Dom Bosco e a Igreja do Santo Sudário

O Santo Sudário de Turim, impropriamente chamado de “Santo Sudário” pelo costume francês de chamá-lo de “Le Saint Suaire”, era propriedade da Casa de Saboia desde 1463 e foi transferido de Chambery para a nova capital da Saboia em 1578.
            Naquele mesmo ano, foi realizada a primeira Exposição, que Emanuel Filiberto quis fazer em homenagem ao Card. Carlos Borromeu, que veio a Turim em peregrinação para venerá-la.

Exposições no século XIX e o culto ao Sudário
            No século XIX, as Exposições de 1815, 1842, 1868 e 1898 são particularmente dignas de nota: a primeira por ocasião do retorno da família de Saboia aos seus estados, a segunda no casamento de Vítor Emanuel II com Maria Adelaide de Habsburgo-Lorena, a terceira no casamento de Humberto I com Margarida de Saboia-Gênova e a quarta na Exposição Universal.
            Os santos de Turim do século XIX, Cottolengo, Cafasso e Dom Bosco, eram devotos do Santo Sudário, imitando o exemplo do Beato Sebastião Valfré, o apóstolo de Turim durante o cerco de 1706.
            As Memórias Biográficas nos asseguram que Dom Bosco o venerou especialmente na Exposição de 1842 e na de 1868, quando também levou os meninos do oratório para vê-lo (MBp II, 110-111; IX, 182).
            Hoje, a tela de valor inestimável, doada por Umberto II de Saboia à Santa Sé, é confiada ao Arcebispo de Turim “Custódio Pontifício” e mantida na suntuosa Capela Guarini, atrás da Catedral.
            Em Turim, há também, na Rua Piave, na esquina da Rua São Domingos, a Igreja do Santo Sudário, construída pela Confraria de mesmo nome e reconstruída em 1761. Adjacente à igreja está o “Museu Sindonológico” e a sede do Sodalício “Cultores Sanctae Sindonis” [Cultores do Santo Sudário], um centro de estudos sindonológicos para o qual fizeram valiosas contribuições estudiosos salesianos como o P. Natal Noguier de Malijay, o P. Antônio Tonelli, o P. Alberto Caviglia, o P. Pedro Scotti e, mais recentemente, o P. Pedro Rinaldi e o P. Luís Fossati, para citar apenas os principais.

A Igreja do Santo Sudário em Roma
            Também existe uma Igreja do Santo Sudário em Roma, ao longo da rua homônima que vai do Largo Argentina paralelamente à Avenida Vitório. Erguida em 1604 com um projeto de Carlos di Castellamonte, era a Igreja dos Piemonteses, Saboianos e Niceanos, construída pela Confraria do Santo Sudário que havia surgido em Roma naquela época. Depois de 1870, ela se tornou a igreja particular da Casa de Saboia.
            Durante suas estadas em Roma, Dom Bosco celebrou a missa nessa igreja várias vezes e formulou um plano para ela e para a casa adjacente, de acordo com o propósito da então extinta Confraria, dedicada a obras de caridade para jovens abandonados, doentes e prisioneiros.
            A Confraria havia deixado de funcionar no início do século e a propriedade e a administração da igreja haviam passado para a Delegação Sarda junto à Santa Sé. Na década de 1860, a igreja estava precisando de grandes reformas, tanto que em 1868 foi temporariamente fechada.
            Mas, já em 1867, Dom Bosco teve a ideia de propor ao governo da Saboia que lhe entregasse o uso e a administração da igreja, oferecendo sua colaboração em dinheiro para concluir o trabalho de restauração. Talvez ele tenha previsto a entrada das tropas piemontesas em Roma, não muito distante, e, desejando abrir uma casa lá, pensou em fazê-lo antes que a situação se precipitasse, tornando mais difícil obter a aprovação da Santa Sé e o respeito do Estado pelos acordos (MBp IX, 461-462).
            Ele então apresentou o pedido ao governo. Em 1869, durante uma escala em Florença, ele preparou uma minuta de acordo que, ao chegar a Roma, apresentou a Pio IX. Depois de obter seu consentimento, ele passou para a solicitação oficial ao Ministério das Relações Exteriores, mas, infelizmente, a ocupação de Roma acabou prejudicando todo o caso. O próprio Dom Bosco percebeu a inadequação de insistir. Assumir, de fato, naquela época, a oficialização de uma igreja romana pertencente à Casa da Saboia por uma Congregação religiosa com sua Casa Mãe em Turim, poderia ter parecido um ato de oportunismo e servilismo em relação ao novo Governo.
            Em 1874, Dom Bosco testou novamente o terreno com o governo. Mas, infelizmente, as notícias intempestivas que vazaram dos jornais interromperam definitivamente o projeto (MBp X, 1041-1042).
            Gostaríamos, porém, de recordar o fato de que Dom Bosco, ao procurar uma oportunidade favorável para abrir uma casa em Roma, pôs os olhos na Igreja do Santo Sudário.




Visitar Roma com Dom Bosco. Crônica de sua primeira viagem a Roma

A primeira vez que Dom Bosco esteve em Roma foi entre 18 de fevereiro e 16 de abril de 1858, acompanhado pelo seminarista de vinte e um anos, Miguel Rua. Quatro anos antes, a Igreja havia celebrado um Jubileu extraordinário de seis meses, convocado em ocasião da proclamação do dogma da Imaculada Conceição (8 de dezembro de 1854). Dom Bosco aproveitou a oportunidade dessa grande festa espiritual para publicar o volume “O Jubileu e Práticas devotas para a visita das igrejas”.
Durante aquela que seria sua primeira de outras vinte visitas à Cidade Eterna, Dom Bosco se comportou como um verdadeiro peregrino jubilar, dedicando-se fervorosamente às visitas e devoções previstas, inclusive participando dos solenes ritos pascais oficiados pelo Papa. Foi uma experiência intensa, que ele não guardou para si mesmo, mas a compartilhou com seus jovens com seus característicos entusiasmo e a paixão educativa.
Ao descrever minuciosamente a viagem, as etapas e os lugares sagrados, Dom Bosco tinha um claro objetivo apostólico e educativo: fazer reviver em quem o ouvia ou o lia a mesma profunda experiência de fé, transmitindo-lhes o amor pela Igreja e pela tradição cristã.
Convidamos agora também vocês, leitores, a se unirem espiritualmente a Dom Bosco, repercorrendo na imaginação as ruas da Roma cristã, e se deixando fascinar por seu entusiasmo e seu fervor, com ele renovar a sua fé.

De trem até Gênova
A partida para Roma estava marcada para 18 de fevereiro de 1858. Durante a noite caíra quase um palmo de neve, sobre os dois palmos que já cobriam a terra. Às oito e meia da manhã, enquanto ainda nevava, com a comoção que
experimenta um pai que deixa os seus filhos, despedi-me dos jovens para iniciar a viagem a Roma. Embora tivéssemos certa pressa para chegar a tempo ao trem, ainda nos detivemos um pouco para fazer o testamento: não queria deixar complicações para o Oratório, caso a Providência me quisesse chamar à Eternidade, dando-me em comida aos peixes do Mediterrâneo. […].  Então, correndo, fomos à estação ferroviária e, junto com o P. Mentasti […] partimos com o trem das dez da manhã.
Aqui aconteceu uma coisa desagradável: os vagões estavam quase cheios, então tive que deixar Rua e o P. Mentasti em um vagão e encontrar lugar em outro […].

O menino judeu
Por acaso estava perto de um garotinho de dez anos. Notando seu aspecto simples e seu rosto bondoso, comecei a conversar com ele e […] percebi que ele era judeu. Seu pai, que estava ao seu lado, me assegurou que o filho estava na quarta série, mas a mim parecia que sua escolaridade não era de quem estava nem mesmo na segunda série. No entanto, ele era de inteligência rápida. O pai ficou contente que eu fizesse perguntas ao menino, e nos sugeriu que falássemos sobre a Bíblia. Comecei, então, a questioná-lo sobre a criação do mundo e do ser humano, sobre o Paraíso terrestre, sobre a queda dos progenitores. Ele respondia razoavelmente bem, mas fiquei surpreso quando percebi que não tinha ideia do pecado original e da promessa de um Redentor.
– Não tem na sua Bíblia o que Deus prometeu a Adão quando o expulsou
do paraíso terrestre?
– Não tem, 
lhe respondeu o menino. Diga-me, por favor.
– Sim. Deus disse à serpente: Porque você enganou a mulher, será
maldita entre todos os animais, e Alguém que nascer da mulher esmagará
sua cabeça.
– Quem é este Alguém do qual se fala?
– Este alguém é o Salvador que devia libertar o gênero humano da escravidão do demônio.
– Quando virá o Salvador?
– Ele já veio, e é aquele que nós chamamos… 
Aqui o pai o interrompeu e disse:
– Essas coisas nós não as estudamos, porque não se referem à nossa lei.
– Vocês, porém, fariam bem estudá-las, porque estão contidas nos livros de Moisés e dos Profetas nos quais acreditam.
– Está bem, vamos pensar. Mas, pergunte-lhe alguma coisa de aritmética.
 Vendo que ele não desejava que eu falasse de religião ao seu filho, mudou de assunto e lhe fez várias perguntas sobre coisas indiferentes, de maneira que o pai, seu filho e outros que estavam juntos naquele compartimento se divertiram e riram um pouco. Na estação de Asti, o menino devia descer, e não sabia como separar-se de mim. Tendo lágrimas nos olhos, segurava minha mão e, emocionado, conseguiu apenas me dizer:
– Eu me chamo Sacerdote Leão de Moncalvo. Lembre-se de mim. Indo a Turim, espero fazer-lhe uma visita. O pai, para aliviar a emoção, disse que havia procurado em Turim a “História da Itália” [escrita por mim]. Não tendo encontrado, me pedia para enviar-lhe uma cópia. Prometi enviar a impressa especialmente para a juventude, então desci também para procurar meus companheiros de viagem para ver se havia lugar em seu vagão. Encontrei Rua, que estava com as mandíbulas cansadas de tanto bocejar, pois de Turim a Asti ele havia se entediado muito, não sabendo com quem conversar: seus companheiros de viagem só falavam de danças, teatro e outras coisas de pouco gosto […].

Rumo a Gênova
Chegamos aos Apeninos. Eles se erguiam diante de nós altíssimos e íngremes. Como o trem viajava a grande velocidade, tínhamos a impressão de que iríamos colidir com as rochas quando, de repente, tudo ficou escuro. Havíamos entrado nos túneis. Estes são “furos” que, passando sob as montanhas, economizam várias dezenas de milhas. […]. Sem túneis, seria impossível atravessar as montanhas e, visto que são muitas, existem muitos túneis. Um deles é tão longo quanto a distância entre Turim e Moncalieri; tanto que o comboio ficou no escuro por oito minutos, tempo necessário para percorrer o trecho do túnel.

Ficamos surpresos ao constatar que a neve diminuía à medida que o trem se aproximava da costa de Gênova. Mas qual não foi nossa maravilha quando avistamos os campos sem um fio de branco, as margens verdejantes, os jardins cheios de cores, as plantas de amendoeira floridas e as árvores de pêssego com os botões prestes a se abrir ao sol! Fazendo, então, uma comparação entre Turim e Gênova, dissemos que em Gênova é já primavera e que em Turim ainda é um rigoroso inverno.

Os dois montanheses
Já ia me esquecendo de falar de dois montanheses que subiram em nosso vagão na estação de Busalla. Um deles estava pálido e enfermo e movia-se de dar pena. O outro tinha um ar vivo e, se bem chegasse aos 70 anos, mostrava o vigor de um jovem de vinte e cinco anos. Ele vestia calças curtas e as polainas quase desatadas, de modo que se viam as pernas, os joelhos nus e flagelados pelo frio. Estavam em mangas de camisa com apenas uma malha e um casaco grosso que trazia sobre os ombros. Depois de tê-lo feito falar de várias coisas, eu disse:
– Por que não ajeita sua roupa para defender-se do frio? Ele respondeu:
– Veja, senhor, nós somos montanheses e estamos acostumados com o vento,
a chuva, a neve e o gelo. Quase não percebemos nem o inverno. Nossos meninos caminham também hoje com os pés nus no meio da neve e vão até para divertir-se sem olhar para o frio ou o calor.
 Então entendi que o ser humano vive de hábitos, e o corpo é capaz de suportar, conforme o caso, o frio ou o calor, e aqueles que desejam se proteger de cada pequeno desconforto correm o risco de enfraquecer sua condição em vez de fortalecê-la.

A parada em Gênova
Eis Gênova, eis o mar! Rua se apressa para vê-lo, estica o pescoço: num lado vê um navio, no outro alguns barcos, mais abaixo o farol, que é bem alto. Chegamos à estação e descemos do trem. O cunhado do abade Montebruno nos aguardava com alguns jovens e, assim que saímos do trem, nos acolheram com alegria, e carregando nossas bagagens, nos levaram à obra dos artigianelli (pequenos artesãos, n.d.r.), que é uma casa semelhante ao nosso Oratório. Os cumprimentos foram breves, pois todos estávamos com muita fome: eram três e meia da tarde e eu havia tomado apenas uma xícara de café. À mesa parecia que nada poderia nos saciar, no entanto, depois de comer bastante, estávamos satisfeitos.
Logo depois visitamos a casa: escolas, dormitórios, oficinas: parecia que eu estava vendo o Oratório de dez anos atrás. Os internos eram vinte; outros vinte, embora comessem e trabalhassem aqui, dormiam em outro lugar. Qual é a alimentação deles? No almoço, um bom prato de sopa e… nada mais. No jantar, um pãozinho, que se come em pé, e depois, se vai para a cama!
Ao final, saímos para um passeio pela cidade que, para dizer a verdade, é pouco atraente, embora tenha magníficos palácios e grandes lojas. As ruas são estreitas, tortuosas e íngremes. Mas a coisa mais irritante era um vento incômodo que, soprando quase sem interrupção, tirava o prazer de admirar qualquer coisa, mesmo a mais bela […].

Sendo assim, em Gênova nossas expectativas foram decepcionadas. Como se não bastasse, o vento contrário impediu a atracação do navio no qual deveríamos embarcar, portanto, contra nossa vontade, tivemos que esperar até o dia seguinte. […]. De manhã, celebrei missa na igreja dos Padres Pregadores (Dominicanos) no altar do Beato Sebastião Maggi, um frade que viveu há cerca de trezentos anos. Seu corpo é um prodígio contínuo, pois se conserva inteiro, flexível e com uma cor que você diria que está morto há poucos dias. […]. Depois fomos carimbar, ou seja, assinar o passaporte. O Cônsul Pontifício nos recebeu com muita cortesia. […]. Ele também tentou nos conseguir algum desconto no barco, mas não foi possível.

A Civitavecchia, pelo mar. O embarque
Às seis e meia da tarde, antes de nos dirigirmos ao barco a vapor chamado Aventino, nos despedimos de vários eclesiásticos que vieram dos Artigianelli para nos desejar boa viagem. Também os rapazes, atraídos pelas boas palavras, mas principalmente por alguma coisa a mais no almoço daquele dia, tornaram-se nossos amigos e pareciam estar tristes ao nos ver partir. Vários deles nos acompanharam até o mar e, e saltando com destreza num pequeno barco, quiseram nos escoltar até o barco. O vento estava bastante forte: não acostumados a viajar pelo mar, a cada movimento do barco temíamos virar de cabeça para baixo e afundar, e nossos acompanhantes riam muito. Depois de vinte minutos, finalmente chegamos ao navio.

À primeira vista, parecia um edifício cercado pelas ondas. Subimos a bordo, e levando nossa bagagem para um alojamento bastante espaçoso, nos sentamos para descansar e pensar: cada um de nós experimentava particulares sensações que não sabia como expressar. Rua observava tudo e todos em silêncio. E eis o primeiro contratempo: tendo chegado na hora do almoço, não fomos imediatamente comer; quando pedimos, já tinha acabado tudo. Rua jantou uma maçã, um pãozinho e um copo de vinho Bordô, eu me contentei com um pedaço de pão e um pouco daquele excelente vinho. Vale lembrar que, quando se viaja de navio, as refeições estão incluídas na passagem e, assim, comendo ou não, paga-se da mesma forma.

Depois subimos ao convés para conhecer melhor esse navio “Aventino”. Assim, soubemos que os navios recebem nomes dos lugares mais famosos das regiões para onde estão indo. Um se chama Vaticano, outro Quirinale, outro Aventino (como o nosso), para lembrar as sete famosas colinas de Roma. Este nosso navio partiu de Marselha, passa por Gênova, Livorno, Civitavecchia, depois segue para Nápoles, Messina e Malta. No retorno, repete o mesmo percurso até Marselha. Também é chamado de barco postal porque transporta cartas, pacotes, etc. Independentemente de fazer sol ou chuva, parte sempre.

O enjoo
Nos foi designada um beliche, que é uma espécie de armário com prateleiras onde os passageiros se deitam sobre um colchão em cada prateleira. Às dez, as âncoras foram levantadas e o barco, impulsionado pelo vapor e por um vento favorável, começou a correr em alta velocidade em direção a Livorno. Quando estávamos em alto-mar fiquei enjoado, coisa que me atormentou por dois dias. Esse desconforto causa vômitos frequentes, e quando não se tem mais nada para regurgitar, os espasmos ficam mais violentos, de modo que a pessoa fica tão exausta que recusa comer. A única coisa que pode trazer algum alívio é deitar-se e ficar, quando o vômito permite, com o corpo totalmente estendido.

Livorno
Aquela noite de 20 de fevereiro foi uma noite ruim. Não estávamos em perigo por causa do mar agitado, mas o enjoo me havia prostrado tanto que não conseguia ficar nem deitado, nem em pé. Sai da cama e fui ver se Rua estava vivo ou morto. No entanto, ele não tinha mais do que um pouco de cansaço, nada mais. Ele se levantou imediatamente, colocando-se à minha disposição para aliviar os desconfortos da travessia. Quando Deus quis, chegamos ao porto de Livorno. Por porto entende-se uma enseada do mar protegida da fúria dos ventos por barreiras naturais ou por barreiras construídas pelo ser humano. Aqui os navios estão a salvo de qualquer perigo, aqui descarregam suas mercadorias e carregam outras para outros destinos, aqui se fazem os abastecimentos. Os passageiros que desejam também podem descer à terra para dar uma volta pela cidade, desde que voltem a tempo. […].

Embora eu desejasse descer para visitar a cidade, celebrar a missa e cumprimentar alguns amigos, não pude fazê-lo, na verdade fui forçado a voltar para minha cama e ficar lá quieto e em jejum. Um garçom chamado Charles me olhava com um olhar de compaixão e de vez em quando se aproximava oferecendo seus serviços. Vendo-o tão gentil e cortês, comecei a conversar com ele, e entre outras coisas perguntei se ele não temia ser ridicularizado por ajudar um padre sob o olhar de tantas pessoas.
– Não, ele me disse em francês, veja que ninguém fica maravilhado. Aliás, todos
o admiram com bondade, mostrando desejo de poder de algum modo ajudá-lo. Por outro lado, minha boa mãe recomendou-me muitas vezes de ter grande respeito aos padres e que isso era um meio para obter a bênção do Senhor
. Charles, então, foi chamar um médico: cada navio tem seu médico e os principais remédios para qualquer necessidade. O médico veio e suas maneiras afáveis me animaram um pouco.
– Compreende o francês? Ele me disse. Respondi:
– Compreendo todas as linguagens do mundo, também aquelas não escritas, e até mesmo a linguagem dos surdos-mudos. Eu estava brincando para me despertar da sonolência que me havia tomado. O outro entendeu e começou a rir.
– Peut être, pode ser! Ele dizia enquanto me examinava. No final, me anunciou que ao enjoo havia se juntado a febre e que uma bebida de chá me faria bem. Agradeci e perguntei seu nome.
– Meu nome, disse, é Jobert de Marselha, doutor em medicina e cirurgia. Charles, atento às ordens do doutor, em poucos instantes preparou a Dom Bosco uma ótima xícara de chá, daí há pouco uma outra e depois uma outra. E me fez bem, tanto que consegui dormir.
Às cinco [da tarde] o barco levantou âncoras. Quando estávamos em alto-mar novamente, tive ânsias de vômito ainda mais violentas, ficando mal por cerca de quatro horas e depois, pelo esgotamento (não tinha mais nada no estômago) e ajudado pelo balanço do navio, adormeci e descansei em um sono tranquilo até chegar em Civitavecchia.

Pagar, pagar, pagar
O descanso da noite me fez recuperar as forças. Embora exausto pelo longo jejum, levantei-me e preparei as malas. Estávamos prestes a descer quando nos avisaram de uma dívida que não sabíamos ter contraído. O café não estava incluído na alimentação, mas deveria ser pago à parte e nós, que tomamos quatro xícaras, pagamos um suplemento de dois francos, ou seja, cinquenta centavos por xícara. O capitão, após fazer carimbar os passaportes, nos autorizou o desembarque; e aqui começaram as gorjetas: um franco de cada um para os barqueiros, meio franco para a bagagem (que nós tínhamos que carregar), meio franco para a alfândega, meio franco para quem nos convidava a entrar no carro, meio para o carregador que arrumava as malas, dois francos para o visto no passaporte, um franco e meio para o Cônsul Pontifício. Não dava nem tempo de abrir a boca que já tinha que pagar alguma coisa. Com a adição de que, variando as moedas de nome e valor, tínhamos que confiar em quem nos fazia a troca. […]. Na Alfândega respeitaram um pacote endereçado ao Cardeal Antonelli com o selo pontifício, dentro do qual colocamos as coisas mais importantes. […].

Terminadas as operações, fui ao barbeiro para fazer a barba de dez dias. Tudo correu bem, mas na loja não consegui desviar o olhar de dois chifres em uma mesinha. Eram longos cerca de um metro e adornados com anéis brilhantes e fitas. Pensava que eram destinados a algum uso especial, mas me disseram que eram de novilha, que nós chamamos de boi, colocados lá apenas para ornamentação. […].

Rumo a Roma de carruagem
Enquanto isso, o P. Mentasti estava furioso porque não nos via chegar, enquanto a carruagem já nos aguardava. Tivemos de correr para chegar a tempo. Subimos na carruagem e partimos para Roma. A distância a percorrer era de 47 milhas italianas, que correspondem a 36 milhas piemontesas; a estrada era muito bonita.
Como nossos lugares eram na parte alta podíamos contemplar os prados verdejantes e as cercas vivas floridas. Uma curiosidade nos divertiu bastante. Percebemos que tudo ia em grupos de três: os cavalos da nossa carruagem estavam atrelados em grupos de três; encontramos patrulhas de soldados que iam em grupos de três; até mesmo alguns camponeses caminhavam em grupos de três, assim como algumas vacas e alguns burros pastavam em grupos de três. Nós ríamos sobre essas estranhas coincidências. […].

Uma parada para os cavalos
Em Palo o cocheiro concedeu aos viajantes uma hora de liberdade para dar descanso aos cavalos. Nós aproveitamos para correr até uma estalagem próxima e saciar a fome. As ocupações quase nos fizeram esquecer de comer; desde o meio-dia de sexta-feira, eu não havia tomado mais do que uma xícara de café com leite. Nos reunimos em torno dos pãezinhos e comemos, ou melhor, devoramos tudo. Ao ver o garçom muito exausto e pálido, perguntei o que ele tinha.
– Tenho uma febre que me aflige há muitos meses, respondeu. Então eu fiz o bom médico:
– Deixe comigo, vou prescrever uma receita que eliminará a febre para sempre. Tenha apenas fé em Deus e em São Luís. Pegando então um pedaço de papel com o lápis, escrevi minha receita, recomendando-lhe que a levasse a algum farmacêutico. Ele não cabia em si de tanta alegria e, não sabendo o modo melhor de demonstrar sua gratidão, beijava minha mão e repetia o gesto, e queria beijar também a de Rua, que por modéstia não permitiu.

Foi também simpática a encontro com um policial pontifício. Ele achava que me conhecia, e eu acreditava conhecê-lo, assim nos cumprimentamos ambos com grande festa. E quando percebemos o equívoco, a amizade e as expressões de benevolência e respeito continuaram: para agradá-lo, tive que permitir que ele pagasse uma xícara de café, e da minha parte ofereci-lhe uma dose de rum. E como me pediu uma lembrança, dei-lhe a medalha de São Luís Gonzaga. O nome daquele bom policial era Pedrocchi.

Na cidade dos papas
Subimos novamente na carruagem e voando mais rápido com o desejo do que com as patas dos cavalos, parecia a cada momento que já estávamos em Roma. Com a noite caindo, toda vez que avistávamos ao longe um arbusto ou uma planta, Rua imediatamente exclamava:
– Eis a cúpula de São Pedro. Mas tivemos que continuar a viagem até às dez e meia da noite e, já sendo bastante escuro, não conseguíamos mais discernir nenhum detalhe. Sentimos um arrepio, no entanto, ao saber que estávamos entrando na cidade santa. […]. Finalmente chegando no ponto de parada e não tendo nenhum conhecimento do lugar, procuramos um guia que, por doze tostões nos acompanhou até a casa De Maistre, na via del Quirinale 49, nas Quattro Fontane. Já eram onze horas. Fomos recebidos com bondade pelo conde e pela condessa; os outros já dormiam. Após fazermos um lanche, nos despedimos e fomos dormir.

San Carlino
A parte do Quirinale onde estamos é chamada Quattro Fontane porque jorram quatro fontes perenes de quatro cantos de quatro bairros que aqui se unem. Em frente à casa onde nos hospedamos estava a igreja dos carmelitas. Estes, todos espanhóis, pertenciam à ordem conhecida como da Redenção dos Escravos. A igreja foi construída em 1640 e dedicada a São Carlos; mas para distingui-la de outras dedicadas ao mesmo santo, foi chamada de São Carlinhos[S. Carlino]. Fomos à sacristia, mostramos o Celebret (o documento para celebrar, n.d.r.) e assim pudemos celebrar a missa. […]. Passamos o dia quase inteiramente organizando nossos papéis, entregando recados e encomendas, levando cartas. […].

Pantheon
Aproveitando que ainda tínhamos ainda uma hora antes que escurecesse, fomos ao Pantheon, que é um dos monumentos mais antigos e célebres de Roma. Foi mandado construir por Marco Agripa, genro de César Augusto, vinte e cinco anos antes da era comum (do nascimento de Cristo, n.d.r.). Acredita-se que este edifício tenha sido chamado de Pantheon, que significa todos os deuses, porque de fato era dedicado a todas as divindades. A fachada é realmente estupenda. Oito grossas colunas compõem uma elegante moldura. Logo depois, há um pórtico formado por dezesseis colunas feitas de um único bloco de granito, depois o pronaos, ou ante-templo, constituído por quatro pilares canelados, dentro dos quais estão escavados nichos antigamente ocupados pelas estátuas de Augusto e Agripa.
No interior, apresenta uma alta cúpula aberta no meio, pela qual penetra a luz, mas também o vento, a chuva e a neve, quando cai por estas bandas. Aqui, os mais preciosos mármores foram usados como piso ou como decoração de tudo ao redor. O diâmetro é de cento e trinta e três pés, correspondendo a dezoito trabucos (cerca de 55 m). Este templo serviu ao culto dos deuses até 608 depois de Cristo, quando o Papa Bonifácio IV, para impedir as desordens que aconteciam durante os sacrifícios, o dedicou ao culto do verdadeiro Deus e a todos os santos.

Esta igreja passou por muitas modificações. Quando Bonifácio IV obteve este lugar do imperador Foca e o dedicou ao culto de Deus e de Nossa Senhora, fez transportar de vários cemitérios vinte e oito carros de relíquias que colocou sob o altar-mor. Desde então, começou a ser chamada de Santa Maria ad Martyres. Gostamos muito de ter visitado o túmulo do grande Rafaello. […]. Agora esta igreja também é chamada de Rotonda, pela forma arredondada de sua construção. À frente dela há uma praça cujo centro é ocupado por uma grande fonte de mármore, encimada por quatro golfinhos que jorram água continuamente.

San Pietro in Vincoli
No dia 23 de fevereiro […] ficamos muito contentes com a visita a S. Pietro in Vincoli, igreja ao sul de Roma, quase no fim da cidade. Foi um dia memorável porque coincidia com uma das raras vezes em que eram exibidas as correntes de São Pedro [catene di san Pietro], cujas chaves são guardadas pelo próprio Santo Padre.
Diz a tradição que foi o próprio Pedro quem ergueu aqui a primeira igreja, dedicando-a ao Salvador. Destruída pelo incêndio de Nero, foi reconstruída por São Leão Magno em 442 e dedicada ao primeiro Papa. Foi chamada de San Pietro in Vincoli porque o Pontífice deixou nela a corrente com a qual o Príncipe dos Apóstolos foi, por ordem de Herodes, acorrentado em Jerusalém. O patriarca Giovenale a havia presenteado à imperatriz Eudóxia, que por sua vez a enviou a Roma para sua filha Eudóxia Júnior, esposa de Valentiniano III. Em Roma também se conservava a corrente à qual São Pedro foi acorrentado no cárcere Mamertino. Quando São Leão quis fazer a comparação desta com a de Jerusalém, de maneira prodigiosa as duas correntes se uniram, de modo que hoje formam uma só, que é conservada em um altar específico ao lado da sacristia. Tivemos a consolação de tocar essas correntes com nossas mãos, beijá-las, colocá-las em nosso pescoço e aproximá-las da fronte. Também olhamos com bastante atenção para tentar ver onde as duas se uniam, mas não conseguimos. Apenas pudemos constatar que a corrente de Roma é menor que a de Jerusalém.

Em San Pedro in Vincoli encontra-se a magnífica sepultura de Júlio II. […]. É uma das obras-primas do célebre Michelangelo Buonarroti, que é considerado um dos maiores artistas do mármore, especialmente pela estátua de Moisés [statua del Mosè], colocada perto da urna. O patriarca é representado com as tábuas da lei dobradas sob o braço direito, em ato de falar ao povo que ele observa com atenção, pois se havia rebelado. A igreja tem três naves, separadas por vinte colunas de mármore pario e duas de granito, bem conservado.

San Luigi dei Francesi
Por volta das nove, fomos a Santa Maria sopra Minerva, onde fomos recebidos em audiência privada pelo Cardeal Gaude por cerca de uma hora e meia. Ele falou conosco em dialeto piemontês, interessando-se por nossos oratórios. […]. Depois do meio-dia fomos visitar o marquês Giovanni Patrizi. […]. Em frente ao seu palácio está a igreja de São Luís dos Franceses [chiesa di S. Luigi dei Francesi], que dá nome à praça e à vizinhança. É uma igreja bem cuidada e enriquecida com muitos mármores preciosos. Sua singularidade consiste nos sepulcros de ilustres personagens franceses que morreram em Roma. De fato, o piso e as paredes estão cobertos de epígrafes e lápides. […].
Santa Maria Maggiore all’Esquilino
Do Quirinale se abre uma via que leva ao Esquilino, assim chamado pelos muitos alces que o adornavam. Na parte mais elevada ergue-se Santa Maria Maggiore [S. Maria Maggiore], cuja origem assim é narrada por todos os que se ocupam da história sagrada. Um certo Giovanni, patrício romano, não tendo filhos, desejava empregar seus bens em alguma obra de piedade. […]. Na noite de 4 de agosto de 352, Nossa Senhora lhe apareceu em sonho e ordenou que lhe erguesse um templo no lugar onde, na manhã seguinte, encontraria neve fresca. A mesma visão teve o papa da época, Libério. No dia seguinte, espalhou-se a notícia de que havia caído abundante neve no monte Esquilino; Libério e Giovanni foram até lá e, constatando o prodígio, se colocaram de acordo para concretizar o que lhes foi ordenado no sonho. O papa fez o traçado do novo templo, que foi construído com os recursos de Giovanni: poucos anos depois, Libério o consagrou […]

Em frente à igreja se estende uma vasta praça, no centro da qual está a antiga coluna de mármore branco, retirada do templo da paz. No ano de 1614 o Papa Paulo V dotou-a de uma base e de um capitel, sobre o qual colocou a estátua de Nossa Senhora com o Menino Jesus [la statua della Madonna col Bambino]. A arquitetura da fachada é majestosa e é sustentada por grossas colunas de mármore que formam um espaçoso vestíbulo. No fundo deste foi colocada a estátua de Filipe IV, rei da Espanha, que fez muitas doações em favor desta igreja e quis ele mesmo ser inscrito entre os canônicos dela. O piso é de mosaico precioso trabalhado com mármores de vários tipos, todos de valor incalculável.

A capela à direita do altar-mor conserva a tumba de São Jerônimo, a manjedoura do Salvador [culla del Salvatore] e o altar do Papa Libério. O altar papal é coberto por preciosos mármores de porfírio e sustentado por quatro anjos de bronze dourado. Abaixo dele se abre a Confissão, que é uma capela dedicada a São Matias. Fomos visitá-la no dia da estação quaresmal, assim tivemos a sorte de encontrar exposto sobre um rico altar a cabeça de São Matias. Observando-a atentamente notamos a pele ainda presa à cabeça e que, também, ainda aparecem alguns cabelos presos ao venerado crânio.

A Virgem e a peste
Na capela à esquerda do altar pode-se observar uma pintura da Virgem atribuída a São Lucas [un dipinto della Vergine attribuito a san Luca], muito venerada pelo povo. A imagem sempre foi muito apreciada pelos papas. São Gregório Magno, na terrível peste de 590, a levou em procissão até o Vaticano. Era 25 de abril. Quando o cortejo chegou perto da Mole Adriana (torre Adriana, n.d.r.), foi visto um anjo que guardava a espada na bainha, indicando assim o término da peste. Em memória deste prodígio, a Mole Adriana foi chamada de Castel Sant’Angelo, e desde então a procissão se repete todo ano no dia de São Marcos Evangelista. Em Santa Maria Maggiore tudo é majestoso e grandioso; mas falar ou escrever sobre isso é insuficiente para descrevê-la com precisão. Quem a vê com seus próprios olhos fica maravilhado com tudo o que vê lá.

Hoje, Quarta-feira de Quaresma, aqui em Roma se jejua e isso significa que são proibidos não apenas os alimentos de carne, mas também qualquer sopa ou prato à base de ovos, manteiga ou leite. Óleo, água e sal são os temperos usados nestas Quartas-feiras. A prática é rigorosamente observada por todas as pessoas, de modo que nos mercados e nas lojas não se encontra carne, ovos ou manteiga naquele dia.

A lenda de São Galgano
À noite, a senhora De Maistre nos contou uma história digna de ser lembrada. Ela disse:
No ano passado veio aqui o Vigário Geral de Siena. Entre outras coisas que ele costumava contar havia uma sobre São Galgano, soldado. Esse santo morreu há séculos, e o seu corpo se conserva intacto. Mas a maravilha é que todo ano lhe cortam os cabelos, que crescem sensivelmente e voltam ao mesmo comprimento no ano seguinte. Um protestante, ouvindo sobre tal prodígio, começou a rir dizendo: – Deixa-me lacrar o caixão, e se os cabelos crescerem, eu reconheço o dedo de Deus no prodígio e me torno católico. A coisa chegou ao bispo, que disse: – Sim, logo! Colocarei os lacres episcopais para a autenticidade da relíquia. Que ele coloque os seus para assegurar-se do fato. Assim foi. Mas o protestante, impaciente para ver se o prodígio acontecia, depois de alguns meses pediu para abrir o caixão do santo. Mas, qual não foi sua surpresa quando viu os cabelos de São Galgano crescidos já em um considerável tamanho com a mesma proporção como se fosse vivo ainda?! Então exclamou: – Agora sou católico! De fato, no ano seguinte, no dia da festa do santo, ele, com sua família abjurou os erros de Calvino e de Lutero, e abraçou a religião católica, que agora professa exemplarmente.

Santa Pudenziana al Viminale
Das Quattro Fontane sobe-se ao Viminale, chamado assim pelos muitos vimes, ou seja, os juncos, que outrora o cobriam. Aos pés desta colina, na casa de Pudente, senador romano, hospedou-se São Pedro quando veio a Roma. O santo apóstolo converteu à fé seu anfitrião e transformou sua casa em igreja. São Pio I, por volta de 160, a pedido das virgens Pudenziana e Prassede, filhas do sobrinho do Senador Pudente, consagrou esta igreja, que […] posteriormente foi dedicada a Santa Pudenziana [dedicata a S. Pudenziana] porque ela ali havia habitado e foi ali que morreu. Muitos papas trabalharam na reestruturação deste lugar, que contém preciosos testemunhos da fé cristã. Merece especial atenção o poço de Santa Pudenziana. Acredita-se que ela tenha sepultado os corpos dos mártires neste poço. No fundo, pode-se notar uma grande quantidade de relíquias: a história diz que contém as relíquias de três mil mártires.

Ao lado do altar-mor há uma capela de forma alongada em cujo altar estão estátuas em mármore em que Jesus entrega as chaves a São Pedro. Acredita-se que o altar seja o mesmo sobre o qual São Pedro celebrou a missa, e sobre o qual, com grande consolação, eu também pude fazê-lo. Conservam-se vários pedaços de esponja, os mesmos que Pudenziana usava para recolher o sangue das chagas dos mártires ou da terra que estava impregnada dele.
Continuando à esquerda chega-se a uma capela onde se conserva o testemunho de um grande milagre. Enquanto celebrava a missa, um sacerdote caiu em dúvida sobre a possibilidade da presença real de Jesus na hóstia santa. Após a consagração, a hóstia lhe escapuliu das suas mãos e, caindo no chão, quicou primeiro em um degrau e depois em outro. Onde tocou pela primeira vez, o mármore ficou quase furado; também no segundo degrau formou-se uma cavidade muito profunda em forma de hóstia. Esses dois degraus de mármore são conservados naquele mesmo lugar, de modo bem seguro.

Santa Prassede
De Santa Pudenziana, subindo em direção ao Esquilino, a pouca distância de Santa Maria Maggiore, encontra-se a igreja de Santa Prassede [chiesa di S. Prassede]. Por volta do ano 162 d.C., sobre o local onde estavam as termas, ou seja, as casas de banho de Novato, São Pio I ergueu uma igreja em honra desta virgem, irmã de Novato, Pudenziana e Teotilo. O local serviu de refúgio para os antigos cristãos em tempos de perseguição. A Santa, que se esforçava para fornecer o que era necessário aos cristãos perseguidos, também se encarregava de recolher os corpos dos mártires, que depois sepultava, vertendo seu sangue no poço que está no meio da igreja. Ela é riquíssima em ornamentos e mármores preciosos, como quase todas as igrejas de Roma.

Há também a capela dos mártires Zenone e Valentino, cujos corpos, trazidos por São Pascoal I no ano 899, repousam sob o altar. Aqui se conserva também uma coluna de jaspe, alta cerca de três palmos, que um Cardeal chamado Colonna fez transportar da Terra Santa no ano 1223. Acredita-se que seja aquela à qual o Salvador foi atado durante a flagelação.

Celio
Do Esquilino, olhando para o oeste, vê-se a colina Celio. Antigamente, era chamada de Querchetulano pelas árvores de carvalho que a cobriam. Mais tarde, foi denominada Celio em homenagem a Cele Vilenna, capitão dos etruscos que vieram em socorro de Roma, e que Tarquínio Prisco acolheu nesta colina. A primeira coisa que se nota é o maior obelisco que se conhece. Ramsés, faraó do Egito, fez erguê-lo em Tebas, dedicando-o ao sol. Constantino, o Grande, mandou transportá-lo pelo Nilo até Alexandria, mas, tendo morrido, coube ao filho, Constâncio, levá-lo a Roma. Para a viagem, usou-se um navio de trezentos remos, e pelo rio Tibre foi conduzido à Urbe e colocado em um lugar chamado Circo Massimo. Aqui caiu, quebrando-se em três partes. O Papa Sisto V mandou restaurá-lo e erguê-lo na praça do Laterano no ano de 1588. O obelisco chega à altura de 153 pés romanos. É todo ornamentado com hieróglifos e coroado por uma alta cruz.

À direita da praça está o batistério de Constantino com a igreja de San Giovanni in Fonte [chiesa di S. Giovanni in Fonte]. Diz-se que foi construída por Constantino em ocasião do batismo que recebeu do pontífice São Silvestre no ano 324. Das duas capelas anexas, uma dedicada a São João Batista e a outra a São João Evangelista, recebeu o nome de igreja de San Giovanni in Fonte. O batistério, que é uma bacia de grande largura revestida de mármores preciosos, está no meio. A capelinha anexa, dedicada a São João Batista, acredita-se que fosse um cômodo de Constantino, transformada em oratório e dedicada ao santo Precursor pelo papa São Hilário.

San Giovanni in Laterano
Saindo do batistério e atravessando a vasta praça, encontra-se a basílica de San Giovanni in Laterano [basilica di S. Giovanni in Laterano]. Esta célebre construção é a primeira e principal igreja do mundo católico. Na fachada está escrito: Ecclesiarum Urbis et Orbis Mater et Caput (Mãe e Cabeça de todas as Igrejas de Roma e do Mundo). É a sede do Sumo Pontífice como bispo de Roma; após sua coroação, ele vem até aqui para, solenemente, tomar posse. Foi chamada também de Basílica Costantiniana, porque foi fundada por Constantino, o Grande. Depois foi chamada de Basílica Lateranense porque erguida onde estava o palácio de um certo Pláucio Laterano, assassinado por Nero; e também Basílica do Salvador, em decorrência de uma aparição do Salvador ocorrida durante a sua construção. Chamam-na ainda de Basílica Áurea pelos preciosos dons com que foi enriquecida, e Basílica de São João porque dedicada aos santos João Batista e Evangelista.

Foi Constantino, o Grande, quem a mandou construir perto de seu palácio, por volta do ano 324. Ampliada depois com novos edifícios, foi cedida ao santo Pontífice. Aqui habitaram os papas até a época de Gregório XI. Quando este trouxe a Santa Sé de Avinhão para Roma, transferiu sua residência para o Vaticano.
No ano de 1308 um terrível incêndio a destruiu, mas Clemente V, que então estava em Avinhão, imediatamente enviou seus agentes com grandes somas de dinheiro, e logo breve foi reconstruída. O pórtico é sustentado por vinte e quatro grossos pilares; ao fundo, está a estátua de Constantino encontrada em suas termas no Quirinale. A grande porta de bronze é de extraordinária altura. Ela foi retirada da igreja de Sant’Adriano in Campo Vaccino e trazida para cá. Constitui um raro exemplo de portas antigas chamadas Quadrifores, ou seja, construídas de modo que pudessem ser abertas em quatro partes, uma de cada vez, sem que nenhuma colocasse em perigo a estabilidade da outra. À direita, há uma porta murada que se abre apenas no ano do jubileu e, por isso, é chamada de Porta Santa.

Seu interior tem cinco naves. O comprimento, a altura, a preciosidade dos pavimentos, das esculturas e das pinturas são coisas que chamam a atenção. Deveria-se escrever grossos volumes para falar dignamente sobre isso. As relíquias mais insignes desta igreja são a cabeça dos dois príncipes dos Apóstolos, Pedro e Paulo. Elas estão sob o altar-mor e ficam dentro de uma outra cabeça de ouro. Há também uma relíquia insigne de São Pancrazio, mártir, e guarda-se uma mesa que se acredita ser a mesma sobre a qual Jesus celebrou a sagrada ceia com seus Apóstolos.

Saindo da igreja pela porta principal e atravessando a praça, encontra-se a Escada Santa [Scala Santa], um edifício que o Papa Sisto V mandou erguer para guardar a escada, que antes estava em pedaços no antigo palácio papal do Laterano. Ela é formada por vinte e oito degraus de mármore branco que eram do pretório de Pilatos, em Jerusalém, que Jesus subiu e desceu várias vezes durante sua paixão. Santa Helena, mãe de Constantino, os enviou a Roma junto com muitas outras coisas santificadas pelo sangue de Jesus Cristo. Esta célebre escadaria é mantida em grande veneração e, por isso, sobe-se de joelhos; e desce-se por uma das quatro escadas laterais. Esses degraus se afundaram pelo grande afluxo de cristãos que os subiram, por isso foram cobertos com tábuas de madeira. O próprio Sisto V fez colocar no alto da escada a célebre capela doméstica dos Papas, que está repleta das mais insignes relíquias, e que, por isso, é chamada de Sancta Sanctorum.

Cidade do Vaticano. A construção
A colina do Vaticano [colle Vaticano] contém o que existe de mais excelente nas artes e de memorável na religião; por isso, faremos um relato um pouco mais preciso. Foi chamada Vaticano, de Vagitanus, uma divindade que acreditavam que acompanhava o choro dos recém-nascidos. De fato, a primeira sílaba Uà (“va”, n.d.r.) da qual é composta a palavra é também o primeiro grito das crianças. A colina ficou conhecida quando Calígula construiu nela um circo, que depois ficou conhecido como circo de Nero. Calígula, para passar da margem esquerda para a direita do Tibre, construiu a ponte do Vaticano, também chamada de Triunfal, que agora, porém, não existe mais. O circo de Nero começava onde hoje está a igreja de Santa Marta e se estendia até as escadas da antiga basílica vaticana. Neste circo foi enterrado o corpo do Príncipe dos Apóstolos [corpo del Principe degli Apostoli] .[…].

Ali também foram enterrados os ossos de outros Papas, incluindo Lino, Cleto, Anacleto, Evaristo e outros mais. A Memória de São Pedro, ou seja, a capela construída sobre o túmulo dele, durou até os tempos de Constantino que, por desejo de São Silvestre, por volta de 319, começou a construção de uma igreja em honra do Apóstolo. Ela foi erguida exatamente em torno daquela capela, utilizando material retirado de edifícios públicos. A construção foi chamada de Basílica Constantiniana, e naqueles tempos era considerada uma das mais célebres da cristandade. No meio daquela igreja, feita em forma de cruz latina, havia o altar dedicado a São Pedro, sob o qual estava sepultado seu corpo, protegido por grades; desde então aquele lugar era chamado de Confissão de São Pedro. Terminada a construção e dotada de ricos adornos, o Papa Silvestre a consagrou em 18 de novembro de 324. […]. Os pontífices que vieram depois a embelezaram e a ampliaram. Por onze séculos foi objeto de devoção e admiração dos cristãos que se dirigiam a Roma.

No século XV, começou a ruir, por isso Nicolau V pensou em renová-la, mas teve apenas o mérito de iniciar os trabalhos, pois com a sua morte se suspendeu tudo. Júlio II retomou a construção, mudando o nome dela de Basílica Constantiniana para São Pedro no Vaticano, e colocou a primeira pedra em 18 de abril de 1506. Os arquitetos foram Bramante, depois Fra Giocondo Domenico e Raffaello Sanzio. E além deles, também trabalharam os mais célebres arquitetos e os mais sublimes gênios da época.

A grande praça
 […] Diante da basílica se abre uma vasta praça cuja extensão supera meio quilômetro. Ela é formada por 284 colunas e 64 pilares que, dispostos em semicírculo de ambos os lados em quatro fileiras, formam três corredores, dos quais o mais amplo, o central, pode permitir a passagem de duas carruagens. Sobre a colunata sobressaem 96 estátuas de santos, em mármore, com cerca de 10 pés de altura. No centro, ergue-se o obelisco egípcio. Ele é formado por um só bloco e é o único que permaneceu inteiro. Mede 126 pés de altura, incluindo a cruz e o pedestal. Não possui hieróglifos. Nuccoreo, rei do Egito, o havia erguido em Heliópolis, de onde foi retirado e trazido a Roma por Calígula no 3º ano de seu império. Foi colocado no circo construído ao pé da colina do Vaticano, como demonstram os dizeres que podem ser lidos. Este circo foi chamado de Nero porque foi muito frequentado por ele; aqui, aquele cruel imperador fez um massacre de cristãos, acusando-os de serem os autores do incêndio de Roma, que ele mesmo havia provocado.

Em 1818 foi construída uma meridiana na praça. Foram desenhados no chão os doze signos do zodíaco. O obelisco servia como ponteiro e com sua sombra indicava as estações do sol. Ao redor, foram escritos os nomes dos ventos na direção em que sopra cada um deles. Dos lados, duas fontes iguais jorram perpetuamente água de um grupo de jatos que se elevam até sessenta pés. A rainha da Escócia, recebida com pompa neste lugar, olhou com espanto para as duas fontes, pensando que haviam sido feitas especialmente para sua recepção. Não, disse um senhor que estava ao seu lado, esses jatos são perenes.

Visita a São Pedro
Caminhando em direção à fachada da basílica, chega-se a uma magnífica escadaria ladeada por duas estátuas, uma de São Pedro e a outra de São Paulo, colocadas ali pelo Papa Pio IX. Subindo as escadas, está-se diante da fachada que tem esta inscrição: Em honra do Príncipe dos Apóstolos, Paulo V, Pontífice Máximo, no ano de 1612, 7º de seu pontificado. Acima do pórtico se estende o grande Balcão das bênçãos. A fachada é majestosa e imponente. O pórtico é todo adornado com mármores, pinturas em mosaico e outros trabalhos elegantes. No fundo do vestíbulo, à direita, pode-se observar a belíssima estátua equestre de Constantino em ato de contemplar a prodigiosa cruz que lhe apareceu no céu antes da batalha final com Massenzio.

Do pórtico entra-se na basílica através de quatro portas, das quais a última à direita só se abre no ano santo. A porta maior é de bronze, muito alta, e são necessárias muitas e fortes mãos para abri-la. O interior apresenta-se em cinco naves além da cruz que termina com a tribuna. A curiosidade e a surpresa nos levaram ao meio da nave maior. Aqui paramos para admirar e refletir, sem pronunciar palavra. Pareceu-nos ver a Jerusalém celeste. O comprimento da basílica é de 837 palmos, sua largura de 607. É o maior templo de toda a cristandade. Depois de São Pedro, o maior é o de São Paulo em Londres. Se à igreja de São Paulo acrescentarmos a do nosso Oratório, forma-se o comprimento exato da de São Pedro.

Depois de estarmos por algum tempo imóveis, procuramos a pia de água benta. Avistamos dois anjos no primeiro pilar da basílica, à primeira vista muito pequenos, que seguravam uma espécie de concha. Ficamos maravilhados que uma igreja tão vasta tivesse uma pia de água benta tão pequena. Mas nossa maravilha se transformou em surpresa quando vimos os anjos se tornavam cada vez maiores à medida que nos aproximávamos deles. A concha tornou-se um recipiente de cerca de seis pés de circunferência, e os anjos ao lado nos mostravam suas mãos com dedos do tamanho de nosso braço. Isso demonstra que as proporções deste maravilhoso edifício são tão bem reguladas que tornam menos perceptível a amplitude, a qual, no entanto, se nota cada vez melhor ao examinar cada detalhe. Ao redor dos pilares da nave maior estão as estátuas dos fundadores das ordens religiosas, esculpidas em mármore.

No último pilar, à direita, está colocada a estátua de São Pedro, em bronze, venerada com grande reverência. Foi feita fundir por São Leão Magno com o bronze da estátua de Júpiter Capitolino. Ela recorda a paz que aquele Pontífice obteve de Átila, que estava enfurecido contra a Itália. O pé direito que se projeta para fora do pedestal está consumido pelos lábios dos fiéis que nunca passam diante dele sem beijá-lo com respeito. Enquanto estávamos admirando a estátua, passou o embaixador austríaco em Roma, que se curvou diante do príncipe dos Apóstolos e beijou seu pé.

Naves e capelas
Passamos agora a dizer alguma coisa sobre as naves menores e as capelas que lá se encontram. Na nave da direita encontramos, primeiro, a capela da Pietà. Além de magníficos mosaicos e das estátuas que a adornam, admira-se sobre o altar a célebre estátua esculpida por Michelangelo Buonarroti, em mármore branco, quando ele tinha apenas vinte e quatro anos de idade. Talvez seja a escultura mais bela do mundo. O mesmo Buonarroti se agradou tanto dela deixou a sua assinatura na faixa sobre o peito de Maria.

À esquerda da capela da Pietà está a capela interna dedicada ao Crucifixo e a São Nicolau. Daqui se entra na chamada Capelinha da Coluna Santa, onde se conserva, protegida por uma grade de ferro, uma das colunas em espiral que estavam antigamente diante do altar da Confissão de São Pedro. Esta é a coluna à qual Jesus Cristo se apoiou quando pregou no templo de Salomão. Admira-se com maravilha que a parte tocada pelos sagrados ombros do Salvador nunca está suja de poeira, e por isso não é necessário que seja limpa como o resto.

Após a capela da Pietà está o monumento fúnebre de Leão XII, feito por Gregório XVI. O Pontífice é retratado enquanto abençoa o povo do Balcão (Loggia, n.d.r.) acima do pórtico; ao redor vê-se as cabeças dos Cardeais que participavam da cerimônia. Em frente a este jazigo está o de Cristina Alessandra, rainha da Suécia, morta em Roma no dia 19 de abril de 1689. Esta, protestante, convencida da pouca consistência de sua religião, fez-se instruir no catolicismo e fez a solene abjuração em Ispruch em 3 de novembro de 1655. Vários baixos-relevos que adornam o túmulo representam o acontecimento.

Depois está a capela de São Sebastião, também essa rica em pinturas e mármores. Saindo à direita, encontra-se o túmulo de Inocêncio XII, dos Pignatelli de Nápoles. Em frente, está a sepultura da famosa condessa Matilde, ilustre benfeitora da Igreja e defensora da autoridade pontifícia. Urbano VIII transferir para cá as cinzas dela, retirando-as do mosteiro de São Bento em Mantova. Ela foi a primeira das ilustres mulheres que mereceram uma sepultura na basílica Vaticana. A condessa é representada em pé; a sepultura é ornada por um baixo-relevo que retrata a absolvição concedida por Gregório VII a Henrique IV, imperador da Alemanha, a pedido de Matilde e de outros personagens, em 25 de janeiro de 1077, na fortaleza de Canossa.

Chega-se assim à capela do Sacramento, rica em mármores e mosaicos. Ao lado do altar, uma escada leva ao palácio pontifício. Este altar é dedicado a São Maurício e companheiros mártires, patronos principais do Piemonte. As duas colunas em espiral de um só bloco que ornamentam o altar são duas das doze que se acredita terem sido trazidas a Roma do antigo templo de Salomão. No chão diante do altar, pode ser visto a sepultura em bronze de Sisto IV, Della Rovere. Ele foi executado por ordem de Júlio II, seu sobrinho, e representa as virtudes e a ciência próprias do falecido. Nele estão contidas as cinzas dos dois papas.

Ao sair da capela, à direita está a sepultura de Gregório XIII, Buoncompagni. O adornam duas estátuas: a Religião e a Fortaleza; ao centro, um grande baixo-relevo representa a reforma do calendário, por isso chamada Gregoriana. Aqui estão retratados uma grande quantidade de personagens ilustres que participaram daquela obra, todos em ato de reverenciar o Pontífice. Em frente, dentro de uma urna de estuque, repousam os ossos de Gregório XIV, da família Sfrondato. Aqui termina a nave menor e se entra na cruz grega segundo o desenho do Buonarroti.

Saindo da nave, à direita encontra-se a Capela Gregoriana. Acima do altar é venerada uma antiga imagem de Nossa Senhora dos tempos de Pascoal II. Abaixo repousa o corpo de São Gregório Nazianzeno, transferido por ordem de Gregório XIII da igreja das monjas de Campo Marzio. Prosseguindo o caminho chega-se ao monumento fúnebre de Bento XIV, Lambertini, erguido pelos cardeais que foram criados por ele. Nos dois lados da sepultura erguem-se duas magníficas estátuas que representam o Desinteresse e a Sabedoria, as duas virtudes mais luminosas deste papa. A estátua do Pontífice, em pé, abençoa o povo com gesto majestoso. Este trabalho é tão bem executado que basta olhar para o Papa para reconhecer a sua grandeza e a altivez de sua alma. Em frente está o altar de São Basílio Magno, e sobre ele um precioso quadro em mosaico do imperador Valente desmaiado na presença do Santo, enquanto o observava celebrar a missa.

Chega-se então à tribuna. O primeiro altar à direita é dedicado a São Venceslau, mártir, rei da Boêmia; o do meio é consagrado aos santos Processo e Martiniano, guardas do cárcere Mamertino, convertidos à fé por São Pedro, quando o Apóstolo estava preso. Desses santos toma nome o complexo; seus corpos repousam sob o altar. Três preciosos baixos-relevos representam São Pedro na prisão, libertado pelo Anjo (o do meio), São Paulo pregando no Areópago (o da direita), o terceiro os santos Paulo e Barnabé, considerados divindades pelos habitantes de Listra.
Encontra-se então a sepultura de Clemente XIII, Rezzonico, escultura de Antonio Canova. É uma obra-prima. O quadro do altar que fica em frente ao monumento retrata São Pedro em perigo de afundar, sustentado pelo Redentor. Mais adiante está o altar de São Miguel, depois o de Santa Petronila, filha de São Pedro. Esta santa é representada em um mosaico que narra a exumação de seu cadáver para mostrá-lo a Flaco, nobre romano, que a havia pedido em casamento. Na parte superior é retratada a alma dela que, através de suas orações conseguiu morrer virgem, e é acolhida por Jesus Cristo. Mais adiante, vê-se o sarcófago de Clemente X, Altieri: o baixo-relevo representa a abertura da porta santa no Jubileu de 1675. O altar é coroado pelo quadro de São Pedro que, às orações de uma multidão de pedintes, ressuscita a viúva Tabita.

Através de dois degraus de pórfiro, que faziam parte do altar-mor da antiga basílica, se sobre ao Altar da Cátedra. Um surpreendente grupo de quatro estátuas de metal sustenta a sede pontifical. As duas da frente representam dois padres latinos, Ambrósio e Agostinho; as duas de trás, os padres gregos, Atanásio e João Crisóstomo. O peso desses grupos totaliza 219.161 libras de metal. A cadeira em bronze reveste, como preciosa relíquia, a de madeira entalhada com vários baixos-relevos de marfim. Esta cadeira é a do senador Pudente que serviu o Apóstolo Pedro e muitos outros papas depois dele.

Acima do altar da Cátedra, como segundo plano está representado, em tela, o Espírito Santo entre vidros coloridos e radiantes, de modo que, a quem o olha, parece ver uma estrela de ouro resplandecente. Abaixo, à esquerda de quem olha, está o magnífico sepulcro de Paulo III, Farnese, monumento muito precioso por suas esculturas. A estátua do Pontífice sentado sobre a urna é de bronze, as outras duas estátuas, de mármore, e representam a Prudência e a Justiça. Em frente, está a sepultura do Papa Urbano VIII, cuja estátua é de bronze. A Justiça e a Caridade estão aos seus lados, esculpidas em mármore branco. Sobre a urna vê-se a imagem da morte em ato de escrever, em um livro, o nome do Pontífice. Aqui interrompemos a visita: estávamos cansados, a visita durou das onze da manhã às cinco da tarde.

Roma. Santa Maria della Vittoria
Do Quirinale, olhando para o sul, vê-se a via de Porta Pia, assim chamada pelo Papa Pio IV, que para embelezá-la executou não poucas obras. Ao longo desta estrada, perto da fonte Acqua Felice, ergue-se à esquerda a igreja de S. Maria della Vittoria, edificada por Paulo V em 1605 e assim chamada por causa de uma imagem milagrosa de Nossa Senhora levada para lá pelo P. Domenico, dos Carmelitas Descalços. A esta imagem, ou melhor, à proteção de Maria, Maximiliano, duque da Baviera, deve a grande vitória obtida em poucos dias contra os protestantes, que com um exército numerosíssimo haviam colocado o reino da Áustria de pernas para o ar. A prodigiosa imagem se conserva sobre o altar maior. Nas suas bordas estão penduradas as bandeiras tiradas dos inimigos: um glorioso monumento à proteção de Maria.

Em memória da libertação de Viena, foi instituída a festa do Nome de Maria, que é celebrada por toda a cristandade no domingo entre a oitava do nascimento de Maria. Aconteceu no dia 12 de setembro de 1683, sob o pontificado de Inocêncio XI. Nesta mesma igreja, celebra-se uma especial solenidade no segundo Domingo de novembro, recordando a famosa vitória obtida pelos cristãos contra os turcos, em Lepanto, no dia 7 de outubro de 1571, sob Pio V. Também algumas bandeiras tiradas dos turcos estão penduradas como troféus nos beirais desta igreja.
Diante de Santa Maria della Vittoria encontra-se a fontana di Termini, chamada fonte de Moisés, porque em um nicho está esculpida a estátua de Moisés que, com a vara na mão, faz jorrar água da pedra. É também chamada de Acqua Felice, em homenagem ao Frei Felice, que é o nome de Sisto V quando estava no convento.

A ilha Tiberina [L’isola Tiberina]À tarde, decidimos ir com o Conde De Maistre visitar a grande obra de São Miguel do outro lado do Tibre. Portanto, tivemos que atravessar o rio na altura de uma ilhota chamada Tiberina ou também Licaonia, em homenagem a um templo dedicado a Júpiter Licão. Esta ilha teve origem assim. Quando Tarquínio foi expulso de Roma, o Tibre estava quase sem água, deixando expostos alguns bancos de areia. Os romanos, movidos por ódio contra este rei, foram aos seus campos, cortaram o trigo e outros cereais que estavam próximos da maturação, e jogaram tudo no Tibre. A palha dos cereais se misturou com aquela areia e, uma vez se misturando com a lama do rio, se consolidou a tal ponto que pôde ser cultivada e habitada. Nesta ilha, os pagãos ergueram um templo em honra de Esculápio; mas, em 973, o corpo de São Bartolomeu foi transferido para o templo, e hoje repousa na urna sob o altar-mor.

Passado o Tibre e continuando em direção a São Miguel, encontra-se à direita a igreja de Santa Cecília [chiesa di S. Cecilia], edificada no local onde era sua casa. Urbano I, por volta da metade do terceiro século, a consagrou, e São Gregório Magno a enriqueceu com muitos objetos preciosos. Ao entrar, à direita, está a capela onde era o banheiro de Santa Cecília, no qual se diz que ela recebeu o golpe mortal. O altar-mor, protegido por uma grade de ferro, guarda o corpo da santa. Acima da urna foi esculpida uma comovente estátua em mármore, que a representa deitada e vestida como foi encontrada na sua sepultura.

Chegando ao Refúgio São Miguel, tivemos uma audiência com o Cardeal Tosti, que nos contou vários episódios que lhe aconteceram na época da república. Ele também foi forçado a viver por um tempo longe do refúgio para não ser vitimado por algum atentado. Entre as várias coisas roubadas deste pio purpurado, naquela triste circunstância, estão três caixas de tabaco muito preciosas, seja pela antiguidade seja pela procedência. Levadas aos membros do triunvirato, Mazzini pensou em ficar com uma para si e presentear as outras duas a seus companheiros. Mas eles não se atreveram a ficar com elas. Mazzini resolveu tudo e graciosamente colocou as três no bolso!

Campidoglio
Ao longo do trajeto de volta, a meio caminho se ergue a colina mais alta de Roma, o Campidoglio, assim chamado de caput Toli, cabeça de Tolo, que foi encontrado enquanto Tarquínio, o Soberbo, fazia aplainar o cume para construir nele uma fortaleza. Subimos uma longa escadaria, cuja extremidade se elevam duas estátuas colossais representando Castor e Pólux. O plano que forma a praça era antigamente chamado inter duos lucos, porque ficava entre os bosques que cobriam os dois picos. Aqui Rômulo havia criado um abrigo para os povos vizinhos que quisessem refugiar-se. O Campidoglio de hoje não tem mais a imponência bélica, mas é uma praça majestosa contornada por palácios que abrigam museus, e onde se tratam os assuntos municipais. Em uma parte desta praça existia o templo de Júpiter Ferétrio, assim chamado pelas armas dos vencidos que os vencedores iam pendurar no altar daquele templo.

No meio da praça se ergue a famosa estátua equestre de Marco Aurélio num gesto de pacificador. Ela é a mais bela entre as mais antigas estátuas de bronze que se conservaram intactas. Uma parte dos grandes edifícios que cercam a praça constitui o palácio senatorial, fundado por Bonifácio IX em 1390 sobre o mesmo terreno onde estava o antigo senado dos romanos. Ao lado encontra-se a fonte Acqua Felice, que é adornada por duas estátuas deitadas do Nilo e do Tibre. Daqui, através de uma pequena escada, chega-se à torre do Campidoglio, erguida em forma de campanário no mesmo lugar onde, antigamente, se montavam os observadores para admirar Roma e controlar os inimigos que tentassem se aproximar da cidade. […].
Na parte mais elevada, em direção ao oriente, havia o templo de Júpiter Capitolino, que era chamado de Júpiter ÓtimoMáximo, e havia sido erguido por Tarquínio, o Soberbo, sobre as fundações preparadas por Tarquínio Prisco, que havia feito voto durante a guerra contra os sabinos. Justamente enquanto se fazia a escavação foi encontrado o caput Toli.

Santa Maria in Aracoeli
Onde era o templo de Júpiter Capitolino agora está a majestosa igreja de Santa Maria in Aracoeli [maestosa chiesa di Santa Maria in Aracoeli], edificada no século VI da era cristã. Por algum tempo foi chamada de Santa Maria in Campidoglio, pelo lugar onde se erguia. Foi então chamada Aracoeli pelo seguinte fato. Tendo um raio atingido o Campidoglio, Otaviano Augusto, temendo alguma desgraça, mandou interrogar o oráculo de Delfos. […]. Por este fato, e por algumas ditas das Sibilas, que diziam respeito ao nascimento do Salvador, Augusto fez erguer um altar intitulado: Ara primogeniti Dei, altar do primogênito de Deus. Daí derivou o nome de Santa Maria in Aracoeli, depois que no local foi erguida uma igreja em honra da Mãe de Deus. O interior tem três naves divididas por 22 colunas de mármore que já foram do templo de Júpiter Ferétrio. O altar-mor é digno de especial observação, porque sobre ele se venera uma imagem de Maria, que se pensa ser de São Lucas. Esta, nos tempos de São Gregório Magno, foi levada processionalmente por Roma para obter a libertação da peste. O fato é representado em uma pintura no pilar ao lado do altar. Na interseção da cruz está a capela de Santa Helena, onde foi erguida a Ara Primogeniti. A mesa do altar é uma grande urna de porfírio, dentro da qual foram depositados os corpos de Santa Helena, mãe de Constantino, e dos santos Abundância e Abundâncio.

Em uma sala próxima à sacristia se conserva uma efígie milagrosa do Menino Jesus. As faixas que o revestem são enriquecidas com pedras preciosas. Ela é exposta em veneração durante as festas de Natal, em um belo presépio que é feito em uma capela da igreja. Junto do Menino estão também as figuras de Augusto e da Sibila, lembrando a tradição que afirma que a Sibila Cumaea previu o nascimento do Salvador e, por isso, Augusto erigiu um altar.

Saindo de Aracoeli e indo em direção à parte ocidental do Campidoglio encontra-se a rocha Tarpeia que ocupava a parte voltada para o Tibre, e assim chamada por causa da Virgem Tarpeia, que foi morta traiçoeiramente na guerra dos sabinos. Os traidores da pátria eram jogados do alto desta rocha. Aqui foram martirizados muitos cristãos que, em ódio à fé, foram jogados para baixo. Ali perto estava a Cúria e a cabana de Rômulo, onde, diz-se, ele aguardou o responso dos abutres. […].

Descendo, um pouco mais abaixo está o templo da Concordia [tempio della Concordia], construído por Camilo no ano 387 de Roma. […]. Perto deste templo, na parte esquerda de quem desce, estava o de Júpiter Tonante, do qual restam três colunas de mármore. Foi erguido por Augusto no penhasco capitolino e dedicado a Júpiter, em agradecimento por ter escapado ao raio que matou o servo que o precedia.

Carcere Mamertino
Na manhã de 2 de março, junto com a família De Maistre, fomos visitar o carcere Mamertino, que está aos pés do Campidoglio, na sua parte ocidental. Esta prisão é assim chamada de Mamerto ou Anco Március, quarto rei de Roma, que a fez construir para espalhar terror na plebe, e assim impedir os furtos e os assassinatos. Sérvio Túlio, sexto rei de Roma, acrescentou sob este outro cárcere, que foi chamado Tulliano. Ele tem dois subterrâneos, que na abóbada tem uma abertura onde mal passava um homem. Através desta se desciam com uma corda os condenados. […].

Aqui brota uma fonte de água que se diz ter sido milagrosamente feita jorrar por São Pedro quando, junto com São Paulo, estava preso ali. O príncipe dos Apóstolos usou desta água para batizar os santos Processo e Martiniano, guardiões da prisão, junto com outros 47 companheiros, todos martirizados. Esta água tem aspectos milagrosos. Seu gosto é natural. Nunca aumenta e nunca diminui de volume, qualquer que seja a quantidade que se retire dela. Dois senhores ingleses, quase para zombar dos católicos, quiseram tentar esvaziar a pequena fonte da água, que se assemelha a um recipiente de pequenas dimensões. Eles se cansaram, assim como seus amigos, mas a água permaneceu sempre no mesmo nível. Contam-se muitas curas milagrosas obtidas pelo seu uso. Ao lado da fonte está colocada uma coluna de pedra à qual foram atados os dois príncipes dos Apóstolos. Ao lado da coluna está localizado um altar pequeno e baixo onde, com grande consolação, celebrei a missa, à qual participaram a família De Maistre e outras pessoas piedosas. Acima do altar, um baixo-relevo representa Paulo pregando e Pedro batizando os guardas. […].

Em um canto do primeiro andar da prisão nota-se na parede a impressão de um rosto humano. Diz-se que São Pedro recebeu um forte tapa de um bandido, de modo que batendo com o rosto na parede deixou impresso seu rosto, que milagrosamente se conservou. Acima desta figura está esculpida esta antiga inscrição: “Nesta pedra Pedro bateu a cabeça, golpeado por um bandido, e o prodígio permanece”. Acima desta prisão foi edificada uma igreja, e sobre esta ainda outra, dedicada a São José. Aqui é a sede da confraria dos carpinteiros. Os membros se reúnem nos dias festivos, assistem às funções sagradas e providenciam o que é necessário para a manutenção da igreja e para a limpeza do cárcere. Antigamente, para chegar à entrada da prisão, descia-se por uma escada da qual no seu final estava a abertura por onde eram precipitados os condenados. Aquelas escadas foram chamadas Gemonie por causa dos gemidos dos condenados. […].

Cidade do Vaticano. Devoções jubilares
O dia 3 de março estava reservado para visitar São Pedro. Partindo às seis e meia de casa, com um frescor que alegrava a vida e tornava céleres nossos passos, tomamos a direção da colina vaticana. Chegando à Ponte Elio ou Ponte Sant’Angelo, sobre a qual se passa atravessando o Tibre, recitamos o Credo. Os Pontífices concedem cinquenta dias de indulgência àqueles que recitam o Símbolo dos Apóstolos enquanto passam sobre esta ponte. É chamada Elio por causa de Elio Adriano, que a construiu. Mas também é chamado de ponte Sant’Angelo da Castel Sant’Angelo, que é o primeiro edifício que se encontra na margem oposta.

Diremos algo sobre este castelo. O imperador Adriano quis erguer uma grande sepultura na margem direita do Tibre. Por sua largura, comprimento e altura, chamaram-no de Mole Adriana. Quando o imperador Teodósio fez retirar as colunas do mausoléu de Adriano para dotar a basílica de São Paulo, esta construção ficou sem a metade superior e sem colunas. No ano 537, as tropas de Belisário atacaram os godos para afastá-los de Roma, e então quase todos os restos daquele mausoléu foram reduzidos a pedaços. No século X foi chamado Castro e Torre de Crescencio por um certo Cescenzo Nomentano, que se apoderou dele e o fortificou. Pouco depois, a história lhe deu o nome de Castel Sant’Angelo, derivando talvez de uma igreja dedicada ao anjo Miguel. […]. Mas a opinião mais provável permanece aquela que narra de uma procissão de São Gregório Magno para obter da Virgem a libertação da peste: naquela ocasião apareceu no alto da Mole um anjo que recolocava a espada na bainha, sinal de que o flagelo estava prestes a cessar. Então, Castel Sant’Angelo foi reduzido a uma fortaleza e é a única de Roma.

Continuando nosso caminho, chegamos à grande praça de São Pedro. Passando diante do obelisco, tiramos o chapéu, porque os Papas concederam cinquenta dias de indulgência a quem faz reverência ou descobre a cabeça ao passar perto daquele obelisco, sobre o qual foi colocada uma cruz que contém um pedaço da Santa Cruz de Jesus.
Eis-nos, então, de volta à Basílica Vaticana. Já havíamos visitado a metade e mais a tribuna, que forma como o coro do altar papal, localizado no meio da interseção da cruz, em frente à cátedra de Pedro. Este coro foi feito por Clemente VIII e foi por ele consagrado no ano de 1594: abriga o altar já edificado por São Silvestre. Sendo o altar papal, nele celebra apenas o Papa, e quando algum outro deseja usá-lo, é necessário um “Breve” apostólico. Nos quatro lados se erguem quatro grandes colunas em espiral que sustentam um baldaquino ornamentado com frisos, todo de bronze. A altura deste baldaquino do piso do chão iguala a dos mais altos prédios de Turim.

A tumba de Pedro: curiosidades de um santo
Diante do altar papal, através de uma escada dupla de mármore, desce-se ao nível da Confissão. Na extremidade das escadas estão colocadas duas colunas de alabastro de Orte, um material bastante raro, transparente como diamante. Cento e doze lâmpadas ardem continuamente ao redor do venerando lugar. No fundo, abre-se um nicho formado no antigo oratório erguido por São Silvestre, onde São Anacleto “ergueu uma memória a São Pedro”. Aqui repousa o corpo do Príncipe dos Apóstolos. Nas paredes laterais abrem-se duas portas munidas de um portão de ferro, de onde se passa para as sagradas grutas. Bem em frente ao nicho, no dia 28 de novembro de 1822, foi colocada a estátua em mármore de Pio VI, que, de joelhos, está em fervorosa oração. Esta é uma das mais belas obras de Antonio Canova. Pio VI costumava, durante o dia e às vezes até à noite, ir até o túmulo de São Pedro para rezar. Em vida, mostrou o vivo desejo de ser sepultado ali e, ao morrer, quis que seu desejo fosse atendido. Mas, após uma escavação de pouca profundidade, foi descoberta uma sepultura sobre a qual estava escrito: Linus episcopus. Imediatamente, tudo foi colocado em ordem, e o Pontífice foi sepultado em outro canto da igreja. No lugar escolhido, em vez do corpo, foi colocada a estátua da qual falamos. Nós vimos e tocamos com as mãos o que há aqui de precioso, mas não pudemos ver o corpo do primeiro papa, porque há séculos o sepulcro não foi mais aberto, por temor de que alguém tentasse quebrar alguma relíquia.

Acima deste túmulo foi erguido um rico altar: aqui tive a consolação de celebrar a santa missa. Este altar, com uma pequena capela anexa, recebe luz de algumas claraboias cobertos com grades de metal. Durante a construção da basílica, ocorreu um fato prodigioso, relatado por uma testemunha ocular. Antes que o teto fosse terminado, caíram chuvas tão impetuosas que as águas inundaram o piso da basílica até um palmo de altura. Apesar de tanta abundância, a água não ousou se aproximar do altar da Confissão, e nem desceu no oratório inferior através das três claraboias mencionadas, porque, chegando perto, parou, permanecendo suspensa, de modo que nem uma gota chegou a molhar aquele santuário. Depois de observar cada objeto, olhar cada canto, as paredes, os tetos, o piso, perguntamos se não havia mais nada para ver.
– Nada mais, nos responderam.
– Mas o túmulo do santo apóstolo, onde está?
– Aqui embaixo. Está situado no mesmo lugar que ocupava quando a antiga basílica estava de pé […].
– Mas gostaríamos de vê-lo.
– Não é possível […].
– Mas o papa disse que poderíamos ver tudo. Se ao estar com ele novamente e ele nos perguntar se vimos tudo, eu ficaria triste por não poder responder afirmativamente.
O monsenhor [que nos acompanhava] mandou buscar algumas chaves e abriu uma espécie de armário. Aqui se abria uma cavidade que descia ao subterrâneo. Estava tudo escuro.
– Está satisfeito? Disse-me o monsenhor.
– Ainda não, gostaria de ver.
– E como quer fazer?
– Mande buscar uma vara e uma tocha. Trouxeram a vara e a tocha, que se apagou imediatamente ao ser descida naquele ar sem oxigênio. E a tocha não chegava até o fundo. Então foi trazida uma outra vara, que tinha na extremidade um gancho de ferro. Com ela se conseguiu tocar a tampa do túmulo de São Pedro. Estava a sete/oito metros de profundidade. Batendo levemente, o som que chegava até nós indicava que o gancho estava tocando ora no ferro, ora no mármore. E isso confirmava o que haviam escrito os antigos historiadores.

Seria necessário um volume para descrever as coisas vistas. O que existia na basílica constantiniana se conserva em lápides laterais, ou nos pisos ou nos tetos dos subterrâneos. Destaco apenas uma coisa, a imagem de Santa Maria della Bocciata, muito antiga, colocada em um altar subterrâneo. O nome deriva do seguinte fato. Um jovem, por desprezo ou, talvez, inadvertidamente, atingiu um olho da figura de Maria com uma bola. Ocorreu um grande prodígio. Sangue brotou da fronte e do olho que, ainda vermelho, se vê sobre as bochechas da imagem. Duas gotas espirraram lateralmente sobre a pedra que é zelosamente protegida atrás de dois portões de ferro.

Altares, capelas, sepulturas
Acima do altar papal e do túmulo de São Pedro se ergue a imensa cúpula que encanta quem a observa. Quatro grandes pilares a sustentam: cada um deles tem cento e cinquenta passos, cerca de vinte e cinco trabucos (70,85 m, n.d.r.), de circuito. Em tudo ao redor daquela alta cúpula há elegantes trabalhos em mosaico executados pelos mais célebres autores. Nos pilares estão esculpidos quatro nichos chamados Galeria das Relíquias, que são a Sagrada Face da Verônica, um pedaço da Santa Cruz, a Lança Sagrada e o crânio de Santo André. Entre estas é célebre a relíquia da Sagrada Face, que se crê ser aquele pano do qual se serviu o Divino Salvador para enxugar o rosto pingando sangue. Ele deixou a sua face impressa nele, que o deu a Santa Verônica, enquanto em lágrimas o acompanhava Calvário. Pessoas dignas de fé contam que esta Sagrada Face, em 1849, suou sangue mais vezes, aliás, mudou de cor, a ponto de variar as primeiras feições. Esses fatos foram escritos, e os cônegos de São Pedro o testemunham.

Partindo do altar papal e prosseguindo em direção à parte meridional encontra-se o sepulcro de Alexandre VIII, dos Ottobuoni. Foi erguido pelo sobrinho, o Cardeal Pietro Ottobuoni. A estátua do Papa sentado no trono é de metal. Duas estátuas em mármore estão nos dois lados, representando a Religião e a Prudência. A urna é coberta pelo baixo-relevo da canonização de Lorenzo Giustiniani, Giovanni da Capistrano, Giovanni de San Facondo, Giovanni di Dio e Pasquale Bajlon, feita por Alexandre VIII em 1690. Ao lado se ergue o altar de São Leão Magno, sobre o qual se admira o surpreendente baixo-relevo do Pontífice que vai ao encontro do feroz Átila. Acima estão figurados Pedro e Paulo, ao lado do Papa Átila, apavorado pela aparição dos dois e em ato de se curvar ao Pontífice. Em uma urna sob o altar repousa o corpo do santo Papa e Doutor da Igreja. À frente está o túmulo de Leão XII, morto em 1829, que tinha tanta veneração por este seu glorioso antecessor, que quis ser sepultado ao lado dele. […]

O altar que se segue é dedicado à Vergine della Colonna, assim chamada porque se venera a imagem de Maria pintada sobre uma coluna da antiga basílica constantiniana. Foi colocada ali em 1607. O altar guarda os corpos de Leão II, III e IV. Continuando o giro pela linha meridional, encontramos à direita a sepultura de Alexandre VII, Ghigi, com quatro estátuas: JustiçaPrudênciaCaridade e Verdade. Como este pontífice tinha sempre presente o pensamento da morte, o escultor estendeu uma colcha em relevo, sob a qual a figura da morte mostra uma ampulheta, ou seja, um relógio de areia, que está prestes a terminar sua carga. O Papa está ajoelhado, rezando de mãos postas. O altar à esquerda é dedicado aos apóstolos Pedro e Paulo. Está representada a queda de Simão, o Mago. Em frente está o altar dos Santos Simão e Judas, que aqui repousam. O altar à direita, por sua vez, é dedicado a São Tomé e guarda o corpo de Bonifácio IV, enquanto o da esquerda conserva os restos de Leão IX. Em frente à porta da sacristia, o altar dos Santos Pedro e André apresenta, em precioso mosaico, a morte de Ananias e Safira.

Chega-se assim à capela Clementina, cujo altar, dedicado a São Gregório Magno, tem no alto um belo mosaico do santo no ato de convencer os incrédulos. Sob o altar se venera o seu corpo. Acima da porta, que conduz até o órgão, está o monumento fúnebre de Pio VII. O Pontífice, sentado sobre uma rica cadeira e vestido com as vestes pontifícias, está abençoando. As estátuas colocadas aos lados representam a Sabedoria e a Fortaleza. Antes de chegar à nave lateral está o altar da Transfiguração, cujo mosaico apresenta a transfiguração do Salvador no Monte Tabor.

A nave menor, do lado esquerdo
Entrando na nave menor, em ambos os lados estão duas sepulturas, à direita a de Leão XI, dos Médici. Um baixo-relevo mostra o Pontífice que absolve Henrique IV, rei da França. […]. Mais abaixo há rosas esculpidas com o lema: Sic floruit, para indicar a caducidade da vida e simbolizar a brevidade do pontificado de Leão XI, que foi de apenas 21 dias.
O sarcófago à esquerda é de Inocêncio XI, Odescalchi. O baixo-relevo sobreposto retrata a libertação de Viena dos turcos, ocorrida sob seu pontificado. Avançando pela nave, chega-se à capela do coro, enriquecida com mosaicos e pinturas. Sob o altar repousa o corpo de São João Crisóstomo. Esta capela tem um subterrâneo onde se conservam as cinzas de Clemente XI. É chamada Capela Sistina por causa de Sisto IV, que erigiu outra no mesmo local da antiga basílica. À direita, acessa-se o lugar do coro e à Capela Giulia, assim chamada por causa de Júlio II, que a construiu. Acima desta porta existe uma urna de estuque que abriga as cinzas de Gregório XVI, morto em 1846. Esta urna está reservada para acolher o cadáver do último pontífice até que lhe seja dada uma sepultura.

O sepulcro de Inocêncio VIII, da família Cibo, está em frente. Duas são as figuras daquele Papa: uma sentada com o ferro da lança na mão, em alusão àquela com a qual foi ferido Jesus, enviada a ele como presente por Bajasetto II, imperador dos turcos; a outra deitada, sob a primeira. […]. De frente à portinha que leva à escada da cúpula está o cenotáfio de Tiago III, rei da Inglaterra, da família Stuart, morto em Roma no dia 1º de janeiro de 1766, e de seus dois filhos Carlos III e Henrique IX, cardeal, duque de York. Os três bustos em baixo-relevo são de Antonio Canova.
A última capela é a do Batistério. A pia batismal é de porfírio e era a tampa da urna do imperador Otão II, que foi aqui transportada quando suas cinzas foram colocadas nas grutas vaticanas […].

Roma. Sant’Andrea al Quirinale
Já que o tempo de visita terminava ao meio-dia e meia e visto que estávamos com fome, combinamos com o senhor Carlo, que nos guiava, de adiar para uma outra ocasião a subida à cúpula e a visita ao Palácio Vaticano. Após o almoço e algumas horas de descanso, demos uma olhada no Quirinale e nas coisas mais importantes próximas à nossa moradia. O Quirinale é uma das sete colinas da antiga Roma, assim chamada pelo povo Quirite, que vivia aqui, e por um templo dedicado a Rômulo, venerado com o nome de Quirino. À nossa esquerda, ao prosseguir em direção à praça Monte Cavallo, está a igreja de Santo André[chiesa di Sant’Andrea], onde hoje está o noviciado dos Jesuítas. Ela conserva, em uma capela dedicada a São Estanislau Kostka, o corpo do santo dentro de uma urna de lápis-lazúli, adornada com mármores preciosos. Ao lado desta igreja está o mosteiro das Dominicanas. Acredita-se que essas duas construções tenham surgido sobre as ruínas do templo de Quirino. À direita da estrada se ergue o majestoso Palácio do Quirinale, iniciado por Paulo III há cerca de 300 anos, e concluído por seus sucessores. Sua bela arquitetura é adornada com esculturas, pinturas e mosaicos de grande valor. O Papa reside nele por uma parte do ano. O Palácio tem um espaçoso jardim de cerca de um milha de perímetro. Entre as outras maravilhas que podem ser admiradas está um órgão que toca alimentado pela força da água que corre aqui.

Diante do Quirinale está a praça de Monte Cavallo, assim chamada por causa de dois cavalos colossais em bronze que representam Castor e Pólux. Pio VI fez erguer um obelisco no meio desta praça. Ele é um trabalho executado por ordem de Smarre e Efre, príncipes do Egito, e transportado a Roma pelo imperador Cláudio. Não tem hieróglifos. Ao sul domina o magnífico Palácio Rospigliosi, erguido onde antigamente estavam as termas de Constantino. Os amantes das belas artes podem aqui visitar muitas obras-primas da pintura e da escultura.

Santa Croce in Gerusalemme
O dia 4 de março estava reservado à basílica de Santa Croce in Gerusalemme [basilica di S. Croce in Gerusalemme]. O tempo estava nublado e, após percorrermos um pouco de caminho, fomos surpreendidos pela chuva. Não tendo guarda-chuva, chegamos molhados como dois ratos; mas a consolação sentida na visita nos compensou tanto pela água quanto pelo desconforto sofrido. Esta é uma das sete basílicas que se visitam para ganhar indulgências. Fundada por Constantino, o Grande, onde se erguia o palácio chamado Sassorio, foi por isso chamada de Basílica Sassoriana, e foi erguida em memória da descoberta da Santa Cruz, feita por Santa Helena, mãe do imperador, em Jerusalém. Aquela princesa fez transportar muita terra do Calvário, retirada do local onde foi encontrada a Cruz de Cristo. O edifício recebeu o nome de Santa Cruz pela parte considerável da santa Madeira que ali se conserva, e foi acrescentado em Jerusalém porque esta santa relíquia, junto com muitas outras, foi transportada daquela cidade. A igreja foi consagrada pelo Papa São Silvestre. Sob o altar-mor repousam os corpos de São Cesário e Santo Anastácio, mártires […].

Em frente ao altar está a capela Gregoriana, privilegiada porque se pode lucrar a indulgência plenária aplicável às almas do purgatório, tanto para aqueles que presidem a missa quanto para aqueles que dela participam. Neste altar, com grande consolação, celebrei também eu. Ao lado da igreja ergue-se o convento dos Cistercienses. O Padre Abade é um certo Marchini, piemontês, que nos tratou com muita cortesia. Entre outras coisas, ele nos fez visitar a biblioteca, rica em pergaminhos antigos e outras obras […].

Um dia de chuva
Já que o dia 5 de março foi chuvoso, passamos quase todo o tempo escrevendo. Há algo singular em Roma, que chove e faz sol ao mesmo tempo, de modo que em certas épocas do ano é preciso estar continuamente munido de guarda-chuva para se proteger ou do sol ou da chuva. Às dez horas deste dia faleceu o P. Lolli, reitor do noviciado dos jesuítas, na igreja de Sant’Andrea a Monte Cavallo, um piemontês que residiu por muito tempo em Turim, onde se tornou célebre pela pregação e pela solicitude no apostolado do confessionário. A rainha da Sardenha, Maria Teresa, o havia escolhido como seu confessor […].

Neste dia, soubemos que as doenças em Roma se multiplicaram e que a mortalidade atual é quatro vezes superior à média. Somente nos meses de janeiro e fevereiro morreram cerca de 6.600 pessoas; um número bastante alto, considerando que a população é de cerca de 130 mil habitantes. Quase de noite saí para fazer a barba. Entrei em uma barbearia e fui atendido bastante bem; mas prometi a mim mesmo de não voltar mais lá visto que foram muitos os empurrões e sacudidas que o barbeiro me deu com suas mãos grandes que ele teria deslocado meus dentes e mandíbulas se não tivessem raízes bem firmes.

O Refúgio de São Miguel
De acordo com o convite que nos foi feito pelo Cardeal Tosti, no dia 6 de março fomos com a família De Maistre visitar o Refúgio de São Miguel. Além do que disse na última vez, posso acrescentar o seguinte. O primeiro gesto de cortesia que nos foi oferecido foi um suntuoso café da manhã, do qual, no entanto, não pudemos participar, pois já o havíamos feito antes de partir, e sendo dia de jejum, não podíamos mais comer até o almoço. Assim, nos limitamos a uma pequena xícara de chocolate, que Sua Eminência nos disse ser compatível com o jejum. Também nos foi oferecida uma bebida de excelente sabor de tangerina, uma espécie de vinho feito com frutas secas e misturadas com água e açúcar. Somente Rua, não estando obrigado ao jejum, comeu algo mais sólido.

Depois, começamos a visita àquele espaçoso internato que acolhe mais de oitocentas pessoas. O Cardeal Tosti nos acompanhou por toda parte. Paramos especialmente para ver o trabalho dos jovens. Aqui aprendem os mesmos ofícios que aprendem conosco: a maioria se ocupa com desenho, a pintura e a escultura; e muitos trabalham em uma tipografia interna. O Santo Padre, para ajudar o Refúgio, concedeu-lhe o privilégio da exclusividade de exclusivamente os livros escolares que são usados nos Estados Pontifícios. Acima do edifício, há um terraço com uma vista magnífica: olhando para o oeste, avista-se o acampamento dos franceses que vieram libertar Roma. […]. Às doze e trinta, quando os meninos já estavam almoçando e o Cardeal já demostrando estar cansado, nos despedimos […].

Santa Maria em Cosmedin e a Boca da Verdade
Como de costume, chovia bastante e, como eu e Rua havíamos apenas um guarda-chuva muito pequeno, nos molhamos muito. Atravessamos o Tibre por uma ponte chamada Ponte Rotto porque, havia se arruinado, e foi substituída por uma ponte de ferro muito semelhante àquela que temos sobre o Pó, em Turim. Antigamente, chamava-se ponte Coclite, porque é a mesma em que Horácio Coclite opôs uma histórica resistência ao exército de Porsenna, até que a ponte foi destruída e ele, então, se jogou no Tibre, atravessando a nado até a outra margem, entre as flechadas dos inimigos maravilhados.

Aqui encontramos uma rua chamada Boca da Verdade [Bocca della Verità], porque no final da mesma havia o lugar onde eram levados aqueles que deviam fazer um juramento. Agora há uma igreja chamada S. Maria in Cosmedin, palavra que significa ornamento, porque foi magnificamente adornada pelo papa Adriano I. Em seu interior conserva-se a cátedra que foi usada por Santo Agostinho quando ensinava Retórica. Aguardamos sob o vestíbulo até que parasse a chuva, que já estava inundando todas as ruas. Enquanto aguardávamos, vimos a praça que também se chama Bocca della Verità.

Os vaqueiros
Havia muitos bois atrelados que pastavam, expostos à chuva, ao barro e ao vento. Os vaqueiros se abrigaram sob o mesmo vestíbulo, sentando-se para almoçar com um apetite invejável. Em vez de sopa ou alguma iguaria, tinham um pedaço de bacalhau cru, do qual cada um tirava um pedaço. Algumas broas de milho e centeio eram o seu pão. Água era a bebida. Ao perceber neles um ar de simplicidade e bondade, me aproximei para conversar com eles.
– Estão com muito apetite?
– Muito, respondeu um deles.
– Basta para vocês essa comida para matar a fome e sustentá-los?
– Sim, basta. E graças a Deus podemos tê-la, já que por sermos pobres
não podemos pretender mais do que isso.
– Por que não levam aqueles bois ao estábulo?
– Porque não temos.
– Deixam sempre eles expostos ao vento, à chuva e ao granizo, dia e noite?
– Sim, sempre.
– Fazem a mesma coisa em seus povoados?
– Sim, fazemos o mesmo, porque temos poucos estábulos. Por isso, faça sol, vento, faça neve, seja dia, seja noite estão sempre ao relento.
– E as vacas e os bezerros pequenos, também eles ficam expostos às intempéries?
– Sim, também. Entre nós temos este costume: os animais de estábulo estão sempre no estábulo, e os que começam a ficar fora, estarão sempre fora.
– Moram muito longe daqui?
– Quarenta milhas.
– Nos dias festivos, podem assistir às funções sagradas?
– Oh! Sem dúvida! Temos a nossa Capela, temos o padre que celebra a missa, faz a pregação e a catequese, e todos, mesmo distantes, fazem questão de participar.
– Alguma vez vão também confessar?
– Oh! Sem dúvida. Há cristãos que talvez não cumpram esses santos deveres? Agora tem o Jubileu e nós todos teremos o cuidado de fazê-lo bem.
Dessa conversa se percebe a boa índole desses camponeses, que em sua simplicidade vivem contentes com sua pobreza e alegres com seu estado, contanto que pudessem cumprir os deveres de bom cristão e desempenhar o que cabe ao humilde trabalho deles.

Santa Maria del Popolo
O domingo, 7 de março, estava destinado à visita de S. Maria del Popolo. Algumas piedosas e nobres pessoas desejavam que fôssemos lá celebrar a missa para poderem comungar. Era uma piedosa devoção. Às nove horas o senhor Foccardi, uma pessoa prestativa e cheia de fé, veio nos buscar com sua carruagem, para nos levar ao local indicado. Esta igreja foi construída no local onde foram sepultados Nero e a família Domícia. A tradição diz que ali apareciam continuamente fantasmas que aterrorizavam os cidadãos, de modo que ninguém queria habitar nas proximidades. O papa Pascoal II, no ano de 1099, fez erguer uma igreja lá, e para afastar a infestação diabólica, a dedicou a Maria Santíssima. No ano de 1227, a antiga igreja ameaçava cair e o povo romano contribuiu generosamente com os custos da reconstrução. Por isso, foi chamada Santa Maria do Povo. Uma igreja grandiosa, rica em mármores e pinturas. No altar-mor venera-se uma imagem milagrosa de Nossa Senhora, trazida por ordem de Gregório IX da capela do Salvador, em Latrão. Perto, está o convento dos padres Agostinianos.

Porta del Popolo, antigamente se chamava Porta Flaminia porque estava no início da via Flaminia […]. Fora desta porta, virando à direita, encontra-se a Villa Borghese, um majestoso edifício digno de ser visitado pelos turistas devido aos muitos objetos de arte que ali são conservados. Porta del Popolo delimita uma grande praça chamada Piazza del Popolo, embelezada por copiosas fontes e obeliscos, que, como todos sabem, são monumentos de uma remota antiguidade, erguidos pelos reis do Egito para tornar imortal a memória de suas ações. O soberbo obelisco que se eleva no meio da praça foi construído em Heliopólis por ordem de Ramsés, rei do Egito, que reinou em 522 a.C. O imperador Augusto o fez transportar para Roma; mas, por infortúnio, ele tombou, quebrando-se, e foi coberto por terra. O papa Sisto V, em 1589, fez desenterrá-lo, erguendo-o na praça, após dotar seu cume de uma alta cruz de metal. Suas quatro faces estão cobertas de hieróglifos, ou seja, de símbolos misteriosos que os egípcios usavam para expressar as coisas sagradas e os mistérios de sua teologia.

No fundo da praça ergue-se a igreja de Santa Maria dei Miracoli [chiesa di S. Maria dei Miracoli], construída por Alexandre VII, e chamada assim devido a uma imagem milagrosa de Nossa Senhora cuja pintura, antes, estava sob um arco nas proximidades do Tibre. À esquerda, há outra igreja, S. Maria di Monte Santo, porque foi edificada sobre outra igreja que pertencia aos carmelitas da província de Monte Santo. Foi inaugurada em 1662. Satisfeita, assim, nossa devoção e curiosidade, subimos novamente na carruagem que nos levou à casa da Princesa Potosca, dos Condes e Príncipes Sobieski, antigos soberanos da Polônia. O café da manhã preparado para nós era suntuoso, mas muito requintado, portanto pouco adequado ao nosso apetite. Nos ajustamos da melhor maneira. No entanto, ficamos muito satisfeitos com a conversa verdadeiramente cristã que aquelas senhoras mantiveram durante o tempo que nos detivemos em sua casa.
Uma coisa chamou nossa atenção. Terminada a refeição, a dona da casa mandou trazer um maço de charutos e começou a fumar. Apesar de uma conversa bastante animada, ela continuou com grande avidez a fumar um charuto após o outro, e isso me deixou desconfortável, sendo obrigado a suportar o cheiro de fumaça que impregnava toda a casa. Isso me provocava náuseas, tornando-se insuportável […].

Cidade do Vaticano. A subida à Cúpula
Reservamos o dia 8 de março para visitar a famosa cúpula de São Pedro. O Cônego Lantieri nos havia providenciado o bilhete necessário para satisfazer essa curiosidade. O horário em que é permitida a subida vai das 7h às 11h30 da manhã. O tempo estava ensolarado e, portanto, propício. Depois de celebrar a eucaristia no altar de São Francisco Xavier da Igreja de Jesus [Chiesa del Gesù], onde estão os jesuítas, chegamos ao Vaticano às 9h, acompanhados do senhor Carlo De Maistre. Entregue o bilhete, uma portinha nos foi aberta e começamos a subir por uma escada bastante confortável, como uma subida inclinada. Ao subir, encontramos várias inscrições que lembram o nome e o ano de todos os Papas que abriram e fecharam os anos jubilares. Perto do patamar do terraço estão escritos os mais célebres personagens, reis ou príncipes, que subiram até a bola da cúpula. Lemos com prazer também o nome de vários de nossos soberanos e da família real.

Demos uma olhada no terraço da basílica. Ele se apresenta como uma vasta praça pavimentada onde se pode jogar bola, bocha e coisas semelhantes. Aqui habitam algumas pessoas a quem é confiada a manutenção da parte superior do templo: carpinteiros, ferreiros, trabalhadores do asfalto. Quase no meio do terraço há uma fonte sempre funcionante, onde Rua foi beber.
Da praça abaixo, observamos as estátuas dos doze apóstolos que adornam o frontispício da basílica. De lá pareciam pequenas, mas de perto percebemos que o único dedo polegar do pé tinha a grossura do corpo de uma pessoa. Daí se pode entender a que altura estávamos. Também visitamos o sino maior, que tem um diâmetro de mais de três metros, o que significa três trabucos de circunferência (cerca de 9 metros, n.d.r.).

Uma coisa muito curiosa foi a vista do jardim vaticano, onde o papa costuma passear a pé. Penso que ele tenha a extensão que vai da Porta Susa ao início da Via Po (lugares de Turim, n.d.r.). Ao sul, se viam vastas campinas. Nosso guia nos disse:
– Todo aquele plano estava coberto de soldados franceses quando vieram libertar nossa cidade dos rebeldes. E nos indicava a basilica di S. SebastianoS. Pietro in Montorio, Villa PanfiliVilla Corsini, todos edifícios que sofreram danos gravíssimos por terem sido campos de batalha.
Uma escadinha em caracol ao lado da cúpula nos levou até a primeira balaustrada. Deste patamar parecia que estávamos voando alto e nos afastando da terra. O guia nos abriu uma portinha que levava a uma balaustrada interna que circundava a cúpula. Eu quis medir, e caminhando como um bom viajante, contei 230 passos antes de completar a volta. Uma curiosidade: em qualquer ponto do parapeito em que você esteja, falando até em voz baixa, com o rosto voltado para a parede, o mínimo som se comunica nitidamente de uma parede à outra. Também notamos que os mosaicos da igreja, que de baixo pareciam muito pequenos, de lá tomavam uma forma gigantesca.
– Coragem, nos exortou o guia, se quisermos ver outras coisas. Assim, pegamos outra escada em caracol e chegamos à segunda balaustrada. Aqui parecia que tínhamos sido elevados em direção ao Paraíso, e quando chegamos ao balaústre interno e vimos o chão da basílica, percebemos a extraordinária altura que havíamos alcançado. As pessoas que trabalhavam ou caminhavam lá embaixo pareciam crianças. O altar papal, que é coberto por um baldaquino de bronze que em altura supera as casas mais altas de Turim, de lá parecia uma simples cadeira de bebê.

O último andar sobre o qual subimos é aquele que estava sobre a ponta da cúpula, de onde se desfruta, talvez, a vista mais majestosa do mundo. O olhar se perde em tudo ao redor, em um horizonte formado pelos limites da visão humana. Dizem que olhando para o leste pode-se ver o mar Adriático, a oeste o Mediterrâneo. Nós, porém, só conseguimos avistar a neblina que o tempo chuvoso dos dias anteriores havia espalhado um pouco por toda parte.

Havia ainda a bola, um globo que da terra parece uma das bolas que usamos para passar um tempo; de lá parecia enorme. Os mais corajosos, passando por uma escadinha perpendicular e caminhando como dentro de um saco, subiram como gatos a uma altura de dois trabucos, ou seja, seis metros. Alguns não tiveram coragem suficiente. Nós, que éramos um pouco mais temerários, conseguimos. Da bola tudo parece maravilhoso. Disseram-me que poderia conter dezesseis pessoas; para mim, parecia que poderiam caber confortavelmente trinta. Alguns buracos, quase pequenas janelas, permitem observar a cidade e as campinas. Mas a grande altura causa uma sensação estranha e faz com que a vista não seja totalmente agradável. Pensávamos que lá em cima fizesse frio. Tudo ao contrário: o sol batendo no bronze da bola a aquecia a tal ponto que parecia que estávamos em pleno verão. Acredito que essa seja uma das razões pelas quais, após o almoço, não é permitido subir até lá: pelo calor insuportável. Aqui, depois de falar sobre várias coisas sobre os jovens do oratório, satisfeitos com nossa empreitada, quase como se tivéssemos trazido uma grande vitória, começamos a descida com passos lentos e graves, para não quebrarmos o pescoço, e sem nenhuma parada voltamos ao térreo.

Para descansar um pouco, fomos ouvir o sermão que havia começado exatamente naquele momento na basílica. O pregador nos agradou. Boa língua, belo gesto, mas o tema não nos interessou muito porque tratava da observância das leis civis. O que, no entanto, não serviu para nutrir o espírito serviu muito bem para dar descanso ao corpo. Restando-nos ainda um pouco de tempo, o empregamos para visitar a sacristia, que é uma verdadeira magnificência digna de São Pedro.
Sendo já onze e meia, estando ainda em jejum e de ter caminhado tanto, estávamos com grande apetite; por isso, fomos fazer um lanche. Rua, não satisfeito, achou melhor ir almoçar; assim eu fiquei sozinho com o senhor Carlo De Maistre, companheiro inseparável daquele dia. Restaurados um pouco, fomos visitar Monsenhor Borromeo, mordomo de Sua Santidade, que nos recebeu muito bem e, depois de falar sobre o Piemonte e Milão, sua terra natal, anotou nossos nomes para nos inserir no catálogo das pessoas que desejam receber a palma do Santo Padre na função do Domingo de Ramos.

Nos famosos museus
Ao lado da varanda deste prelado, em torno do pátio do Palácio Pontifício, estão os Museus Vaticanos [Musei Vaticani]. Entramos e vimos coisas realmente excepcionais. Descrevo apenas algumas. Há uma sala de comprimento extraordinário, enriquecida com mármores e pinturas preciosíssimas. No meio da segunda arcada se destaca uma pia batismal de cerca de um metro e meio, feita de malaquita, um dos mármores mais preciosos do mundo. Foi um presente feito pelo imperador da Rússia ao Sumo Pontífice. Há vários outros objetos semelhantes. No fundo daquela grande sala, à esquerda, se abre uma espécie de longo corredor que abriga o museu cristão. […]. No mesmo se entra na Biblioteca Vaticana, onde se conservam os manuscritos mais célebres da antiguidade […].

Pelas ruas de Roma
Do Vaticano, indo em direção ao centro de Roma, chegamos à praça Scossacavalli, onde trabalham os escritores do célebre periódico La Civiltà Cattolica. Paramos para fazer-lhes uma visita e sentimos um verdadeiro prazer ao observar que os principais apoiadores desta publicação são piemonteses. Sentia já um vivo desejo de voltar para casa, superando toda hesitação, e estávamos quase chegando ao Quirinale, quando o senhor Foccardi nos viu passar em frente à sua loja e nos chamou para dentro. A força de convites e cortesia, ele nos reteve um pouco, e quando pedimos para partir, ele disse:
– Aqui está a carruagem, eu os acompanho até em casa. Mesmo subindo de contragosto na carruagem, no entanto, para agradá-lo, acedi. Mas o Foccardi, desejando se prolongar mais conosco, nos fez dar uma longa volta, tanto que chegamos em casa já tarde da noite.

Aqui me foi entregue uma carta. Abri e li. Notifica-se ao senhor Abade Bosco que Sua Santidade se dignou a admiti-lo à audiência amanhã, dia nove de março, das 11h45 a uma hora. Esta notícia, esperada e muito desejada, me causou uma revolução interior e durante toda a noite não consegui falar de outra coisa senão do Papa e da audiência.

A audiência papal. Santa Maria sopra Minerva
Chegou o dia 9 de março, o grande dia da audiência papal. Antes, porém, eu precisava falar com o Cardeal Gaude; por isso, fui celebrar a missa na igreja de S. Maria sopra Minerva, onde o Cardeal tinha sua residência. Antigamente era um templo que Pompeu, o Grande, havia mandado edificar à deusa Minerva; foi chamada de Santa Maria sopra Minerva porque foi construída precisamente sobre as ruínas deste templo. No ano 750, o Papa Zacarias a doou a um convento de freiras gregas. No ano 1370 passou aos padres pregadores (dominicanos, n.d.r.) que ainda a oficiam. Em frente a esta igreja está uma praça onde admiramos um obelisco egípcio com hieróglifos, cuja base repousa sobre o dorso de um elefante de mármore. Entramos e pudemos admirar um dos edifícios sagrados mais belos de Roma. Sob o altar-mor repousa o corpo de Santa Catarina de Sena. Celebrada a missa e indo com toda pressa ao encontro do Cardeal Gaude, conversei com ele, então partimos em direção ao Quirinale.

O pequeno mentiroso
Pelo caminho encontramos um garoto que, com simpatia, nos pediu esmola, e para nos fazer conhecer sua condição nos disse que seu pai havia morrido, sua mãe tinha cinco filhas e que ele sabia falar italiano, francês e latim. Surpreso, dirigi-lhe um discurso em francês, ao qual ele respondeu com um simples oui, sem entender o que eu dizia, nem articular outras expressões; então o convidei a falar latim, e ele, sem prestar atenção às minhas palavras, começou a recitar de memória as seguintes palavras: ego stabam bene, pater meus mortuus est l’annus passatus et ego sum rimastus poverus. Mater mea etc. Aqui não conseguimos mais conter as risadas. Porém, depois o avisamos para não contar mentiras e lhe presenteamos com um tostão.

A antecâmara
Enquanto isso, a hora da audiência se aproximava. […]. Chegando ao Vaticano, subimos as escadas mecanicamente. Por toda parte havia guardas nobres, vestidos de modo a parecerem príncipes. No andar nobre, abriram-nos a porta que introduzia nas salas pontifícias. Guardas e camareiros, vestidos com grande luxo, nos saudavam com profunda reverência. Entregue o bilhete para a audiência, fomos conduzidos de sala em sala até a antecâmara papal. Como havia várias outras pessoas aguardando, esperamos cerca de uma hora e meia antes de sermos recebidos.

Esse tempo o empregamos para observar as pessoas e o lugar onde estávamos. Os domésticos do Papa estavam vestidos quase como os bispos de nossos países. Um Monsenhor, a quem se dá o título de prelado doméstico, introduzia por turno as pessoas para a audiência à medida que terminava a anterior. Admiramos grandes salas bem tapeçadas, majestosas, mas sem luxo. Um simples tapete de pano verde cobria o chão. As tapeçarias eram de seda vermelha, mas sem ornamentos. As cadeiras eram de madeira dura. Uma cadeira colocada sobre um estrado um tanto elegante indicava que aquela era a sala pontifícia. Vimos tudo isso com prazer, lembrando as mordazes e injustas acusações que alguns fazem contra a pompa e o luxo da corte pontifícia. Enquanto estávamos imersos em vários pensamentos, soou o sino, e o prelado nos fez sinal para avançar e nos apresentar a Pio IX. Nesse momento, eu realmente fiquei confuso e tive que cometer uma espécie de autoviolência para não perder o equilíbrio.

Pio IX
Rua me acompanhou trazendo consigo uma cópia das Leituras Católicas. Entramos, fizemos a genuflexão no início, depois no meio da sala, finalmente, a terceira, aos pés do Papa. Cessou toda apreensão quando avistamos no Pontífice a aparência de um homem afável, venerando, e ao mesmo tempo o mais belo que um pintor poderia retratar. Não pudemos beijar seu pé, porque ele estava sentado à mesa; beijamos, porém, sua mão, e Rua, lembrando da promessa feita aos clérigos, a beijou uma vez por si e uma vez por seus companheiros. Então o Santo Padre fez sinal para nos levantarmos e nos colocarmos à sua frente. Eu, segundo a etiqueta, gostaria de falar permanecendo de joelhos.
– Não, ele disse, levantem-se. Convém notar aqui que ao nos apresentarmos ao Papa, nosso nome foi lido errado. De fato, em vez de escrever Bosco, foi escrito Bosser, por isso o Papa começou a me interrogar:
– O senhor é piemontês?
– Sim, Santidade, sou piemontês, e neste momento sinto a maior consolação da minha vida, encontrando-me aos pés do Vigário de Cristo.
– E de que o senhor se ocupa?
– Santidade, eu me ocupo da instrução da juventude e das Leituras Católicas.
– A instrução da juventude sempre foi coisa útil em todos os tempos. Mas hoje em dia é mais do nunca necessária. Há um outro em Turim que se ocupa dos jovens. Então percebi que o Papa tinha em mãos um nome errado, mas, sem saber como, ele também se deu conta de que eu não era Bosser, mas Bosco; assim, assumiu uma aparência muito mais festiva e perguntou muitas coisas sobre os jovens, os clérigos, os oratórios […]. Então, com um rosto sorridente, ele me disse:
– Lembro-me do presente que me enviou em Gaeta e dos ternos sentimentos daqueles meninos que o acompanharam. Aproveitei para expressar a ele o apego de nossos jovens à sua pessoa e pedi-lhe que aceitasse uma cópia das Leituras Católicas: – Santidade, disse-lhe, ofereço-lhe um exemplar daqueles livrinhos até agora
impressos e ofereço-o em nome da direção. A encadernação é trabalho dos
jovens de nossa casa.
– Quantos são esses jovens?
– Santidade, os jovens da casa são perto de duzentos. Os encadernadores são quinze.
– Bem, ele respondeu, eu quero mandar uma medalha a cada um. Então, indo a outro aposento, depois de breves instantes voltou, trazendo pequenas medalhas da Conceição:
– Estas serão para os jovens encadernadores, disse enquanto as entregava a mim. Voltando-se então para Rua, deu-lhe uma maior dizendo:
– Esta é para seu companheiro. Então, voltando-se novamente para mim, me entregou uma pequena caixa que estava dentro de outra maior:
– E esta é para o senhor. Estando de joelhos para receber os presentes, o Santo Padre pediu que nos levantássemos, e pensando que queríamos nos retirar, estava para se despedir, quando eu comecei a falar com ele assim:
– Santidade, tenho algo em particular para comunicar-lhe.
– Está bem, respondeu […]. O Santo Padre é muito rápido em entender as perguntas e prontíssimo em dar as respostas, por isso com ele se trata em cinco minutos o que com outros exigiria mais de uma hora. No entanto, a bondade do Papa e meu vivo desejo de me deter com ele prolongaram a audiência por mais de meia hora, tempo bastante considerável tanto em relação à sua pessoa quanto em relação à hora do almoço, que por nossa causa estava atrasado […].

Gianicolo
Às 13h30 do dia 10 de março, o P. Giacinto, dos Carmelitas Descalços, veio nos buscar com uma carruagem para nos levar à basilica di S. Pancrazio e de S. Pietro in Montorio. São duas igrejas situadas no Gianicolo, chamado assim por causa de Jano que dizem ter vivido ali. Do outro lado do Tibre, no topo desta colina está situada a basílica de São Pancrácio, construída pelo Papa Félix II em 485, cerca de 100 anos após o martírio de Pancrácio. O general Narsete, vencidos os godos, fez uma solene procissão junto com o Papa Pelágio de São Pancrácio até São Pedro. São Gregório Magno, que tinha grande veneração por esta igreja, celebrou nela várias vezes a missa e fez algumas homilias, e finalmente a doou aos monges beneditinos. Em 1673, foi confiada aos Carmelitas Descalços com o convento anexo e um seminário para as missões das Índias […].

Sob o altar-mor, há outro altar subterrâneo onde antigamente era conservado o corpo do Santo, protegido por uma grade de ferro. Havia o costume de levar aqueles que eram suspeitos de perjúrio diante dessa grade, porque se fossem culpados, eram tomados por um visível tremor ou outro sinal.

As Catacumbas
– Venham comigo, nos disse o P. Giacinto, iremos às catacumbas. Ele havia preparado uma luminária para cada um. Nós começamos a segui-lo. No meio da igreja, ele nos indicou uma abertura no chão. Levantando a tampa, apareceu uma cavidade escura e profunda: começavam as catacumbas. Na entrada estava escrito em latim: “Neste lugar foi decapitado o mártir de Cristo Pancrácio”. Aqui estamos nas catacumbas. Imaginem longos corredores ora mais estreitos e mais baixos, ora mais altos e espaçosos, ora cortados por outros corredores, ora em descida, ora em subida, e vocês terão a primeira ideia desses subterrâneos. À direita e à esquerda há pequenas sepulturas escavadas paralelamente no tufo. Aqui antigamente eram sepultados os cristãos, especialmente os mártires. Aqueles que deram a vida pela fé eram designados com emblemas particulares. A palma era sinal da vitória obtida contra os tiranos; a galheta indicava que havia derramado sangue pela fé; o “χ” significava que havia morrido na paz do Senhor ou que havia sofrido por Cristo. Em outros apareciam os instrumentos com os quais foram martirizados. Às vezes, esses emblemas estavam fechados na pequena sepultura do santo. Quando as perseguições não eram muito severas, escrevia-se nome e sobrenome do mártir e algumas linhas que destacavam alguma circunstância importante de sua vida. […].
– Este é o lugar, nos disse o guia, onde estava sepultado São Pancrácio, e ao lado dele São Dionísio, seu tio, e aqui perto outro parente. Depois visitamos algumas sepulturas reunidas em uma saleta cujas paredes apresentavam inscrições antigas que não conseguimos ler. No meio da abóbada estava pintado um jovem que nos pareceu representar São Pancrácio […].

Desta vez o guia nos indicou uma cripta. Cripta, palavra grega, significa profundidade. É um espaço maior que o normal onde os cristãos costumavam se reunir, em tempo de perseguição, para ouvir a Palavra, assistir à missa e às funções sagradas. De um lado ainda há um altar antigo onde é possível celebrar. Na maioria das vezes, a sepultura de algum mártir servia como altar. Depois de um pouco de caminhada, nos mostraram a capela onde São Félix, Papa, costumava descansar e celebrar a Eucaristia. Seu sepulcro está a pouca distância. Por toda parte viam-se esqueletos humanos reduzidos a pedaços pelo tempo. Nossa guia nos assegurou que em breve chegaríamos a um lugar onde se conservavam lápides com as inscrições intactas.

Mas estávamos muito cansados, também porque o ar subterrâneo e as dificuldades do caminho – cada um tinha que cuidar para não bater a cabeça, não esbarrar com os ombros e não escorregar com os pés – nos haviam fatigado bastante. O guia nos advertia que os subterrâneos são muitos e alguns chegam a ter quinze/vinte milhas de comprimento. Se tivéssemos ido sozinhos, poderíamos ter cantado o requiescant in pace, porque teria sido muito difícil encontrar o caminho de volta para fora. Nossa guia, porém, era muito prática e em breve nos reconduziu ao ponto de onde partimos […].

San Pietro in Montorio
Subimos novamente na carruagem com o P. Giacinto e descemos o Gianicolo para ir até San Pedro em Montorio. A palavra é uma corrupção de “monte de ouro”, porque aqui o solo e a areia assumem uma cor amarela, semelhante a do ouro. Também foi chamado Castro Aureo, fortaleza de ouro, pelos restos da fortaleza de Anco Marzio que ainda existem no cume. É uma das igrejas fundadas por Constantino, o Grande, rica em estátuas, pinturas e mármores. Entre a igreja e o convento anexo se destaca um edifício chamado Tempietto di Bramante, de forma redonda. Trata-se de uma das mais notáveis obras de Bramante. Ele foi edificado no local onde foi martirizado São Pedro. Nos fundos, uma escadinha leva a uma capela subterrânea circular, no meio da qual há um buraco onde arde continuamente uma luz. É o lugar onde foi encaixada a ponta da cruz na qual São Pedro foi pregado de cabeça para baixo. A igreja está situada onde termina o Gianicolo e começa o Vaticano.

Perto de San Pietro em Montorio está localizada a magnífica Fontana Paolina, de Paulo V, que a fez construir em 1612. A água jorra de três colunas que parecem um rio. Vem de Bramário, um lugar a 35 milhas de Roma. Essas águas, ao descer, servem para mover moinhos e outras máquinas e se ramificam com grande vantagem em vários pontos da cidade […].

Uma adversidade
No dia 11 de março estivemos ocupados escrevendo e despachar encomendar particulares. Merece uma lembrança ode quando me perdi em Roma. Fui fazer uma visita ao Monsenhor Pacca, prelado doméstico de Sua Santidade. No retorno, estava acompanhado pelo P. Bresciani, tendo enviado Rua para procurar o P. Botandi em Ponte Sisto. O bom Bresciani me conduziu até a academia da Sapienza e, então, me indicou onde passar para chegar ao Quirinale:
– Atravesse esta rua, depois mantenha-se sempre à direita. Eu, em vez de pegar à direita, peguei à esquerda, de modo que após uma hora de caminhada me encontrei na Piazza del Popolo, a quase uma milha de casa. Pobre de mim! Ao menos se eu tivesse Rua comigo, poderíamos nos consolar mutuamente, mas eu estava sozinho. O tempo estava nublado, soprava um vento forte e começava a chover. O que fazer? Dormir no meio daquela praça me desagradava, por isso, com toda a paciência, subi ao Pincio, chamado assim por causa do palácio de um senhor chamado Pincio […]. Este monte não é muito habitado e não é uma das sete colinas de Roma […].

Sant’Andrea della Vale
Na sexta-feira, dia 12, fui celebrar a missa em S. Andrea della Valle, para distingui-lo de outras igrejas dedicadas ao mesmo Apóstolo. Valle foi acrescentado tanto porque a basílica se encontra no ponto mais baixo de Roma quanto também devido a um palácio pertencente à família Valle. Antigamente, a igreja era dedicada a São Sebastião, que aqui sofreu o martírio. Perto dela foi construída outra dedicada a São Luís, rei da França. Mas no ano de 1591, um rico senhor, chamado Gesualdo, fez uma reforma, modificando completamente o projeto. É uma das primeiras igrejas de Roma. Sua cúpula mede 64 palmos de diâmetro, e por isso, depois de São Pedro no Vaticano, é a cúpula mais ampla de todas as outras da cidade. A primeira capela, ao entrar à esquerda, tem um portão de ferro que indica o ponto da cloaca onde se acredita que o corpo do mártir São Sebastião foi jogado. Quase em frente a esta igreja está o palácio Stoppani, que serviu de moradia ao imperador Carlos V quando veio a Roma, como aparece em uma inscrição na parede ao pé da escada.

San Gregorio Magno
Às 13h30, com o senhor Francesco De Maistre, nosso guia, partimos para visitar a igreja de São Gregório Magno [chiesa di S. Gregorio Magno]. Ela está edificada sobre uma parte do monte Celio, chamado antigamente clivus Scauri, ou seja, descida de Scauro, e era a casa habitada por São Gregório e seus pais. Foi ele quem a converteu em mosteiro, onde depois residiu até o ano 590, inicialmente como simples monge, depois como Abade. Quando foi eleito papa (em 590), dedicou aquele edifício ao apóstolo São André, transformando uma parte dos cômodos em igreja. Após sua morte, a igreja foi dedicada a ele mesmo.

É certamente uma das mais belas igrejas de Roma. A primeira capela ao entrar, à esquerda, é dedicada a Santa Silvia, mãe de São Gregório. A última, à direita, é a do Sacramento, sobre cujo altar celebrava o próprio São Gregório. […]. Este altar, venerável pelo título e patrocínio do santo Papa, foi tornado célebre em todo o mundo pelos privilégios concedidos por muitos Papas. Aconteceu que um monge do mosteiro, tendo por ordem do santo oferecido a missa por trinta dias consecutivos em sufrágio da alma de um irmão falecido, outro monge a viu liberada das penas do purgatório.

Ao lado desta capela existe outra menor, onde São Gregório se retirava para descansar. Mostra-se ainda com precisão o lugar onde estava sua cama. Ali ao lado está a cadeira de mármore sobre a qual ele se sentava tanto quando escrevia quanto quando anunciava a palavra de Deus ao povo.
Passado o altar-mor, encontra-se a capela que guarda uma imagem de Nossa Senhora muito antiga e prodigiosa. Acredita-se que seja aquela que o Santo mantinha em casa e sempre que passava diante dela a saudava dizendo “Ave, Maria”. Um dia, porém, o bom Pontífice, por causa da pressa que tinha devido a alguns assuntos urgentes, ao sair não dirigiu à Virgem a saudação habitual. E Ela lhe fez esta doce reprimenda: “Ave, Gregori”, com as quais palavras o convidava a não esquecer aquela saudação que a ela era tão grata.

Em outra capela se ergue a estátua de São Gregório, um trabalho projetado e dirigido por Michelangelo Buonarroti. O Santo está sentado no trono com uma pomba perto do ouvido, que lembra o que afirma Pedro Diácono, familiar do Santo, ou seja, que sempre que Gregório pregava ou escrevia, uma pomba sempre lhe falava ao ouvido. No centro da capela está colocada uma grande mesa de mármore sobre a qual o Pontífice todos os dias oferecia comida a doze pobres, servindo-os com a própria mão. Um dia, sentou-se à mesa com os outros um anjo sob a forma de um jovem, que então, de repente, desapareceu. Desde então, o Santo aumentou para treze o número dos pobres que ele alimentava. Assim teve origem o costume de colocar treze peregrinos à mesa que, na quinta-feira santa, o Papa serve todos os anos com a própria mão. Acima da mesa está gravado o dístico seguinte: “Aqui Gregório alimentava doze pobres; um anjo sentou-se à mesa e completou o número de treze”.

Santi Giovanni e Paolo
Saindo desta igreja e virando à direita, encontra-se a dos Santos João e Paulo [Santi Giovanni e Paolo]. O imperador Joviano permitiu ao monge São Pammáquio construí-la, no ano 400, em honra destes dois irmãos mártires. Ela foi edificada sobre a sua habitação, exatamente onde sofreram o martírio. Foi depois restaurada por São Símaco, Papa, por volta de 444 […]. Ao entrar, apresenta-se à vista um majestoso edifício. No meio, uma grade de ferro delimita o lugar onde os santos foram mortos. Seus corpos, fechados em uma urna preciosa, repousam sob o altar-mor. Na capela ao lado, sob o altar, é guardado o corpo do Beato Paulo da Cruz, fundador dos passionistas, aos quais a igreja é confiada. Este servo de Deus é um piemontês, nascido em Castellazzo, na diocese de Alexandria. Morreu em 1775, aos 82 anos. Os muitos milagres que em Roma e em outros lugares ocorrem por sua intercessão, fizeram crescer a congregação dos passionistas, assim chamados por causa do quarto voto que fazem, ou seja, promover a veneração pela paixão do Senhor.

Um desses religiosos, um genovês, Frei André, depois de nos acompanhar para ver as coisas mais importantes da igreja, nos levou ao convento, um belo edifício que abriga cerca de oitenta padres, em sua maioria piemonteses.
– Este, nos disse Frei André, é o quarto em que morreu nosso santo Fundador. Entramos e admiramos em devoto recolhimento o lugar de onde partiu sua alma para voar ao céu.
– Ali está a cadeira, as vestes, os livros e outros objetos que serviram ao Beato. Cada coisa está selada e são distribuídas como relíquias aos fiéis cristãos. Aquele quarto hoje é uma capela onde se celebra a missa.

Arcos de Constantino e Tito
Cumprimentando ao cortês frei André, nos dirigimos para S. Lorenzo in Lucina. Depois de um pouco de caminho, nos encontramos sob o Arco di Costantino. Ele se conservou quase intacto. Uma inscrição do senado e do povo romano indica que foi dedicado ao imperador Constantino em ocasião da vitória sobre o tirano Massenzio. Este imperador, tornando-se cristão, fez colocar sobre o arco uma estátua com uma cruz na mão em memória da cruz que lhe apareceu diante do exército, para lembrar a todo o mundo que ele professava a religião de Jesus crucificado.
Após mais um trecho de estrada, eis outro arco, o Arco di Tito. Existem três arcos em Roma e o de Tito é o mais antigo e elegante. É enriquecido por baixos-relevos que comemoram as várias vitórias obtidas por aquele valente guerreiro: em um deles está esculpido o candelabro do templo de Jerusalém em memória da queda daquela cidade e de seu templo. Sob este arco passava a célebre Via Sacra, uma das mais antigas de Roma, assim chamada porque através dela se levavam todos os meses as coisas sagradas para a Rocha, e era percorrida pelos áugures para ir buscar suas respostas.

Chegando a San Lorenzo in Lucina, não conseguimos entrar devido aos trabalhos que lá se realizavam […]. Esta igreja é uma das mais vastas paróquias de Roma, e foi erguida por Sisto III com o consentimento do imperador Valentiniano em honra de São Lourenço, mártir. Para distingui-la das outras igrejas erguidas a este levita, foi denominada in Lucina, ou pela santa mártir de tal nome ou talvez porque este fosse o nome do lugar. Anexo a esta igreja, em direção à rua principal, está o Palácio Ottobuoni [palazzo Ottobuoni], construído por volta do ano 1300 sobre as ruínas de um grande edifício antigo chamado Palácio de Domiciano. Estando já cansados e aproximando-se a hora do almoço, voltamos para casa […].

Santa Maria degli Angeli
[…] No dia 13 de março, a estação quaresmal era em S. Maria degli Angeli, onde fomos tanto para lucrar a indulgência plenária quanto também para rezar a Deus em favor de nossa casa. Esta igreja é distinta de outra do mesmo nome, com o acréscimo das Terme di Diocleziano, porque é construída no local onde antigamente se erguiam as famosas termas, ou seja, as casas de banho do imperador Diocleciano. O sumo pontífice Pio IV encarregou Michelangelo Buonarroti, que com seu vasto engenho soube transformar em igreja uma parte daqueles edifícios magníficos. Em um salão das termas já existia uma capelinha dedicada a São Cirilo, mártir. Esta ficou confinada dentro da nova igreja, que o Pontífice dedicou a Santa Maria dos Anjos, para agradar ao duque e rei da Sicília, devotíssimo dos Anjos, que cooperou muito na sua edificação.

No dia da estação quaresmal, a igreja é ornada com especial elegância, e são expostas à veneração pública as relíquias mais insignes. Em uma capela ao lado do altar-mor estava colocado o relicário com muitas relíquias, entre as quais vimos os corpos de São Próspero, São Fortunato e São Cirilo, além da cabeça de São Justino e de São Máximo, mártires, e de muitos outros. Satisfeita assim a nossa devoção, chegamos em casa por volta das seis da tarde, bastante cansados e com bom apetite.

Santa Maria della Quercia
No domingo, 14 de março, celebramos em casa, depois fomos visitar um oratório, segundo as indicações recebidas do Marquês Patrizi. A igreja onde se reúnem os jovens chama-se S. Maria della Quercia. Eis a origem, que remonta aos tempos de Júlio II. Uma imagem de Maria foi pintada em uma telha por um certo Battista Calvaro, que a pendurou em um carvalho dentro de sua vinha, em Viterbo. Esta imagem permaneceu escondida por sessenta anos, até que em 1467 começou a se manifestar com tantas graças e milagres que os fiéis que a visitavam, com suas ofertas, ergueram uma igreja e um mosteiro. O Papa Júlio II desejou que também em Roma houvesse um templo dedicado a Nossa Senhora do Carvalho, que é aquele de que falamos.
Entrando na igreja e chegando na espaçosa sacristia, nos alegrou a presença
de uns quarenta jovens. Pela vivacidade do comportamento pareciam muito com nossos moleques do nosso oratório. As suas funções sagradas se realizam todas pela manhã. Missa, confissão, catecismo e uma breve instrução é o que se faz para eles […].

Após o meio-dia, os jovens vão a S. Giovanni dei Fiorentini, outro oratório onde há apenas recreação, sem funções de igreja. Fomos lá e vimos cerca de cem jovens que se divertiam a valer. Seus jogos eram a tombola e a campana, conhecidas também por nós. Praticam também o jogo do buraco, que consiste em cinco buracos bastante grandes nos quais se colocam duas castanhas ou outra coisa. De uma distância de seis passos, faz-se rolar uma bola. Quem consegue fazê-la entrar em um dos buracos ganha o que está dentro. Lamentamos muito que eles não tivessem outra coisa além da recreação. Se houvesse algum padre entre eles, este poderia fazer o bem para suas almas, pois há grande necessidade. Tanto mais nos entristeceu, pois encontramos neles boas disposições. Vários demonstraram prazer em dialogar conosco, beijando várias vezes a mão tanto a mim quanto a Rua, que, contra sua vontade, era constrangido a consentir […].

Voltando para casa, recebemos a visita de Monsenhor Merode, mestre de câmara de Sua Santidade. Após algumas conveniências, ele me anunciou que o Santo Padre me convidava a pregar os exercícios espirituais às detidas nas prisões perto de Santa Maria degli Angeli alle terme di Diocleziano. Cada desejo do Papa é para mim um comando e, portanto, aceitei com muito prazer […].

Na prisão feminina
Às duas da tarde, fui à superiora da prisão para combinar o dia e a hora em que começaria a pregação. Ela me disse:
– Se está bem para o senhor, pode pregar daqui há pouco, já que as mulheres estão na Igreja e não temos pregador. Assim, comecei naquele momento os exercícios e quase a semana inteira foi empregada inteiramente nesse ministério. A casa correcional chama-se Alle Terme di Diocleziano porque está situada no mesmo local onde estavam as termas daquele famoso imperador. Havia 260 detidas culpadas de graves delitos e condenadas à prisão […]. Os exercícios foram realizados com satisfação. A pregação simples e popular que usamos entre nós foi frutífera nesta prisão. No sábado, depois da última pregação, a madre
superiora, com prazer, falou-me que nenhuma das prisioneiras tinha deixado de aproximar-se dos Sacramentos.

Dois episódios
Um episódio agradável aconteceu ao Santo Padre nesta semana. O Conde Spada foi visitá-lo e teve esta conversa:
– Santidade, eu gostaria de pedir uma lembrança desta visita.
– Peça o que quiser e tentarei agradá-lo.
– Eu gostaria de algo extraordinário.
– Bem, peça.
– Santidade, eu gostaria de ter como lembrança a vossa tabaqueira.
– Mas está cheio de um tabaco de qualidade ínfima.
– Não importa; eu a guardarei com muito carinho.
– Leve-a, faço-lhe este presente com prazer. O Conde Spada partiu mais contente com aquele tabaqueira do que se fosse um grande tesouro. Ela é simples, de chifre de búfalo, unido com dois anéis de latão e não vale quatro tostões, mas é preciosíssimo pela procedência. O bom conde o mostra a seus amigos como um objeto digno de veneração […].

Outra anedota me foi contado sobre este venerando Pontífice. No ano passado, enquanto o Santo Padre viajava por seus estados, estava nas proximidades de Viterbo. Uma garotinha com um feixe de lenha, vendo que a carruagem pontifícia havia parado, pensou que aqueles senhores quisessem comprar seu feixe. Correu em direção a eles:
– Senhores, disse ao Santo Padre, compre-o, a madeira está bem seca.
– Não precisamos, respondeu o Papa.
– Compre-o, vendo-o pelo preço de três tostões.
– Pegue o valor e fique com seu feixe. O Santo Padre deu-lhe três escudos, então se preparou para voltar à carruagem. Mas a garotinha queria que o Santo Padre pegasse seu feixe.
– Leve-o, o senhor ficará contente; na sua carruagem há espaço de sobra. Enquanto o Papa e sua corte riam de tal negócio, a mãe da menina, que trabalhava em um campo próximo, correu gritando:
– Santo Padre, Santo Padre, perdoe-a; esta pobre menina é minha filha. Ela não o conhece. Tenha piedade de nós, que estamos em grande miséria. O Papa acrescentou mais seis escudos e continuou o caminho […].

San Paulo fuori le Mura
No dia 22 de março, Domingo, Dom Bosco foi ao Cardeal vigário, o eminentíssimo Constantino Patrizi […]. Saindo do Vicariato, peregrinou até S. Paolo fuori le Mura para venerar o sepulcro do grande Apóstolo dos Gentios e admirar as maravilhas daquele templo imenso. Depois de um milha de estrada, chegou ao célebre lugar denominado Ad Aquas Salvias, onde São Paulo derramou seu sangue por Jesus Cristo. Exatamente neste ponto, onde há três fontes milagrosas de água que brotaram dos torrões onde a cabeça do santo Apóstolo fez três saltos, foi construída uma igreja. Dom Bosco também rezou na igreja vizinha de Sancta Maria Scala Coeli, de forma octogonal, edificada sobre o cemitério de São Zenão, um tribuno que foi martirizado sob Diocleciano, junto com 10.203 de seus companheiros soldados […].

Colosseo
No dia 23 de março, seu olhar atônito contemplou as gigantescas ruínas do anfiteatro Flaviano ou Colosseo, de forma oval com 527 metros de circunferência externa, e cinquenta metros de altura por um longo trecho. Nos tempos de seu esplendor era coberto de mármores, ornado por colunatas, centenas de estátuas, obeliscos, quadrigas de bronze; e em seu interior sustentava tudo ao redor imensas arquibancadas, que podiam abrigar 200 mil pessoas para assistir aos combates de feras e de gladiadores, e ao massacre de milhares e milhares de mártires. Dom Bosco entrou na arena dos espetáculos que mede 241 metros de circunferência […]

San Clemente
No dia 24 de março Dom Bosco foi à Basílica de São Clemente [basilica di S. Clemente] para venerar as relíquias do quarto Papa depois de São Pedro, as de Santo Inácio, mártir, Bispo de Antioquia; foi também para admirar a arquitetura da antiquíssima igreja com três naves. Na do meio, diante do Altar da Confissão, há um recinto de mármore branco que é o coro para o clero menor, com dois púlpitos: um para o canto do Evangelho, junto ao qual se eleva uma pequena coluna destinada ao círio pascal e outro para o subdiácono que deve ler a epístola; ao lado deste último uma estante para os clérigos cantores e leitores das profecias e dos outros livros das sagradas escrituras. Ao redor da abside há um assento destinado aos sacerdotes e, no fundo, no centro, surge, sobre três degraus, a cátedra do bispo […].

Deaqui Dom Bosco foi para a igreja dos Quatro Coroados [chiesa dei Quattro Coronati]para visitar os sepulcros dos santos mártires Severo, Severino, Carpóforo e Vitorino, mortos sob Diocleciano. Depois passou por S. Giovanni diante da Porta Latina, junto da qual está uma Capela construída no lugar onde São João Evangelista foi colocado na caldeira de óleo fervente; dali avançou até a igrejinha do Quo Vadis, assim chamada porque apareceu naquele lugar o Salvador a São Pedro, que saía de
Roma para fugir do furor da perseguição:
– Senhor, para onde vai? gritou o Apóstolo maravilhado. E Jesus lhe respondeu:
– Venho para ser crucificado de novo. São Pedro entendeu e voltou para Roma onde o esperava o martírio. Desse pequeno templo, Dom Bosco retomou a estrada, depois de ter dado uma olhada à via Apia, ao longo da qual se contam muitíssimos mausoléus dos tempos do paganismo, que recordam qual fim ameace toda a grandeza humana

Dom Bosco… salesiano!
Uma cena graciosa aconteceu na manhã do dia 25 de março. Dom Bosco, atravessando o Tibre, viu em uma pequena praça uns trinta meninos que se divertiam. Sem mais, se pôs no meio deles, que, parando as brincadeiras,olhavam-no maravilhados. Dom Bosco levantou então a mão, mantendo
entre os dedos uma medalha, e depois exclamou:
– Vocês são muitos e sinto não ter muitas medalhas para dar uma para
cada um. 
Aqueles meninos, tomando coragem, gritaram a plenos pulmões, levantando as mãos:
– Não importa, não importa… para mim, para mim! Dom Bosco acrescentou:
– Está bem. Não tendo para todos, esta medalha quero dá-la ao melhor. Quem de vocês é o melhor?
– Sou eu, sou eu! gritaram todos juntos. Ele continuou:
– Mas o que posso fazer se todos são bons igualmente? Está bem: quero dá-la ao mais malandro! Quem entre vocês é o mais malandro?
– Sou eu, sou eu! responderam com gritos atordoantes.
O Marquês Patrizi e os seus amigos, a uma certa distância, sorriam comovidos e maravilhados ao ver Dom Bosco tratar assim familiarmente com aqueles meninos que pela primeira vez tinha encontrado. E exclamavam:
– Eis um outro São Filipe Neri, amigo da juventude. Dom Bosco, de fato, como se fosse um amigo já conhecido daqueles meninos, continuou a interrogá-los, se já tinham ouvido a Santa Missa, em qual igreja costumavam ir, se conheciam os oratórios que estavam por aquelas bandas […]. O diálogo estava animado e finalmente Dom Bosco, depois de tê-los exortados a serem sempre bons cristãos, prometia que passaria outra vez por aquela praça e traria uma medalha, ou melhor, uma imagem para cada um deles; depois, saudando-os afetuosamente, saiu do meio daquela turba, e, voltando àqueles senhores que o esperavam, mostrou-lhes a única medalha que tinha ainda na mão. Nada tinha dado àqueles meninos, no entanto, tinha-os deixado contentes.

Santo Stefano Rotondo
No dia 26 de março, Dom Bosco retornou ao Celio na espaçosa igreja de Santo Estêvão Redondo [chiesa di S. Stefano Rotondo], chamada assim por sua forma. O seu beiral circular é sustentado por 56 colunas. Em todas as paredes ao redor estão pintadas as cenas dos suplícios atrozes com os quais foram massacrados os mártires. É ornada por mosaicos do século VII, que representam Jesus crucificado, com alguns santos, e conserva os corpos de dois confessores da fé, Santo Primo e Santo Feliciano. Dali Dom Bosco passou para S. Maria in Dominica ou della Navicella (por causa de uma barca de mármore que está na praça). Tem três naves separadas por 18 colunas e contém mosaicos do século IX. Entre esses se vê a Virgem no lugar de honra entre muitos anjos e, aos pés dela, ajoelhado, o Papa Pascal […].

O Santo Padre, no entanto, tinha manifestado o desejo que Dom Bosco assistisse no Vaticano ao devoto e magnífico espetáculo de todas as funções da Semana Santa. Por isso, encarregou Monsenhor Borromeu de convidá-lo em seu nome e de arrumar-lhe um lugar no qual pudesse à vontade ser espectador dos ritos sagrados. O Monsenhor o fez procurar por todo o dia, mas sem êxito. Finalmente, quando voltou à residência do Conde De Maistre tarde da noite, soube que Dom Bosco tinha se retirado para o seu quarto. Todavia, dizendo que vinha por ordem do Papa, foi acompanhado até o quarto e apresentou a Dom Bosco a carta-convite com a qual era admitido a receber a palma bendita das mãos de Sua Santidade. Dom Bosco a leu logo e exclamou que iria com grande prazer.

Páscoa Romana de Dom Bosco. O Domingo de Ramos
No domingo, 28 de março, Dom Bosco com o Clérigo Rua entraram na Basílica de São Pedro muito antes que começassem as funções. O Conde Carlos De Maistre o acompanhou até a tribuna dos diplomatas, onde lhe fora preparado o lugar. Dom Bosco estava de olho porque conhecia a importância das cerimônias da Igreja. Ao seu lado estava um milorde inglês protestante, maravilhado com aquela solenidade de ritos. A certo ponto um cantor soprano da Capela Sistina cantou uma parte solo, mas tão bem que Dom Bosco ficou comovido às lágrimas e aquele milorde voltou-se para ele e exclamou em latim, porque em outra língua não sabia como entender-se:
– Post hoc paradisus! (Depois disso, o paraíso!, n.d.r.). Aquele senhor depois de algum tempo converteu-se ao catolicismo e depois foi padre e bispo. Como o Papa abençoara as palmas, quando chegou sua vez, o corpo diplomático desfilou em direção ao trono do Pontífice, e cada embaixador e ministro recebeu a palma de suas mãos. Também Dom Bosco e o Clérigo Rua se ajoelharam aos pés do Pontífice e receberam a palma. Assim Pio IX quis: e não era Dom Bosco um embaixador do Altíssimo? O Clérigo Rua, voltando junto dos rosminianos, presenteou sua palma ao P. Pagani, que muito agradeceu a gentileza […].

Dom Bosco caudatário
O Cardeal Marini, que era um dos dois cardeais diáconos assistentes ao trono, para que Dom Bosco pudesse assistir a todas as funções da Semana Santa, tomou-o como caudatário. Assim, ele esteve, em veste violeta, quase o tempo todo do cerimonial ao lado do Papa e pôde saborear os cantos gregorianos e as músicas de Allegri e de Palestrina.
Na Quinta-feira Santa, viu pontificar a Missa do Cardeal Mario Mattei como o mais ancião dos bispos suburbicários, em vez do cardeal decano do sacro colégio que estava impedido. Dom Bosco seguiu o Pontífice que em procissão levava o Santíssimo Sacramento à Capela Paulina para repô-lo na urna aí preparada; acompanhou-o no balcão vaticano do qual abençoa Roma e o mundo; assistiu ao lava-pés feito pelo Papa a treze sacerdotes e participou da ceia comemorativa
deles, servida pelo mesmo Vigário de Jesus Cristo.

A bênção Urbi et Orbi
[…] No dia 4 de abril as salvas da artilharia do Castel Sant’Angelo anunciavam o dia de Páscoa. Pio IX desceu pelas dez horas à Basílica para o pontifical. Logo depois, precedido por um cortejo de bispos e cardeais, ele foi até a Loggia para a bênção Urbi et Orbi. Dom Bosco, com o Cardeal Marini e um bispo, ficou por um instante perto da sacada, coberta por um magnífico tecido sobre o qual foram depositadas três áureas tiaras. O cardeal disse a Dom Bosco:
– Observe que espetáculo! Dom Bosco olhava atônito para a praça. Uma multidão
de 200 mil pessoas se aglomerava com o rosto voltado para a Loggia. Os tetos, as janelas, os terraços de todas as casas estavam ocupados. O Exército francês ocupava uma parte do espaço entre o obelisco e a escadaria de São Pedro. Os batalhões da infantaria pontifícia estavam enfileirados à direita e à esquerda. Atrás, a cavalaria e a artilharia. Milhares de carruagens estavam paradas nas duas alas da praça, perto dos pórticos de Bernini, e ao fundo perto das casas. Especialmente sobre aquelas alugadas estavam em pé grupos de pessoas que pareciam dominar a praça. Era um vozear clamoroso, um pisoteio de cavalos, uma confusão incrível. Ninguém pode fazer ideia de tal espetáculo.

Encurralado  
Dom Bosco, que deixara o Papa na Basílica no ato da veneração das insignes relíquias expostas, pensava que ele demoraria a chegar. Absorto em contemplar tanta gente de todas as nações, não percebeu a chegada do papa sentado na cadeira gestatória. Encontrou-se, então, numa posição difícil; apertado entre a cadeira e a balaustrada, apenas podia mexer-se; tudo ao redor da cadeira estava ocupado por cardeais, bispos, cerimoniários e sediários, de tal maneira que não via espaço para sair dali. Voltar o olhar para o Papa era inconveniente; dar-lhe os ombros, falta de educação; permanecer no centro do balcão, uma coisa ridícula. Não podendo fazer melhor, voltou-se de lado; então, a ponta de um pé do Papa pousou sobre seu ombro.

Nesse interim, um silêncio solene reinou na praça de modo que se podia ouvir o zumbido de uma mosca voando. Os próprios cavalos estavam imóveis. Dom Bosco, por nada perturbado, atento ao mínimo incidente, observou que um só relincho e o som de um relógio que batia as horas fizeram se ouvir enquanto o Papa, sentado, recitava algumas orações de rito. Ele, no entanto, visto que o pavimento da Loggia estava ornado de folhagens e flores, curvou-se e recolheu algumas daquelas flores e as colocou entre as páginas do livro que tinha em mãos. Finalmente Pio IX levantou-se para abençoar: abriu os braços, elevou ao céu as mãos, estendeu-as sobre a multidão, que inclinou a cabeça, e a sua voz no cantar a fórmula da bênção, sonora, forte, solene, se ouvia além da praça Rusticucci e do sótão do palácio dos escritores da Civiltà Cattolica.

A multidão respondeu à bênção do Papa com uma imensa ovação. Então o Cardeal Ugolini leu em latim o Breve da indulgência plenária e logo em seguida o Cardeal Marini o repetiu, mas em língua italiana. Dom Bosco havia se ajoelhado, e quando se levantou, o cortejo papal já havia desaparecido. Todos os sinos ocavam em festa, o canhão de Castel Sant’Angelo ribombava, as bandas militares faziam soar suas trompetas. O cardeal Marini, acompanhado pelo caudatário, desceu e foi em direção à sua carruagem. Assim que esta se moveu, Dom Bosco sentiu-se tomado pelo mal causado por aquele movimento que revirava seu estômago; não podendo mais resistir, manifestou ao cardeal seu desconforto. Por seu conselho, subiu na caixa com o cocheiro, mas o mal-estar não diminuiu, então desceu para caminhar a pé. Estando vestido de roxo, teria sido objeto de admiração ou escárnio se tivesse atravessado Roma assim; por isso, o secretário gentilmente desceu da carruagem e o acompanhou ao palácio […].

A lembrança do Papa
Dom Bosco, no dia 6 de abril, voltou para uma audiência particular com Pio IX em companhia do Clérigo Rua e do Teólogo Murialdo, admitido no Vaticano por gentil mediação do próprio Dom Bosco. Entraram na antessala às 9 horas da noite e logo Dom Bosco foi chamado. O Papa apenas o viu à sua frente e lhe disse com jeito sério:
– Dom Bosco, aonde o senhor se meteu no dia de Páscoa na hora da bênção papal? Ali, na frente do Papa! E tendo o ombro sob o meu pé como se o Pontífice tivesse necessidade de ser escorado por Dom Bosco.
– Santo Padre, respondeu Dom Bosco, tranquilo e humilde, fui pego de surpresa e peço-lhe perdão se de qualquer modo o ofendi!
– E o senhor acrescenta ainda a afronta em perguntar-me se me ofendeu? Dom Bosco olhou para o Papa, parecendo-lhe fictício tal comportamento. E, de fato, um sorriso sinalizava aparecer naqueles lábios venerandos. E o Pontífice continuou: Mas o que lhe passou na cabeça de colher flores naquele momento? Precisou de toda a gravidade de Pio IX para não desatar a rir. […].
– Beatíssimo Padre, suplicou Dom Bosco, tenha a bondade de sugerir-me uma máxima que eu possa repetir aos meus jovens como lembrança saída dos lábios do Vigário de Jesus Cristo.
– A presença de Deus! Respondeu o Papa. Diga aos seus jovens em meu nome que se guiem sempre com esse pensamento!… E agora não tem mais nada para me pedir? O senhor deseja certamente ainda alguma coisa.
– Santo Padre, a Vossa Santidade se dignou conceder-me tudo quanto pedi e por agora não me resta mais nada senão agradecê-la do mais íntimo do meu coração.
– No entanto, no entanto, o senhor deseja ainda algo. A essa réplica, Dom Bosco estava lá como suspenso sem proferir palavra, quando o Pontífice acrescentou:
– E como? Não deseja deixar alegres seus meninos, quando voltar a eles?
– Santidade, isso sim.
– Então, espere. Poucos instantes antes tinham entrado naquela sala o Teólogo Murialdo, o Clérigo Rua e P. Cerutti de Varazze, chanceler na Cúria Arquiepiscopal de Gênova. Eles ficaram maravilhados com a familiaridade com que o Papa tratava Dom Bosco e do que viram naquele momento. O Papa abriu o cofre, tirou com as duas mãos um monte de moedas romanas de ouro e sem contá-las entregou a Dom Bosco, dizendo:
– Pegue e dê uma boa merenda aos seus filhinhos. Cada um pode imaginar a impressão que fez em Dom Bosco esse gesto de paterna bondade de Pio IX que com grande amor se dirigia também aos eclesiásticos sobrevindos, abençoava os terços, os crucifixos e outros objetos de devoção que lhe apresentaram, e dava a todos uma preciosa lembrança em medalhas.

O desafio educativo de Dom Bosco
Entre os cardeais que passou a homenagear está o Eminentíssimo Tosti, a convite do qual dirigiu novamente algumas palavras aos jovens do Refúgio de São Miguel. O cardeal, satisfeito pela cortesia de Dom Bosco, sendo a hora de seu passeio, manifestou o desejo de tê-lo por companhia, e ambos saíram com a carruagem. Começou-se a falar do sistema mais apto para a educação dos jovens. Dom Bosco estava persuadido que os alunos daquele Internato não tinham familiaridade com os superiores, aliás, tinham medo deles: coisa pouco agradável, sob a direção de padres. Por isso dizia:
– Veja, Eminência, é impossível poder educar bem os jovens se eles não têm confiança nos superiores.
– Mas como, replicou o cardeal, se pode ganhar essa confiança?
– Procurando que eles se aproximem de nós, evitando qualquer causa que se afastem de nós.
– E como se pode fazer para aproximá-los de nós?
– Aproximando-nos deles, buscando adaptar-nos aos seus gostos, fazendo-nos semelhantes a eles. Quer fazer uma prova? Diga-me: em que ponto de Roma se pode encontrar um bom número de meninos?
– Na ‘iazza Termini e na Piazza del Popolo.
– Pois bem, vamos então à Piazza del Popolo.

O cardeal deu ordem ao cocheiro e foram. Assim que chegaram, Dom Bosco desceu da carruagem, e o cardeal ficou observando-o. Vendo um grupo de meninos que brincavam, Dom Bosco aproximou-se, mas os garotos fugiram. Então, chamou-os com boas maneiras e eles, depois de alguma hesitação, retornaram. Dom Bosco lhes deu alguma coisinha, pediu notícias de suas famílias, perguntou do que brincavam, convidou-os a retomar a brincadeira, pôs-se a comandar o divertimento deles, e ele mesmo tomou parte. Então, outros jovens que estavam olhando de longe correram em grande número dos quatro cantos da praça e rodearam o padre, que os acolheu amorosamente e tinha para todos uma boa palavra e um presentinho. Perguntava se fossem bons, se rezassem as orações, se iam se confessar. Quando quis ir embora, eles o seguiram por um bom trecho e só o deixaram quando subiu na carruagem. O cardeal estava maravilhado.
– Viu?
– Tem razão! exclamou o cardeal […].

As últimas visitas
Suas últimas visitas foram reservadas à Confissão de São Pedro e às Catacumbas. Depois de ter rezado na Basílica de São Sebastião [basilica di S. Sebastiano], visto as duas das flechas que feriram o santo tribuno e a coluna na qual foi amarrado, desceu às galerias que guardam os ossos de milhares e milhares de mártires e onde São Filipe Neri tantas noites esteve em vigília rezando fervorosamente. Passou, depois, às Catacumbas de São Calisto [Catacombe di san Callisto]. Aí esperava-o o Cavaleiro G. B. De Rossi, quem descobrira aquelas catacumbas e ao qual Monsenhor de San Marzano o tinha apresentado. Quem entra naqueles lugares experimenta uma tal comoção que permanece inesquecível pelo resto da vida; e Dom Bosco estava absorto em santos e doces pensamentos percorrendo aqueles subterrâneos, onde os primeiros cristãos, com a missa, as orações em comum, o canto dos salmos e das profecias, a comunhão eucarística, o ouvir a palavra dos bispos e dos papas tinham encontrado a força necessária para o martírio que os esperava. É impossível olhar com olhos enxutos aqueles lóculos que tinham guardado os corpos ensanguentados ou queimados de tantos heróis da fé, as tumbas de quase catorze papas que tinham dado a vida para testemunhar o que ensinavam e a cripta de Santa Cecília.

Dom Bosco observava os muitos afrescos antiquíssimos que simbolizavam Jesus Cristo e a Eucaristia; e as imagens que representavam o matrimônio de Maria Santíssima com São José; a Assunção de Maria ao céu, a Mãe de Deus com o Menino nos braços ou sobre os joelhos. Ele ficou encantado pelo sentimento de simplicidade que resplandece nessas imagens, nas quais a arte cristã primitiva soubera reproduzir a beleza incomparável da alma e o ideal altíssimo da perfeição moral que se deve atribuir à Virgem. Não faltavam outras figuras de santos e de mártires. Dom Bosco saiu das catacumbas às 6h da tarde e tinha entrado nelas às 8h da manhã […].

Rumo a casa
Dom Bosco, no dia 14 de abril, partia de Roma com o Clérigo Rua, feliz pelo lançamento das bases da Sociedade de São Francisco de Sales […]. Alugou uma carruagem, fez uma breve parada no povoado de Palo e encontrou o dono perfeitamente livre das febres: a sua cura fora instantânea. Ele nunca esqueceu o benefício e, depois de muito tempo, por volta do ano de 1875 ou 1876, tendo ido a Gênova por razões comerciais, quis avançar sua viagem até Turim. Informando-se e sabendo por telégrafo que Dom Bosco estava no Oratório, foi até lá; mas Dom Bosco, naquele dia, estava almoçando com o Sr. Carlos Occelletti. Foi logo encontrá-lo, numa felicidade sem fim. O Sr. Occelletti lembrava sempre com grande satisfação a história que ouvira sobre aquela cura. Tendo chegado em Civitavecchia e feita uma visita ao Delegado Pontifício, Dom Bosco foi ao porto para embarcar.

As ondas dessa vez estavam calmas e o tempo bom, assim Dom Bosco pôde descer em Livorno, conversar com algum amigo e visitar algumas igrejas. Retomado o mar à noite, Rua se lembra como a barca chegasse ao porto de Gênova ao surgir de uma esplêndida aurora que iluminava o magnífico panorama da soberba cidade. Dom Bosco tinha acabado de pôr os pés em terra e logo se dirigiu ao Colégio dos Artigianelli, onde o esperava o P. Montebruno e o Sr. Giuseppe Canale. Depois do meio-dia subiu no trem. Atravessando a cidade, teve uma grata surpresa: tocando os sinos, o Angelus, muitas pessoas pelas ruas e pelas praças tiraram o chapéu, e os mesmos carregadores se levantaram de seus bancos para recitar a oração. Muitas vezes ele descrevera esse espetáculo para a edificação de seus alunos. Chegou em Turim no dia 16 de abril, sendo acolhido pelos jovens com tal exultação e afeto que nenhum pai poderia desejar-se melhor dos próprios filhos.




O P. Pedro Ricaldone renasce em Mirabello Monferrato

O P. Pedro Ricaldone (Mirabello Monferrato, 27 de abril de 1870 – Roma, 25 de novembro de 1951) foi o quarto sucessor de Dom Bosco à frente dos Salesianos, homem de vasta cultura, profunda espiritualidade e grande amor pelos jovens. Nascido e criado entre as colinas de Monferrato, sempre carregou consigo o espírito daquela terra, traduzindo-o em um compromisso pastoral e formativo que o tornaria uma figura de destaque internacional. Hoje, os habitantes de Mirabello Monferrato querem trazê-lo de volta às suas terras.

O Comitê P. Pedro Ricaldone: renascimento de uma herança (2019)
Em 2019, um grupo de ex-alunos e ex-alunas, historiadores e apaixonados por tradições locais deu vida ao Comitê P. Pedro Ricaldone em Mirabello Monferrato. O objetivo – simples e ambicioso ao mesmo tempo – foi desde o início trazer a figura do P. Pedro de volta ao coração da cidade e dos jovens, para que sua história e sua herança espiritual não se percam.

Para preparar o 150º aniversário de nascimento (1870-2020), o Comitê pesquisou o Arquivo Histórico Municipal de Mirabello e o Arquivo Histórico Salesiano, encontrando cartas, anotações e volumes antigos. Desse trabalho nasceu uma biografia ilustrada, pensada para leitores de todas as idades, na qual a personalidade de Ricaldone emerge de forma clara e cativante. Fundamental, nesta fase, foi a colaboração com o P. Egídio Deiana, estudioso da história salesiana.

Em 2020, estava prevista uma série de eventos – exposições fotográficas, concertos, espetáculos teatrais e circenses – todos centrados na memória do P. Pedro. Embora a pandemia tenha obrigado a reprogramar grande parte das celebrações, em julho do mesmo ano, realizou-se um evento comemorativo com uma exposição fotográfica sobre as etapas da vida de Ricaldone, uma animação infantil com oficinas criativas e uma celebração solene, com a presença de alguns Superiores Salesianos.
Aquele encontro marcou o início de uma nova fase de atenção ao território de Mirabello.

Além dos 150 anos: o concerto pelo 70º aniversário de morte
O entusiasmo pela recuperação da figura do P. Pedro Ricaldone levou o Comitê a prolongar suas atividades mesmo após o 150º aniversário.
Em vista do 70º aniversário de morte (25 de novembro de 1951), o Comitê organizou um concerto intitulado “Apressar a aurora radiosa do dia esperado”, frase extraída da circular do P. Pedro sobre o Canto Gregoriano de 1942.
Em plena Segunda Guerra Mundial, o P. Pedro – então Reitor-Mor – escreveu uma célebre circular sobre o Canto Gregoriano na qual destacava a importância da música como caminho privilegiado para reconduzir os corações dos homens à caridade, à mansidão e, sobretudo, a Deus: “A alguns poderá causar espanto que, em meio a tanto fragor de armas, eu vos convide a ocupar-vos de música. No entanto, penso, mesmo prescindindo de alusões mitológicas, que este tema responde plenamente às exigências da hora atual. Tudo o que possa exercer eficácia educativa e reconduzir os homens a sentimentos de caridade e mansidão e, sobretudo, a Deus, deve ser por nós praticado, diligentemente e sem demora, para apressar a aurora radiosa do dia esperado”.

Passeios e raízes salesianas: o “Passeio de Dom Bosco”
Embora tenha nascido como uma homenagem ao P. Ricaldone, o Comitê acabou por divulgar novamente também a figura de Dom Bosco e de toda a tradição salesiana, da qual o P. Pedro foi herdeiro e protagonista.
A partir de 2021, a cada segundo domingo de outubro, o Comitê promove o “Passeio de Dom Bosco”, repropondo a peregrinação que Dom Bosco realizou com os jovens de Mirabello a Lu Monferrato de 12 a 17 de outubro de 1861. Naqueles cinco dias, foram planejados os detalhes do primeiro colégio salesiano fora de Turim, confiado ao Beato Miguel Rua, com o P. Álbera entre os professores. Embora a iniciativa não diga respeito diretamente ao P. Pedro, ela destaca suas raízes e o vínculo com a tradição salesiana local que ele mesmo levou adiante.

Hospitalidade e intercâmbios culturais
O Comitê tem incentivado o acolhimento de grupos de jovens, escolas profissionais e clérigos salesianos de todo o mundo. Algumas famílias oferecem hospitalidade gratuita, renovando a fraternidade típica de Dom Bosco e do P. Pedro. Em 2023, um numeroso grupo da Crocetta passou por Mirabello, enquanto durante todo o verão chegam grupos internacionais acompanhados pelo P. Egídio Deiana. Cada visita é um diálogo entre memória histórica e a alegria dos jovens.

Em 30 de março de 2025, quase cem capitulares salesianos fizeram uma parada em Mirabello, nos locais onde Dom Bosco abriu seu primeiro colégio fora de Turim e onde o P. Pedro viveu seus anos de formação. O Comitê, junto com a Paróquia e a Pro Loco [escritório de promoção cultural e turística], organizou a acolhida e produziu um vídeo informativo sobre a história salesiana local, apreciado por todos os participantes.

As iniciativas continuam e hoje o Comitê, liderado por seu presidente, colabora na criação do Caminho Monferrino de Dom Bosco, um itinerário espiritual de aproximadamente 200 km pelas rotas outonais percorridas pelo Santo. O objetivo é obter o reconhecimento oficial em nível regional, mas também oferecer aos peregrinos uma experiência formativa e de evangelização. Os passeios juvenis de Dom Bosco, de fato, eram experiências de formação e evangelização: o mesmo espírito que o P. Pedro Ricaldone defenderia e promoveria depois durante todo o seu reitorado.

A missão do Comitê: manter viva a memória do P. Pedro
Por trás de cada iniciativa está a vontade de destacar a obra educativa, pastoral e cultural do P. Pedro Ricaldone. Os fundadores do Comitê guardam memórias pessoais da infância e desejam transmitir às novas gerações os valores de fé, cultura e solidariedade que animaram o sacerdote de Mirabello. Numa época em que tantos pontos de referência vacilam, redescobrir o caminho do P. Pedro significa oferecer um modelo de vida capaz de iluminar o presente: “Onde passam os Santos, Deus caminha com eles e nada mais é como antes” (São João Paulo II).
O Comitê P. Pedro Ricaldone se faz porta-voz dessa herança, confiando que a memória de um grande filho de Mirabello continue a iluminar o caminho para as gerações futuras, traçando uma senda sólida feita de fé, cultura e solidariedade.




São Domingos Sávio. Os lugares da infância

São Domingos Sávio, o “pequeno grande santo”, viveu sua breve mas intensa infância entre as colinas do Piemonte, em lugares hoje repletos de memória e espiritualidade. Por ocasião de sua beatificação em 1950, a figura deste jovem discípulo de Dom Bosco foi celebrada como símbolo de pureza, fé e dedicação evangélica. Percorremos os principais lugares de sua infância — Riva presso Chieri, Morialdo e Mondonio — através de testemunhos históricos e relatos vívidos, revelando o ambiente familiar, escolar e espiritual que forjou seu caminho rumo à santidade.

            O Ano Santo de 1950 foi também o da beatificação de Domingos Sávio, que ocorreu em 5 de março. O discípulo de Dom Bosco, de 15 anos de idade, foi o primeiro santo leigo “confessor” a subir aos altares em uma idade tão jovem.
            Naquele dia, a Basílica de São Pedro estava repleta de jovens que deram testemunho, com sua presença em Roma, de uma juventude cristã totalmente aberta aos ideais mais sublimes do Evangelho. Segundo a Rádio Vaticana, a Basílica se transformou em um imenso e barulhento oratório salesiano. Quando o véu que cobria a figura do novo Beato caiu dos raios de Bernini, um aplauso frenético se elevou de toda a basílica e o eco chegou até a praça, onde a tapeçaria que representava o Beato foi descoberta na “Loggia” [balcão] das Bênçãos.
            Naquele dia, o sistema educativo de Dom Bosco recebeu seu maior reconhecimento. Quisemos revisitar os lugares da infância de Domingos, depois de reler as informações detalhadas do P. Miguel Molineris naquela Nova Vida de Domingos Sávio, na qual ele descreve com a sua conhecida seriedade de documentação o que as biografias de São Domingos Sávio não dizem.

Em Riva perto de Chieri
            Em primeiro lugar, estamos em São João de Riva perto de Chieri, o vilarejo onde nosso “pequeno grande santo” nasceu em 2 de abril de 1842, filho de Carlos Sávio e Brígida Gaiato, o segundo de dez filhos, herdando do primeiro, que sobreviveu apenas 15 dias após seu nascimento, seu nome e seu direito de primogenitura.
            Seu pai, como sabemos, veio de Ranello, um vilarejo de Castelnuovo d’Asti, e quando jovem foi morar com seu tio Carlos, um ferreiro em Mondonio, em uma casa na atual Rua Junípero, no número 1, ainda chamada de “ca dèlfré” ou casa do ferreiro. Lá, com o “Barba Carlòto” [Tio Carlòto”], ele aprendeu o ofício. Algum tempo depois de seu casamento, contraído em 2 de março de 1840, ele se tornou independente, mudando-se para a casa dos Gastaldi em São João de Riva. Ele alugou uma acomodação com cômodos no andar térreo adequados para uma cozinha, depósito e oficina, e quartos no primeiro andar, acessíveis por uma escada externa que agora desapareceu.
            Os herdeiros de Gastaldi venderam a casinha e o rancho adjacente para os salesianos em 1978. E hoje um moderno centro de acolhida juvenil, administrado por ex-alunos e cooperadores salesianos, dá memória e nova vida à pequena casa onde Domingos nasceu.

Em Morialdo
            Em novembro de 1843, ou seja, quando Domingos ainda não tinha completado dois anos de idade, a família Sávio, por motivos de trabalho, mudou-se para Morialdo, o vilarejo de Castelnuovo ligado ao nome de São João Bosco, que nasceu na propriedade Biglione, um vilarejo no distrito de Becchi.
            Em Morialdo, os Sávio alugaram alguns quartos pequenos perto da varanda de entrada da propriedade de Joana Viale, que havia se casado com Estêvão Persoglio. Mais tarde, todo o campo foi vendido por seu filho, Alberto Persoglio, para José Pianta e família.
            Atualmente, esse terreno também é, em sua maior parte, propriedade dos salesianos que, depois de restaurá-la, a utilizam para encontros de crianças e adolescentes e para visitas de peregrinos. A menos de 2 km do Colle Don Bosco, ela está situada em um ambiente campestre, em meio a parreirais, campos férteis e prados ondulantes, com um ar de alegria na primavera e nostalgia no outono, quando as folhas amareladas são douradas pelos raios do sol, com um panorama encantador em dias bonitos, quando a cadeia dos Alpes se estende no horizonte desde o pico do Monte Rosa, perto de Albugnano, até o Gran Paradiso, Rocciamelone e Monviso, é realmente um lugar para se visitar e usar em dias de intensa vida espiritual, uma escola de santidade no estilo de Dom Bosco.
            A família Sávio permaneceu em Morialdo até fevereiro de 1853, ou seja, por nove anos e três meses. Domingos, que viveu apenas 14 anos e 11 meses, passou quase dois terços de sua curta existência lá. Portanto, ele pode ser considerado não apenas o aluno e filho espiritual de Dom Bosco, mas também seu conterrâneo.

Em Mondonio
            O P. Molineris sugere a razão de a família Sávio ter deixado Morialdo. Seu tio, o ferreiro, havia morrido e o pai de Domingos poderia herdar não apenas as ferramentas do ofício, mas também a clientela em Mondonio. Esse foi provavelmente o motivo da mudança, que ocorreu, no entanto, não para a casa na Rua Junípero, mas para a parte baixa da vila, onde alugaram dos irmãos Bertello a primeira casa à esquerda da rua principal da vila. A pequena casa consistia, e é assim ainda hoje, em um andar térreo com dois cômodos, adaptados como cozinha e sala de trabalho, e um andar superior, acima da cozinha, com dois quartos e espaço suficiente para uma oficina com uma porta na rampa da rua.
            Sabemos que o Sr. e a Sra. Sávio tiveram dez filhos, três dos quais morreram muito jovens e outros três, incluindo o nosso, não chegaram a completar 15 anos de idade. A mãe morreu em 1871, aos 51 anos de idade. O pai, ficando sozinho em casa com o filho João, depois de ter acolhido as três filhas sobreviventes, pediu hospitalidade a Dom Bosco em 1879 e morreu em Valdocco em 16 de dezembro de 1891.
            Domingos havia entrado em Valdocco aos 29 de outubro de 1854, permanecendo lá, exceto por curtos períodos de férias, até 1º de março de 1857. Ele morreu oito dias depois em Mondonio, no pequeno quarto ao lado da cozinha, em 9 de março daquele ano. Sua permanência em Mondonio foi, portanto, de cerca de 20 meses no total, e em Valdocco, de 2 anos e 4 meses.

Lembranças de Morialdo
            A partir dessa breve análise das três casas da família Sávio, fica claro que a de Morialdo deve ser a mais rica em lembranças. São João de Riva lembra o nascimento de Domingos, e Mondonio um ano na escola e de sua santa morte; mas Morialdo lembra sua vida na família, na igreja e na escola. Quantas coisas “Minòt”, como era chamado lá, deve ter ouvido, visto e aprendido com seu pai e sua mãe, quanta fé e amor ele demonstrou na pequena igreja de São Pedro, quanta inteligência e bondade na escola do P. João Zucca, e quanta diversão e vivacidade no parquinho com seus companheiros da vila.
            Foi em Morialdo que Domingos Sávio se preparou para a Primeira Comunhão, que ele fez na igreja paroquial de Castelnuovo em 8 de abril de 1849. Foi lá, quando tinha apenas 7 anos de idade, que ele escreveu as “Lembranças”, ou seja, os propósitos de sua Primeira Comunhão:
            1. Irei me confessar com muita frequência e comungarei sempre que o confessor me der permissão;
            2. Quero santificar os dias de festa;
            3. Meus amigos serão Jesus e Maria;
            4. A morte, mas não os pecados.
            Lembranças que foram o guia de suas ações até o fim de sua vida.
            O comportamento, a maneira de pensar e de agir de um menino refletem o ambiente em que ele viveu e, especialmente, a família em que passou a infância. Portanto, para entender algo sobre Domingos, é sempre bom refletir sobre sua vida naquela propriedade de Morialdo.

A família
            Sua família não era de agricultores. Seu pai era ferreiro e sua mãe costureira. Seus pais não eram de constituição robusta. Os sinais de cansaço podiam ser vistos no rosto de seu pai, enquanto a delicadeza das linhas distinguia o rosto de sua mãe. O pai de Domingos era um homem de iniciativa e coragem. Sua mãe veio da não muito distante Cerreto d’Asti, onde mantinha uma oficina de costura “e, com sua habilidade, livrava aqueles habitantes da chateação de descer ao vale para comprar tecidos”. E ela ainda era costureira em Morialdo também. Será que Dom Bosco sabia disso? Curioso, porém, o seu diálogo com o pequeno Domingos, que tinha ido procurá-lo nos Becchi:
– Bem, o que você acha?
            – Eh, parece-me que seja um bom tecido
(em piem.: Eh, m’a smia ch’a-j’sia bon-a stòfa!).
– Para que pode servir esse tecido?
            – Para fazer uma linda roupa para oferecer ao Senhor.
            – Então, eu sou o tecido: o senhor seja o alfaiate; leve-me consigo
(em piem.: ch’èmpija ansema a chiel) e fará uma bela roupa para o Senhor” (OE XI, 185).
            Um diálogo inestimável entre dois conterrâneos que se entenderam à primeira vista. E a linguagem deles era perfeita para o filho da costureira.
            Quando sua mãe morreu, em 14 de julho de 1871, o pároco de Mondonio, P. João Pastrone, dizia às filhas chorosas para consolá-las: “Não chorem, porque a mãe de vocês era uma mulher santa; e agora ela já está no Paraíso”.
            Seu filho Domingos, que a precedeu no céu por vários anos, também disse a ela e a seu pai, antes de falecer: “Não chorem, já vejo o Senhor e Nossa Senhora de braços abertos esperando por mim”. Essas suas últimas palavras, testemunhadas por sua vizinha Anastácia Molino, que estava presente no momento de sua morte, foram o selo de uma vida alegre, o sinal manifesto daquela santidade que a Igreja reconheceu solenemente em 5 de março de 1950, dando-lhe mais tarde a confirmação definitiva em 12 de junho de 1954 com sua canonização.

Foto na página de rosto. A casa onde Domingos morreu em 1857. É uma construção de tipo rural, datada provavelmente do final de 1600. Reconstruída sobre outra casa ainda mais antiga, é um dos monumentos mais queridos pelos Mondonienses.




Se a Patagônia precisa esperar… vamos para a Ásia

Repercorre-se a expansão dos missionários salesianos na Argentina na segunda metade do século XIX, em um país aberto a capitais estrangeiros e caracterizado por intensa imigração italiana. As reformas legislativas e a carência de escolas favoreceram os projetos educativos de Dom Bosco e Dom Cagliero, mas a realidade se revelou mais complexa do que o imaginado na Europa. Um contexto político instável e um nacionalismo hostil à Igreja se entrelaçavam com tensões religiosas anticlericais e protestantes. Havia também a dramática condição dos indígenas, repelidos para o sul pela força militar. A rica correspondência entre os dois religiosos mostra como tiveram que adequar objetivos e estratégias diante de novos desafios sociais e religiosos, mantendo, porém, vivo o desejo de estender a missão também na Ásia.

Com a missio jurídica recebida do papa, com o título e as faculdades espirituais de missionários apostólicos concedidas pela Congregação de Propaganda Fide, com uma carta de apresentação de Dom Bosco ao arcebispo de Buenos Aires, os dez missionários, depois de um mês de viagem pelo Oceano Atlântico, em meados de dezembro de 1875, chegaram à Argentina, um imenso país povoado por pouco menos de dois milhões de habitantes (quatro milhões em 1895; em 1914 seriam oito milhões). Desse país, eles mal conheciam o idioma, a geografia e um pouco de história.
Acolhidos pelas autoridades civis, pelo clero local e por benfeitores, eles viveram inicialmente meses felizes. A situação do país era de fato favorável, tanto do ponto de vista econômico, com grandes investimentos de capital estrangeiro, quanto do ponto de vista social, com a abertura legal (1875) à imigração, especialmente italiana: 100.000 imigrantes, 30.000 deles somente em Buenos Aires. A situação educacional também era favorável devido à nova lei sobre a liberdade de ensino (1876) e à falta de escolas para “crianças pobres e abandonadas”, como aquelas às quais os salesianos queriam se dedicar.
Em vez disso, surgiram dificuldades do ponto de vista religioso – dada a forte presença de anticlericais, maçons, liberais hostis, protestantes ingleses (galeses) em algumas áreas – e o fraco espírito religioso de muitos clérigos nativos e imigrantes. Da mesma forma, do ponto de vista político, pelos riscos sempre iminentes de instabilidade política, econômica e comercial, por um nacionalismo hostil à Igreja Católica e suscetível a qualquer influência externa, e pelo problema não resolvido dos povos indígenas dos Pampas e da Patagônia. O avanço contínuo da linha de fronteira sul, de fato, forçava-os cada vez mais para o sul e em direção à Cordilheira, quando não os eliminava de fato ou, capturados, eram vendidos como escravos. O P. Cagliero, líder da expedição, percebeu isso imediatamente. Dois meses após seu desembarque, ele escreveu: “Os índios estão exasperados contra o governo nacional. Vão contra eles armados com Remingtons, fazem prisioneiros homens, mulheres, crianças, cavalos e ovelhas […] é preciso pedir a Deus que lhes envie missionários para libertá-los da morte da alma e do corpo”.

Da utopia do sonho ao realismo da situação
No biênio 1876-1877, ocorreu uma espécie de diálogo à distância entre Dom Bosco e o P. Cagliero: em menos de vinte meses, nada menos que 62 de suas cartas cruzaram o Atlântico. O P. Cagliero se comprometeu a seguir as diretrizes dadas por Dom Bosco com base nas leituras incompletas de que dispunha e em suas inspirações do alto, que não eram fáceis de decifrar. Dom Bosco, por sua vez, veio a saber por seu líder no campo que a realidade na Argentina era diferente do que ele havia pensado na Itália. O projeto operacional estudado em Turim podia, de fato, ser compartilhado nos objetivos e na mesma estratégia geral, mas não nas coordenadas geográficas, cronológicas e antropológicas previstas. O P. Cagliero estava perfeitamente consciente disso, diferentemente de Dom Bosco que, ao contrário, continuava incansavelmente a ampliar os espaços para as missões salesianas.
Em 27 de abril de 1876, de fato, ele anunciou ao P. Cagliero a aceitação de um Vicariato Apostólico na Índia – excluindo os outros dois propostos pela Santa Sé, na Austrália e na China – a ser confiado a ele, que, portanto, deixaria as missões na Patagônia para outros. Duas semanas depois, porém, Dom Bosco apresentou um pedido a Roma para erigir um Vicariato Apostólico também para os Pampas e a Patagônia, que ele considerava, erroneamente, território nullius [de ninguém], tanto civil quanto eclesiasticamente. Ele reiterou isso em agosto seguinte, assinando o longo manuscrito La Patagonia e le terre australi del continente americano[A Patagônia e as terras austrais do continente americano], escrito em conjunto com o P. Júlio Barberis. A situação se complicou ainda mais com a aquisição, pelo governo argentino (em acordo com o governo chileno), das terras habitadas pelos nativos, que as autoridades civis de Buenos Aires haviam dividido em quatro províncias e que o arcebispo de Buenos Aires considerava, com razão, sujeitas à sua jurisdição ordinária.
Mas as violentas lutas governamentais contra os nativos (setembro de 1876) significavam que o sonho salesiano “Para a Patagônia, para a Patagônia. Deus o quer!” permaneceriam por enquanto apenas um sonho.

Os italianos “indianizados”
Nesse meio tempo, em outubro de 1876, o arcebispo tinha proposto aos missionários salesianos que assumissem a paróquia de La Boca, em Buenos Aires, para atender aos milhares de italianos “mais indianizados do que os índios no que diz respeito aos costumes e à religião” (teria escrito o P. Cagliero). Eles aceitaram. Durante o primeiro ano na Argentina, de fato, eles já haviam estabilizado sua posição na capital: com a compra formal da capela Mater Misericordiae no centro da cidade, com o estabelecimento de oratórios festivos para italianos em três partes da cidade, com a casa de acolhida de “artes e ofícios” e a igreja de São Carlos no oeste – que permaneceria lá de maio de 1877 a março de 1878, quando se mudou para Almagro – e agora a paróquia de La Boca no sul, com um oratório que estava sendo instalado. Também planejaram um noviciado e, enquanto esperavam pelas Filhas de Maria Auxiliadora, pensavam numa casa de acolhida e um colégio em Montevidéu, no Uruguai.
No final do ano de 1876, o P. Cagliero estava pronto para retornar à Itália, pois via também que tanto a possibilidade de entrar em Chubut quanto a fundação de uma colônia em Santa Cruz (no extremo sul do continente) estavam sendo excessivamente adiadas devido a um governo que criava obstáculos para os missionários e que preferia “destruir a reduzir os indígenas”.
Mas com a chegada, em janeiro de 1877, da segunda expedição de 22 missionários, o P. Cagliero planejou independentemente tentar uma excursão a Carmen de Patagones, no Rio Negro, de acordo com o arcebispo. Dom Bosco, por sua vez, no mesmo mês, sugeriu à Santa Sé a criação de três Vicariatos Apostólicos (Carmen de Patagones, Santa Cruz, Punta Arenas) ou pelo menos um em Carmen de Patagones, comprometendo-se a aceitar em 1878 o de Mangalor, na Índia, com o P. Cagliero como Vigário. Não só isso, mas em 13 de fevereiro, com imensa coragem, declarou-se também disponível para o mesmo ano de 1878 para o Vicariato Apostólico do Ceilão, de preferência ao da Austrália, ambos propostos a ele pelo Papa (ou sugeridos por ele ao Papa?). Em suma, Dom Bosco não se contentava com a América Latina, no ocidente, e sonhava em enviar seus missionários para a Ásia, no oriente.




Partir para as missões… confiando nos sonhos

Os sonhos missionários de Dom Bosco, sem antecipar o curso dos acontecimentos futuros, tinham o sabor de previsões para o ambiente salesiano.

            Os sonhos missionários de 1870-1871 e especialmente os da década de 1880 também contribuíram em grande parte para chamar a atenção de Dom Bosco para o problema missionário. Se em 1885 ele convidava o P. João Cagliero a agir com prudência: “não dê muita atenção aos sonhos”, mas “somente se forem moralmente úteis”, o mesmo Cagliero que liderou a primeira expedição missionária (1875) e futuro cardeal, julgou-os como meros ideais a serem perseguidos. Outros salesianos, por outro lado, e sobretudo o P. Tiago Costamagna, missionário da terceira expedição (1877) e futuro inspetor e bispo, entendiam-nos como um itinerário a ser seguido quase obrigatoriamente, tanto que pedia ao secretário de Dom Bosco, o P. João Batista Lemoyne, que lhe enviasse as atualizações “necessárias”. Por sua vez, o P. José Fagnano, também missionário da primeira hora e futuro Prefeito Apostólico, via-os como a expressão de um desejo de toda a Congregação, que devia sentir-se responsável por realizá-los, encontrando os meios e o pessoal. Por fim, o P. Luís Lasagna, missionário que partiu com a segunda expedição em 1876, e também futuro bispo, os via como uma chave para conhecer o futuro salesiano em missão. O P. Alberto Maria De Agostini, na primeira metade do século XX, embarcaria pessoalmente em perigosas e incontáveis excursões à América do Sul, no rastro dos sonhos de Dom Bosco.
            Como quer que sejam entendidos hoje, o fato é que os sonhos missionários de Dom Bosco, embora não antecipassem o curso de eventos futuros, tinham o sabor de previsões para o ambiente salesiano. Dado que eram desprovidos de significados simbólicos e alegóricos e, em vez disso, eram ricos em referências antropológicas, geográficas, econômicas e ambientais (fala-se de túneis, trens, aviões…), eles constituíam um incentivo para os missionários salesianos agirem, tanto mais que sua efetiva realização poderia ter sido verificada. Em outras palavras, os sonhos missionários orientaram a história e delinearam um programa de trabalho missionário para a sociedade salesiana.

O chamado (1875): um projeto imediatamente revisado
            Na década de 1870, uma notável tentativa de evangelização estava em andamento na América Latina, graças, sobretudo, aos religiosos, apesar das fortes tensões entre a Igreja e cada um dos Estados liberais. Por meio de contatos com o cônsul argentino em Savona, João Batista Gazzolo, Dom Bosco, em dezembro de 1874, ofereceu-se para fornecer sacerdotes para a Igreja da Misericórdia (a igreja dos italianos) em Buenos Aires, conforme solicitado pelo vigário geral de Buenos Aires, Dom Mariano Antônio Espinosa, e aceitou o convite de uma comissão interessada em um colégio em San Nicolás de los Arroyos, a 240 km a noroeste da capital argentina. De fato, a sociedade salesiana – que na época incluía também o ramo feminino das Filhas de Maria Auxiliadora – tinha como primeiro objetivo cuidar da juventude pobre (com catecismos, escolas, internatos, casas de acolhida, oratórios festivos), mas não excluía estender seus serviços a todos os tipos de ministérios sagrados. Portanto, naquele final de 1874, Dom Bosco não estava oferecendo nada além do que já estava sendo feito na Itália. Além disso, as Constituições Salesianas, finalmente aprovadas em abril anterior, justamente quando as negociações para fundações salesianas em “terras de missão” não europeias já estavam em andamento há anos, não faziam menção a possíveis missões ad gentes.
            As coisas mudaram no espaço de poucos meses. Em 28 de janeiro de 1875, em um discurso aos diretores e, no dia seguinte, a toda a comunidade salesiana, inclusive aos meninos, Dom Bosco anunciou que os dois pedidos mencionados na Argentina haviam sido aceitos, depois que os pedidos em outros continentes haviam sido recusados. Informava também que “as missões na América do Sul” (que, nesses termos, ninguém havia realmente oferecido) tinham sido aceitas nas condições solicitadas, sujeitas apenas à aprovação do papa. Dom Bosco, com um golpe de mestre, apresentou assim aos salesianos e aos jovens um excitante “projeto missionário” aprovado por Pio IX.
            Começou imediatamente uma preparação febril para a expedição missionária. Em 5 de fevereiro, sua carta circular convidava os salesianos a se oferecerem livremente para tais missões, onde, além de algumas áreas civilizadas, exerceriam seu ministério entre
“povos selvagens espalhados por imensos territórios”. Mesmo que ele tivesse identificado a Patagônia como a terra de seu primeiro sonho missionário – onde selvagens cruéis de áreas desconhecidas matavam os missionários e, em vez disso, acolhiam os salesianos –tal plano para evangelizar os “selvagens” ia muito além dos pedidos recebidos da América. O arcebispo de Buenos Aires, Dom Frederico Aneiros, certamente não estava ciente disso, pelo menos na época.
            Dom Bosco prosseguiu com determinação na organização da expedição. Em 31 de agosto, ao Prefeito da Propaganda Fide, Cardeal Alexandre Franchi, comunicou que havia aceitado a direção do colégio de San Nicolás como “base para as missões” e, portanto, pediu as faculdades espirituais normalmente concedidas em tais casos. Ele recebeu algumas delas, mas não recebeu nenhum dos subsídios financeiros que esperava, porque a Argentina não dependia da Congregação de Propaganda Fide, pois com um arcebispo e quatro bispos não era considerada “terra de missão”. E a Patagônia? E a Terra do Fogo? E as dezenas e dezenas de milhares de índios que vivem lá, a dois, três mil quilômetros de distância, “no fim do mundo”, sem nenhuma presença missionária?
            Em Valdocco, na igreja de Maria Auxiliadora, durante a célebre cerimônia de despedida dos missionários, em 11 de novembro, Dom Bosco se debruçou sobre a missão universal de salvação dada pelo Senhor aos apóstolos e, portanto, à Igreja. Falou da escassez de sacerdotes na Argentina, das famílias de emigrantes que se inscreveram e do trabalho missionário entre as “grandes hordas de selvagens” nos Pampas e na Patagônia, regiões “que circundam a parte civilizada”, onde “nem a religião de Jesus Cristo, nem a civilização, nem o comércio penetraram ainda, onde os pés europeus não deixaram até agora nenhum vestígio”.
            Trabalho pastoral para os emigrantes italianos e depois plantatio ecclesiae [implantação da Igreja] na Patagônia: esse foi o duplo objetivo original que Dom Bosco deixou para a primeira expedição. (Estranhamente, porém, ele não fez nenhuma menção aos dois locais precisos de trabalho acordados do outro lado do Atlântico). Alguns meses depois, em abril de 1876, ele insistiria com o P. Cagliero que “nosso objetivo é tentar uma última expedição à Patagônia […] sempre tomando como base o estabelecimento de colégios e casas de acolhida […] nas proximidades das tribos selvagens”. Ele repetiria isso em 1º de agosto: “Em geral, lembrem-se sempre de que Deus quer nossos esforços para os Pampas e o povo patagônico, e para as crianças pobres e abandonadas”.
            Em Gênova, ao embarcar, ele deu a cada um dos dez missionários – incluindo cinco padres – vinte lembranças especiais. Nós as reproduzimos:

LEMBRANÇAS PARA OS MISSIONÁRIOS

1. Procurai as almas, e não dinheiro, honras, dignidades.
2. Usai de caridade e suma cortesia para com todos, mas evitai as conversas e a familiaridade com pessoas de outro sexo ou procedimento suspeito.
3. Não façais visitas, a não ser por motivo de caridade e necessidade.
4. Nunca aceiteis convites para refeições, senão por gravíssimos motivos. Nesses casos, procurai ter um companheiro.
5. Cuidai de modo especial dos doentes, meninos, velhos e pobres, e ganhareis as bênçãos de Deus e a benevolência dos homens.
6. Sede obsequiosos com a todas as autoridades civis, religiosas, municipais e governativas.
7. Encontrando na rua alguma pessoa de autoridade, cumprimentai-a respeitosamente.
8. O mesmo fareis com os eclesiásticos ou membros de institutos religiosos.
9. Fugi do ócio e das discussões. Grande sobriedade nos alimentos, bebidas e repouso.
10. Amai, reverenciai, respeitai as outras ordens religiosas e falai sempre bem delas. É esse o meio de vos fazerdes estimar por todos e promover o bem da Congregação.
11. Tende cuidado da vossa saúde. Trabalhai, mas não além do comportam as vossas forças.
12. Fazei que o mundo conheça que sois pobres, no vestuário, no alimento, na habitação e sereis ricos diante de Deus, e conquistareis o coração dos homens.
13. Amai-vos, aconselhai-vos e corrigi-vos mutuamente, mas não haja nunca entre vós inveja nem rancor; antes, o bem de um seja o bem de todos; as penas e os sofrimentos de um considerem-se como penas e sofrimentos de todos, e procure cada um afastá-los ou ao menos minorá-los.
14. Observai as nossas Regras e nunca vos esqueçais do exercício mensal da boa morte.
15. Cada manhã, recomendai a Deus as ocupações do dia, especialmente as confissões, aulas, catecismos e pregações.
16. Recomendai constantemente a devoção a Nossa Senhora Auxiliadora e a Jesus Sacramentado.
17. Aos meninos recomendai a confissão e a comunhão frequentes.
18. Para cultivar as vocações eclesiásticas, inculcai: 1) amor à castidade; 2) horror ao vício oposto; 3) fuga dos maus; 4) comunhão frequente; 5) caridade com sinais de bondade e especial benevolência.
19. Nas coisas contenciosas, antes de julgar, ouçam-se ambas as partes.
20. Nas fadigas e nos sofrimentos, não nos esqueçamos de que nos aguarda um grande prêmio no céu.
Amém.




A história das missões salesianas (1/5)

O 150º aniversário das missões salesianas será realizado em 11 de novembro de 2025. Acreditamos que seria interessante contar aos nossos leitores uma breve história dos precedentes e das primeiras etapas do que viria a ser uma espécie de epopeia missionária salesiana na Patagônia. Fazemos isso em cinco episódios, com a ajuda de fontes inéditas que nos permitem corrigir as muitas imprecisões que passaram para a história.

            Limpemos imediatamente o terreno: diz-se e escreve-se que Dom Bosco queria partir para as missões tanto como seminarista quanto como jovem sacerdote. Isso não está documentado. Se como estudante de 17 anos (1834) ele pediu para se unir aos frades franciscanos reformados do Convento dos Anjos em Chieri, que tinham missões, o pedido aparentemente foi feito principalmente por motivos econômicos. Se dez anos mais tarde (1844), quando deixou o “Colégio Eclesiástico” de Turim, foi tentado a entrar na Congregação dos Oblatos da Virgem Maria, que acabavam de ser encarregados de missões na Birmânia (Myanmar), é verdade que a missão, para a qual talvez também tivesse estudado línguas estrangeiras, era para o jovem padre Bosco apenas uma das possibilidades de apostolado que se abriam diante dele. Em ambos os casos, Dom Bosco seguiu imediatamente o conselho, primeiro do padre Comollo, de entrar no seminário diocesano e, depois, do padre Cafasso, de continuar a se dedicar aos jovens de Turim. Mesmo nos vinte anos entre 1850 e 1870, ocupado como estava em planejar a continuidade de sua “obra dos Oratórios”, em dar um fundamento jurídico à sociedade salesiana que estava criando e na formação espiritual e pedagógica dos primeiros salesianos, todos jovens de seu Oratório, certamente não estava em condições de dar continuidade a nenhuma aspiração missionária pessoal ou dos próprios “filhos”. Não há sequer uma sombra sobre a ida dele ou dos salesianos para a Patagônia, embora isso esteja escrito no papel ou na internet.

Aumento da sensibilidade missionária
            Isso não diminui o fato de que a sensibilidade missionária de Dom Bosco, provavelmente reduzida a tênues indícios e vagas aspirações nos anos de sua formação sacerdotal e no início do sacerdócio, se aguçou consideravelmente com o passar dos anos. A leitura dos Anais da Propagação da Fé lhe deu boas informações sobre o mundo missionário, tanto que ele extraiu episódios deles para alguns de seus livros e elogiou o Papa Gregório XVI, que incentivou a difusão do Evangelho nos cantos mais distantes da terra e aprovou novas ordens religiosas com objetivos missionários. Dom Bosco pôde receber considerável influência do Cônego G. Ortalda, diretor do Conselho diocesano da Associação de Propaganda Fide por 30 anos (1851-1880) e também promotor das “Escolas Apostólicas” (uma espécie de seminário menor para vocações missionárias). Em dezembro de 1857, lançou também o projeto de uma Exposição em favor das missões católicas confiadas aos seiscentos missionários da Sardenha. Dom Bosco estava muito bem informado sobre isso.
            O interesse missionário pode ter crescido nele em 1862, por ocasião da solene canonização em Roma dos 26 protomártires japoneses e em 1867, por ocasião da beatificação de mais de duzentos mártires japoneses, também celebrada com solenidade em Valdocco. Também na cidade papal, durante suas longas estadas em 1867, 1869 e 1870, ele pôde ver outras iniciativas missionárias locais, como a fundação do Pontifício Seminário dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo para missões estrangeiras.
            O Piemonte, com quase 50% dos missionários italianos (1500 com 39 bispos), estava na vanguarda nesse campo e o franciscano Dom Luís Celestino Spelta, Vigário Apostólico de Hupei, visitou Turim em novembro de 1859. Ele não visitou o Oratório, mas o fez Dom Daniel Comboni, em dezembro de 1864, que publicou em Turim o seu Plano de Regeneração para a África, com o intrigante projeto de evangelizar a África através dos africanos.
            Dom Bosco trocou ideias com ele, que em 1869 tentou, sem sucesso, associá-lo ao seu projeto e, no ano seguinte, convidou-o a enviar alguns sacerdotes e leigos para dirigir um instituto no Cairo e, assim, prepará-lo para as missões na África; a esse centro contava confiar aos salesianos um Vicariato Apostólico. Em Valdocco, o pedido, que não foi atendido, foi substituído pela disposição de aceitar meninos para serem educados para as missões. Lá, porém, o grupo de argelinos recomendado por Dom Carlos Martial Lavigerie encontrou dificuldades, de modo que foram enviados para Nice Marítima, na França. O pedido feito em 1869 pelo mesmo arcebispo para ter auxiliares salesianos em um orfanato em Argel, em tempos de emergência, não foi atendido. Da mesma forma, não foi atendida a petição de 1868 do missionário bresciano João Bettazzi para enviar salesianos para dirigir um instituto de artes e ofícios em construção, bem como um pequeno seminário menor, na diocese de Savannah (Geórgia, EUA). As propostas de outros, seja para dirigir obras educativas em “territórios de missão”, seja para ação direta in partibus infidelium [em territórios de infiéis], podiam ser até atraentes, mas Dom Bosco nunca renunciaria nem à sua plena liberdade de ação – que talvez visse comprometida pelas propostas que recebera de outros – nem, sobretudo, ao seu peculiar trabalho com os jovens, para os quais estava, na época, muito ocupado em desenvolver a recém-aprovada sociedade salesiana (1869) além das fronteiras de Turim e do Piemonte. Em suma, até 1870, Dom Bosco, embora teoricamente sensível às necessidades missionárias, estava cultivando outros projetos em nível nacional.

Quatro anos de pedidos não atendidos (1870-1874)
            O tema missionário e as importantes questões relacionadas a ele foram objeto de atenção durante o Concílio Vaticano I (1868-1870). Se o documento “Super Missionibus Catholicis” nunca foi apresentado na assembleia geral, a presença em Roma de 180 bispos de “terras de missão” e as informações positivas sobre o modelo salesiano de vida religiosa, difundidas entre eles por alguns bispos piemonteses, deram a Dom Bosco a oportunidade de encontrar muitos deles e também de ser contatado por eles, tanto em Roma como em Turim.
            Aqui, em 17 de novembro de 1869, foi recebida a delegação chilena, com o arcebispo de Santiago e o bispo de Concepción. Em 1870, foi a vez de Dom D. Barbero, Vigário Apostólico em Hyderabad (Índia), já conhecido de Dom Bosco, que lhe perguntou sobre as irmãs disponíveis para a Índia. Em julho de 1870, o dominicano Dom G. Sadoc Alemany, arcebispo de São Francisco, na Califórnia (EUA), foi a Valdocco, pediu e obteve dos salesianos uma casa de acolhida com uma escola profissionalizante (que nunca foi construída). O franciscano Dom L. Moccagatta, Vigário Apostólico de Shantung (China) e seu coirmão Dom Eligio Cosi, mais tarde seu sucessor, também visitaram Valdocco. Em 1873, foi a vez de Dom T. Raimondi, de Milão, que ofereceu a Dom Bosco a possibilidade de dirigir escolas católicas na Prefeitura Apostólica de Hong Kong. As negociações, que duraram mais de um ano, chegaram a um impasse por várias razões, assim como em 1874 um projeto de um novo seminário do padre Bertazzi para Savannah (EUA) também ficou no papel. A mesma coisa aconteceu naqueles anos com as fundações missionárias na Austrália e na Índia, para as quais Dom Bosco iniciou negociações com bispos individuais, que ele às vezes dava como concluídas à Santa Sé, quando na realidade eram apenas projetos em andamento.
            Naquele início dos anos setenta, com uma equipe composta por pouco mais de duas dúzias de pessoas (incluindo sacerdotes, clérigos e coadjutores), um terço delas com votos temporários, espalhadas em seis casas, teria sido difícil para Dom Bosco enviar algumas delas para terras de missão. Ainda mais porque as missões estrangeiras oferecidas a ele até naquele momento fora da Europa apresentavam sérias dificuldades de idioma, cultura e tradições não neolatinas, e havia fracassado a tentativa de longa data de ter jovens que falassem inglês, mesmo com a ajuda do reitor do colégio irlandês em Roma, Dom Toby Kirby.

(continua)

Foto de época: o porto de Gênova, 14 de novembro de 1877.




Quinto sonho missionário: Pequim (1886)

            Na noite de 9 para 10 de abril, Dom Bosco teve um novo sonho missionário, que contou ao P. Rua, Doli Branda e Viglietti, com voz por vezes entrecortada por soluços. Viglietti o escreveu logo em seguida e, por sua própria ordem, enviou uma cópia ao P. Lemoyne, para que fosse lido por todos os Superiores do Oratório e servisse de encorajamento geral. “Isso, porém”, advertiu o secretário, “é apenas o esboço de uma visão magnífica e muito longa”. O texto que publicamos é o de Viglietti, mas ligeiramente retocado pelo P. Lemoyne na forma para tornar sua dicção mais correta.

            Dom Bosco estava nas proximidades de Castelnuovo, na colina, assim chamada, Bricco del Pino, perto do vale Sbarnau. De lá de cima, ele olhava ao seu redor, mas tudo o que via era um denso matagal, espalhado por toda parte, na verdade coberto por uma quantidade inumerável de pequenos fungos.
            – Mas este, disse Dom Bosco, é justamente o condado de José Rossi (dessa terra Dom Bosco, brincando, havia criado conde o Coadjutor Rossi): devia ser mesmo!
            E, de fato, depois de algum tempo, ele avistou Rossi que, de uma colina distante, olhava para os vales abaixo. Dom Bosco o chamou, mas ele só respondeu com um olhar como se estivesse muito preocupado.
            Volando-se para o outro lado, Dom Bosco viu também ao longe o P. Rua que, da mesma forma que Rossi, estava com toda a seriedade, em silêncio, quase dormindo sentado.
            Dom Bosco chamou os dois, mas eles, calados, não responderam nem mesmo com um aceno de cabeça.
            Então ele desceu daquela colina e caminhou para outra, do alto da qual podia ver uma floresta, mas cultivada e entrecortada por estradas e caminhos. Dali, ele voltou seu olhar ao redor, fixou-o até o fim do horizonte; mas, antes de seus olhos, seu ouvido foi atingido pelo barulho de uma multidão inumerável de crianças.
            Por mais que ele tentasse descobrir de onde vinha aquele barulho, não conseguia enxergar nada; então o clamor foi seguido por um grito como se alguma catástrofe tivesse acontecido. Finalmente, ele viu um grande número de jovens correndo ao seu redor, dizendo-lhe:
            – Nós o esperamos, nós o esperamos por tanto tempo, mas finalmente o senhor está aqui: está entre nós e não vai mais fugir!
            Dom Bosco não entendia nada e pensava o que aqueles meninos queriam dele; mas enquanto estava parado como que atônito no meio deles, contemplando-os, viu um enorme rebanho de cordeiros conduzidos por uma pastora que, depois de separar os jovens e as ovelhas, colocando uns de um lado e as outras de outro, parou ao lado de Dom Bosco e lhe disse
            – Está vendo o que está à sua frente?
            – Sim, estou vendo, respondeu Dom Bosco.
            – Bem, você se lembra do sonho que teve quando tinha dez anos de idade?
            – Oh, para mim é muito difícil lembrar! Minha mente está cansada; atualmente não me lembro bem.
            – Bem, muito bem: pense sobre isso e se lembrará.
            Então, fazendo com que os jovens viessem a Dom Bosco, lhe disse:
            – Olhe agora para este lado, dirija o seu olhar e dirijam-no todos vocês e leiam o que está escrito… Bem, o que vê?
            – Vejo montanhas, depois mar, depois colinas, depois montanhas e mar novamente.
            – Eu leio Valparaíso, dizia um menino.
            – Eu leio Santiago, dizia outro.
            – Eu leio os dois, replicava um terceiro.
            – Bem, continuou a pastora, comece agora a partir desse ponto e você terá uma indicação do que os salesianos terão de fazer no futuro. Vire-se agora para o outro lado, trace uma linha de visão e olhe.
            – Estou vendo montanhas, colinas e mares!…
            E os jovens aguçavam o olhar e exclamaram em coro:
            – Nós lemos Pequim.
            Então Dom Bosco viu uma grande cidade. Ela era atravessada por um rio largo sobre o qual havia várias pontes grandes.
            – Bem, disse a menina que parecia ser a mestra deles, agora trace uma única linha de uma ponta a outra, de Pequim a Santiago, faça um centro no meio da África e terá uma ideia exata do que os salesianos têm de fazer.
            – Mas como fazer tudo isso? exclamou Dom Bosco. As distâncias são imensas, os lugares são difíceis e os Salesianos são poucos.
            – Não se preocupe. Seus filhos, os filhos de seus filhos e os filhos deles farão isso; mas mantenham-se firmes na observância das Regras e no espírito da Pia Sociedade.
            – Mas onde conseguir tanta gente?
            – Venha aqui e dê uma olhada. Está vendo ali cinquenta missionários prontos? Mais adiante, vê outros mais e mais ainda? Trace uma linha de Santiago até o centro da África. O que você vê?
            – Vejo dez centros de estações.
            – Bem, esses centros que vê formarão estudo e noviciado e darão uma multidão de missionários para atender a esses lugares. E agora vire para o outro lado. Aqui está vendo outros dez centros, desde o meio da África até Pequim. E esses centros também fornecerão missionários para todos os outros locais. Há Hong Kong, Calcutá e, mais adiante, Madagascar. Esses e outros terão casas, estudos e noviciados.
            Dom Bosco escutava, observando e examinando; depois disse:
            – E onde encontrar tanta gente, e como enviar Missionários a esses lugares? Lá há selvagens que se alimentam de carne humana; lá há hereges, acolá há perseguidores, e como fazer isso?
            – Olhe, respondeu a pastora, fique tranquilo. Só há uma coisa a fazer: recomendar que meus filhos cultivem constantemente a virtude de Maria.
            – Está bem, sim, me parece ter entendido. Pregarei suas palavras a todos.
            – E cuidado com o erro que agora prevalece, que é a mistura dos que estudam as artes humanas com os que estudam as artes divinas, porque a ciência do céu não quer estar misturada com as coisas terrenas.
            Dom Bosco ainda queria falar, mas a visão desapareceu: o sonho acabou.
(MB XVIII, 71-74)




O P. Rinaldi nos Becchi

O beato dom Filippo Rinaldi, terceiro sucessor de dom Bosco, é lembrado como uma figura extraordinária, capaz de unir em si as qualidades de Superior e Pai, insigne mestre de espiritualidade, pedagogia e vida social, além de guia espiritual incomparável. Sua profunda admiração por dom Bosco, que teve o privilégio de conhecer pessoalmente, o tornou um testemunho vivo do carisma do fundador. Consciente da importância espiritual dos lugares ligados à infância de dom Bosco, dom Rinaldi dedicou atenção especial a visitá-los, reconhecendo seu valor simbólico e formativo. Neste artigo, revisitamos algumas de suas visitas ao Colle Don Bosco, à descoberta do laço especial que o unia a esses lugares sagrados.

Para o pequeno santuário de Maria Auxiliadora
Com a inauguração do pequeno santuário de Maria Auxiliadora, desejado em frente à Casinha de Dom Bosco pelo P. Paulo Álbera, e precisamente a partir de 2 de agosto de 1918, quando Dom Morganti, Arcebispo de Ravena, assistido pelos nossos Superiores Maiores, abençoou solenemente a igreja e os sinos, teve início a presença permanente dos salesianos nos Becchi. Naquele dia, o padre Filipe Rinaldi, Prefeito Geral, também estava presente, e com ele o P. Francisco Cottrino, primeiro diretor da nova casa.
            A partir de então, as visitas do P. Rinaldi aos Becchi se renovaram a cada ano em um ritmo constante, uma verdadeira expressão de seu grande afeto pelo bom pai Dom Bosco e de seu grande interesse na aquisição e no arranjo adequado dos lugares memoráveis da infância do Santo.
            A partir da escassa crônica da casa salesiana dos Becchi, é fácil deduzir o cuidado e o amor com que o P. Rinaldi promoveu e acompanhou pessoalmente o trabalho necessário para honrar Dom Bosco e servir adequadamente aos peregrinos.
            Assim, em 1918, o P. Rinaldi, depois de ir aos Becchi para a bênção da igreja, voltou para lá em 6 de outubro, junto com o Card. Cagliero para a Festa do Santo Rosário, e aproveitou a oportunidade para iniciar as negociações para a compra da Casa Cavallo, atrás da casa de Dom Bosco.

Cuidados com a obra da casinha
            Em 1919, o padre Rinaldi fez duas visitas aos Becchi: uma em 2 de junho e outra em 28 de setembro, ambas em vista do trabalho de restauração a ser realizado na área histórica da Colina.
            Houve três visitas em 1920: a de 16 e 17 de junho, para negociar a compra da casa Graglia e do prado dos irmãos Bechis; a de 11 de setembro, para visitar as obras e a propriedade Graglia; e, finalmente, a de 13 do mesmo mês, para assistir à redação do instrumento notarial para a compra da mesma casa Graglia.
            Em 1921, houve duas visitas: em 16 de março, com o Arquiteto Valotti, para o projeto de uma estrada que levasse ao Santuário e de um Pilar e um Galpão para os peregrinos na pracinha; em 12-13 de setembro, com o Arquiteto Valotti e o Cavalheiro Melle, para o mesmo fim.
            Em 1922, o P. Rinaldi esteve novamente nos Becchi por duas vezes: em 4 de maio, com o Card. Cagliero, P. Ricaldone, P. Conelli e todos os membros do Capítulo Geral (inclusive os bispos salesianos), para rezar na Casinha depois de sua eleição como Reitor-Mor; e em 28 de setembro com seus colaboradores mais próximos.
            Em seguida, em 10 de junho de 1923, chegou à Casinha para celebrar a festa de Maria Auxiliadora. Ele presidiu as Vésperas no santuário, fez o sermão e deu a bênção eucarística. Na Academia que se seguiu, ele apresentou a Cruz “Pro Ecclesia et Pontifice” [pela Igreja e o Papa] ao Sr. João Febbraro, nosso benfeitor. Em outubro, ele voltou ao local com o Card. João Cagliero para a festa do Santo Rosário, celebrando a missa às 7h da manhã e levando o Santíssimo Sacramento na procissão eucarística, que foi seguida pela bênção dada pelo Cardeal.
            Em 7 de setembro de 1924, o P. Rinaldi liderou a Peregrinação dos Pais de Família e Ex-alunos das Casas de Turim aos Becchi. Ele celebrou a Santa Missa, fez o sermão e, depois do café da manhã, participou do concerto organizado para a ocasião. Ele retornou novamente em 22 de outubro do mesmo ano, juntamente com o P. Ricaldone, o Sr. Valotti e o Sr. Barberis, para resolver a espinhosa questão da estrada para o santuário, que envolvia dificuldades por parte dos proprietários de terras adjacentes.
            Dom Rinaldi esteve nos Becchi três vezes em 1925: em 21 de maio, para o descerramento da placa a Dom Bosco, e depois em 23 de julho e 19 de setembro, acompanhado novamente pelo Card. Cagliero.
            Em 13 de maio de 1926, o padre Rinaldi guiou uma peregrinação de cerca de 200 sócios da União dos Professores de Dom Bosco, celebrando a missa e presidindo a reunião. Em 24 de julho do mesmo ano, retornou, junto com todo o Capítulo Superior, para liderar a peregrinação dos Diretores das Casas da Europa; e novamente em 28 de agosto, com o Capítulo Superior e os Diretores das Casas da Itália.

Reestruturação do centro histórico
            Três outras visitas do P. Rinaldi aos Becchi datam de 1927: a de 30 de maio, com o P. Giraudi e o Sr. Valotti, para definir os trabalhos de edificação (construção do pórtico etc.); a de 30 de agosto, com o P. Tirone e os diretores dos oratórios festivos; e a de 10 de outubro, com o P. Tirone e os jovens missionários de Ivrea. Nessa última ocasião, o P. Rinaldi pediu ao diretor da época, P. Fracchia, que colocasse plantas atrás da casa Graglia e no prado do Sonho,
            Em 1928 o P. Rinaldi esteve nos quatro vezes nos Becchi: – Em 12 de abril, com o P. Ricaldone, para um exame do trabalho realizado e em andamento. – Nos dias 9 e 10 de junho, com P. Candela e P. V. Bettazzi, para a festa de Maria Auxiliadora e para a inauguração do Pilar do Sonho. Nessa ocasião, cantou a Santa Missa e, após as Vésperas e a Bênção Eucarística da tarde, abençoou o Pilar do Sonho e o novo Pórtico, dirigindo sua palavra a todos da varanda. À noite, participou da iluminação. – Em 30 de setembro, foi com o P. Ricaldone e o P. Giraudi visitar a localidade de “Gaj”. – Em 8 de outubro, voltou à frente da peregrinação anual dos jovens missionários de Ivrea. Foi nesse ano que o P. Rinaldi expressou seu desejo de comprar a casa de campo de Damevino para usá-la como alojamento para os peregrinos ou, melhor ainda, para cedê-la aos aspirantes a missionários dos Filhos de Maria.
            Foram seis as visitas aos Becchi em 1929: – A primeira, em 10 de março, com o P. Ricaldone, foi para visitar a casa Damevino e a casa Graglia (a primeira das quais foi comprada naquele mesmo ano). Como a beatificação de Dom Bosco era iminente, o padre Rinaldi também queria que um pequeno altar ao Beato fosse colocado na cozinha da Casinha (o que foi feito mais tarde, em 1931). – A segunda, em 2 de maio, foi também uma visita de estudo, com o P. Giraudi, o Sr. Valotti e o pintor, Prof. Guglielmino. – A terceira, em 26 de maio, foi para participar da festa de Maria Auxiliadora. – A quarta, em 16 de junho, foi com o Capítulo Superior e todos os membros do Capítulo Geral para a festa de Dom Bosco. – A quinta, em 27 de julho, foi uma breve visita ao P. Tirone e a Dom Massa. – A sexta, finalmente, foi com Dom Mederlet e os jovens missionários da Casa de Ivrea, pelos quais o P. Rinaldi não escondia suas predileções.
            Em 1930, o P. Rinaldi foi mais duas vezes aos Becchi: em 26 de junho, para uma breve visita de reconhecimento das várias localidades; e em 6 de agosto, com o P. Ricaldone, o Sr. Valotti e o Cav. Sartorio, para procurar água (que o P. Ricaldone encontrou em dois lugares, a 14 e 11 metros da fonte chamada Bacolla).
            Em 1931, ano de sua morte em 5 de dezembro, o padre Rinaldi foi aos Becchi pelo menos três vezes: em 19 de julho, à tarde. Naquela ocasião, ele recomendou que se fizesse a comemoração de Dom Bosco no dia 16 de cada mês ou no domingo seguinte. No dia 16 de setembro, quando aprovou e elogiou o campo esportivo preparado para os jovens da Comunidade. Em 25 de setembro, e foi a última, quando, com o P. Giraudi e o Sr. Valotti, examinou o projeto das árvores a serem plantadas na área (será executado mais tarde, em 1990, quando começou a realização do projeto de arborização de 3000 plantas nos vários lados do Colle dei Becchi, exatamente no ano de sua beatificação).
            Sem contar as visitas anteriores, portanto, são 41 as visitas feitas pelo padre Rinaldi aos Becchi entre 1918 e 1931.




Terceiro sonho missionário: viagem aérea (1885)

O sonho de Dom Bosco na véspera da partida dos missionários para a América é um evento rico em significado espiritual e simbólico na história da Congregação Salesiana. Naquela noite, entre 31 de janeiro e 1º de fevereiro, Dom Bosco teve uma visão profética que destaca a importância da piedade, do zelo apostólico e da confiança total na providência divina para o sucesso da missão. Esse episódio não apenas encorajou os missionários, mas também consolidou a convicção de Dom Bosco sobre a necessidade de expandir sua obra além das fronteiras italianas, levando educação, apoio e esperança às novas gerações em terras distantes.

            Nesse meio tempo, chegou a véspera da partida. Durante todo o dia, o pensamento de que o Bispo e os outros estariam indo para tão longe e a absoluta impotência de acompanhá-los, como nas ocasiões anteriores, até o embarque, ou melhor, a impossibilidade de pelo menos se despedir deles na igreja de Maria Auxiliadora, causaram-lhe abalos de emoção, que às vezes o oprimiam e o deixavam abatido. Agora, na noite de 31 de janeiro para 1º de fevereiro, ele teve um sonho semelhante ao de 1883 sobre as Missões. Ele o contou ao P. Lemoyne, que imediatamente o anotou. É o seguinte.

            Pareceu-me que eu estava acompanhando os missionários em sua viagem. Conversamos por um breve momento antes de deixar o Oratório. Eles ficaram ao meu redor e pediam meus conselhos; e me parecia que eu estava lhes dizendo:
            – Não com a ciência, não com a saúde, não com as riquezas, mas com zelo e piedade, vocês farão um grande bem, promovendo a glória de Deus e a salvação das almas.
            Estávamos pouco antes no Oratório e, sem saber por qual caminho havíamos passado e por quais meios, nos encontramos quase imediatamente na América. No final da viagem, encontrei-me sozinho no meio de uma vasta planície entre o Chile e a República Argentina. Meus queridos missionários estavam todos espalhados aqui e ali naquele espaço sem limites. Ao olhar para eles, fiquei admirado, pois pareciam poucos. Depois que tantos Salesianos foram enviados à América em várias épocas, pensei que deveria ter visto um número maior de missionários. Mas depois, refletindo, percebi que, se o número deles parecia pequeno, era porque estavam espalhados em muitos lugares, como sementes que tinham de ser transportadas para outro lugar para serem cultivadas e multiplicadas.
            Naquela planície, havia muitas e muito longas estradas ao longo das quais estavam espalhadas numerosas casas. Essas estradas não eram como as estradas desta terra, e as casas não eram como as casas deste mundo. Eram objetos misteriosos e, eu quase diria espirituais. Essas estradas eram percorridas por veículos, ou por meios de transporte, que ao correrem sucessivamente assumiam mil aspectos fantásticos e mil formas diferentes, embora magníficas e estupendas, de modo que não consigo definir ou descrever nenhuma delas. Observei com assombro que, quando os veículos se aproximavam de grupos de casas, aldeias, cidades, passavam bem alto, de modo que o viajante podia ver abaixo de si os telhados das casas, que, embora fossem muito altos, estavam também muito abaixo daquelas estradas que, enquanto no deserto aderiam ao solo, quando se aproximavam de lugares habitados tornavam-se aéreas, quase formando uma ponte mágica. Lá de cima era possível ver os habitantes em suas casas, pátios, ruas e, no campo, ocupados com o trabalho em suas propriedades.
            Cada uma daquelas estradas levava a uma de nossas missões. No final de uma via muito longa que se estendia pelo lado chileno, eu podia ver uma casa [todas as particularidades topográficas que precedem e seguem parecem indicar a casa de Fortín Mercedes, na margem esquerda do Colorado] com muitos irmãos Salesianos, que praticavam a ciência, a piedade, várias artes e ofícios e a agricultura. Ao sul ficava a Patagônia. No lado oposto, em um relance, podia ver todas as nossas casas na República Argentina. Depois, no Uruguai, Paysandú, Las Piedras, Villa Colón; no Brasil, o Colégio de Nicteroy [Niterói] e muitos outros internatos espalhados pelas províncias daquele império. Por último, a oeste, abria-se outra estrada muito longa, atravessando rios, mares e lagos chegava até países desconhecidos. Nessa região, vi poucos Salesianos. Observei atentamente e só consegui ver dois.
            Naquele momento, apareceu perto de mim um personagem de aparência nobre e amável, de pele pálida, gordo, com barba aparada de modo a parecer sem barba, um homem de idade adulta. Ele estava vestido de branco, com uma espécie de capa cor-de-rosa tecida com fios dourados. Tudo brilhava. Encontrei meu intérprete lá.
            – Onde estamos aqui? perguntei, apontando para este último país.
            – Estamos na Mesopotâmia, respondeu o intérprete.
            – Na Mesopotâmia? respondi; mas aqui é a Patagônia.
            – Eu lhe digo, respondeu o outro, esta é a Mesopotâmia.
            – Mas mesmo assim… mesmo assim… não consigo me convencer disso.
            – Mas é isso mesmo! Esta é a Me-so-po-tâ-mi-a, concluiu o intérprete, silabando a palavra para que ela ficasse bem impressa.
            – Mas por que os Salesianos que vejo aqui são tão poucos?
            – O que não é, será, concluiu meu intérprete.
            Enquanto isso, sempre parado naquela planície, eu olhava para todos aqueles caminhos intermináveis e contemplava, de maneira muito clara, mas inexplicável, os lugares que são e serão ocupados pelos Salesianos. Quantas coisas magníficas eu vi! Vi todos cada um dos colégios. Vi como que em um único ponto o passado, o presente e o futuro de nossas missões. Como vi tudo em um único olhar, é muito difícil, de fato impossível, mesmo que superficialmente, representar uma pequena ideia desse espetáculo. Apenas o que vi naquela planície do Chile, Paraguai, Brasil e República Argentina exigiria um grande volume, se eu quisesse dar algumas informações resumidas. Vi também, nessa vasta planície, a grande quantidade de selvagens que estão espalhados pelo Pacífico até o Golfo de Ancud, no Estreito de Magalhães, no Cabo Horn, nas Ilhas Diego Ramírez, nas Ilhas Malvinas. Tudo destinado aos Salesianos. Vi que agora os Salesianos apenas semeiam, mas nossa posteridade colherá. Homens e mulheres nos reforçarão e se tornarão pregadores. Seus próprios filhos, que parecem quase impossíveis de conquistar para a fé, se tornarão, eles mesmos, evangelizadores de seus parentes e amigos. Os Salesianos terão sucesso em tudo com humildade, com trabalho, com temperança. Todas as coisas que vi naquele momento e que vi mais tarde diziam respeito aos Salesianos, ao seu estabelecimento regular naqueles países, ao seu maravilhoso crescimento, à conversão de tantos nativos e de tantos europeus ali estabelecidos. A Europa vai se espalhar pela América do Sul. A partir do momento em que as igrejas começaram a ser despojadas na Europa, a prosperidade do comércio começou a diminuir, e foi entrando cada vez mais em declínio. Assim, os trabalhadores e suas famílias, levados pela miséria, correrão para buscar abrigo nessas novas terras hospitaleiras.
            Vendo o campo que o Senhor nos havia designado e o futuro glorioso da Congregação Salesiana, pareceu-me que deveria iniciar minha viagem de volta à Itália. Fui transportado rapidamente por uma estrada estranha e muito alta, e assim cheguei ao Oratório em pouco tempo.  Praças, ruas, jardins, avenidas, ferrovias, muros da cidade, o campo e as colinas ao redor, as cidades, os vilarejos da província, a gigantesca cadeia dos Alpes coberta de neve estavam diante de meus olhos, apresentando-me um panorama estupendo. Vi os jovens lá embaixo no Oratório, que pareciam tantos ratinhos. Mas o número deles era extraordinariamente grande; padres, clérigos, estudantes, líderes artísticos se encontravam por toda parte. Muitos saíram em procissão e outros se juntaram às fileiras dos que saíram. Era uma procissão contínua.
            Todos estavam se reunindo naquela vasta planície entre o Chile e a República Argentina, para a qual eu logo estava de volta em um piscar de olhos. Eu os estava observando. Um jovem padre que se parecia com o nosso P. Pavia, mas que não era, estava observando-os com um ar afável, fala cortês, aparência cândida e pele de menino, veio em minha direção e disse:
            – Aqui estão as almas e os países destinados aos filhos de São Francisco de Sales.
            Fiquei espantado com o fato de que a multidão que havia se reunido ali desapareceu em um instante e, ao longe, mal se podia ver a direção que haviam tomado.
            Observo aqui que, ao narrar meu sonho, estou fazendo um resumo, e não me é possível especificar a sucessão exata dos magníficos espetáculos que se apresentaram a mim e os vários eventos incidentais. O espírito não se detém, a memória se esquece, a palavra não é suficiente. Além do mistério que envolvia essas cenas, elas se alternavam, às vezes se entrelaçavam, e muitas vezes se repetiam de acordo com as várias uniões, separações ou partidas dos missionários, e com a reunião ou o afastamento dos povos que eram chamados à fé ou à conversão. Repito: via em um ponto o presente, o passado, o futuro dessas missões, com todas as fases, os perigos, os sucessos, os fracassos momentâneos ou as desilusões que acompanharão esse Apostolado. Então entendia tudo claramente, mas agora é impossível desvendar essa mistura de fatos, de ideias, de personagens. Seria como alguém que quisesse compreender em uma única história e reduzir a um único fato e unidade todo o espetáculo do firmamento, narrando o movimento, o esplendor, as propriedades de todas as estrelas com suas relações e leis particulares e recíprocas; enquanto uma única estrela daria matéria para a atenção e o estudo da mente mais viva. E observo novamente que estamos lidando aqui com coisas que não têm relação com objetos materiais.
            Retomando a história, digo que fiquei surpreso ao ver tal multidão desaparecer. Dom Cagliero estava ao meu lado naquele momento. Alguns missionários estavam a certa distância. Muitos outros estavam ao meu redor com um bom número de cooperadores Salesianos, entre os quais distingui Dom Espinosa, Doutor Torrero, Doutor Caranza e o Vigário Geral do Chile [talvez se quisesse falar de Dom Domingos Cruz, Vigário Capitular da Diocese de Concepción]. Em seguida, o intérprete habitual veio até mim, conversando com Dom Cagliero e vários outros, enquanto investigávamos se aquele fato tinha algum significado. Da maneira mais cortês, o intérprete me disse:
            – Ouça e o senhor verá.
            E eis que, naquele momento, a vasta planície se transformou em um grande salão. Não posso descrever exatamente como era sua magnificência e riqueza. Digo apenas que, se fosse para descrevê-lo, ninguém poderia sustentar seu esplendor nem mesmo com imaginação. Sua largura era tal que não se podia ver suas paredes laterais. Sua altura não podia ser alcançada. Toda a abóbada terminava em arcos muito altos, muito largos e muito resplandecentes, e não se podia ver em que suporte eles se apoiavam. Não havia pilares ou colunas. Em geral, parecia que a cúpula daquele grande salão era de um linho cândido, como uma tapeçaria. O mesmo acontecia com o piso. Não havia luzes, nem sol, nem lua, nem estrelas, mas sim um esplendor geral, espalhado igualmente por toda parte. A própria brancura dos linhos brilhava e tornava visível e agradável cada parte, cada ornamento, cada janela, cada entrada, cada saída. Ao redor, difundia-se uma doce fragrância, que era uma mistura de todos os odores mais agradáveis.
            Um fenômeno foi visto naquele momento. Havia ali um grande número de mesas como em um refeitório, com um comprimento extraordinário. Havia mesas em todas as direções, mas todas convergiam em um único centro. Elas estavam cobertas com toalhas de mesa elegantes e, sobre elas, estavam dispostos em ordem belos vasos de cristal nos quais havia muitas e variadas flores.
            A primeira coisa que Dom Cagliero notou foi:
            – As mesas estão aí, mas onde estão as comidas?
            De fato, nenhuma comida ou bebida estava posta, nem havia pratos, xícaras ou outros recipientes para colocar a comida.
            O amigo intérprete então respondeu:
            – Os que aqui vierem, neque sitient, neque esurient amplius (Não terão mais fome, nem sede – Ap 7,16).
            Dito isso, as pessoas começaram a entrar, todas vestidas de branco com uma faixa simples como um colar, da cor de uma rosa bordada com fios de ouro, que envolvia o pescoço e os ombros. Os primeiros a entrar eram em número limitado. Apenas alguns num pequeno grupo. Assim que entraram no grande salão, foram se sentar ao redor de uma mesa preparada para eles, cantando: Viva! Mas, depois deles, vieram outros grupos mais numerosos, cantando: Triunfo! E então começou a aparecer uma variedade de pessoas, grandes e pequenas, homens e mulheres, de todas as gerações, diferentes em cor, forma e atitude, e de todos os lados ressoavam canções: Viva! era cantado por aqueles que já estavam em seus  lugares. Triunfo! era cantado por aqueles que entravam. Cada multidão que entrava era de nações ou partes de nações que seriam convertidas pelos missionários.
            Olhei para aquelas mesas intermináveis e soube que ali, sentadas e cantando, estavam muitas de nossas irmãs e um grande número de nossos irmãos. Esses, no entanto, não tinham o distintivo de sacerdotes, clérigos ou freiras, mas, como os outros, usavam o manto branco e a capa cor-de-rosa.
            Mas meu espanto aumentou quando vi homens de aparência rude com o mesmo traje dos outros e cantando: Viva! Triunfo! Naquele momento, nosso intérprete disse:
            – Os estrangeiros, os selvagens que beberam o leite da palavra divina de seus educadores, tornaram-se arautos da palavra de Deus.
            Também observei no meio da multidão um número enorme de crianças com uma aparência rude e estranha e perguntei:
            – E essas crianças, cuja pele é tão áspera que parece a de um sapo, são tão belas e têm uma cor tão resplandecente? Quem são elas?
            O intérprete respondeu:
            – São os filhos de Cam que não renunciaram à herança de Levi. Eles fortalecerão os exércitos para proteger o reino de Deus, que finalmente chegou também entre nós. Seu número era pequeno, mas os filhos de seus filhos foram aumentando. Agora ouça e veja; mas o senhor não pode entender os mistérios que verá.
            Aqueles jovens pertenciam à Patagônia e ao sul da África.
            Naquele momento, as fileiras de pessoas que entraram naquele salão extraordinário aumentaram tanto que todas as cadeiras pareciam estar ocupadas. As cadeiras e os assentos não tinham uma forma específica, mas assumiam a forma que cada um desejava. Todos estavam felizes com o assento que ocupavam e com o assento que os outros ocupavam.
            E eis que, enquanto eles gritavam de todos os lados Viva! Triunfo! eis que finalmente uma grande multidão chegou, vindo alegremente ao encontro dos outros que já haviam entrado e estavam cantando: Aleluia, glória, triunfo!
            Quando o salão parecia completamente cheio, e as milhares de pessoas reunidas não podiam ser contadas, houve um profundo silêncio, e então aquela multidão começou a cantar dividida em vários coros.
            O primeiro coro: Appropinquavit in nos regnum Dei (O reino de Deus está próximo, Lc 10,11); laetentur Coeli et exultet terra (Alegrem-se os céus, exulte a terra, 1Cor 16,31); Dominus regnavit super nos (O Senhor reinou sobre nós); alleluia.
            Outro coro: Vicerunt; et ipse Dominus dabit edere de ligno vitae et non esurient in aeternum: alleluia (Ao vencedor darei alimento da árvore da vida e ele não terá fome na eternidade; aleluia, Ap 2,7).
            Um terceiro coro: Laudate Dominum omnes gentes, laudate eum omnes populi. (Todos os povos, louvem o Senhor, todos os povos, cantem o seu louvor, Sl 117,1).
            Enquanto cantavam essas e outras coisas, e se alternavam, de repente houve um profundo silêncio pela segunda vez. Então, vozes começaram a ressoar do alto e de longe. O significado do cântico era este, com uma harmonia que não pode ser expressa de forma alguma: Soli Deo honor et gloria in saecula saeculorum (Somente a Deus honra e glória pelos séculos dos séculos, 1Tm 1,17). Outros coros, sempre altos e distantes, respondiam a essas vozes: Semper gratiarum actio illi qui erat, est, et venturus est. Illi eucharistia, illi soli honor sempiternus (Ação de graças na eternidade àquele que era, que é e que há de vir. A ele a Eucaristia, a ele somente a honra eterna).
            Mas, naquele momento, os coros se abaixaram e se aproximaram. Entre esses músicos celestiais estava Luís Colle. Todos os outros que estavam no salão começaram a cantar e se juntaram, unindo suas vozes à semelhança de instrumentos musicais extraordinários, com sons cuja extensão não tinha limites. Essa música parecia ter ao mesmo tempo mil notas e mil graus de elevação que se combinavam para formar um único acorde de vozes. As vozes no topo subiam tão alto que não se pode imaginar. As vozes dos que estavam no salão desciam sonoramente, arredondadas tão baixo que não se pode expressar. Todas formavam um só coro, uma só harmonia, mas tanto os baixos e como os altos com tanto gosto e beleza e com tanta penetração em todos os sentidos do homem e absorção deles, que o homem se esquecia de sua própria existência; e eu caí de joelhos aos pés de Dom Cagliero, exclamando:
            – Oh, Cagliero! Estamos no paraíso!
            Dom Cagliero me pegou pela mão e respondeu:
            – Não é o paraíso, é uma imagem simples e muito tênue do que realmente será o paraíso.
            Enquanto isso, unanimemente, as vozes dos dois grandiosos coros continuavam e cantavam com inexprimível harmonia: Soli Deo honor et gloria, et triumphus alleluia, in aeternum in aeternum! (Somente a Deus honra e glória e triunfo aleluia, para todo o sempre!) Aqui eu me esqueci de mim mesmo e não sei mais o que aconteceu comigo. De manhã, tive dificuldade para sair da cama; mal conseguia me lembrar de mim mesmo quando fui celebrar a Santa Missa.
            O principal pensamento que permaneceu comigo depois desse sonho foi o de dar a Dom Cagliero e aos meus queridos missionários um aviso da maior importância com relação ao futuro destino de nossas missões: – Que todas as solicitudes dos Salesianos e das Irmãs de Maria Auxiliadora sejam dirigidas à promoção das vocações eclesiásticas e religiosas.
(MB XVII, 299-305)