familiar é muito facilitada pelos laços naturais de sangue e parentesco, mas isso não basta. De fato, “quando a união é natural, produz amor, e o amor que produz nos leva a uma nova união voluntária que aperfeiçoa a natural”.
Durante uma de suas estadias em Sales, Francisco ficou tão impressionado com a harmonia que reinava naquele lugar que sentiu o desejo de falar sobre isso à sua filha espiritual. Em uma carta a Joana de Chantal, escreveu: “Você ficaria feliz em ver uma harmonia tão estreita entre coisas que geralmente são tão discordantes: sogra, nora, cunhada, irmãos e cunhados. Entre todos esses, minha verdadeira filha, posso assegurar-lhe, para a glória de Deus, que aqui há um só coração e uma só alma”.
Os desentendimentos na família frequentemente surgiam por questões de herança. Quando, em 1608, a propriedade do Senhor de Boisy foi dividida entre seus filhos, havia o risco concreto de que o pai deixasse a primeira escolha ao mais jovem Bernard e que os filhos mais velhos se sentissem prejudicados. Francisco ficou muito aliviado ao ver que tudo ocorreu de forma amigável e harmoniosa.
Em caso de conflito entre marido e mulher, “o apoio mútuo deve ser tão grande que os dois nunca se amarguem juntos”. Com tenacidade, Francisco de Sales ensinava a superar as repugnâncias, a permanecer “no barco em que estamos” e a ficar aí “doce e voluntariamente”. Suas recomendações mais insistentes dizem respeito ao apoio mútuo, à amizade fiel não interrompida por “amores estranhos”, à preocupação com a educação dos filhos, sem esquecer o bom exemplo a ser dado a toda a família.
Em última análise, é o amor que melhor resume tudo o que Francisco de Sales disse sobre o casamento e a família, mas um amor que é ao mesmo tempo realista e ideal. A educação nesse âmbito consistirá, portanto, em ajudar os jovens a captar todas as dimensões do que torna a família o coração da existência humana.




Coroa das sete dores de Maria

A publicação “Coroa das sete dores de Maria” representa uma devoção querida que São João Bosco incutia em seus jovens. Seguindo a estrutura da “Via Crucis” [Via Sacra], as sete cenas dolorosas são apresentadas com breves considerações e orações, para guiar a uma participação mais viva nos sofrimentos de Maria e de seu Filho. Rico em imagens afetivas e espiritualidade contrita, o texto reflete o desejo de unir-se a Nossa Senhora das Dores na compaixão redentora. As indulgências concedidas por vários Pontífices atestam o alto valor pastoral do texto, que é um pequeno tesouro de oração e reflexão, para alimentar o amor pela Mãe das dores.

Prólogo
O principal objetivo desta pequena obra é facilitar a lembrança e a meditação das amarguradíssimas dores do terno Coração de Maria, algo que a Ela é muito agradável, como revelou várias vezes a seus devotos, e um meio muito eficaz para nós obtermos seu patrocínio.
Para tornar mais fácil o exercício de tal meditação, praticar-se-á primeiramente com uma coroa na qual são indicadas as sete principais dores de Maria, que poderão ser meditadas em sete breves considerações distintas, do modo como se costuma fazer na Via Sacra.
Que o Senhor nos acompanhe com sua graça celestial e bênção para que se alcance o intento desejado, de modo que a alma de cada um fique vivamente penetrada pela frequente memória das dores de Maria, com proveito espiritual da alma, e tudo para maior glória de Deus.

Coroa das sete dores da Bem-Aventurada Virgem Maria com sete breves considerações sobre as mesmas expostas na forma da Via Sacra

Preparação
Queridos irmãos e irmãs em Jesus Cristo, fazemos nossos habituais exercícios meditando devotamente as amarguradíssimas dores que a Bem-Aventurada Virgem Maria sofreu na vida e morte de seu amado Filho e nosso Divino Salvador. Imaginemo-nos presentes a Jesus pendente na cruz, e que sua aflita mãe diga a cada um de nós: Venham e vejam se há uma dor igual à minha.
Convencidos de que esta Mãe piedosa quer nos conceder proteção especial ao meditarmos suas dores, invoquemos a ajuda divina com as seguintes orações:

Antífona: Vem, Espírito Santo, enche os corações dos teus fiéis e acende neles o fogo do teu amor.

Envia o teu Espírito e tudo será criado,
e renovarás a face da terra.
Lembra-te da tua Congregação,
que possuías desde o princípio.
Senhor, escuta a minha oração,
e chegue a ti o meu clamor.

Oremos.
Ilumina, Senhor, nossas mentes com a luz da tua claridade, para que possamos ver o que deve ser feito e agir corretamente. Por Cristo nosso Senhor. Amém.

Primeira dor. Profecia de Simeão
A primeira dor foi quando a Santa Virgem, Mãe de Deus, tendo apresentado seu Filho no Templo, o depôs nos braços do santo velho Simeão, que lhe disse: A espada da dor traspassará a tua alma: o que significa a Paixão e Morte de seu Filho Jesus.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Virgem dolorosa, por aquela agudíssima espada com que o santo velho Simeão te predisse que tua alma seria traspassada na paixão e morte do teu querido Jesus, suplico-te que me concedas a graça de ter sempre presente a memória do teu coração traspassado e das amarguradíssimas penas sofridas por teu Filho para minha salvação. Assim seja.

Segunda dor. Fuga para o Egito
A segunda dor foi quando a Santa Virgem se viu obrigada a fugir para o Egito a fim de evitar a perseguição do cruel Herodes, que impiamente procurava dar a morte a seu amado Filho Jesus.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Maria, mar amarguíssimo de lágrimas, por aquela dor que sentiste fugindo para o Egito para proteger teu Filho da bárbara crueldade de Herodes, suplico que sejas minha guia, para que, por teu intermédio, eu fique livre das perseguições dos inimigos visíveis e invisíveis da minha alma. Assim seja.

Terceira dor. Perda de Jesus no templo
A terceira dor da Bem-Aventurada Virgem foi quando, pelo tempo da Páscoa, depois de ter estado com o seu esposo José e com o seu amado filho Jesus em Jerusalém, de volta à sua pobre casa, perdeu o seu divino Filho e por três dias seguidos o procurou, lamentando a perda de seu único amor.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Mãe desconsolada, tu que na perda da presença corporal de teu Filho o procuraste ansiosamente por três dias seguidos, rogo-te que obtenhas a graça para todos os pecadores, para que também eles o procurem com atos de contrição e o encontrem. Assim seja.

Quarta dor. Encontro de Jesus carregando a cruz
A quarta dor da Santa Virgem foi quando encontrou seu dulcíssimo Filho Jesus, que carregava uma pesada cruz, em seus ombros delicados, até ao Monte Calvário, para ser crucificado pela nossa salvação.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Virgem mais apaixonada do que todas, por aquele sofrimento que sentiste no coração ao encontrar teu Filho enquanto ele carregava o madeiro da Santíssima Cruz rumo ao Monte Calvário, peço-te que eu o acompanhe continuamente com o pensamento, chore meus pecados, causa manifesta dos seus e dos teus tormentos. Assim seja.

Quinta dor. Crucificação de Jesus
A quinta dor da Santa Virgem foi quando viu seu Filho Jesus suspenso sobre o duro madeiro da Cruz, vertendo sangue de todo o seu Santíssimo Corpo e morrendo depois de três horas de agonia.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Rosa entre os espinhos, por aquelas dores amargas que traspassaram teu peito ao ver com teus próprios olhos teu Filho traspassado e elevado na Cruz, obtém para mim, peço-te, que eu busque com meditações assíduas somente Jesus crucificado por causa dos meus pecados. Assim seja.

Sexta dor. Deposição de Jesus da cruz
A sexta dor da Santa Virgem foi quando seu amado Filho Jesus, depois de ter sido traspassado no peito com um golpe de lança e despregado da cruz, foi deposto em seu santo regaço.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Virgem aflita, tu que acolheste teu Filho morto no colo, vencido pela Cruz, e beijando aquelas santíssimas feridas, derramaste sobre elas um mar de lágrimas, rogo-te que eu também lave continuamente com lágrimas de verdadeiro arrependimento as feridas mortais que meus pecados te causaram. Assim seja.

Sétima dor. Sepultamento de Jesus
A sétima e última dor da Santa Virgem, Senhora e Advogada dos seus servos e dos pobres pecadores, foi quando viu sepultado o Corpo Santíssimo de seu Filho Jesus.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Mártir dos Mártires, Maria, por aquele tormento amargo que sofreste quando, sepultado teu Filho, tiveste que afastar-te daquele túmulo amado, concede graça, peço-te, a todos os pecadores, para que conheçam o quanto é grave dano para a alma estar longe de seu Deus. Assim seja.

Digam-se em seguida três Ave-Marias em sinal de profundo respeito às lágrimas que a Santíssima Virgem derramou nas suas Dores, a fim de impetrar uma verdadeira dor dos nossos pecados e para ganhar as santas indulgências.
Ave Maria etc.

Terminada a Coroa, recita-se o pranto da Bem-Aventurada Virgem, ou seja, o hino Stabat Mater etc.

Hino – Pranto da Bem-Aventurada Virgem Maria

Stabat Mater dolorosa
Iuxta crucem lacrymosa,
Dum pendebat Filius.

Cuius animam gementem
Contristatam et dolentem
Pertransivit gladius.

O quam tristis et afflicta
Fuit illa benedicta
Mater unigeniti!

Quae moerebat, et dolebat,
Pia Mater dum videbat.
Nati poenas inclyti.

Quis est homo, qui non fleret,
Matrem Christi si videret
In tanto supplicio?

Quis non posset contristari,
Christi Matrem contemplari
Dolentem cum filio?

Pro peccatis suae gentis
Vidit Iesum in tormentis
Et flagellis subditum.

Vidit suum dulcem natura
Moriendo desolatum,
Dum emisit spiritum.

Eia mater fons amoris,
Me sentire vim doloris
Fac, ut tecum lugeam.

Fac ut ardeat cor meum
In amando Christum Deum,
Ut sibi complaceam.

Sancta Mater istud agas,
Crucifixi fige plagas
Cordi meo valide.

Tui nati vulnerati
Tam dignati pro me pati
Poenas mecum divide.

Fac me tecum pie flere,
Crucifixo condolere,
Donec ego vixero.

Iuxta Crucem tecum stare,
Et me tibi sociare
In planctu desidero.

Virgo virginum praeclara,
Mihi iam non sia amara,
Fac me tecum plangere.

Fac ut portem Christi mortem,
Passionis fac consortem,
Et plagas recolere.

Fac me plagis vulnerari,
Fac me cruce inebriari,
Et cruore Filii.

Flammis ne urar succensus,
Per te, Virgo, sim defensus
In die Iudicii.

Christe, cum sit hine exire,
Da per matrem me venire
Ad palmam victoriae.

Quando corpus morietur,
Fac ut animae donetur
Paradisi gloria. Amen.

Estava a mãe dolorosa
junto da cruz, lacrimosa,
via o filho que pendia.

Na sua alma gemia,
contristada e dolorida
por um gládio transpassada.

Oh! Quão triste e aflita
entre todas, Mãe bendita,
que só tinha aquele Filho.

Quanta angústia não sentia,
Mãe piedosa quando via
as penas do Filho seu.

Quem não chora vendo isso:
contemplando a Mãe de Cristo
num suplício tão enorme?

Quem haverá que resista
se a Mãe assim se contrista
padecendo com seu Filho?

Por culpa de sua gente
Viu Jesus inocente,
Ao flagelo submetido.

Vê agora o seu amado
pelo Pai abandonado,
entregando seu espírito.

Faze, ó Mãe, fonte de amor
que eu sinta o espinho da dor,
para contigo chorar.

Faze arder meu coração
do Cristo Deus na paixão
para que o possa agradar.

Ó Santa Mãe, dá-me isto,
trazer as chagas de Cristo
gravadas no coração.

Do teu filho que por mim
entrega-se a morte assim,
divide as penas comigo.

Oh! Dá-me enquanto viver,
com Cristo compadecer,
chorando sempre contigo.

Junto à cruz eu quero estar,
quero o meu pranto juntar
às lágrimas que derramas.

Virgem, que às virgens aclara,
não sejas comigo avara,
dá-me contigo chorar.

Traga em mim do Cristo a morte,
da Paixão seja consorte,
suas chagas celebrando.

Por elas seja eu rasgado,
pela cruz inebriado,
pelo sangue de teu Filho.

No Julgamento consegue,
que às chamas não seja entregue
quem por ti é defendido.

Quando do mundo eu partir,
dai-me, ó Cristo, conseguir
por tua Mãe a vitória.

Quando meu corpo morrer,
possa a alma merecer
do Reino Celeste, a glória. Amém.

O Sumo Pontífice Inocêncio XI concede indulgência de 100 dias toda vez que se reza o Stabat Mater. Bento XIII concedeu indulgência de sete anos a quem rezar a Coroa das sete dores de Maria. Muitas outras indulgências foram concedidas por outros sumos Pontífices, especialmente aos Confrades e Coirmãs da Companhia de Maria Dolorosa.

As sete dores de Maria meditadas na forma da Via Crucis

Invoque-se a ajuda divina dizendo:
Actiones nostras, quaesumus, Domine, aspirando praeveni, et adiuvando prosequere, ut cuncta nostra oratio et operatio a te semper incipiat, et per te coepta finiatur. Per Christum Dominum Nostrum. Amen. [Inspirai, Senhor, todas as nossas ações e orações, e ajudai-nos a realizá-las, para que em Vós comece e para Vós termine tudo aquilo que fizermos. Por Cristo, Senhor nosso. Amém.]

Ato de Contrição
Virgem muitíssimo aflita, ai! quão ingrato fui no tempo passado para com meu Deus, com quanta ingratidão correspondi aos seus inúmeros benefícios! Agora me arrependo, e na amargura do meu coração e no pranto da minha alma, peço humildemente a Ele perdão por ter ultrajado sua infinita bondade, estando decidido no futuro, com a graça celestial, a nunca mais ofendê-lo. Ah! por todas as dores que suportastes na bárbara paixão do vosso amado Jesus, peço-vos com os mais profundos suspiros que me obtenhais do mesmo, piedade e misericórdia dos meus pecados. Aceitai este santo exercício que estou para fazer e recebei-o em união com aquelas penas e dores que Vós sofrestes por vosso filho Jesus. Ah, concedei-me! sim, concedei-me que aquelas mesmas espadas que traspassaram o vosso espírito, atravessem também o meu, e que eu viva e morra na amizade do meu Senhor, para participar eternamente da glória que Ele me conquistou com seu precioso Sangue. Assim seja.

Primeira dor
Nesta primeira dor, imaginemo-nos no templo de Jerusalém, onde a Bem-Aventurada Virgem ouviu a profecia do velho Simeão.

Meditação
Ah! Que angústias terá sentido o coração de Maria ao ouvir as dolorosas palavras com que lhe foi predita pelo Santo velho Simeão a amarga paixão e a atroz morte do seu dulcíssimo Jesus: enquanto naquele mesmo instante lhe surgiram à mente os ultrajes, os tormentos e as carnificinas que os ímpios judeus fariam ao Redentor do mundo. Mas sabes qual foi a espada mais penetrante que a traspassou nessa circunstância? Foi considerar a ingratidão com que seu amado Filho seria retribuído pelos homens. Agora, refletindo que, por causa dos teus pecados, estás miseravelmente entre esses tais, ah! lança-te aos pés desta Mãe Dolorosa e dize chorando assim (todos se ajoelham): Ah! Virgem piedosíssima, que sentistes tão amarga dor no vosso espírito ao ver o abuso que eu, criatura indigna, teria feito do sangue do vosso amável Filho, fazei, sim fazei por vosso aflito Coração, que eu no futuro corresponda às Divinas Misericórdias, aproveite as graças celestiais, não receba em vão tantas luzes e inspirações que Vós vos dignareis obter para mim, para que eu tenha a sorte de estar entre aqueles para quem a amarga paixão de Jesus seja de salvação eterna. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Segunda dor
Nesta segunda dor, consideremos a dolorosíssima viagem que a Virgem fez ao Egito para libertar Jesus da cruel perseguição de Herodes.

Meditação
Considera a amarga dor que Maria terá sentido quando, à noite, teve que partir por ordem do Anjo para preservar seu Filho da matança ordenada por aquele feroz Príncipe. Ah! que a cada grito de animal, a cada sopro de vento, a cada movimento de folha que ouvia por aquelas estradas desertas, se enchia de medo temendo algum infortúnio para o menino Jesus que levava consigo. Ora se voltava para um lado, ora para o outro, ora apressava o passo, ora se escondia crendo ter sido alcançada pelos soldados, que, arrancando de seus braços seu amabilíssimo Filho, teriam feito sob seus olhos um tratamento bárbaro, e fixando o olhar lacrimoso sobre seu Jesus e apertando-o fortemente ao peito, dando-lhe mil beijos, mandava do coração os suspiros mais angustiados. E aqui reflete quantas vezes renovaste essa amarga dor a Maria, forçando seu Filho com teus graves pecados a fugir da tua alma. Agora que conheces o grande mal cometido, volta-te arrependido a esta piedosa Mãe e dize-lhe assim:
Ah, Mãe dulcíssima! Uma vez Herodes obrigou-vos, com vosso Jesus, a fugir da inumana perseguição por ele ordenada; mas eu, oh! quantas vezes obriguei meu Redentor e, por consequência, também a vós, a partir rapidamente do meu coração, introduzindo nele o maldito pecado, inimigo cruel vosso e do meu Deus. Ah! todo dolorido e contrito vos peço humildemente perdão.
Sim, misericórdia, ó querida Mãe, misericórdia, e prometo-vos no futuro, com a ajuda divina, manter sempre meu Salvador e Vós no total domínio da minha alma. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Terceira dor
Nesta terceira dor, consideremos a Virgem muitíssimo aflita que, lacrimosa, vai à procura do seu Jesus perdido.

Meditação
Quão grande foi a dor de Maria quando percebeu que havia perdido seu amável Filho! E como cresceu sua dor quando, tendo-o procurado diligentemente entre amigos, parentes e vizinhos, não pôde obter nenhuma notícia dele. Ela, não se importando com os incômodos, o cansaço, os perigos, vagou por três dias seguidos pelas regiões da Judeia, repetindo aquelas palavras de desolação: talvez alguém tenha visto aquele que verdadeiramente ama a minha alma? Ah! que a grande ansiedade com que o procurava a fazia imaginar a cada momento vê-lo ou ouvir sua voz; mas, ao se reconhecer frustrada, oh, como se aterrorizava e sentia mais intensamente o pesar por tão deplorável perda! Grande confusão para ti, pecador, que tantas vezes perdeste teu Jesus pelos graves pecados cometidos, e não te preocupaste em procurá-lo, claro sinal de que pouco ou nenhum valor dás ao precioso tesouro da amizade divina. Chora, pois, tua cegueira, e voltando-te a esta Mãe Dolorosa, dize-lhe suspirando assim:
Virgem muitíssimo aflita, fazei que eu aprenda de vós a verdadeira maneira de buscar Jesus que perdi para seguir minhas paixões e as iníquas sugestões do demônio, para que eu consiga encontrá-lo, e quando o tiver recuperado, repetirei continuamente aquelas vossas palavras: Encontrei aquele que verdadeiramente ama meu coração; o guardarei sempre comigo, e nunca mais o deixarei partir. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Quarta dor
Na quarta dor, consideremos o encontro que a Virgem Dolorosa teve com seu Filho apaixonado.

Meditação
Venham, ó corações endurecidos, e vejam se conseguem suportar este espetáculo lacrimoso. É uma mãe, a mais terna, a mais amorosa, que encontra seu Filho, o mais doce, o mais amável; e como o encontra? Oh Deus! no meio da mais ímpia turba que o arrasta cruelmente para a morte, carregado de feridas, pingando sangue, rasgado pelas feridas, com uma coroa de espinhos na cabeça e com um tronco pesado sobre os ombros, ofegante, cansado, exausto, que parece a cada passo querer exalar o último suspiro.
Ah! considera, minha alma, a parada mortal que a Santíssima Virgem faz ao primeiro olhar que fixa sobre seu Jesus atormentado; ela gostaria de lhe dar o último adeus, mas como, se a dor a impede de pronunciar palavra? Gostaria de lançar-se ao seu pescoço, mas fica imóvel e petrificada pela força da aflição interna; gostaria de desabafar com o pranto, mas sente o coração tão apertado e oprimido que não consegue derramar uma lágrima. Oh! e quem pode conter as lágrimas ao ver uma pobre Mãe imersa em tão grande aflição? Mas quem é a causa de tão amarga dor? Ah, sou eu; sim, sou eu com meus pecados que fiz uma ferida tão bárbara ao vosso terno coração, ó Virgem Dolorosa. Porém, quem acreditaria? Permaneço insensível sem me comover. Mas se fui ingrato no passado, no futuro não serei mais.
Enquanto isso, prostrado aos vossos pés, ó Santíssima Virgem, peço humildemente perdão por tanto sofrimento que vos causei. Sei e confesso que não mereço piedade, sendo eu a verdadeira causa de vossa dor ao encontrar vosso Jesus todo coberto de feridas; mas lembrai-vos, sim, lembrai-vos que sois mãe de misericórdia. Ah, mostrai-vos, pois, assim para comigo, que eu vos prometo no futuro ser mais fiel ao meu Redentor, e assim compensar tantos desgostos que causei ao vosso aflito espírito. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Quinta dor
Nesta quinta dor, imaginemo-nos no Monte Calvário onde a Virgem muitíssimo aflita viu seu amado Filho expirar na Cruz.

Meditação
Aqui estamos no Calvário onde já estão erguidos dois altares de sacrifício, um no corpo de Jesus, outro no coração de Maria. Oh espetáculo terrível! Vemos a Mãe afogada num mar de aflições ao ver ser levado à morte cruel o caro e amável fruto de suas entranhas. Ai de mim! Cada martelada, cada ferida, cada rasgo que o Salvador recebe em seu corpo ressoa profundamente no coração da Virgem. Ela está aos pés da Cruz tão penetrada pela dor e transpassada pelo sofrimento que não se sabe quem será o primeiro a expirar, se Jesus ou Maria. Fixa o olhar no rosto agonizante do Filho, considera as pupilas cansadas, o rosto pálido, os lábios lívidos, a respiração difícil e finalmente sabe que Ele não vive mais e que já entregou o espírito no seio do eterno Pai. Ah, então a alma dela faz todo esforço possível para se separar do corpo e unir-se à de Jesus. E quem pode suportar tal visão.
Ó Mãe muitíssimo dolorosa, em vez de se retirar do Calvário para não sentir tão intensamente as angústias, permaneceis imóvel para absorver até a última gota o cálice amargo de vossas aflições. Que confusão deve ser esta para mim que busco todos os meios para evitar as cruzes e os pequenos sofrimentos que, para meu bem, o Senhor se digna enviar-me? Virgem muitíssimo dolorosa, humilho-me diante de vós, ah! fazei que eu conheça claramente o valor e o grande mérito do sofrimento, para que me apegue tanto a ele que nunca me canse de exclamar com São Francisco Xavier: Plus Domine, Plus Domine, mais sofrer, meu Deus. Ah sim, mais sofrer, ó meu Deus. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Sexta dor
Nesta sexta dor, imaginemo-nos vendo a Virgem desconsolada que recebe nos braços o corpo morto de seu Filho, retirado da Cruz.

Meditação
Considera a dor mais amarga que penetrou a alma de Maria quando viu no seu colo o corpo morto do amado Jesus. Ah! ao fixar o olhar nas feridas e nas chagas dele, ao contemplá-lo tingido com seu próprio sangue, foi tal o ímpeto da dor interior que seu coração foi mortalmente traspassado, e se não morreu foi a onipotência divina que a conservou viva. Ó pobre Mãe, sim, pobre mãe, que conduzis ao túmulo o caro objeto de vossas mais ternas complacências, e que de um ramo de rosas se tornou um feixe de espinhos pelos maus-tratos e rasgos feitos pelos ímpios malfeitores. E quem não terá compaixão de vós? Quem não se sentirá dilacerado pela dor ao ver-vos num estado de aflição que comove até a pedra mais dura? Vejo João inconsolável, Madalena com as outras Marias que choram amargamente, Nicodemos que não pode mais suportar a aflição. E eu? Eu sozinho não derramo uma lágrima em meio a tanto sofrimento! Ingrato e ignorante que sou!
Ah! Mãe piedosíssima, aqui estou aos vossos pés, recebei-me sob a vossa poderosa proteção e fazei com que este meu coração seja traspassado por aquela mesma espada que atravessou de parte a parte o vosso aflito espírito, para que se amoleça uma vez e chore verdadeiramente meus graves pecados que vos causaram tão cruel martírio. E assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Sétima dor
Nesta sétima dor, consideremos a Virgem muitíssimo dolorosa que vê seu Filho morto ser sepultado.

Meditação
Considera o suspiro mortal que enviou o aflito coração de Maria quando viu seu amável Jesus ser colocado no túmulo! Oh que dor, que sofrimento sentiu seu espírito quando foi levantada a pedra com que se deveria fechar aquele sacratíssimo monumento! Não era possível afastá-la da borda do sepulcro, enquanto a dor era tal que a tornava insensível e imóvel, sem cessar de contemplar aquelas chagas e aquelas feridas cruéis. Quando então o túmulo foi fechado, oh, então sim, tal foi a força da dor interior que ela teria certamente caído morta se Deus não a tivesse conservado viva. Ó Mãe muitíssimo atribulada! Agora partireis com o corpo deste lugar, mas aqui certamente ficará vosso coração, pois aqui está vosso verdadeiro tesouro. Ah destino, que em companhia dele fique todo nosso afeto, todo nosso amor, como poderá ser que não nos derretamos de benevolência para com o Salvador, que deu todo seu sangue por nossa salvação? Como poderá ser que não amemos a Vós que tanto sofrestes por nossa causa.
Agora nós, chorando arrependidos por termos causado tantas dores a vosso Filho e a vós tanta amargura, prostramo-nos aos vossos pés e por todas aquelas dores que nos fizestes a graça de meditar, concedei-nos este favor: que a memória das mesmas fique sempre vivamente impressa em nossa mente, que nossos corações se consumam por amor ao nosso bom Deus, e a Vós, nossa doce Mãe, e que o último suspiro de nossa vida se una àqueles que derramastes do fundo da vossa alma na dolorosa paixão de Jesus, a quem seja honra, glória e ação de graças pelos séculos dos séculos. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Então se reza o Stabat Mater, como acima.

Antífona. Tuam ipsius animam (ait ad Mariam Simeon) pertransiet gladius. [Tua própria alma (disse Simeão a Maria) uma espada transpassará]
Rogai por nós, Virgem Dolorosa.
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

Oremos
Deus, em cuja paixão, segundo a profecia de Simeão, a doce alma da Gloriosa Virgem e Mãe Maria Dolorosa foi traspassada pela espada, concedei propício que, nós que recordamos a memória de suas dores, alcancemos felizmente o efeito da vossa paixão. Vós que viveis e reinais pelos séculos dos séculos. Amém.

Louvado seja Deus e a Virgem Dolorosa.

Com permissão da Revisão Eclesiástica

A Festa das Sete Dores de Maria Virgem Dolorosa, celebrada pela Pia União e Sociedade, ocorre no terceiro domingo de setembro na Igreja de São Francisco de Assis.

Texto da 3ª edição, Turim, Tipografia de Giulio Speirani e filhos, 1871




A décima colina (1864)

O sonho da “Décima Colina”, narrado por Dom Bosco em outubro de 1864, é uma das páginas mais sugestivas da tradição salesiana. Nele, o santo se encontra em um vale imenso cheio de jovens: alguns já no Oratório, outros ainda a serem encontrados. Guiado por uma voz misteriosa, ele deve conduzi-los por uma escarpa íngreme e depois por dez colinas, símbolo dos dez mandamentos, em direção a uma luz que prefigura o Paraíso. O carro da Inocência, as hostes penitenciais e a música celestial desenham um afresco educativo: mostram a dificuldade de preservar a pureza, o valor do arrependimento e o papel insubstituível dos educadores. Com essa visão profética, Dom Bosco antecipa a expansão mundial de sua obra e o compromisso de acompanhar cada jovem no caminho da salvação.

            Dom Bosco tinha tido um sonho na noite anterior. Ao mesmo tempo um menino, chamado C… E…, de Casale Monferrato, teve o mesmo sonho, parecendo-lhe estar com Dom Bosco e conversar com ele. Quando acordou ficou muito impressionado e foi contar o sonho ao seu professor, que o exortou a contar tudo a Dom Bosco. O menino foi procurá-lo e se encontrou com o próprio, que descia a escada e soube que ele também estava à sua procura para lhe relatar a mesma coisa.
            Pareceu a Dom Bosco estar num vale enorme repleto de milhares de garotos, mas tão numerosos que ele não acreditava poder encontrar tantos no mundo inteiro. Entre estes ele podia reconhecer todos aqueles que foram e que estão agora no Oratório. Todos os outros eram talvez aqueles que virão mais tarde. No meio dos jovens, podiam-se ver os padres e os clérigos da casa.
            Uma escarpada muito alta fechava um lado daquele vale. Enquanto Dom Bosco pensava o que poderia fazer com todos estes jovens, “uma voz” lhe disse:
            – Está vendo aquela escarpada? Pois bem, precisa que você e os seus jovens alcancem o topo.
            Então Dom Bosco ordenou àquela multidão de jovens de se dirigir até o ponto indicado. Os jovens foram correndo e iniciaram a subir pela escarpada. Os padres da casa também correram e subiam ajudando os jovens: Levantavam os que caíam e carregavam os que, cansados, não aguentavam mais. P. Rua, com as mangas arregaçadas, trabalhava mais que todos e, até agarrando os meninos de dois em dois, lançava-os até o cume da escarpada, onde caíam em pé e corriam alegremente a brincar. P. Cagliero e P. Francesia corriam no meio dos meninos gritando:
            – Coragem, continuem; continuem, coragem.
            Em pouco tempo aquela multidão de jovens chegou no topo da escarpada; também Dom Bosco tinha chegado e disse: – E agora, o que vamos fazer?
            – E a “voz” continuou:
            – Você deve ultrapassar com os seus jovens estas dez colinas que estão à sua frente, uma após a outra.
            – Mas como é que vão conseguir aguentar uma caminhada tão longa, estes garotos tão pequenos e delicados?
            Foi-lhe respondido: – Quem não puder andar com suas próprias pernas será carregado.
            E eis, de fato, na extremidade da colina aparecer uma magnífica carruagem. Impossível descrever a beleza daquela carruagem, mas vou tentar. Era triangular e tinha três rodas que se movimentavam em todos os sentidos. Nos três cantos havia três hastes cujas extremidades se encontravam num mesmo ponto por cima da mesma carruagem, formando como que um pináculo de caramanchão. Sobre este ponto de união se levantava um magnífico estandarte sobre o qual estava escrito em caracteres cubitais: Innocentia (Inocência). Havia uma faixa ao redor da carruagem com a escrita: Adjutorio Dei Altissimi Patris et Filii et Spiritus Sancti (Com a ajuda do Deus Altíssimo Pai e Filho e Espírito Santo).
            A carruagem, que era de grande esplendor, por causa do ouro e pedras preciosas, veio até o meio dos jovens. Dada a ordem, muito meninos subiram na carruagem. Seu número era de quinhentos. Quinhentos apenas eram ainda inocentes, no meio a tantos milhares de jovens.
            Dispostos estes na carruagem, Dom Bosco pensava por qual caminho deveria ir, quando viu abrir-se à sua frente uma estrada ampla e bonita, mas cheia de espinhos. Apareceram então, de repente, seis jovens, já falecidos no Oratório, vestidos de branco, carregando outra belíssima bandeira onde estava escrito: Poenitentia (Penitência). Estes se puseram à frente daquelas legiões de jovens que deviam seguir o caminho a pé. Então foi dado o sinal da partida. Muitos padres puseram-se no timão da carruagem, que, dirigida por eles, começou a se mover. Os seis meninos, vestidos de branco, seguem-no. Atrás deles vinha a multidão. Os garotos que estavam na carruagem entoaram o Laudate pueri Dominum (Louvai, meninos, ao Senhor – Sl 112,1) com uma melodia magnífica e inexprimível.
            Dom Bosco caminhava encantado com aquela música celestial, quando se lembrou de olhar atrás para ver se todos os jovens o acompanhavam. Mas, oh, doloroso espetáculo! Muitos tinham ficado no vale, muitos voltaram atrás. Dom Bosco, agitado por dor inexprimível, decidiu voltar atrás para tentar convencer aqueles jovens levianos e ajudá-los a segui-lo. Mas foi-lhe decididamente negado.
            Exclamou ele: – Mas aqueles coitados vão se perder.
            Foi-lhe respondido:
            – Pior para eles: eles foram chamados como os outros e não quiseram acompanhá-lo. A estrada a ser percorrida, eles a viram e isso basta.
            Dom Bosco queria replicar; pediu, suplicou: inútil.
            Foi-lhe dito: – A obediência é para você também! – E teve que continuar o caminho.
            Nem tinha ainda suavizado esta dor, quando um outro acidente aconteceu. Muitos dos que estavam na carruagem, aos poucos, foram caindo por terra. De quinhentos, ficaram apenas 150 debaixo do estandarte da inocência.
            O coração de Dom Bosco partia-se por tanta angústia. Ele esperava que o que estava acontecendo fosse um sonho, fazia de tudo para acordar, mas infelizmente tudo aquilo era a triste realidade. Batia palmas e ouvia o som delas; gemia e ouvia seus gemidos ecoarem pelo quarto; queria fazer sumir aquele terrível fantasma, mas não podia.
            Neste ponto, narrando o sonho, exclamava: – Meus queridos jovens! Eu conheci e vi os que ficaram no vale, os que voltaram ou caíram da carruagem! Eu reconheci a todos vocês. Mas tenho a certeza de que farei de tudo para salvá-los. Muitos de vocês, convidados por mim para se confessar, não acataram o meu chamado! Pelo amor de Deus, salvem suas almas.
            Muitos dos garotos que tinham caído da carruagem foram aos poucos se juntar entre os que caminhavam atrás da segunda bandeira. E a música da carruagem continuava tão suave que aos poucos fez esquecer a dor que Dom Bosco sentia. Sete colinas já estavam ultrapassadas e, chegando aquelas legiões na oitava, entraram num maravilhoso povoado, onde pararam para descansar um pouco. As casas daquele lugar eram de uma riqueza e beleza indescritível.
            Dom Bosco, falando aos jovens sobre este lugar, acrescentou:
            – Vou dizer para vocês o que Santa Teresa afirmou das coisas do Paraíso: são coisas que ao se falar se degradam, porque são tão belas que é inútil esforçar-se para descrevê-las. Por isso digo-lhes só que os portais das casas pareciam um conjunto de ouro, cristal e diamante que surpreendia, enchia os olhos e infundia muita alegria. Os campos estavam cheios de árvores carregadas ao mesmo tempo de flores, botões, fruta madura e fruta verde. Era uma visão maravilhosa.
            Os jovens espalharam-se pelo povoado daqui e dali, uns para uma coisa, outros para outra, pois grande era a curiosidade deles e o desejo de provar daquela fruta.
            Foi nesta vila que aquele jovem de Casale se encontrou com Dom Bosco e conversou longamente com ele. Dom Bosco e o menino lembravam perfeitamente as perguntas feitas e as respostas. Singular combinação de dois sonhos.
            Dom Bosco neste ponto teve mais uma estranha surpresa. Os seus jovens apareceram-lhe, de repente, de idade avançada, curvos, desdentados, cheios de rugas no rosto, cabelos brancos, claudicantes, apoiados em bengalas. Ficou admirado com esta metamorfose, mas a “voz” lhe disse:
            – Você se admira; mas saiba que não são poucas horas desde que saiu do vale, mas já se passaram anos e anos. Foi aquela música que lhe fez parecer curto o caminho. Como prova, olhe a sua fisionomia e verá o que estou lhe dizendo.  – E foi apresentado a Dom Bosco um espelho. Ele olhou-se no espelho e viu que o seu aspecto era de um homem idoso, com o rosto cheio de rugas e com poucos dentes e estragados.
            A comitiva, entretanto, retomou o caminho, e os jovens de vez em quando pediam para parar a fim de olhar aquelas coisas novas. Mas Dom Bosco lhes dizia: – Em frente, em frente; nós não precisamos de nada; não temos fome, nem sede, portanto em frente.
            (Lá no fundo, distante, sobre a décima colina despontava uma luz que ia sempre aumentando, como que saída de um portal). Recomeçou, então, o canto, mas tão bonito que só mesmo no Paraíso se poderia ouvir coisa igual e deleitar-se. Não era música de instrumentos, nem parecia de vozes humanas. Era uma música impossível de descrever; e tamanha foi a alegria que invadiu a alma de Dom Bosco que acordou e se viu em sua cama.
            Dom Bosco, então, explicou o sonho:
            – O vale é o mundo. A escarpada são os obstáculos para afastar-se dele. A carruagem, vocês já entenderam. As turmas dos jovens a pé são os que, perdida a inocência, arrependeram-se de suas faltas.
            Dom Bosco acrescentou ainda que as dez colinas representavam os dez mandamentos da lei de Deus, cuja observância leva à vida eterna.
            Enfim, anunciou que, se fosse necessário, estaria disposto a revelar em particular a alguns jovens o que faziam naquele sonho; se ficaram no vale ou se caíram da carruagem.
            Descido do estrado, o aluno Antônio Ferraris aproximou-se dele e contou, estando nós presentes e entendendo perfeitamente o que ele dizia, como na noite anterior ele sonhou de estar com sua querida mãe, que lhe perguntou se por ocasião da Páscoa viria para casa de férias. Dom Bosco respondeu-lhe que antes da Páscoa estaria no Paraíso. Em seguida o jovem, em confiança, baixinho, falou algumas outras coisas ao ouvido de Dom Bosco. Antônio Ferraris faleceu no dia 16 de março de 1865.
            Colocamos logo por escrito o sonho, e na mesma noite de 22 de outubro de 1864, no final, acrescentamos a seguinte nota: “Eu tenho certeza de que Dom Bosco, pelas suas explicações, procurou encobrir o que o sonho tem de mais surpreendente, pelo menos por alguma circunstância. Aquela dos dez mandamentos não me convence. A oitava colina onde Dom Bosco parou, e se viu no espelho muito mais idoso, eu creio que indique o fim de sua vida, que deveria acontecer depois dos setenta anos. O futuro dirá”.
            Este futuro é agora, tempo que passou e confirmou a nossa opinião. O sonho indicava a Dom Bosco a duração de seu viver. Vamos confrontar com esse o da Roda, que a gente só pôde conhecer alguns anos depois. Os giros da Roda correspondem a uma dezena de anos; e assim, também, parece que tenha o mesmo espaço de tempo o proceder de colina em colina. Cada um das colinas corresponde a dez anos, de modo que elas significam cem anos, o máximo da vida de um homem. Agora, nós vemos Dom Bosco, menino de dez anos, iniciar sua missão entre os colegas dos Becchi e, assim, iniciar sua viagem; percorre todas as sete colinas, isto é, sete dezenas, portanto, a sua idade chega a setenta anos; sobe na oitava colina e aqui faz uma parada: vê casas e campos maravilhosos, isto é, a sua Congregação (Pia Sociedade), tornada grande e cheia de frutos pela infinita bondade de Deus. É ainda longo o caminho a percorrer na oitava colina, e retoma a viagem; mas não chega à nona colina, pois ele acordou. Assim ele não viveu a oitava dezena de anos, vindo a falecer aos 72 anos e cinco meses.
            O que diz o leitor sobre isso? Vou acrescentar que, na noite seguinte, tendo Dom Bosco perguntado nosso parecer sobre o sonho, respondi que o sonho não dizia respeito somente aos jovens, mas indicava a expansão da Congregação (Pia Sociedade) em todo o mundo.
            – Que nada – retrucou um dos nossos irmãos; temos já o Colégio de Mirabello e de Lanzo e talvez vamos ter mais alguns outros no Piemonte. O que quer mais?
            – Não! O sonho nos aponta outros destinos.
            E Dom Bosco aprovava, sorrindo, a nossa certeza.
(MBp VII, 820-826)




O sábio

O imperador Ciro, o Grande, gostava de conversar amigavelmente com um amigo muito sábio chamado Akkad.
Um dia, tendo acabado de voltar exausto de uma campanha de guerra contra os medos, Ciro foi até seu velho amigo para passar alguns dias com ele.
“Estou exausto, meu caro Akkad. Todas essas batalhas estão me desgastando. Como eu gostaria de poder parar e passar um tempo com o senhor, conversando às margens do Eufrates…”.
“Mas, caro senhor, agora que o senhor já derrotou os medos, o que fará?”
“Quero tomar a Babilônia e subjugá-la.”
“E depois da Babilônia?”
“Vou dominar a Grécia.”
“E depois da Grécia?”
“Conquistarei Roma.”
“E depois disso?”
“Vou parar. Voltarei para cá e passaremos dias felizes conversando amigavelmente às margens do Eufrates…”
“E por que, meu amigo, não começamos logo?”

Sempre haverá outro dia para dizer “eu lhe quero bem”.
Lembre-se de seus entes queridos hoje e sussurre no ouvido deles, diga-lhes o quanto os ama. Reserve um tempo para dizer “me desculpe”, “por favor, me escute”, “obrigado”.
Amanhã você não se arrependerá do que fez hoje.




O grilo e a moeda

Um sábio indiano tinha um amigo próximo que morava em Milão. Eles se conheceram na Índia, onde o italiano tinha ido com sua família em uma viagem de turismo. O indiano serviu de guia para o italiano, levando-o para explorar os cantos mais característicos de sua terra natal.
Agradecido, o amigo milanês convidou o indiano para ir à sua casa. Ele queria retribuir o favor e apresentá-lo à sua cidade. O indiano relutou muito em ir, mas acabou cedendo à insistência do amigo italiano e, em um belo dia, desembarcou de um avião em Malpensa.
No dia seguinte, o milanês e o indiano estavam caminhando pelo centro da cidade. O indiano, com seu rosto cor de chocolate, barba preta e turbante amarelo, atraía os olhares dos transeuntes, e o milanês caminhava orgulhoso por ter um amigo tão exótico.
De repente, na Praça São Babila, o indiano parou e disse: “O senhor está ouvindo o que eu estou ouvindo?”. O milanês, um pouco desnorteado, esforçou os ouvidos o máximo que pôde, mas admitiu que não ouvia nada além do grande barulho do trânsito da cidade.
“Há um grilo cantando aqui perto”, continuou o indiano, confiante.
“O senhor está enganado”, respondeu o milanês. “Eu só ouço o barulho da cidade. Além disso, imagine se há grilos por aqui”.

“Não estou enganado. Estou ouvindo o canto de um grilo”, retrucou o indiano e, resoluto, começou a procurar entre as folhas de algumas plantinhas miúdas. Depois de algum tempo, ele apontou para seu amigo, que o observava com ceticismo, um pequeno inseto, um esplêndido grilo cantante, que se encolhia resmungando contra os perturbadores de seu concerto.
“O senhor viu como havia um grilo?”, disse o indiano.
“É verdade”, admitiu o milanês. “Os senhores indianos têm uma audição muito mais aguçada do que nós, brancos…”.
“Desta vez o senhor está errado”, sorriu o sábio indiano. “Tenha cuidado…” O indiano tirou uma moeda do bolso e, fingindo não perceber, deixou-a cair na calçada.
Imediatamente, quatro ou cinco pessoas se viraram para olhar.
“O senhor viu isso?”, explicou o indiano. “Essa moeda fez um tilintar mais leve e mais fraco do que o cantar do grilo. Mas o senhor já notou quantos brancos a ouviram?”

“Onde estiver o seu tesouro, ali estará também o seu coração.”




Entrevista com o Reitor-Mor, P. Fabio Attard

Fizemos uma entrevista exclusiva com o Reitor-Mor dos Salesianos, P. Fabio Attard, percorrendo as etapas fundamentais de sua vocação e de sua trajetória humana e espiritual. Sua vocação nasceu no oratório e se consolidou através de uma rica formação que o levou da Irlanda à Tunísia, de Malta a Roma. De 2008 a 2020, foi Conselheiro Geral para a Pastoral Juvenil, função que desempenhou com uma visão multicultural adquirida através de experiências em diferentes contextos. A sua mensagem central é a santidade como fundamento da ação educativa salesiana: “Gostaria de ver uma Congregação mais santa”, afirma, sublinhando que a eficiência profissional deve estar enraizada na identidade consagrada.

Qual é a história da sua vocação?

Nasci em Gozo, Malta, em 23 de março de 1959, quinto de sete filhos. Na época do meu nascimento, meu pai era farmacêutico em um hospital, enquanto minha mãe tinha uma pequena loja de tecidos e costura, que com o tempo cresceu e se tornou uma pequena rede de cinco lojas. Ela era uma mulher muito trabalhadora, mas o negócio sempre foi familiar.

Frequentei as escolas primárias e secundárias locais. Um elemento muito bonito e particular da minha infância é que meu pai era catequista leigo no oratório, que até 1965 era dirigido pelos salesianos. Quando jovem, ele frequentava aquele oratório e acabou ficando lá como único catequista leigo. Quando comecei a frequentá-lo, aos seis anos, os salesianos tinham acabado de deixar a obra. Assumiu um jovem padre (que ainda está vivo) que continuou as atividades do oratório com o mesmo espírito salesiano, tendo ele próprio vivido lá como seminarista.
Continuávamos com o catecismo, a bênção eucarística diária, o futebol, o teatro, o coro, as excursões, as festas… tudo o que se vive normalmente num oratório. Havia muitas crianças e jovens, e eu cresci nesse ambiente. Na prática, minha vida se passava entre a família e o oratório. Eu também era coroinha na minha paróquia. Assim, depois do ensino médio, me orientei para o sacerdócio, porque desde criança tinha esse desejo no coração.

Hoje percebo o quanto fui influenciado por aquele jovem sacerdote, que eu admirava: ele estava sempre presente conosco no pátio, nas atividades do oratório. No entanto, naquela época os salesianos já não estavam mais lá. Entrei então no seminário, onde na época se faziam dois anos de curso preparatório como internos. Durante o terceiro ano – que correspondia ao primeiro ano de filosofia – conheci um amigo da família de cerca de 35 anos, uma vocação adulta, que havia entrado como aspirante salesiano (hoje ainda está vivo e é coadjutor). Quando ele deu esse passo, acendeu-se uma chama dentro de mim. E com a ajuda do meu diretor espiritual, comecei um discernimento vocacional.
Foi um caminho importante, mas também exigente: eu tinha 19 anos, mas aquele guia espiritual me ajudou a buscar a vontade de Deus, e não simplesmente a minha. Assim, no último ano – o quarto de filosofia –, em vez de segui-lo no seminário, vivi como aspirante salesiano, completando os dois anos de filosofia exigidos.

Na família, o ambiente era fortemente marcado pela fé. Participávamos todos os dias da missa, rezávamos o rosário em casa, éramos muito unidos. Ainda hoje, embora nossos pais estejam no céu, mantemos essa mesma unidade entre irmãos e irmãs.

Outra experiência familiar me marcou profundamente, embora só tenha percebido isso com o tempo. Meu irmão, o segundo da família, morreu aos 25 anos de insuficiência renal. Hoje, com os avanços da medicina, ele ainda estaria vivo graças à diálise e aos transplantes, mas naquela época não havia tantas possibilidades. Estive ao seu lado nos últimos três anos de sua vida: dividíamos o mesmo quarto e muitas vezes eu o ajudava à noite. Ele era um jovem sereno, alegre, que vivia sua fragilidade com uma alegria extraordinária.
Eu tinha 16 anos quando ele morreu. Passaram-se cinquenta anos, mas quando penso naquela época, naquela experiência cotidiana de proximidade, feita de pequenos gestos, reconheço o quanto isso marcou minha vida.

Nasci em uma família onde havia fé, senso de trabalho, responsabilidade compartilhada. Meus pais são dois exemplos extraordinários para mim: viveram com grande fé e serenidade a cruz, sem nunca sobrecarregar ninguém, e ao mesmo tempo souberam transmitir a alegria da vida familiar. Posso dizer que tive uma infância muito bonita. Não éramos ricos, nem pobres, mas sempre sóbrios, discretos. Eles nos ensinaram a trabalhar, a administrar bem os recursos, a não desperdiçar, a viver com dignidade, com elegância e, acima de tudo, com atenção aos pobres e aos doentes.

Como sua família reagiu quando o senhor tomou a decisão de seguir a vocação consagrada?

Chegou o momento em que, junto com meu diretor espiritual, esclarecemos que meu caminho era o dos salesianos. Eu também precisava comunicar isso aos meus pais. Lembro que era uma noite tranquila, estávamos jantando juntos, só nós três. A certa altura, eu disse: “Quero lhes dizer uma coisa: fiz meu discernimento e decidi entrar para os salesianos”.
Meu pai ficou muito feliz. Ele respondeu imediatamente: “Que o Senhor te abençoe”. Minha mãe, por outro lado, começou a chorar, como todas as mães fazem. Ela me perguntou: “Então você vai se afastar?” Mas meu pai interveio com doçura e firmeza: “Quer ele se afaste ou não, este é o seu caminho”.
Eles me abençoaram e me encorajaram. São momentos que ficam gravados para sempre.

Lembro-me particularmente do que aconteceu no final da vida dos meus pais. Meu pai faleceu em 1997 e, seis meses depois, descobriram um tumor incurável em minha mãe.
Naquela época, os superiores me pediram para ir lecionar na Universidade Pontifícia Salesiana (UPS), mas eu não sabia que decisão tomar. Minha mãe não estava bem, estava perto da morte. Conversando com meus irmãos, eles me disseram: “Faça o que os superiores pedem”.
Eu estava em casa e conversei com ela: “Mãe, os superiores estão me pedindo para ir para Roma”.
Ela, com a lucidez de uma verdadeira mãe, respondeu: “Ouça, meu filho, se dependesse de mim, eu pediria que você ficasse aqui, porque não tenho mais ninguém e não gostaria de ser um fardo para seus irmãos. Mas…” – e aqui ela disse uma frase que guardo no coração – “Você não é meu, você pertence a Deus. Faça o que seus superiores lhe dizem.”
Essa frase, pronunciada um ano antes de sua morte, é para mim um tesouro, uma herança preciosa. Minha mãe era uma mulher inteligente, sábia, perspicaz: sabia que a doença a levaria ao fim, mas naquele momento soube ser livre interiormente. Livre para dizer palavras que confirmavam mais uma vez o dom que ela mesma havia feito a Deus: oferecer um filho à vida consagrada.

A reação da minha família, desde o início até o fim, foi sempre marcada por um profundo respeito e um grande apoio. E ainda hoje, meus irmãos e irmãs continuam a levar adiante esse espírito.

Qual foi o seu percurso formativo desde o noviciado até hoje?

Foi um percurso muito rico e variado. Comecei o pré-noviciado em Malta, depois fiz o noviciado em Dublin, na Irlanda. Uma experiência realmente bonita.

Depois do noviciado, meus companheiros se mudaram para Maynooth para estudar filosofia na universidade, mas eu já tinha concluído esse curso anteriormente. Por isso, os superiores me pediram para permanecer no noviciado por mais um ano, onde ensinei italiano e latim. Depois, voltei para Malta para fazer dois anos de estágio, que foram muito bonitos e enriquecedores.

Depois, fui enviado a Roma para estudar teologia na Pontifícia Universidade Salesiana, onde passei três anos extraordinários. Esses anos me deram uma grande abertura mental. Vivíamos no seminário com quarenta coirmãos provenientes de vinte nações diferentes: Ásia, Europa, América Latina… até o corpo docente era internacional. Era em meados dos anos 80, cerca de vinte anos após o Concílio Vaticano II, e ainda se respirava muito entusiasmo: havia debates teológicos animados, a teologia da libertação, o interesse pelo método e pela prática. Esses estudos me ensinaram a ler a fé não apenas como conteúdo intelectual, mas como uma escolha de vida.

Após esses três anos, continuei com mais dois de especialização em teologia moral na Academia Alfonsiana, com os padres redentoristas. Lá também encontrei figuras significativas, como o famoso Bernhard Häring, com quem fiz uma amizade pessoal e ia regularmente todos os meses para conversar com ele. Foram cinco anos no total – entre o bacharelado e a licenciatura – que me formaram profundamente do ponto de vista teológico.

Posteriormente, me ofereci para as missões, e os superiores me enviaram para a Tunísia, junto com outro salesiano, para restabelecer a presença salesiana no país. Assumimos uma escola administrada por uma congregação feminina que, não tendo mais vocações, estava prestes a fechar. Era uma escola com 700 alunos; por isso tivemos que aprender francês e também árabe. Para nos prepararmos, passamos alguns meses em Lyon, na França, e depois nos dedicamos ao estudo do árabe.
Fiquei lá três anos. Foi outra grande experiência, porque nos encontramos a viver a fé e o carisma salesiano num contexto em que não se podia falar explicitamente de Jesus. No entanto, era possível construir percursos educativos baseados em valores humanos: respeito, disponibilidade, verdade. O nosso testemunho era silencioso, mas eloquente. Naquele ambiente, aprendi a conhecer e a amar o mundo muçulmano. Todos – alunos, professores e famílias – eram muçulmanos e nos acolheram com grande calor. Fizeram-nos sentir parte da sua família. Voltei várias vezes à Tunísia e sempre encontrei o mesmo respeito e apreço, independentemente da nossa pertença religiosa.

Depois dessa experiência, voltei para Malta e trabalhei durante cinco anos na área social. Em particular, numa casa salesiana que acolhe jovens que precisam de um acompanhamento educativo mais atento, também em regime residencial.

Após estes oito anos de pastoral (entre a Tunísia e Malta), foi-me oferecida a possibilidade de concluir o doutorado. Optei por voltar à Irlanda, porque o tema estava relacionado com a consciência segundo o pensamento do cardeal John Henry Newman, hoje santo. Concluído o doutorado, o Reitor-Mor da época, P. Juan Edmundo Vecchi – de grata memória – pediu-me para ingressar como professor de teologia moral na Pontifícia Universidade Salesiana.

Olhando para todo o meu percurso, desde o aspirantado até ao doutorado, posso dizer que foi um conjunto de experiências não só de conteúdos, mas também de contextos culturais muito diferentes. Agradeço ao Senhor e à Congregação, porque me ofereceram a possibilidade de viver uma formação tão variada e rica.

Então o senhor conhece o maltês porque é sua língua materna, o inglês porque é a segunda língua em Malta, o latim porque o senhor o ensinou, o italiano porque estudou na Itália, o francês e o árabe porque esteve em Manouba, na Tunísia… Quantas línguas o senhor conhece?

Cinco, seis línguas, mais ou menos. Mas, quando me perguntam sobre línguas, eu sempre digo que são um pouco coincidências históricas.
Em Malta, já crescemos com duas línguas: o maltês e o inglês, e na escola se estuda uma terceira língua. Na minha época, também se ensinava italiano. Além disso, eu tinha um talento natural para línguas e também escolhi o latim. Mais tarde, quando fui para a Tunísia, foi necessário aprender francês e também árabe.
Em Roma, vivendo com muitos estudantes de espanhol, o ouvido se acostuma e, quando fui eleito Conselheiro para a Pastoral Juvenil, aprofundei um pouco o espanhol, que é uma língua muito bonita.

Todas as línguas são bonitas. Claro, aprendê-las requer empenho, estudo, prática. Há quem tenha mais facilidade, outros menos: faz parte da disposição pessoal. Mas não é um mérito, nem uma culpa. É simplesmente um dom, uma predisposição natural.

De 2008 a 2020, o senhor foi Conselheiro Geral da Pastoral Juvenil por dois mandatos. Como sua experiência nesta missão o ajudou?

Quando o Senhor nos confia uma missão, levamos conosco toda a bagagem de experiências que acumulamos ao longo do tempo.
Tendo vivido em contextos culturais diferentes, não corria o risco de ver tudo através do filtro de uma única cultura. Sou europeu, venho do Mediterrâneo, de um país que foi colônia inglesa, mas tive a graça de viver em comunidades internacionais e multiculturais.

Os anos de estudo na UPS também me ajudaram muito. Tínhamos professores que não se limitavam a transmitir conteúdos, mas nos educavam a fazer síntese, a construir um método. Por exemplo, se estudávamos história da Igreja, compreendíamos como era essencial para compreender a patrística. Se abordávamos a teologia bíblica, aprendíamos a relacioná-la com a teologia sacramental, com a moral, com a história da espiritualidade. Em suma, ensinavam-nos a pensar de forma orgânica.
Essa capacidade de síntese, essa arquitetura do pensamento, torna-se então parte da sua formação pessoal. Quando se estuda teologia, aprende-se a identificar pontos fixos e a conectá-los. O mesmo vale para uma proposta pastoral, pedagógica ou filosófica. Quando se encontra pessoas com grande profundidade, absorve-se não só o que dizem, mas também como o dizem, e isso forma o seu estilo.

Outro elemento importante é que, no momento da minha eleição, eu já tinha vivido experiências em ambientes missionários, onde a religião católica era praticamente ausente, e tinha trabalhado com pessoas marginalizadas e vulneráveis. Também tinha adquirido alguma experiência no mundo universitário e, paralelamente, tinha-me dedicado muito ao acompanhamento espiritual.

Além disso, entre 2005 e 2008 – logo após a experiência na UPS –, a Arquidiocese de Malta me pediu para fundar um Instituto de Formação Pastoral, na sequência de um Sínodo diocesano que reconheceu a necessidade do mesmo. O arcebispo me confiou a tarefa de começar do zero. A primeira coisa que fiz foi formar uma equipe com padres, religiosos, leigos – homens e mulheres. Criamos um novo método de formação, que ainda é usado hoje. O instituto continua funcionando muito bem e, de certa forma, essa experiência foi uma preparação valiosa para o trabalho que realizei posteriormente na pastoral juvenil.
Desde o início, sempre acreditei no trabalho em equipe e na colaboração com os leigos. Minha primeira experiência como diretor foi justamente nesse estilo: uma equipe educativa estável, hoje diríamos uma CEP (Comunidade Educativa-Pastoral), com encontros sistemáticos, não ocasionais. Nós nos reuníamos todas as semanas com os educadores e profissionais. E essa abordagem, que com o tempo se tornou um método, permaneceu para mim uma referência.

A isso se soma também a experiência acadêmica: seis anos como professor na Pontifícia Universidade Salesiana, na qual chegavam estudantes de mais de cem nações, e depois como examinador e diretor de teses de doutorado na Academia Alfonsiana.

Acredito que tudo isso me preparou para viver essa responsabilidade com lucidez e visão.

Assim, quando a Congregação, durante o Capítulo Geral de 2008, me pediu para assumir este cargo, eu já trazia comigo uma visão ampla e multicultural. E isso me ajudou, porque reunir diversidades não era algo difícil para mim: era parte da normalidade. Claro, não se tratava simplesmente de fazer uma “salada” de experiências: era preciso encontrar os fios condutores, dar coerência e unidade.

O que pude viver como Conselheiro Geral não foi um mérito pessoal. Acredito que qualquer salesiano, se tivesse tido as mesmas oportunidades e o apoio da Congregação, poderia ter vivido experiências semelhantes e dado a sua contribuição com generosidade.

Há uma oração, uma boa noite salesiana, um hábito que o senhor nunca deixa de fazer?

A devoção a Maria. Em casa, crescemos com o Rosário diário, rezado em família. Não era uma obrigação, era algo natural: fazíamos antes de comer, porque sempre comíamos juntos. Naquela época era possível. Hoje talvez seja menos, mas naquela época era assim que se vivia: a família reunida, a oração compartilhada, a mesa comum.

No início, talvez eu não percebesse o quanto era profunda essa devoção mariana. Mas com o passar dos anos, quando se começa a distinguir o que é essencial do que é secundário, compreendi o quanto essa presença materna acompanhou minha vida.
A devoção a Maria se expressa de diferentes formas: o Rosário diário, quando possível; um momento de pausa diante de uma imagem ou estátua da Virgem Maria; uma oração simples, mas feita com o coração. São gestos que acompanham o caminho da fé.

Naturalmente, há alguns pontos fixos: a Eucaristia diária e a meditação diária. São pilares que não se discutem, se vivem. Não só porque somos consagrados, mas porque somos crentes. E a fé só se vive alimentando-a.
Quando a alimentamos, ela cresce em nós. E só se crescer em nós, podemos ajudar a que cresça também nos outros. Para nós, que somos educadores, é evidente: se a nossa fé não se traduz em vida concreta, todo o resto se torna fachada.

Essas práticas – a oração, a meditação, a devoção – não são reservadas aos santos. São expressão de honestidade. Se fiz uma escolha de fé, também tenho a responsabilidade de cultivá-la. Caso contrário, tudo se reduz a algo exterior, aparente. E isso, com o tempo, não se sustenta.

Se pudesse voltar atrás, faria as mesmas escolhas?

Absolutamente sim. Na minha vida, houve momentos muito difíceis, como acontece com todos. Não quero passar por “vítima de plantão”. Acredito que toda pessoa, para crescer, precisa passar por fases de escuridão, momentos de desolação, de solidão, de se sentir traída ou acusada injustamente. E eu vivi esses momentos. Mas tive a graça de ter um diretor espiritual ao meu lado.

Quando se vive certas dificuldades acompanhado por alguém, consegue-se intuir que tudo o que Deus permite tem um sentido, tem um propósito. E quando se sai desse “túnel”, descobre-se que se é uma pessoa diferente, mais madura. É como se, através dessa provação, fôssemos transformados.

Se eu tivesse ficado sozinho, teria corrido o risco de tomar decisões erradas, sem visão, cego pelo cansaço do momento. Quando se está zangado, quando se sente sozinho, não é hora de decidir. É hora de caminhar, de pedir ajuda, de se deixar acompanhar.

Viver certas passagens com a ajuda de alguém é como ser uma massa colocada no forno: o fogo a cozinha, a torna madura.
Portanto, à pergunta se mudaria alguma coisa, a minha resposta é: não. Porque mesmo os momentos mais difíceis, mesmo aqueles que eu não compreendia, ajudaram-me a tornar-me na pessoa que sou hoje.
Sinto-me uma pessoa perfeita? Não. Mas sinto que estou a caminho, todos os dias, tentando viver diante da misericórdia e da bondade de Deus.

E hoje, ao dar esta entrevista, posso dizer com sinceridade que me sinto feliz. Talvez ainda não tenha compreendido plenamente o que significa ser Reitor-Mor – isso leva tempo –, mas sei que é uma missão, não um passeio. Traz consigo as suas dificuldades. No entanto, sinto-me amado, estimado pelos meus colaboradores e por toda a Congregação.

E tudo o que sou hoje, sou graças ao que vivi, mesmo nos momentos mais difíceis. Não mudaria nada. Eles fizeram de mim quem sou.

O senhor tem algum projeto que lhe seja particularmente caro?

Sim. Se fecho os olhos e imagino algo que realmente desejo, gostaria de ver uma Congregação mais santa. Mais santa. Mais santa.

Fiquei profundamente inspirado pela primeira carta do padre Pascual Chávez, de 2002, intitulada “Sede santos”. Essa carta me tocou profundamente, deixou uma marca em mim.
Os projetos são muitos, e todos válidos, bem estruturados, com visões amplas e profundas. Mas que valor têm, se são levados adiante por pessoas que não são santas? Podemos fazer um trabalho excelente, podemos até ser apreciados – e isso, em si, não é negativo –, mas não trabalhamos para obter sucesso. O nosso ponto de partida é uma identidade: somos pessoas consagradas.

O que propomos só faz sentido se nasce daí. É claro que desejamos que nossos projetos tenham sucesso, mas ainda mais desejamos que tragam graça, que toquem as pessoas profundamente. Não basta ser eficiente. Temos que ser eficazes, no sentido mais profundo: eficazes no testemunho, na identidade, na fé.
A eficiência pode existir mesmo sem qualquer referência religiosa. Podemos ser excelentes profissionais, mas isso não basta.
Nossa consagração não é um detalhe: é o fundamento. Se ela se torna marginal, se a colocamos de lado para dar espaço à eficiência, então perdemos nossa identidade.

E as pessoas nos observam. Nas escolas salesianas, reconhece-se que os resultados são bons – e isso é bom. Mas será que também nos reconhecem como homens de Deus? Essa é a questão.
Se nos veem apenas como bons profissionais, então somos apenas eficientes. Mas a nossa vida deve alimentar-se Dele – Caminho, Verdade e Vida – não do que “eu penso” ou “eu quero” ou “do que me parece”.

Portanto, mais do que falar de um projeto pessoal, prefiro falar de um desejo profundo: tornar-me santo. E falar disso de forma concreta, não idealizada.
Quando Dom Bosco falava aos seus jovens sobre estudo, saúde e santidade, não se referia a uma santidade feita apenas de oração na capela. Ele pensava em uma santidade vivida na relação com Deus e alimentada pela relação com Deus. A santidade cristã é o reflexo dessa relação viva e cotidiana.

Que conselho o senhor daria a um jovem que se questiona sobre a vocação?

Eu diria para descobrir, passo a passo, qual é o projeto de Deus para ele.
O caminho vocacional não é uma pergunta que se faz, esperando uma resposta pronta da Igreja. É uma peregrinação. Quando um jovem me diz: “Não sei se quero ser salesiano ou não”, tento afastá-lo dessa formulação. Porque não se trata simplesmente de decidir: “Vou ser salesiano”. A vocação não é uma opção em relação a uma “coisa”.

Também na minha própria experiência, quando disse ao meu diretor espiritual: “Quero ser salesiano, tenho que ser”, ele, com muita calma, me fez refletir: “É realmente a vontade de Deus? Ou é apenas um desejo seu?”

E é justo que um jovem procure o que deseja, é algo saudável. Mas quem o acompanha tem a tarefa de educar essa busca, de transformá-la de entusiasmo inicial em caminho de amadurecimento interior.
“Você quer fazer o bem? Ótimo. Então conheça a si mesmo, reconheça que é amado por Deus”.
É somente a partir dessa relação profunda com Deus que pode surgir a verdadeira pergunta: “Qual é o projeto de Deus para mim?”
Porque o que hoje desejo, amanhã pode não me bastar mais. Se a vocação se reduz ao que “gosto”, então será algo frágil. A vocação é, pelo contrário, uma voz interior que interpela, que pede para entrar em diálogo com Deus e para responder.

Quando um jovem chega a este ponto, quando é acompanhado a descobrir aquele espaço interior onde habita Deus, então começa realmente a caminhar.
E por isso, quem acompanha deve ser muito atento, profundo, paciente. Nunca superficial.
O Evangelho de Emaús é uma imagem perfeita: Jesus se aproxima dos dois discípulos, os escuta, mesmo sabendo que estão falando confusamente. Depois de ouvi-los, começa a falar. E eles, no final, o convidam: “Fica conosco, porque já está ficando tarde”.
E o reconhecem no gesto de partir o pão. Então dizem: “Não ardia em nós o nosso coração enquanto ele nos falava pelo caminho?”

Hoje, muitos jovens estão em busca. Nossa tarefa, como educadores, é não ser apressados. Mas ajudá-los, com calma e gradualidade, a descobrir a grandeza que já está em seus corações. Porque lá, naquela profundidade, eles encontram Cristo. Como diz Santo Agostinho: “Tu estavas dentro de mim, e eu estava fora. E lá eu te procurava”.

O senhor teria uma mensagem a transmitir hoje à Família Salesiana?

É a mesma mensagem que compartilhei também nestes dias, durante o encontro da Consulta da Família Salesiana: A fé. Enraizar-nos cada vez mais na pessoa de Cristo.

É desse enraizamento que nasce um conhecimento autêntico de Dom Bosco. Os primeiros salesianos, quando quiseram escrever um livro sobre o verdadeiro Dom Bosco, não o intitularam “Dom Bosco apóstolo dos jovens”, mas “Dom Bosco com Deus” – um texto escrito pelo P. Eugênio Ceria em 1929.
E isso nos faz refletir. Por que eles, que o viam em ação todos os dias, não escolheram destacar o Dom Bosco incansável, organizador, educador? Não, eles quiseram contar o Dom Bosco profundamente unido a Deus.
Quem o conheceu bem não se deteve nas aparências, mas foi à raiz: Dom Bosco era um homem imerso em Deus.

À Família Salesiana, eu digo: recebemos um tesouro. Um dom imenso. Mas todo dom implica uma responsabilidade.
No meu discurso final, eu disse: “Não basta amar Dom Bosco, é preciso conhecê-lo.”
E só podemos conhecê-lo verdadeiramente se formos pessoas de fé.

Devemos olhar para ele com os olhos da fé. Só assim podemos encontrar o crente que foi Dom Bosco, em quem o Espírito Santo agiu com força: com dýnamis, com cháris, com carisma, com graça.
Não podemos nos limitar a repetir certas máximas suas ou a contar seus milagres. Porque corremos o risco de nos determos nas histórias de Dom Bosco, em vez de nos determos na história de Dom Bosco, porque Dom Bosco é maior do que Dom Bosco.
Isso significa estudo, reflexão, profundidade. Significa evitar toda superficialidade.

E então poderemos dizer com verdade: “Esta é a minha fé, este é o meu carisma: enraizados em Cristo, seguindo os passos de Dom Bosco”.




Educar as faculdades do nosso espírito com São Francisco de Sales

São Francisco de Sales apresenta o espírito como a parte mais elevada da alma, governada pelo intelecto, memória e vontade. O coração de sua pedagogia é a autoridade da razão, “tocha divina” que torna o homem verdadeiramente humano e deve guiar, iluminar e disciplinar as paixões, a imaginação e os sentidos. Educar o espírito significa, portanto, cultivar o intelecto por meio do estudo, meditação e contemplação, exercitar a memória como depósito das graças recebidas e fortalecer a vontade para que escolha constantemente o bem. Dessa harmonia nascem as virtudes cardeais – prudência, justiça, fortaleza e temperança – que formam pessoas livres, equilibradas e capazes de caridade autêntica.

O espírito é considerado, por Francisco de Sales, como a parte superior da alma. Suas faculdades são o intelecto, a memória e a vontade. A imaginação poderia fazer parte na medida em que a razão e a vontade intervêm em seu funcionamento. A vontade, por sua vez, é a faculdade mestra à qual convém reservar um tratamento particular. O espírito faz com que o ser humano se torne, segundo a definição clássica, um «animal racional». «Somos seres humanos somente mediante a razão», escreve Francisco de Sales. Depois das «graças corporais», há «os dons do espírito», que deveriam ser objeto de nossas reflexões e de nosso reconhecimento. Entre eles, o autor da Filotea distingue os dons recebidos da natureza e aqueles adquiridos com a educação:

Considerai os dons do espírito: quanta gente há no mundo idiota, tolas, mentalmente perturbadas. Por que não vos encontrais entre eles? Deus vos favoreceu. Quantos foram educados grosseiramente e na mais extrema ignorância: mas vós, a Providência divina vos fez crescer de um modo civil e honrado.

A razão, “divina tocha”
No texto Esercizio del sonno o riposo spirituale (Exercício do sono ou repouso espiritual), escrito em Pádua, quando tinha vinte e três anos, Francisco se propunha a meditar um argumento que surpreende:

Farei uma pausa para admirar a beleza da razão que Deus concedeu ao ser humano, para que, iluminado e instruído pelo seu maravilhoso esplendor, odiasse o vício e amasse a virtude. Oh! Sigamos a resplandecente luz desta divina tocha, porque nos é dada em uso para ver por onde caminhamos! Ah! Se nos deixarmos conduzir pelos seus ditames, raramente tropeçaremos, dificilmente nos machucaremos.

«A razão natural é uma árvore boa que Deus plantou em nós, os frutos dela só podem ser bons», afirma o autor do livro Teotimo; é verdade que ela está «gravemente ferida e quase morta por causa do pecado», mas seu exercício não é fundamentalmente impedido.
No reino interior do ser humano, «a razão deve ser a rainha, à qual todas as faculdades do nosso espírito, todos os nossos sentidos e o próprio corpo devem permanecer absolutamente submissos». É a razão que distingue o ser humano do animal, por isso é preciso ter cuidado para não imitar «os macacos e os símios que estão sempre amuados, tristes e lamentosos quando falta a lua; depois, ao contrário, na lua nova, saltam, dançam e fazem todas as caretas possíveis». É necessário fazer reinar «a autoridade da razão», reitera Francisco de Sales.
Entre a parte superior do espírito, que deve reinar, e a parte inferior do nosso ser, designada às vezes por Francisco de Sales com o termo bíblico de «carne», a luta por vezes se torna áspera. Cada frente tem seus aliados. O espírito, «fortaleza da alma», é acompanhado «por três soldados: o intelecto, a memória e a vontade». Atentos, portanto, à «carne» que conspira e busca aliados no local:

A carne usa ora o intelecto, ora a vontade, ora a imaginação, as quais, associando-se contra a razão, lhe deixam o campo livre, criando divisão e fazendo um mau serviço à razão. […]. A carne atrai a vontade, às vezes, com os prazeres e, às vezes, com as riquezas; ora solicita a imaginação a criar pretensões, ora suscita no intelecto uma grande curiosidade, tudo com o pretexto do bem.

Nesta luta, mesmo quando todas as paixões da alma parecem transtornadas, nada está perdido enquanto o espírito resiste: «Se estes soldados fossem fiéis, o espírito não teria nenhum temor e não daria nenhum peso aos próprios inimigos: como soldados que, dispondo de suficientes munições, resistem no bastião de uma fortaleza inexpugnável, apesar de os inimigos se encontrarem nos subúrbios ou até mesmo já terem tomado a cidade; aconteceu à cidadela de Nice, diante da qual a força de três grandes príncipes não conseguiu superar a resistência dos defensores». A causa de todas estas lacerações interiores é o amor-próprio. Com efeito, «os nossos raciocínios ordinariamente estão cheios de motivações, opiniões e considerações sugeridas pelo amor-próprio, e isso causa grandes conflitos na alma».
No âmbito educativo, é importante fazer sentir a superioridade do espírito. «Aqui está o princípio de uma educação humana», diz o P. Lajeunie, «mostrar à criança, assim que sua razão desperta, o que é belo e bom, e afastá-la do que é mau; criar deste modo em seu coração o hábito de controlar seus reflexos instintivos, em vez de segui-los servilmente; é assim, de fato, que se forma este processo de sensualização que a torna escrava de seus desejos espontâneos. No momento de escolhas decisivas, tal hábito de ceder sempre às pulsões instintivas, sem se controlar, pode se revelar catastrófico».

O intelecto, “olho da alma”
O intelecto, faculdade tipicamente humana e racional, que consente conhecer e compreender, frequentemente é comparado à visão. Afirma-se, por exemplo: «Eu vejo», para dizer: «Eu compreendo». Para Francisco de Sales, o intelecto é «o olho da alma»; daí sua expressão «o olho do vosso intelecto». A incrível atividade de que é capaz o torna semelhante a «um operário, o qual, com as centenas de milhares de olhos e de mãos, como um outro ‘Argo’, cumpre mais obras do que todos os trabalhadores do mundo, porque não há nada no mundo que não seja capaz de representar».
Como funciona o intelecto humano? Francisco de Sales analisou, com precisão, as quatro operações de que ele é capaz: o pensamento simples, o estudo, a meditação e a contemplação. O pensamento simples se faz sobre uma grande diversidade de coisas, sem nenhum fim, «como fazem as moscas que pousam sobre as flores sem querer extrair nenhum suco, mas somente porque as encontram». Quando o intelecto passa de um pensamento ao outro, os pensamentos que assim o entulham são ordinariamente «inúteis e danosos». O estudo, ao contrário, visa considerar as coisas «para conhecê-las, para compreendê-las e para falar bem delas», com o objetivo de «encher a memória», como fazem os besouros que «pousam sobre as rosas para nenhum outro fim senão para saciar-se e encher o ventre».
Francisco de Sales podia parar aqui, mas conhecia e recomendava outras duas formas mais elevadas. Enquanto o estudo visa aumentar os conhecimentos, a meditação tem como objetivo «mover os afetos e, em particular, o amor»: «Fixemos o nosso intelecto sobre o mistério do qual esperamos poder extrair bons afetos», como a pomba que «arrulha retendo a respiração e, mediante o murmúrio que produz na garganta sem deixar sair a respiração, produz o seu típico canto».
A atividade suprema do intelecto é a contemplação, que consiste em alegrar-se do bem conhecido, através da meditação, e amado, mediante tal conhecimento; desta vez assemelhamo-nos aos passarinhos que se divertem na gaiola somente para «agradar ao mestre». Com a contemplação o espírito humano atinge o seu vértice; o autor do Teotimo afirma que a razão «vivifica, enfim, o intelecto, com a contemplação».
Retornemos ao estudo, a atividade intelectual que nos interessa mais de perto. «Há um velho axioma dos filósofos, segundo o qual todo ser humano deseja conhecer». Retomando, por sua vez, esta afirmação de Aristóteles, como também o exemplo de Platão, Francisco de Sales pretende demonstrar que isso constitui um grande privilégio. O que o ser humano quer conhecer é a verdade. A verdade é mais bela do que aquela «famosa Helena, pela cuja beleza morreram tantos gregos e troianos». O espírito é feito para a busca da verdade: «A verdade é o objeto do nosso intelecto, o qual, por conseguinte, descobrindo e conhecendo a verdade das coisas, se sente plenamente satisfeito e contente». Quando o espírito encontra algo de novo experimenta uma alegria intensa e quando começa a encontrar alguma coisa de belo, é impelido a continuar a busca, «como aqueles que encontraram uma mina de ouro e são estimulados a ir sempre em frente para encontrar muito mais deste precioso metal». O espanto que produz a descoberta é um potente estímulo; «a admiração, de fato, deu origem à filosofia e à atenta busca das coisas naturais». Sendo Deus a verdade suprema, o conhecimento de Deus é a ciência suprema que preenche o nosso espírito. É ele que nos «doou o intelecto para conhecê-lo»; fora dele há somente «pensamentos vãos e reflexões inúteis!».

Cultivar a própria inteligência
O que caracteriza o ser humano é o grande desejo de conhecer. Foi esse desejo que «induziu o grande Platão a sair de Atenas e correr tanto», e «a induzir esses antigos filósofos a renunciarem às suas comodidades corporais». Alguns chegam até a jejuar diligentemente «para poder estudar melhor». O estudo, de fato, produz um prazer intelectual, superior aos prazeres sensuais e difícil de deter: «O amor intelectual, encontrando na união com o seu objeto uma satisfação inesperada, aperfeiçoa o conhecimento, continuando assim a unir-se a ele, e unindo-se cada vez mais, não cessa de continuar a fazê-lo».
Trata-se de «iluminar bem o intelecto», esforçando-se para «purgá-lo» das trevas da «ignorância». Ele denuncia «a obtusidade e a indolência de espírito, que não quer saber o que é necessário» e insiste no valor do estudo e do aprendizado: «Estudem sempre mais, com diligência e humildade», escrevia a um estudante. Mas não basta «purgar» o intelecto da ignorância, é preciso também «embelezá-lo e adorná-lo», «decorá-lo com considerações». Para conhecer perfeitamente uma coisa, é necessário aprender bem, dedicar tempo a «sujeitar» o intelecto, ou seja, a fixá-lo em uma coisa, antes de passar a outra.
O jovem Francisco de Sales aplicava a sua inteligência não só aos estudos e aos conteúdos intelectuais, mas também a certos assuntos essenciais para a vida do ser humano na terra, e, em particular, à «consideração da vaidade da grandeza, das riquezas, das honras, das comodidades e dos prazeres voluptuosos deste mundo»; à «consideração da maldade, abjeta e deplorável miséria, presentes no vício e no pecado», e ao «conhecimento da excelência da virtude».
O espírito humano é frequentemente distraído, esquece, contenta-se com um conhecimento vago ou vão. Através da meditação, não só das verdades eternas, mas também dos fenômenos e dos acontecimentos do mundo, é capaz de alcançar uma visão mais realista e mais profunda da realidade. Por este motivo, nas Meditações propostas pelo autor a Filotéia, há uma primeira parte dedicada a ela intitulada Considerações.
Considerar significa aplicar o espírito a um objeto preciso, examinar com atenção os seus diversos aspectos. Francisco de Sales convida Filotéia a «pensar», a «ver», a examinar os diferentes «pontos», alguns dos quais merecem ser considerados «à parte». Exorta a ver as coisas em geral e a descer depois aos casos particulares. Quer que se examinem os princípios, as causas e as consequências de uma determinada verdade, de uma dada situação, como também as circunstâncias que a acompanham. É preciso também saber «pesar» certas palavras ou sentenças, cuja importância corre o risco de nos escapar, considerá-las uma a uma, confrontá-las uma com a outra.
Assim como acontece com tudo, também no desejo de conhecer pode haver excessos e deformações. Atenção à vaidade de falsos sábios: alguns, de fato, «pelo pouco de ciência que têm, querem ser honrados e respeitados por todos, como se cada um devesse ir à sua escola e tê-los como mestres: por isso são chamados arrogantes». Ora, «a ciência nos desonra quando nos infla, tornando-nos arrogantes». Que coisa ridícula querer instruir Minerva, Minervam docere, a deusa da sabedoria! «A peste da ciência é a presunção, que infla os espíritos e os torna hidrópicos, como são ordinariamente os sábios do mundo».
Quando se trata de problemas que nos superam e que se enquadram no âmbito dos mistérios da fé, é necessário «purificá-los de toda a curiosidade», é preciso «mantê-los bem fechados e cobertos diante de tais vãs e tolas questões e curiosidades». É a «pureza intelectual», a «segunda modéstia» ou a «modéstia interior». Enfim, deve-se saber que o intelecto pode errar e que existe o «pecado do intelecto», como aquele que Francisco de Sales repreende à senhora de Chantal, a qual havia cometido um erro depositando uma exagerada estima no seu diretor.

A memória e os seus «armazéns»
Assim como o intelecto, a memória é uma faculdade do espírito que suscita admiração. Francisco de Sales a compara a um armazém «que vale mais do que os de Antuérpia ou de Veneza». Não se diz porventura «armazenar» na memória? A memória é um soldado cuja fidelidade nos é muito útil. É um dom de Deus, declara o autor da Introdução à vida devota: Deus a concedeu «para que vos recordeis dele», diz a Filotéia, convidando-a a fugir «das recordações detestáveis e frívolas».
Esta faculdade do espírito humano precisa ser treinada. Quando era estudante em Pádua, o jovem Francisco exercitava a sua memória não só nos estudos, mas também na vida espiritual, na qual a memória dos benefícios recebidos é um elemento fundamental:

Antes de tudo, dedicar-me-ei a refrescar a minha memória com todas as boas motivações, desejos, afetos, propósitos, projetos, sentimentos e doçuras que, no passado, a divina Majestade me inspirou e me fez experimentar, considerando os seus santos mistérios, a beleza da virtude, a nobreza do seu serviço e uma infinidade de benefícios que me concedeu livremente; porei ordem, também, nas minhas recordações acerca das obrigações que tenho para com ela pelo fato de que, pela sua santa graça, às vezes debilitou os meus sentidos enviando-me algumas doenças e enfermidades, das quais tirei grande proveito.

Nas dificuldades e nos medos é indispensável servir-se dela «para recordar-se das promessas» e para «permanecer firmes confiando que tudo perecerá, mesmo que as promessas não tenham sido cumpridas». Todavia, a memória do passado nem sempre é boa, porque pode gerar tristeza, como aconteceu a um discípulo de São Bernardo, que foi assaltado por uma má tentação quando começou «a recordar os amigos do mundo, os parentes, os bens que havia deixado». Em certas circunstâncias excepcionais da vida espiritual «é necessário purificá-la da recordação de coisas caducas e de assuntos mundanos, e esquecer por um certo tempo as coisas materiais e temporais, ainda que boas e úteis». No campo moral, para exercer a virtude, a pessoa que se sentiu ofendida tomará uma medida radical: «Recordo-me demais das flechadas e injúrias, de agora em diante perderei a memória».

«Devemos ter um espírito justo e razoável»
As capacidades do espírito humano, em particular do intelecto e da memória, não são destinadas só a gloriosas empresas intelectuais, mas também e sobretudo à condução da vida. Procurar conhecer o ser humano, compreender a vida e definir as normas referentes aos comportamentos conformes à razão, estes deveriam ser os deveres fundamentais do espírito humano e da sua educação. A parte central da Filotea, que trata do «exercício das virtudes», contém, quase no fim, um capítulo que resume de certo modo o ensinamento de Francisco de Sales sobre as virtudes: «Devemos ter um espírito justo e razoável».
Com fineza e uma pitada de humor, o autor denuncia numerosas condutas bizarras, insanas ou simplesmente injustas: «Acusamos o próximo por pouco, e desculpamos nós mesmos por muito mais»; «queremos vender com um preço alto e comprar a bom preço»; «o que fazemos pelos outros nos parece sempre muito, e o que fazem os outros por nós é nada»; «temos um coração doce, gracioso e cortês para conosco, e um coração duro, severo e rigoroso para com o próximo»; «temos dois pesos: um para pesar as nossas comodidades, com a maior vantagem possível para nós, o outro para pesar as do próximo, com a maior desvantagem que se pode». Para julgar bem, aconselha a Filotéia, é necessário sempre colocar-se no lugar do próximo: «Façam-se vendedoras ao comprar e compradoras ao vender». Não se perde nada em viver como pessoas «generosas, nobres, corteses, com um coração real, constante e razoável».
A razão está na base do edifício da educação. Certos pais não têm uma atitude mental justa; de fato, «há rapazes virtuosos que pais e mães não conseguem quase suportar porque têm algum defeito corporal; e há outros rapazes, ao contrário, mal-acostumados e continuamente mimados porque têm algum tipo de beleza física». Há educadores e responsáveis que se deixam levar a preferências. «Mantenham a balança bem direita entre as vossas filhas», recomendava a uma superiora das irmãs visitandinas, para que «os dons naturais não vos façam distribuir injustamente os afetos e os favores». E acrescentava: «A beleza, a boa graça e a palavra amável conferem frequentemente uma grande força de atração às pessoas que vivem segundo as suas inclinações naturais; a caridade tem como objeto a verdadeira virtude e a beleza do coração, e se estende a todos sem particularismos».
Mas é sobretudo a juventude aquela que corre os riscos maiores, porque se «o amor-próprio nos afasta geralmente da razão», isso acontece talvez ainda mais nos jovens tentados pela vaidade e pela ambição. A razão de um jovem corre o risco de perder-se sobretudo quando se deixa «levar por paixões». Atenção, portanto, escreve o bispo a um jovem, «a não permitir que os vossos afetos sejam mais fortes que o juízo e a razão na escolha dos sujeitos a amar; pois, uma vez que se pôs em marcha, o afeto arrasta o juízo, como se arrastaria um escravo, a escolhas muito deploráveis, das quais poderia arrepender-se muito em breve». Explicava também às visitandinas que «os nossos pensamentos estão geralmente cheios de razões, opiniões e considerações sugeridas pelo amor-próprio, que causa grandes conflitos na alma».

A razão, fonte das quatro virtudes cardeais
A razão assemelha-se ao rio do paraíso «que Deus faz correr para irrigar todo o ser humano em todas as suas faculdades e atividades»; ele se divide em quatro braços correspondentes às quatro virtudes que a tradição filosófica chama virtudes cardeais: a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança.
A prudência «inclina o nosso intelecto a discernir verdadeiramente o mal a evitar e o bem a cumprir». Ela consiste em «discernir quais são os meios mais apropriados para alcançar o bem e a virtude». Atenção às paixões que correm o risco de deformar o nosso juízo e de provocar a ruína da prudência! A prudência não se opõe à simplicidade: seremos, conjuntamente, «prudentes como serpentes para não sermos enganados; simples como pombas para não enganar ninguém».
A justiça consiste em «render a Deus, ao próximo e a si mesmos o que se deve». Francisco de Sales começa com a justiça para com Deus, conectada com a virtude da religião, «mediante a qual rendemos a Deus o respeito, a honra, a homenagem e a submissão a ele devidos como nosso soberano Senhor e primeiro princípio». A justiça para com os pais comporta o dever da piedade, a qual «se estende a todos os ofícios que se podem legitimamente render a eles, seja em honra, seja em serviço».
A virtude da fortaleza ajuda a «superar as dificuldades que se encontram ao cumprir o bem e ao repelir o mal». É bem necessária, porque o apetite sensitivo é «verdadeiramente um sujeito rebelde, sedicioso, turbulento». Quando a razão domina as paixões, a ira dá lugar à doçura, grande aliada da razão. A fortaleza é acompanhada frequentemente pela magnanimidade, «uma virtude que nos impele e inclina a cumprir ações de grande importância».
Enfim, a temperança é indispensável «para reprimir as inclinações desordenadas da sensualidade», para «governar o apetite da avidez» e «frear as paixões conectadas». Com efeito, se a alma se apaixona demais por um prazer e por uma alegria sensível, degrada-se, tornando-se incapaz de alegrias mais elevadas.
Em conclusão, as quatro virtudes cardeais são como as manifestações desta luz natural que nos fornece a razão. Praticando estas virtudes, a razão exerce «a sua superioridade e a sua autoridade no regular os apetites sensuais».




Educar nossas emoções com São Francisco de Sales

A psicologia moderna demonstrou a importância e a influência das emoções na vida da psique humana e se sabe que as emoções são particularmente fortes durante a juventude. Mas quase não se fala das «paixões da alma», que a antropologia clássica analisou cuidadosamente, como testemunha a obra de Francisco de Sales, particularmente quando escreve que «a alma, enquanto tal, é a fonte das paixões». Em seu vocabulário, o termo «emoção» não aparece ainda com as conotações que lhe atribuímos hoje. Dirá, em vez disso, que as nossas «paixões» em certas circunstâncias são «moções». No âmbito educativo, a questão que se coloca diz respeito à atitude que convém ter diante dessas manifestações involuntárias da nossa sensibilidade, que têm sempre um componente fisiológico.

«Eu sou um pobre homem e nada mais»
         Todos aqueles que conheceram Francisco de Sales notaram sua grande sensibilidade e emotividade. O sangue lhe subia à cabeça e o rosto ficava todo vermelho. Conhecemos seus acessos de ira contra os «hereges» e a cortesã de Pádua. Como toda pessoa nascida na Saboia, era «habitualmente calmo e doce, mas capaz de terríveis acessos de ira; era um vulcão sob a neve». Sua sensibilidade era muito viva. Por ocasião da morte de Jeanne, sua irmã mais nova, escrevia a Joana Francisca Frémiot de Chantal, também consternada:

         Ai de mim, minha filha: eu sou um pobre homem e nada mais. Meu coração se enterneceu muito mais do que jamais imaginei; mas a verdade é que muito contribuiu o desgosto vosso e de minha mãe: tive medo pelo vosso coração e pelo de minha mãe.

         Na morte da mãe, não escondeu que aquela separação lhe havia feito derramar lágrimas; teve a dura coragem de lhe fechar os olhos e a boca e de lhe dar um último beijo, mas depois disso, confidenciava a Joana Francisca Frémiot de Chantal, «o coração se encheu de emoção e chorei por esta boa mãe mais do que jamais havia feito desde o dia em que abracei o sacerdócio». Ele, de fato, não freava as constantes manifestações exteriores de seus sentimentos, que seu humanismo aceitava tranquilamente. Um precioso testemunho de Joana Francisca Frémiot de Chantal nos informa que «o nosso santo não era isento de sentimentos e de muitas das paixões, dos quais não queria ser libertado».
         Sabe-se bem que as paixões da alma têm influência sobre o corpo, provocando reações exteriores aos seus movimentos interiores: «Nós externamos e manifestamos nossas paixões e os movimentos que nossas almas têm em comum com os animais por meio dos olhos, com movimentos das sobrancelhas, da fronte e de todo o rosto». Assim, não está em nosso poder não sentir medo em determinadas circunstâncias: «É como se alguém dissesse a uma pessoa que está vendo vir em sua direção um leão ou um urso: Não tenha medo». Ora, «quando se sente temor, fica-se pálido, e quando somos repreendidos por uma coisa que nos contraria, o sangue sobe ao rosto e ficamos vermelhos, e quando somos contrariados brotam lágrimas de nossos olhos». As crianças «se veem um cão que late, imediatamente começam a gritar e não param até que estejam perto da mamãe».
         Quando a senhora de Chantal encontrar o assassino do marido, como reagirá seu «coração»? «Sei que, sem dúvida, vosso coração saltará e se sentirá abalado, e vosso sangue ferverá», prevê o seu diretor espiritual, acrescentando esta lição de sabedoria: «Deus nos faz tocar com a mão, nessas emoções, o quanto é verdade que somos feitos de carne, de ossos e de espírito».

As doze paixões da alma
         Na antiguidade, Virgílio, Cícero e Boécio reduziam a quatro as paixões da alma, enquanto Santo Agostinho conhecia uma só paixão dominante, o amor, articulado por sua vez em quatro paixões secundárias: «O amor que tende a possuir aquilo que ama, chama-se cupidez ou desejo; quando o consegue e o possui, chama-se alegria; quando foge daquilo que lhe é contrário, chama-se temor; se lhe acontece de perdê-lo e se sente o peso disso, chama-se tristeza».
         No seu livro “Filoteia”, Francisco de Sales assinala sete paixões da alma, comparando-as às cordas que o tocador de alaúde deve afinar, de vez em quando: o amor, o ódio, o desejo, o temor, a esperança, a tristeza e a alegria.
         No seu livro “Teótimo”, vai além e enumera até doze. Surpreende que «esta multidão de paixões […] seja deixada em nossas almas!». As primeiras cinco têm por objeto o bem, ou seja, tudo aquilo que nossa sensibilidade nos faz espontaneamente buscar e apreciar como bom para nós (pensemos nos bens fundamentais da vida, da saúde e da alegria):

         Se o bem é considerado em si mesmo, segundo sua bondade natural, gera o amor, primeira e principal paixão; se o bem é considerado na sua falta, provoca o desejo; se, desejando-o, se pensa de poder consegui-lo, tem-se a esperança; se se teme não poder obtê-lo, entra-se no desespero; e quando, de fato, o possuímos, temos a alegria.

         As outras sete paixões são aquelas que nos fazem espontaneamente reagir negativamente diante de tudo aquilo que entendemos como mal a evitar e a combater (pensemos na doença, no sofrimento e na morte):

Assim que conhecemos o mal, o odiemos; se está ausente, fujamos dele; se acreditamos de não poder evitá-lo, o temamos; se achamos que podemos evitá-lo, nos animemos e tenhamos coragem; mas se o sentimos presente, nos entristecemos, e então a ira e o desgosto intervêm repentinamente para repeli-lo e afastá-lo ou, ao menos,  vingar-se dele; e, se isso não acontece, permanecemos na tristeza; mas, se conseguimos repeli-lo ou nos vingarmos, provamos satisfação e uma sensação de paz, que é o prazer do triunfo, porque assim como a posse do bem alegra o coração, a vitória sobre o mal satisfaz a coragem.

         Como se vê, às onze paixões da alma propostas por São Tomás de Aquino, Francisco de Sales acrescenta a vitória sobre o mal, que «satisfaz a coragem» e provoca a alegria do triunfo.

O amor, primeira e principal paixão
         Como se imaginava, o amor é apresentado como a «primeira e principal paixão»: «O amor vem em primeiro lugar, entre as paixões da alma: é o rei de todos os movimentos do coração, transforma em si todo o resto e nos faz ser aquilo que ele ama». «O amor é a primeira paixão da alma», repete.
         Ele se manifesta de mil maneiras e sua linguagem é muito diversificada; de fato, «não se expressa somente com palavras, mas também com os olhos, com os gestos e com as ações. No que diz respeito aos olhos, as lágrimas que brotam deles são provas de amor». Há também os «suspiros de amor». Mas tais manifestações de amor são diferentes. A mais habitual e superficial é a emoção ou paixão, a qual põe em movimento quase involuntariamente a sensibilidade.
         E o ódio? Odiamos espontaneamente aquilo que para nós parece um mal. É preciso saber que, entre as pessoas, há formas de ódio e de aversões instintivas, irracionais, inconscientes, como aquelas existentes entre o burro e o cavalo, entre a vinha e os repolhos. Não temos nenhum domínio sobre eles porque não dependem de nossa vontade.

O desejo e a fuga
         O desejo é outra realidade fundamental de nossa psique. A vida cotidiana provoca múltiplos desejos, porque o desejo consiste na «esperança de um bem futuro». Os mais comuns desejos naturais são aqueles que «dizem respeito aos bens, aos prazeres e às honras».
         Ao contrário, nós fugimos espontaneamente dos males da vida. A vontade humana de Cristo o impelia a fugir das dores e dos sofrimentos da paixão; daí o tremor, a angústia e o suor de sangue.

A esperança e o desespero
         A esperança diz respeito a um bem que se pensa poder obter. Filoteia é convidada a examinar como se comportou em referência à «esperança, talvez muito frequentemente depositada no mundo e na criatura, e muito pouco em Deus e nas coisas eternas».
         Quanto ao desespero, vejam por exemplo aquele dos «jovens aspirantes à perfeição»: «Assim encontram uma dificuldade em seu caminho, logo surge uma sensação de desapontamento que os impele a lamentar-se muito, tal a dar a impressão de serem perturbados por grandes tormentos. O orgulho e a vaidade não podem tolerar o mínimo defeito sem se sentirem logo fortemente perturbados, a ponto de chegar ao desespero».

A alegria e a tristeza
         A alegria é «a satisfação pelo bem obtido». Assim, «quando encontramos aqueles que amamos, não é possível não se comover pela alegria e pela satisfação». A posse de um bem produz infalivelmente uma complacência ou alegria, assim como a lei da gravidade move a pedra: «É o peso que sacode as coisas, as move e as detém: é o peso que move a pedra e a arrasta na descida, assim que são removidos os obstáculos; é o mesmo peso que a faz continuar o movimento para baixo; enfim, é sempre o mesmo peso que a faz parar e se assentar quando chega ao seu lugar».
         A alegria leva, por vezes, ao riso. «O riso é uma paixão que irrompe sem que o queiramos e não está em nosso poder retê-lo, tanto damos risadas e somos levados a rir por circunstâncias imprevistas». Nosso Senhor riu? O bispo de Genebra pensa que Jesus sorria quando queria: «Nosso Senhor não podia rir, porque para ele nada era imprevisto, dado que conhecia tudo antes que acontecesse; podia, certamente, sorrir, mas o fazia voluntariamente».
         As jovens visitandinas, tomadas às vezes por um irrefreável riso quando uma companheira batia no peito ou uma leitora cometia um erro durante a leitura à mesa, precisavam de uma pequena lição sobre este ponto: «Os loucos riem de qualquer situação, porque tudo os surpreende, não conseguindo prever nada; mas os sábios não riem com tanta leviandade, porque usam muito mais a reflexão, que faz com que prevejam as coisas que devem acontecer». Dito isso, não é um defeito rir de alguma imperfeição, «desde que não seja algo exagerado».
         A tristeza é «a dor por um mal presente». Ela «perturba a alma, provoca temores desmedidos, faz experimentar desgosto pela oração, enfraquece e adormece o cérebro, priva a alma de sabedoria, de resolução, de juízo e coragem, e aniquila as forças»; é «como um duro inverno que arruína toda a beleza da terra e torna indolentes todos os animais; porque tira toda a suavidade da alma e a torna preguiçosa e impotente em todas as suas faculdades».
         Algumas vezes podem cair no choro: um pai, ao enviar o filho à côrte ou aos estudos, não consegue se conter «de chorar ao se despedir dele»; e «uma filha, embora tenha se casado com a permissão do pai e da mãe, os comove até as lágrimas ao momento de receber a bênção nupcial». Alexandre Magno chorou quando veio a saber que havia outras terras que nunca poderia conquistar: «Como uma criança que chora por uma maçã que lhe é negada, aquele Alexandre, que os historiadores chamam o Grande, mais infantil do que uma criança, começa a chorar copiosamente, porque lhe parece impossível conquistar os outros mundos».

A coragem e o medo
         O temor se refere a um «mal futuro». Alguns, querendo ser corajosos, andam por aí durante a noite, mas «assim que ouvem uma pedra cair ou o barulho de um rato fugindo, começam a gritar: Meu Deus! – O que houve? O que aconteceu? – Ouvi um barulho. – Mas o era? – Não sei». É necessário ser cauteloso, porque «o medo é um mal maior do que o próprio mal».
         Quanto à coragem, antes de ser uma virtude, é um sentimento que nos sustenta diante de dificuldades que normalmente deveriam nos abater. Francisco de Sales a experimentou ao empreender uma longa e arriscada visita à sua montanhosa diocese:

Estou prestes a montar a cavalo para a visita pastoral, que durará cerca de cinco meses. […] Parto cheio de coragem e, desde esta manhã, senti uma grande alegria de poder começar, embora que antes, por vários dias, tivesse sentido vãos temores e tristezas.

A cólera e o sentimento do triunfo
         Quanto à ira ou cólera, não podemos impedir de sermos tomados por ela em certas circunstâncias: «Se me dizem que alguém falou mal de mim ou que me causem alguma outra contrariedade, imediatamente explode a cólera e não me resta nem uma veia que não se contorça, porque o sangue ferve». Mesmo nos mosteiros da Visitação, as ocasiões de irritar-se e zangar-se não faltavam, e os ataques do «apetite irascível» se faziam sentir prepotentes. Nada de estranho nisso: «Impedir que o ressentimento da cólera se desperte em nós e que o sangue nos suba à cabeça, nunca será possível; seremos afortunados se pudermos ter essa perfeição um pouco antes de morrer». Pode também acontecer «que a ira perturbe e vire de cabeça para baixo o meu pobre coração, que faça sair fumaça pela minha cabeça e que faça o sangue ferver como uma panela no fogo».
         O aplacamento da ira, após ter superado o mal, causa a euforia do triunfo. Aquele que triunfa «não pode conter o transbordamento de sua alegria».

Em busca do equilíbrio
         As paixões e os movimentos da alma são, na maioria das vezes, independentes da nossa vontade: «Não se pretende que vocês que não tenham paixões; não depende de vocês», dizia às filhas da Visitação, acrescentando: «O que pode fazer uma pessoa para ter este ou aquele temperamento, ser sujeita a esta ou aquela paixão? Tudo está, portanto, nas ações que fazemos derivar por meio daquele movimento, que depende da nossa vontade».
         Uma coisa é certa, os movimentos da alma e as paixões fazem do ser humano um ser extremamente sujeito a variações da «temperatura» psicológica, como se fossem variações climáticas. «A sua vida corre sobre esta terra como as águas, flutuando e ondulando em uma perpétua variedade de movimentos». «Hoje se estará feliz ao extremo e, logo depois, exageradamente tristes. Em tempo de carnaval serão vistas demonstrações de alegria e de entusiasmo, com ações tolas e meio loucas, mas depois, logo depois, serão vistos sinais de tristeza e de tédio tão exagerados a ponto de fazer pensar que se trata de coisas terríveis e, aparentemente, irremediáveis. Um outro, no presente, será demasiadamente confiante e nada o assustará, e, logo depois, será tomado por uma angústia que o levará para debaixo da terra».
         O diretor espiritual de Joana de Chantal identificou bem as diversas «estações da alma» atravessadas por esta nos inícios de sua fervorosa vida:

Vejo que se encontram em sua alma todas as estações do ano. Ora sentes o inverno através das muitas esterilidades, distrações, cansaços e aborrecimentos; ora os orvalhos do mês de maio, com o perfume das santas florezinhas, e ora o calor dos desejos de agradar ao nosso bom Deus. Não resta senão o outono do qual, como dizes, não vês muitos frutos. Frequentemente acontece que, debulhando o grão ou esmagando a uva, se encontra um fruto mais abundante do que prometiam as colheitas e a vindima. Você gostaria que fosse sempre primavera ou verão; mas não, minha Filha: é preciso que aconteça a alternância das estações no nosso interior assim como no nosso exterior. Somente no céu tudo será primavera quanto à beleza, tudo será outono, quanto ao gozo, e tudo será verão quanto ao amor. No céu não haverá mais inverno, mas aqui ele é necessário para o exercício da abnegação e de mil pequenas e belas virtudes, que se exercitam no tempo da escassez.

         A saúde da alma como a do corpo não pode consistir em eliminar estes quatro humores, mas em alcançar uma «invariabilidade de humor». Quando uma paixão predomina sobre as outras, causa as doenças da alma; e como é extremamente difícil controlá-la, acontece que as pessoas são bizarras e variáveis, e por isso não se vê outra coisa entre elas senão fantasias, inconstâncias e estupidez.
         As paixões têm de bom o fato de nos consentir «exercitar a vontade na aquisição da virtude e na vigilância espiritual». Apesar de certas manifestações, nas quais se deve «sufocar e reprimir as paixões», para Francisco de Sales não se trata de eliminá-las, coisa impossível, mas de controlá-las o máximo que se consegue, ou seja, moderá-las e orientá-las a um fim que seja bom.
         Não se trata, portanto, de fingir ignorar as nossas manifestações psíquicas, como se não existissem (o que, mais uma vez, é impossível), mas de «vigiar continuamente sobre o próprio coração e sobre o próprio espírito para manter as paixões na norma e sob o controle da razão; caso contrário, sempre se terá coisas novas e comportamentos desiguais». Filoteia só será feliz quando tiver «apaziguado e pacificado tantas paixões que [lhe] provocavam inquietude».
         Ter um espírito constante é um dos melhores ornamentos da vida cristã e um dos mais amáveis meios para adquirir e conservar a graça de Deus, e também para edificar o próximo. «A perfeição, portanto, não consiste na ausência das paixões, mas sim na sua correta regulação; as paixões estão para o coração como as cordas para uma harpa: é preciso que estejam afinadas para que possamos dizer: Te louvaremos com a harpa».
         Quando as paixões nos fazem perder o equilíbrio interior e exterior, dois métodos são possíveis: «opor paixões contrárias, ou então, opor paixões maiores, mas do mesmo tipo». Se sou perturbado pelo «desejo das riquezas ou do prazer voluptuoso», combaterei tal paixão com o desprezo e a fuga, ou então aspirarei a riquezas e prazeres superiores. Posso lutar contra o medo físico com o seu contrário, que é a coragem, ou então desenvolvendo um temor salutar referente à alma.
         O amor de Deus, por sua vez, imprime às paixões uma verdadeira e própria conversão, mudando-lhes a orientação natural e apresentando-lhes um fim espiritual. Por exemplo, «o apetite pelos alimentos pode se tornar muito espiritual se, antes de satisfazê-lo, lhe é dado o motivo do amor: e não, Senhor, não é para contentar este pobre ventre e nem para satisfazer este apetite que vou à mesa, mas, segundo a tua Providência, é para manter este corpo que tu fizeste sujeito a tal miséria; sim, Senhor, porque assim agradou a ti».
         A transformação assim operada se assemelhará a um «artifício» utilizado na alquimia que muda o ferro em ouro. «Ó santa e sacra alquimia!», – escreve o bispo de Genebra – «ó pó divino da fusão, com a qual todos os metais das nossas paixões, afetos e ações se transformam no ouro puríssimo da celeste dileção!».
         Mudanças de humor, paixões e imaginações estão profundamente radicados na alma humana: representam um recurso excepcional para a vida da alma. Será tarefa das faculdades superiores, a razão e, sobretudo, a vontade, moderá-las e governá-las. Mesmo sendo difícil, Francisco de Sales a cumpriu com sucesso, porque, segundo quanto afirma a Madre de Chantal, «possuía um tal domínio absoluto sobre suas paixões a ponto de torná-las obedientes como se fossem suas escravas; e no fim quase não se faziam mais perceber».




Educar o corpo e seus 5 sentidos com São Francisco de Sales

            Um bom número de antigos ascetas cristãos frequentemente considerou o corpo como um inimigo, cuja corrupção deveria ser combatida, na verdade, como um objeto de desprezo e a ser ignorado. Numerosos homens espirituais da Idade Média não se preocupavam com o corpo, exceto para infligir-lhe penitências. Na maioria das escolas da época, nada era previsto para fazer descansar o “irmão jumento”.
            Para Calvino, a natureza humana totalmente corrompida pelo pecado original não poderia ser outra coisa senão um “lixão”. No lado oposto, numerosos escritores e artistas renascentistas exaltavam o corpo a ponto de prestar-lhe um culto, no qual a sensualidade tinha grande relevância. Rabelais, por sua vez, magnificava o corpo de seus gigantes e se deleitava em expor suas funções orgânicas, mesmo as menos nobres.

O realismo salesiano
            Entre a divinização do corpo e seu desprezo, Francisco de Sales oferece uma visão realista da natureza humana. Ao final da primeira meditação sobre o tema da criação do homem, “o primeiro ser do mundo visível”, o autor da Introdução à vida devota coloca nos lábios de Filoteia este propósito que parece resumir seu pensamento: “Quero sentir-me honrada pelo ser que ele me deu”. Certamente, o corpo está destinado à morte. Com brutal realismo, o autor descreve a despedida da alma ao corpo, que abandonará “pálido, lívido, desfeito, horrendo e fedorento”, mas isso não constitui uma razão para negligenciá-lo e denegri-lo injustamente enquanto está vivo. São Bernardo estava equivocado ao anunciar àqueles que queriam segui-lo “que deveriam abandonar seu corpo e ir até ele apenas em espírito”. Os males físicos não devem levar a odiar o corpo: o mal moral é muito pior.
            Não encontramos de forma alguma em Francisco de Sales o esquecimento ou a sombra dos fenômenos corporais, como quando fala de diferentes formas de doenças ou quando evoca as manifestações do amor humano. Em um capítulo do Tratado do amor de Deus intitulado: “O amor tende à união”, ele escreve, por exemplo, que “uma boca se aplica sobre a outra quando nos beijamos, para testemunhar que se gostaria de derramar uma alma na outra, para uni-las com uma união perfeita”. Essa atitude de Francisco de Sales em relação ao corpo já suscitou, em seu tempo, reações escandalizadas. Quando apareceu a Filoteia, um religioso avinhonense criticou publicamente este “livreto”, despedaçou-o acusando seu autor de “doutor corrompido e corruptor”. Inimigo da pudicícia exagerada, Francisco de Sales ainda não conhecia a reserva e os medos que emergiriam em tempos posteriores. Sobrevivem nele costumes medievais ou é simplesmente uma manifestação de seu gosto “bíblico”? De qualquer forma, nele não se encontra nada comparável às trivialidades do “infame” Rabelais.
            Os dons naturais mais estimados são a beleza, a força e a saúde. Em referência à beleza, Francisco de Sales assim se expressava ao falar de santa Brígida: “Nasceu na Escócia; era uma moça muito bonita, dado que os escoceses são belos por natureza, e naquele País encontram-se as mais belas criaturas existentes”. Pensemos, por outro lado, no repertório de imagens referentes às perfeições físicas do noivo e da noiva, tiradas do Cântico dos Cânticos. Embora as representações sejam sublimadas e transferidas para um registro espiritual, permanecem, no entanto, significativas de uma atmosfera onde se exalta a beleza natural do homem e da mulher. Tentaram fazê-lo suprimir o capítulo do Teótimo sobre o beijo, no qual demonstra que “o amor tende à união”, mas ele sempre se recusou a fazê-lo. De qualquer forma, a beleza exterior não é a mais importante: a beleza da filha de Sião é interior.

Estreita ligação entre o corpo e a alma
            Antes de tudo, Francisco de Sales afirma que o corpo é “uma parte da nossa pessoa”. A alma personificada pode até dizer com um tom de ternura: “Esta carne é minha querida metade, é minha irmã, é minha companheira, nascida comigo, alimentada comigo”.
            O bispo foi muito atento à ligação existente entre o corpo e a alma, entre a saúde do corpo e a da alma. Assim, escreve sobre uma pessoa sob sua direção, doente, que a saúde de seu corpo “depende muito da saúde da alma, e a da alma depende das consolações espirituais”. “Não é o seu coração que se debilitou – escrevia a uma doente –, mas sim o seu corpo, e, dados os laços estreitíssimos que os unem, seu coração tem a impressão de sentir o mal de seu corpo”. Cada um pode constatar que as enfermidades corporais “acabam por criar desconforto também ao espírito, devido aos estreitos vínculos entre um e outro”. Inversamente, o espírito age sobre o corpo até o ponto em que “o corpo percebe os afetos que se agitam no coração”, como aconteceu em Jesus, que se sentou ao poço de Jacó, cansado de seu pesado compromisso ao serviço do reino de Deus.
            No entanto, como “o corpo e o espírito frequentemente seguem direções contrárias, e, à medida que um se enfraquece, o outro se fortalece”, e como “o espírito deve reinar”, “devemos sustentá-lo e consolidá-lo de tal forma que permaneça sempre o mais forte”. Se então cuido do corpo é “para que esteja a serviço do espírito”.
            Entretanto, somos justos em relação ao corpo. Em caso de mal-estar ou de erros, muitas vezes acontece que a alma acusa o corpo e o maltrata, como fez Balaão com sua jumenta: “Ó pobre alma! se sua carne pudesse falar, diria a você, como a jumenta de Balaão: por que me espancas, miserável? É contra você, minha alma, que Deus arma sua vingança, você é a criminosa”. Quando uma pessoa reforma seu íntimo, a conversão se manifestará também externamente: em todas as atitudes, na boca, nas mãos e “até mesmo nos cabelos”. A prática da virtude torna o homem bonito interiormente e também exteriormente. Inversamente, uma mudança exterior, um comportamento do corpo pode favorecer uma mudança interior. Um ato de devoção exterior durante a meditação pode despertar a devoção interior. O que aqui é dito sobre a vida espiritual pode ser facilmente aplicado à educação em geral.

Amor e domínio do corpo
            Falando da atitude a ter em relação ao corpo e às realidades corporais, não surpreende ver Francisco de Sales recomendar a Filoteia, como primeira coisa, a gratidão pelas graças corporais que Deus lhe deu.

Devemos amar nosso corpo por diferentes motivos: porque é necessário para realizar as boas obras, porque é uma parte da nossa pessoa, e porque está destinado a participar da felicidade eterna. O cristão deve amar seu próprio corpo como uma imagem viva daquele do Salvador encarnado, como dele proveniente por parentesco e consanguinidade. Sobretudo depois que renovamos a aliança, recebendo realmente o corpo do Redentor no adorável sacramento da eucaristia, e, com o batismo, a confirmação e os outros sacramentos, nos dedicamos e consagramos à suma bondade.

            O amor pelo próprio corpo faz parte do amor devido a si mesmo. Na verdade, a razão mais convincente para honrar e usar sabiamente o corpo está em uma visão de fé, que o bispo de Genebra assim explicava à madre de Chantal, que saía de uma doença: “Tenha ainda cuidado deste corpo, porque é de Deus, minha caríssima Madre”. A Virgem Maria é apresentada a este ponto como modelo: “Com que devoção deveria amar seu corpo virginal! Não apenas porque era um corpo doce, humilde, puro, obediente ao santo amor e totalmente impregnado de mil sagrados perfumes, mas também porque era a viva fonte daquele do Salvador e lhe pertencia muito estreitamente, com um laço que não tem comparação”.
            O amor pelo corpo é, sim, recomendado, mas o corpo deve permanecer subordinado ao espírito, como o servo ao seu mestre. Para controlar o apetite, devo “comandar as mãos a não fornecer à boca alimentos e bebidas, se não na medida certa”. Para governar a sexualidade “é preciso retirar ou dar à faculdade da reprodução os sujeitos, os objetos e os alimentos que a excitam, segundo os ditames da razão”. Ao jovem que se prepara para “navegar no vasto mar”, o bispo recomenda: “Desejo também um coração vigoroso que o impeça de mimar seu corpo com excessivas requintarias na comida, no sono ou em outras coisas. Sabe-se, de fato, que um coração generoso sente sempre um pouco de desprezo pelas delicadezas e delícias corporais”.
            Para que o corpo permaneça subordinado à lei do espírito, convém evitar os excessos: nem maltratá-lo nem mimá-lo. Em tudo é necessário medida. O motivo da caridade deve ter o primado em todas as coisas; isso o faz escrever: “Se o trabalho que você faz é necessário ou é muito útil para a glória de Deus, preferiria que suportasse as penas do trabalho em vez das do jejum”. Daí a conclusão: “Em geral, é melhor ter no corpo mais forças do que o necessário, do que arruiná-las além do necessário; porque arruiná-las se pode sempre, assim que se quer, mas para recuperá-las nem sempre basta querer”.
            O que é necessário evitar é essa “ternura que se sente para consigo mesmo”. Ele critica, com fina ironia, mas de forma impiedosa, uma imperfeição que não é apenas “própria das crianças, e, se posso ousar dizer, das mulheres”, mas também de homens pouco corajosos, dos quais nos dá este interessante quadro característico: “Outros são aqueles que são ternos consigo mesmos, e que não fazem outra coisa senão se lamentar, se mimar, se acariciar e se olhar”.
            De qualquer forma, o bispo de Genebra cuidava de seu corpo como era seu dever, obedecia ao seu médico e às “enfermeiras”. Ele também se preocupava com a saúde alheia, aconselhando medidas apropriadas. Escreverá, por exemplo, à mãe de um jovem aluno do colégio de Annecy: “É necessário fazer Carlos ser examinado pelos médicos, para que seu inchaço na barriga não se agrave”.
            A serviço da saúde está a higiene. Francisco de Sales desejava que tanto o coração quanto o corpo estivessem limpos. Recomendava o decoro, muito diferente de afirmações como esta de Santo Hilário, segundo a qual “não se deveria buscar a limpeza em nossos corpos que não são nada além de carcaças pestilenciais e carregadas apenas de infecção”. Ele estava mais de acordo com Santo Agostinho e os antigos que tomavam banho “para manter limpos seus corpos tanto da sujeira produzida pelo calor e pelo suor, quanto para a saúde, que é certamente sobremaneira ajudada pela limpeza”.
            Para poder trabalhar e cumprir os deveres de sua função, cada um deve cuidar de seu corpo no que diz respeito à alimentação e ao descanso: “Comer pouco, trabalhar muito e com muita agitação e negar ao corpo o descanso necessário, é como exigir muito de um cavalo que está exausto sem dar-lhe tempo para mastigar um pouco de aveia”. O corpo precisa descansar, é algo totalmente evidente. As longas vigílias noturnas são “prejudiciais à cabeça e ao estômago”, enquanto, por outro lado, levantar-se cedo pela manhã é “útil tanto para a saúde quanto para a santidade”.

Educar nossos sentidos, especialmente os olhos e os ouvidos
            Nossos sentidos são dons maravilhosos do Criador. Eles nos colocam em contato com o mundo e nos abrem a todas as realidades sensíveis, à natureza, ao cosmos. Os sentidos são a porta do espírito, que lhes fornece, por assim dizer, a matéria-prima; de fato, como diz a tradição escolástica, “nada está no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos”.
            Quando Francisco de Sales fala dos sentidos, seu interesse se volta especialmente para o plano educativo e moral, e seu ensinamento a esse respeito se relaciona ao que expôs sobre o corpo em geral: admiração e vigilância. Por um lado, ele diz que Deus nos dá “os olhos para ver as maravilhas de suas obras, a língua para louvá-lo, e assim por diante para todas as outras faculdades”, sem nunca omitir, por outro lado, a recomendação de “colocar sentinelas nos olhos, na boca, nos ouvidos, nas mãos e no olfato”.
            É necessário começar pela visão, porque “entre todas as partes externas do corpo humano, não há uma, por sua estrutura e atividade, mais nobre do que o olho”. O olho é feito para a luz: isso é demonstrado pelo fato de que quanto mais as coisas são belas, agradáveis à vista e devidamente iluminadas, mais o olho as observa com avidez e vivacidade. “Pelos olhos e pelas palavras se conhece qual é a alma e o espírito do homem, pois os olhos servem à alma como o mostrador ao relógio”. É sabido que entre os amantes, os olhos falam mais do que a língua.
            É preciso vigiar os olhos, pois através deles podem entrar a tentação e o pecado, como aconteceu com Eva, que ficou encantada ao ver a beleza do fruto proibido, ou com Davi, que fixou seu olhar na esposa de Urias. Em certos casos, é preciso proceder como se faz com a ave de rapina: para fazê-la voltar, é necessário mostrar-lhe o “lógoro” [equipamento de caça que simula as asas de uma pássaro; é agitado para chamar o falcão]; para acalmá-la, é preciso cobri-la com um capuz; da mesma forma, para evitar olhares maldosos, “é preciso desviar os olhos, cobri-los com o capuz natural e fechá-los”.
            Embora as imagens visuais sejam amplamente dominantes nas obras de Francisco de Sales, é preciso reconhecer que as imagens auditivas são bastante dignas de nota. Isso evidencia a importância que ele atribuía à audição por razões tanto estéticas quanto morais. “Uma melodia sublime ouvida com muita atenção” produz um efeito tão mágico que “encanta os ouvidos”. Mas atenção para não ultrapassar as capacidades auditivas: uma música, por mais bela que seja, se for alta e muito próxima, nos incomoda e ofende o ouvido.
            Por outro lado, é preciso saber que “o coração e os ouvidos conversam entre si”, pois é através do ouvido que o coração “ouve os pensamentos dos outros”. É ainda através do ouvido que entram no mais profundo da alma palavras suspeitas, injuriosas, mentirosas ou malévolas, das quais é necessário cuidar bem; pois as almas se envenenam através do ouvido, como o corpo através da boca. A mulher honesta tapará os ouvidos para não ouvir a voz do encantador que quer conquistá-la de forma sutil. Permanecendo no âmbito simbólico, Francisco de Sales declara que o ouvido direito é o órgão através do qual ouvimos as mensagens espirituais, as boas inspirações e moções, enquanto o esquerdo serve para ouvir discursos mundanos e vãos. Para guardar o coração, portanto, protejamos com grande cuidado os ouvidos.
            O melhor serviço que podemos pedir aos ouvidos é o de poder ouvir a palavra de Deus, objeto da pregação, que exige ouvintes atentos e dispostos a fazê-la penetrar em seus corações para que produza frutos. Filoteia é convidada a “fazê-la gotejar” ora no ouvido de um, ora no de outro, e a orar a Deus no íntimo de sua alma, para que lhe agrade fazer penetrar esse santo orvalho no coração de quem a escuta.

Os outros sentidos
            Também em relação ao olfato, foi notada a abundância de imagens olfativas. Os perfumes são tão diversos quanto as substâncias odoríferas, como o leite, o vinho, o bálsamo, o óleo, a mirra, o incenso, a madeira aromática, o nardo, o unguento, a rosa, a cebola, o lírio, a violeta, o amor-perfeito, a mandrágora, a canela… É ainda mais surpreendente constatar os resultados produzidos com a fabricação da água perfumada:

O manjericão, o alecrim, o orégano, o hissopo, os cravos-da-índia, a canela, a noz-moscada, os limões e o almíscar, misturados e triturados, realmente produzem um perfume muito agradável pela mistura de seus odores; mas não é nem de longe comparável ao da água que é destilada, na qual os aromas de todos esses ingredientes, isolados de seus corpos, se fundem mais perfeitamente, dando origem a um perfume requintado que penetra muito mais o olfato do que ocorreria se, junto com a água, estivessem as partes materiais.

            Numerosas são as imagens olfativas extraídas do Cântico dos Cânticos, poema oriental onde os perfumes ocupam um lugar relevante e onde um dos versículos bíblicos mais comentados por Francisco de Sales é o grito angustiado da esposa: “Atrai-me a ti, caminharemos e correremos juntos na trilha de teus perfumes”. E quão refinada é esta anotação: “O suave perfume da rosa é tornado mais sutil pela proximidade do alho plantado perto dos roseirais!”.
            Não confundamos, porém, o sagrado bálsamo com os perfumes deste mundo. Existe, de fato, um olfato espiritual, que devemos cultivar em nosso interesse. Ele nos permite perceber a presença espiritual do sujeito amado e, além disso, nos faz não nos deixarmos distrair pelos maus odores do próximo. O modelo é o pai que acolhe de braços abertos o filho pródigo que retorna a ele “seminu, sujo, imundo e fedendo a imundícies pela longa convivência com os porcos”. Outra imagem realista aparece em referência a certas críticas mundanas: não nos surpreendamos, recomenda Francisco de Sales a Joana de Chantal, é necessário “que o pouco unguento de que dispomos pareça fedorento às narinas do mundo”.
            A respeito do gosto, certas observações do bispo de Genebra poderiam nos fazer pensar que ele era um guloso nato, na verdade um educador do gosto: “Quem não sabe que a doçura do mel se une cada vez mais ao nosso sentido do gosto com um progresso contínuo de sabor, quando, mantendo-o por muito tempo na boca, em vez de engoli-lo imediatamente, seu sabor penetra mais profundamente no nosso sentido do gosto?”. Admitida a doçura do mel, é preciso, no entanto, valorizar mais o sal, pelo fato de ser de uso mais comum. Em nome da sobriedade e da temperança, Francisco de Sales recomendava saber renunciar ao gosto pessoal, comendo o que nos “é colocado à frente”.
            Por fim, tratando-se do tato, Francisco de Sales fala dele principalmente em um sentido espiritual e místico. Assim, recomenda tocar Nosso Senhor crucificado: a cabeça, as santas mãos, o precioso corpo, o coração. Ao jovem que está prestes a se lançar no vasto mar do mundo, ele exige que se governe energicamente e despreze as molezas, as delícias corporais e as delicadezas: “Gostaria que às vezes você tratasse seu corpo com dureza para fazê-lo experimentar alguma aspereza e dureza, desprezando delicadezas e coisas agradáveis aos sentidos; pois é necessário que às vezes a razão exerça sua superioridade e a autoridade que tem de regular os apetites sensuais”.

O corpo e a vida espiritual
            Também o corpo é chamado a participar da vida espiritual que se expressa em primeiro lugar na oração: “É verdade, a essência da oração está na alma, mas a voz, os gestos e os outros sinais exteriores, por meio dos quais se revela o íntimo dos corações, são nobres apêndices e propriedades utilíssimas da oração; são efeitos e operações. A alma não se contenta em orar se o homem em sua totalidade não ora; ela ora junto com os olhos, as mãos, os joelhos”.
            Ele acrescenta que “a alma prostrada diante de Deus faz dobrar facilmente sobre si todo o corpo; levanta os olhos onde eleva o coração, ergue as mãos lá, de onde espera um auxílio”. Francisco de Sales explica também que “orar em espírito e em verdade é orar de bom grado e afetuosamente, sem fingimento nem hipocrisia, e comprometendo, além disso, o homem inteiro, alma e corpo, para que o que Deus uniu não seja separado”. “É preciso que todo o homem ore”, repete às visitandinas. Mas a melhor oração é a de Filoteia, quando decide consagrar a Deus não apenas a alma, seu espírito e seu coração, mas também seu “corpo com todos os seus sentidos”; é assim que ela o amará e servirá verdadeiramente com todo o seu ser.




O nome

Na Faculdade de Medicina de uma grande universidade, o professor de anatomia distribuiu um questionário a todos os alunos como exame final.
Um aluno que havia se preparado meticulosamente respondeu prontamente a todas as perguntas até chegar à última.
A pergunta era: “Qual é o primeiro nome da senhora da limpeza?”.
O aluno entregou a prova, deixando a última resposta em branco.
Antes de entregar o trabalho, ele perguntou ao professor se a última pergunta do teste contaria para a nota.
“É claro!”, respondeu o professor. “Em sua carreira, você conhecerá muitas pessoas. Todas elas têm seu próprio grau de importância. Elas merecem sua atenção, mesmo com um pequeno sorriso ou um simples cumprimento.”
O aluno nunca esqueceu a lição e aprendeu que o primeiro nome da senhora da limpeza era Mariana.

Um discípulo perguntou a Confúcio: “Se o rei pedisse ao senhor para governar o país, qual seria sua primeira ação?”
“Eu gostaria de saber os nomes de todos os meus colaboradores.”
“Que bobagem! Certamente não é uma questão de interesse primário para um primeiro-ministro.”
“Um homem não pode esperar receber ajuda daquilo que não conhece”, respondeu Confúcio. “Se ele não conhece a natureza, não conhecerá Deus. Da mesma forma, se ele não souber quem está ao seu lado, não terá amigos. Sem amigos, ele não será capaz de elaborar um plano. Sem um plano, ele não conseguirá direcionar as ações de ninguém. Sem direção, o país mergulhará na escuridão e até mesmo os dançarinos não saberão mais como colocar um pé ao lado do outro. Portanto, uma ação aparentemente trivial, como aprender o nome da pessoa ao seu lado, pode fazer uma enorme diferença.
O pecado incorrigível de nosso tempo é que todos querem consertar as coisas imediatamente e se esquecem de que precisam dos outros para fazer isso”.