Coroa das sete dores de Maria

A publicação “Coroa das sete dores de Maria” representa uma devoção querida que São João Bosco incutia em seus jovens. Seguindo a estrutura da “Via Crucis” [Via Sacra], as sete cenas dolorosas são apresentadas com breves considerações e orações, para guiar a uma participação mais viva nos sofrimentos de Maria e de seu Filho. Rico em imagens afetivas e espiritualidade contrita, o texto reflete o desejo de unir-se a Nossa Senhora das Dores na compaixão redentora. As indulgências concedidas por vários Pontífices atestam o alto valor pastoral do texto, que é um pequeno tesouro de oração e reflexão, para alimentar o amor pela Mãe das dores.

Prólogo
O principal objetivo desta pequena obra é facilitar a lembrança e a meditação das amarguradíssimas dores do terno Coração de Maria, algo que a Ela é muito agradável, como revelou várias vezes a seus devotos, e um meio muito eficaz para nós obtermos seu patrocínio.
Para tornar mais fácil o exercício de tal meditação, praticar-se-á primeiramente com uma coroa na qual são indicadas as sete principais dores de Maria, que poderão ser meditadas em sete breves considerações distintas, do modo como se costuma fazer na Via Sacra.
Que o Senhor nos acompanhe com sua graça celestial e bênção para que se alcance o intento desejado, de modo que a alma de cada um fique vivamente penetrada pela frequente memória das dores de Maria, com proveito espiritual da alma, e tudo para maior glória de Deus.

Coroa das sete dores da Bem-Aventurada Virgem Maria com sete breves considerações sobre as mesmas expostas na forma da Via Sacra

Preparação
Queridos irmãos e irmãs em Jesus Cristo, fazemos nossos habituais exercícios meditando devotamente as amarguradíssimas dores que a Bem-Aventurada Virgem Maria sofreu na vida e morte de seu amado Filho e nosso Divino Salvador. Imaginemo-nos presentes a Jesus pendente na cruz, e que sua aflita mãe diga a cada um de nós: Venham e vejam se há uma dor igual à minha.
Convencidos de que esta Mãe piedosa quer nos conceder proteção especial ao meditarmos suas dores, invoquemos a ajuda divina com as seguintes orações:

Antífona: Vem, Espírito Santo, enche os corações dos teus fiéis e acende neles o fogo do teu amor.

Envia o teu Espírito e tudo será criado,
e renovarás a face da terra.
Lembra-te da tua Congregação,
que possuías desde o princípio.
Senhor, escuta a minha oração,
e chegue a ti o meu clamor.

Oremos.
Ilumina, Senhor, nossas mentes com a luz da tua claridade, para que possamos ver o que deve ser feito e agir corretamente. Por Cristo nosso Senhor. Amém.

Primeira dor. Profecia de Simeão
A primeira dor foi quando a Santa Virgem, Mãe de Deus, tendo apresentado seu Filho no Templo, o depôs nos braços do santo velho Simeão, que lhe disse: A espada da dor traspassará a tua alma: o que significa a Paixão e Morte de seu Filho Jesus.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Virgem dolorosa, por aquela agudíssima espada com que o santo velho Simeão te predisse que tua alma seria traspassada na paixão e morte do teu querido Jesus, suplico-te que me concedas a graça de ter sempre presente a memória do teu coração traspassado e das amarguradíssimas penas sofridas por teu Filho para minha salvação. Assim seja.

Segunda dor. Fuga para o Egito
A segunda dor foi quando a Santa Virgem se viu obrigada a fugir para o Egito a fim de evitar a perseguição do cruel Herodes, que impiamente procurava dar a morte a seu amado Filho Jesus.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Maria, mar amarguíssimo de lágrimas, por aquela dor que sentiste fugindo para o Egito para proteger teu Filho da bárbara crueldade de Herodes, suplico que sejas minha guia, para que, por teu intermédio, eu fique livre das perseguições dos inimigos visíveis e invisíveis da minha alma. Assim seja.

Terceira dor. Perda de Jesus no templo
A terceira dor da Bem-Aventurada Virgem foi quando, pelo tempo da Páscoa, depois de ter estado com o seu esposo José e com o seu amado filho Jesus em Jerusalém, de volta à sua pobre casa, perdeu o seu divino Filho e por três dias seguidos o procurou, lamentando a perda de seu único amor.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Mãe desconsolada, tu que na perda da presença corporal de teu Filho o procuraste ansiosamente por três dias seguidos, rogo-te que obtenhas a graça para todos os pecadores, para que também eles o procurem com atos de contrição e o encontrem. Assim seja.

Quarta dor. Encontro de Jesus carregando a cruz
A quarta dor da Santa Virgem foi quando encontrou seu dulcíssimo Filho Jesus, que carregava uma pesada cruz, em seus ombros delicados, até ao Monte Calvário, para ser crucificado pela nossa salvação.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Virgem mais apaixonada do que todas, por aquele sofrimento que sentiste no coração ao encontrar teu Filho enquanto ele carregava o madeiro da Santíssima Cruz rumo ao Monte Calvário, peço-te que eu o acompanhe continuamente com o pensamento, chore meus pecados, causa manifesta dos seus e dos teus tormentos. Assim seja.

Quinta dor. Crucificação de Jesus
A quinta dor da Santa Virgem foi quando viu seu Filho Jesus suspenso sobre o duro madeiro da Cruz, vertendo sangue de todo o seu Santíssimo Corpo e morrendo depois de três horas de agonia.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Rosa entre os espinhos, por aquelas dores amargas que traspassaram teu peito ao ver com teus próprios olhos teu Filho traspassado e elevado na Cruz, obtém para mim, peço-te, que eu busque com meditações assíduas somente Jesus crucificado por causa dos meus pecados. Assim seja.

Sexta dor. Deposição de Jesus da cruz
A sexta dor da Santa Virgem foi quando seu amado Filho Jesus, depois de ter sido traspassado no peito com um golpe de lança e despregado da cruz, foi deposto em seu santo regaço.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Virgem aflita, tu que acolheste teu Filho morto no colo, vencido pela Cruz, e beijando aquelas santíssimas feridas, derramaste sobre elas um mar de lágrimas, rogo-te que eu também lave continuamente com lágrimas de verdadeiro arrependimento as feridas mortais que meus pecados te causaram. Assim seja.

Sétima dor. Sepultamento de Jesus
A sétima e última dor da Santa Virgem, Senhora e Advogada dos seus servos e dos pobres pecadores, foi quando viu sepultado o Corpo Santíssimo de seu Filho Jesus.
Um Pai-Nosso e sete Ave-Marias.

Oração
Ó Mártir dos Mártires, Maria, por aquele tormento amargo que sofreste quando, sepultado teu Filho, tiveste que afastar-te daquele túmulo amado, concede graça, peço-te, a todos os pecadores, para que conheçam o quanto é grave dano para a alma estar longe de seu Deus. Assim seja.

Digam-se em seguida três Ave-Marias em sinal de profundo respeito às lágrimas que a Santíssima Virgem derramou nas suas Dores, a fim de impetrar uma verdadeira dor dos nossos pecados e para ganhar as santas indulgências.
Ave Maria etc.

Terminada a Coroa, recita-se o pranto da Bem-Aventurada Virgem, ou seja, o hino Stabat Mater etc.

Hino – Pranto da Bem-Aventurada Virgem Maria

Stabat Mater dolorosa
Iuxta crucem lacrymosa,
Dum pendebat Filius.

Cuius animam gementem
Contristatam et dolentem
Pertransivit gladius.

O quam tristis et afflicta
Fuit illa benedicta
Mater unigeniti!

Quae moerebat, et dolebat,
Pia Mater dum videbat.
Nati poenas inclyti.

Quis est homo, qui non fleret,
Matrem Christi si videret
In tanto supplicio?

Quis non posset contristari,
Christi Matrem contemplari
Dolentem cum filio?

Pro peccatis suae gentis
Vidit Iesum in tormentis
Et flagellis subditum.

Vidit suum dulcem natura
Moriendo desolatum,
Dum emisit spiritum.

Eia mater fons amoris,
Me sentire vim doloris
Fac, ut tecum lugeam.

Fac ut ardeat cor meum
In amando Christum Deum,
Ut sibi complaceam.

Sancta Mater istud agas,
Crucifixi fige plagas
Cordi meo valide.

Tui nati vulnerati
Tam dignati pro me pati
Poenas mecum divide.

Fac me tecum pie flere,
Crucifixo condolere,
Donec ego vixero.

Iuxta Crucem tecum stare,
Et me tibi sociare
In planctu desidero.

Virgo virginum praeclara,
Mihi iam non sia amara,
Fac me tecum plangere.

Fac ut portem Christi mortem,
Passionis fac consortem,
Et plagas recolere.

Fac me plagis vulnerari,
Fac me cruce inebriari,
Et cruore Filii.

Flammis ne urar succensus,
Per te, Virgo, sim defensus
In die Iudicii.

Christe, cum sit hine exire,
Da per matrem me venire
Ad palmam victoriae.

Quando corpus morietur,
Fac ut animae donetur
Paradisi gloria. Amen.

Estava a mãe dolorosa
junto da cruz, lacrimosa,
via o filho que pendia.

Na sua alma gemia,
contristada e dolorida
por um gládio transpassada.

Oh! Quão triste e aflita
entre todas, Mãe bendita,
que só tinha aquele Filho.

Quanta angústia não sentia,
Mãe piedosa quando via
as penas do Filho seu.

Quem não chora vendo isso:
contemplando a Mãe de Cristo
num suplício tão enorme?

Quem haverá que resista
se a Mãe assim se contrista
padecendo com seu Filho?

Por culpa de sua gente
Viu Jesus inocente,
Ao flagelo submetido.

Vê agora o seu amado
pelo Pai abandonado,
entregando seu espírito.

Faze, ó Mãe, fonte de amor
que eu sinta o espinho da dor,
para contigo chorar.

Faze arder meu coração
do Cristo Deus na paixão
para que o possa agradar.

Ó Santa Mãe, dá-me isto,
trazer as chagas de Cristo
gravadas no coração.

Do teu filho que por mim
entrega-se a morte assim,
divide as penas comigo.

Oh! Dá-me enquanto viver,
com Cristo compadecer,
chorando sempre contigo.

Junto à cruz eu quero estar,
quero o meu pranto juntar
às lágrimas que derramas.

Virgem, que às virgens aclara,
não sejas comigo avara,
dá-me contigo chorar.

Traga em mim do Cristo a morte,
da Paixão seja consorte,
suas chagas celebrando.

Por elas seja eu rasgado,
pela cruz inebriado,
pelo sangue de teu Filho.

No Julgamento consegue,
que às chamas não seja entregue
quem por ti é defendido.

Quando do mundo eu partir,
dai-me, ó Cristo, conseguir
por tua Mãe a vitória.

Quando meu corpo morrer,
possa a alma merecer
do Reino Celeste, a glória. Amém.

O Sumo Pontífice Inocêncio XI concede indulgência de 100 dias toda vez que se reza o Stabat Mater. Bento XIII concedeu indulgência de sete anos a quem rezar a Coroa das sete dores de Maria. Muitas outras indulgências foram concedidas por outros sumos Pontífices, especialmente aos Confrades e Coirmãs da Companhia de Maria Dolorosa.

As sete dores de Maria meditadas na forma da Via Crucis

Invoque-se a ajuda divina dizendo:
Actiones nostras, quaesumus, Domine, aspirando praeveni, et adiuvando prosequere, ut cuncta nostra oratio et operatio a te semper incipiat, et per te coepta finiatur. Per Christum Dominum Nostrum. Amen. [Inspirai, Senhor, todas as nossas ações e orações, e ajudai-nos a realizá-las, para que em Vós comece e para Vós termine tudo aquilo que fizermos. Por Cristo, Senhor nosso. Amém.]

Ato de Contrição
Virgem muitíssimo aflita, ai! quão ingrato fui no tempo passado para com meu Deus, com quanta ingratidão correspondi aos seus inúmeros benefícios! Agora me arrependo, e na amargura do meu coração e no pranto da minha alma, peço humildemente a Ele perdão por ter ultrajado sua infinita bondade, estando decidido no futuro, com a graça celestial, a nunca mais ofendê-lo. Ah! por todas as dores que suportastes na bárbara paixão do vosso amado Jesus, peço-vos com os mais profundos suspiros que me obtenhais do mesmo, piedade e misericórdia dos meus pecados. Aceitai este santo exercício que estou para fazer e recebei-o em união com aquelas penas e dores que Vós sofrestes por vosso filho Jesus. Ah, concedei-me! sim, concedei-me que aquelas mesmas espadas que traspassaram o vosso espírito, atravessem também o meu, e que eu viva e morra na amizade do meu Senhor, para participar eternamente da glória que Ele me conquistou com seu precioso Sangue. Assim seja.

Primeira dor
Nesta primeira dor, imaginemo-nos no templo de Jerusalém, onde a Bem-Aventurada Virgem ouviu a profecia do velho Simeão.

Meditação
Ah! Que angústias terá sentido o coração de Maria ao ouvir as dolorosas palavras com que lhe foi predita pelo Santo velho Simeão a amarga paixão e a atroz morte do seu dulcíssimo Jesus: enquanto naquele mesmo instante lhe surgiram à mente os ultrajes, os tormentos e as carnificinas que os ímpios judeus fariam ao Redentor do mundo. Mas sabes qual foi a espada mais penetrante que a traspassou nessa circunstância? Foi considerar a ingratidão com que seu amado Filho seria retribuído pelos homens. Agora, refletindo que, por causa dos teus pecados, estás miseravelmente entre esses tais, ah! lança-te aos pés desta Mãe Dolorosa e dize chorando assim (todos se ajoelham): Ah! Virgem piedosíssima, que sentistes tão amarga dor no vosso espírito ao ver o abuso que eu, criatura indigna, teria feito do sangue do vosso amável Filho, fazei, sim fazei por vosso aflito Coração, que eu no futuro corresponda às Divinas Misericórdias, aproveite as graças celestiais, não receba em vão tantas luzes e inspirações que Vós vos dignareis obter para mim, para que eu tenha a sorte de estar entre aqueles para quem a amarga paixão de Jesus seja de salvação eterna. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Segunda dor
Nesta segunda dor, consideremos a dolorosíssima viagem que a Virgem fez ao Egito para libertar Jesus da cruel perseguição de Herodes.

Meditação
Considera a amarga dor que Maria terá sentido quando, à noite, teve que partir por ordem do Anjo para preservar seu Filho da matança ordenada por aquele feroz Príncipe. Ah! que a cada grito de animal, a cada sopro de vento, a cada movimento de folha que ouvia por aquelas estradas desertas, se enchia de medo temendo algum infortúnio para o menino Jesus que levava consigo. Ora se voltava para um lado, ora para o outro, ora apressava o passo, ora se escondia crendo ter sido alcançada pelos soldados, que, arrancando de seus braços seu amabilíssimo Filho, teriam feito sob seus olhos um tratamento bárbaro, e fixando o olhar lacrimoso sobre seu Jesus e apertando-o fortemente ao peito, dando-lhe mil beijos, mandava do coração os suspiros mais angustiados. E aqui reflete quantas vezes renovaste essa amarga dor a Maria, forçando seu Filho com teus graves pecados a fugir da tua alma. Agora que conheces o grande mal cometido, volta-te arrependido a esta piedosa Mãe e dize-lhe assim:
Ah, Mãe dulcíssima! Uma vez Herodes obrigou-vos, com vosso Jesus, a fugir da inumana perseguição por ele ordenada; mas eu, oh! quantas vezes obriguei meu Redentor e, por consequência, também a vós, a partir rapidamente do meu coração, introduzindo nele o maldito pecado, inimigo cruel vosso e do meu Deus. Ah! todo dolorido e contrito vos peço humildemente perdão.
Sim, misericórdia, ó querida Mãe, misericórdia, e prometo-vos no futuro, com a ajuda divina, manter sempre meu Salvador e Vós no total domínio da minha alma. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Terceira dor
Nesta terceira dor, consideremos a Virgem muitíssimo aflita que, lacrimosa, vai à procura do seu Jesus perdido.

Meditação
Quão grande foi a dor de Maria quando percebeu que havia perdido seu amável Filho! E como cresceu sua dor quando, tendo-o procurado diligentemente entre amigos, parentes e vizinhos, não pôde obter nenhuma notícia dele. Ela, não se importando com os incômodos, o cansaço, os perigos, vagou por três dias seguidos pelas regiões da Judeia, repetindo aquelas palavras de desolação: talvez alguém tenha visto aquele que verdadeiramente ama a minha alma? Ah! que a grande ansiedade com que o procurava a fazia imaginar a cada momento vê-lo ou ouvir sua voz; mas, ao se reconhecer frustrada, oh, como se aterrorizava e sentia mais intensamente o pesar por tão deplorável perda! Grande confusão para ti, pecador, que tantas vezes perdeste teu Jesus pelos graves pecados cometidos, e não te preocupaste em procurá-lo, claro sinal de que pouco ou nenhum valor dás ao precioso tesouro da amizade divina. Chora, pois, tua cegueira, e voltando-te a esta Mãe Dolorosa, dize-lhe suspirando assim:
Virgem muitíssimo aflita, fazei que eu aprenda de vós a verdadeira maneira de buscar Jesus que perdi para seguir minhas paixões e as iníquas sugestões do demônio, para que eu consiga encontrá-lo, e quando o tiver recuperado, repetirei continuamente aquelas vossas palavras: Encontrei aquele que verdadeiramente ama meu coração; o guardarei sempre comigo, e nunca mais o deixarei partir. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Quarta dor
Na quarta dor, consideremos o encontro que a Virgem Dolorosa teve com seu Filho apaixonado.

Meditação
Venham, ó corações endurecidos, e vejam se conseguem suportar este espetáculo lacrimoso. É uma mãe, a mais terna, a mais amorosa, que encontra seu Filho, o mais doce, o mais amável; e como o encontra? Oh Deus! no meio da mais ímpia turba que o arrasta cruelmente para a morte, carregado de feridas, pingando sangue, rasgado pelas feridas, com uma coroa de espinhos na cabeça e com um tronco pesado sobre os ombros, ofegante, cansado, exausto, que parece a cada passo querer exalar o último suspiro.
Ah! considera, minha alma, a parada mortal que a Santíssima Virgem faz ao primeiro olhar que fixa sobre seu Jesus atormentado; ela gostaria de lhe dar o último adeus, mas como, se a dor a impede de pronunciar palavra? Gostaria de lançar-se ao seu pescoço, mas fica imóvel e petrificada pela força da aflição interna; gostaria de desabafar com o pranto, mas sente o coração tão apertado e oprimido que não consegue derramar uma lágrima. Oh! e quem pode conter as lágrimas ao ver uma pobre Mãe imersa em tão grande aflição? Mas quem é a causa de tão amarga dor? Ah, sou eu; sim, sou eu com meus pecados que fiz uma ferida tão bárbara ao vosso terno coração, ó Virgem Dolorosa. Porém, quem acreditaria? Permaneço insensível sem me comover. Mas se fui ingrato no passado, no futuro não serei mais.
Enquanto isso, prostrado aos vossos pés, ó Santíssima Virgem, peço humildemente perdão por tanto sofrimento que vos causei. Sei e confesso que não mereço piedade, sendo eu a verdadeira causa de vossa dor ao encontrar vosso Jesus todo coberto de feridas; mas lembrai-vos, sim, lembrai-vos que sois mãe de misericórdia. Ah, mostrai-vos, pois, assim para comigo, que eu vos prometo no futuro ser mais fiel ao meu Redentor, e assim compensar tantos desgostos que causei ao vosso aflito espírito. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Quinta dor
Nesta quinta dor, imaginemo-nos no Monte Calvário onde a Virgem muitíssimo aflita viu seu amado Filho expirar na Cruz.

Meditação
Aqui estamos no Calvário onde já estão erguidos dois altares de sacrifício, um no corpo de Jesus, outro no coração de Maria. Oh espetáculo terrível! Vemos a Mãe afogada num mar de aflições ao ver ser levado à morte cruel o caro e amável fruto de suas entranhas. Ai de mim! Cada martelada, cada ferida, cada rasgo que o Salvador recebe em seu corpo ressoa profundamente no coração da Virgem. Ela está aos pés da Cruz tão penetrada pela dor e transpassada pelo sofrimento que não se sabe quem será o primeiro a expirar, se Jesus ou Maria. Fixa o olhar no rosto agonizante do Filho, considera as pupilas cansadas, o rosto pálido, os lábios lívidos, a respiração difícil e finalmente sabe que Ele não vive mais e que já entregou o espírito no seio do eterno Pai. Ah, então a alma dela faz todo esforço possível para se separar do corpo e unir-se à de Jesus. E quem pode suportar tal visão.
Ó Mãe muitíssimo dolorosa, em vez de se retirar do Calvário para não sentir tão intensamente as angústias, permaneceis imóvel para absorver até a última gota o cálice amargo de vossas aflições. Que confusão deve ser esta para mim que busco todos os meios para evitar as cruzes e os pequenos sofrimentos que, para meu bem, o Senhor se digna enviar-me? Virgem muitíssimo dolorosa, humilho-me diante de vós, ah! fazei que eu conheça claramente o valor e o grande mérito do sofrimento, para que me apegue tanto a ele que nunca me canse de exclamar com São Francisco Xavier: Plus Domine, Plus Domine, mais sofrer, meu Deus. Ah sim, mais sofrer, ó meu Deus. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Sexta dor
Nesta sexta dor, imaginemo-nos vendo a Virgem desconsolada que recebe nos braços o corpo morto de seu Filho, retirado da Cruz.

Meditação
Considera a dor mais amarga que penetrou a alma de Maria quando viu no seu colo o corpo morto do amado Jesus. Ah! ao fixar o olhar nas feridas e nas chagas dele, ao contemplá-lo tingido com seu próprio sangue, foi tal o ímpeto da dor interior que seu coração foi mortalmente traspassado, e se não morreu foi a onipotência divina que a conservou viva. Ó pobre Mãe, sim, pobre mãe, que conduzis ao túmulo o caro objeto de vossas mais ternas complacências, e que de um ramo de rosas se tornou um feixe de espinhos pelos maus-tratos e rasgos feitos pelos ímpios malfeitores. E quem não terá compaixão de vós? Quem não se sentirá dilacerado pela dor ao ver-vos num estado de aflição que comove até a pedra mais dura? Vejo João inconsolável, Madalena com as outras Marias que choram amargamente, Nicodemos que não pode mais suportar a aflição. E eu? Eu sozinho não derramo uma lágrima em meio a tanto sofrimento! Ingrato e ignorante que sou!
Ah! Mãe piedosíssima, aqui estou aos vossos pés, recebei-me sob a vossa poderosa proteção e fazei com que este meu coração seja traspassado por aquela mesma espada que atravessou de parte a parte o vosso aflito espírito, para que se amoleça uma vez e chore verdadeiramente meus graves pecados que vos causaram tão cruel martírio. E assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Sétima dor
Nesta sétima dor, consideremos a Virgem muitíssimo dolorosa que vê seu Filho morto ser sepultado.

Meditação
Considera o suspiro mortal que enviou o aflito coração de Maria quando viu seu amável Jesus ser colocado no túmulo! Oh que dor, que sofrimento sentiu seu espírito quando foi levantada a pedra com que se deveria fechar aquele sacratíssimo monumento! Não era possível afastá-la da borda do sepulcro, enquanto a dor era tal que a tornava insensível e imóvel, sem cessar de contemplar aquelas chagas e aquelas feridas cruéis. Quando então o túmulo foi fechado, oh, então sim, tal foi a força da dor interior que ela teria certamente caído morta se Deus não a tivesse conservado viva. Ó Mãe muitíssimo atribulada! Agora partireis com o corpo deste lugar, mas aqui certamente ficará vosso coração, pois aqui está vosso verdadeiro tesouro. Ah destino, que em companhia dele fique todo nosso afeto, todo nosso amor, como poderá ser que não nos derretamos de benevolência para com o Salvador, que deu todo seu sangue por nossa salvação? Como poderá ser que não amemos a Vós que tanto sofrestes por nossa causa.
Agora nós, chorando arrependidos por termos causado tantas dores a vosso Filho e a vós tanta amargura, prostramo-nos aos vossos pés e por todas aquelas dores que nos fizestes a graça de meditar, concedei-nos este favor: que a memória das mesmas fique sempre vivamente impressa em nossa mente, que nossos corações se consumam por amor ao nosso bom Deus, e a Vós, nossa doce Mãe, e que o último suspiro de nossa vida se una àqueles que derramastes do fundo da vossa alma na dolorosa paixão de Jesus, a quem seja honra, glória e ação de graças pelos séculos dos séculos. Assim seja. Ave Maria etc. Glória ao Pai etc.

Maria, meu doce bem,
Gravai no meu coração as vossas dores.

Então se reza o Stabat Mater, como acima.

Antífona. Tuam ipsius animam (ait ad Mariam Simeon) pertransiet gladius. [Tua própria alma (disse Simeão a Maria) uma espada transpassará]
Rogai por nós, Virgem Dolorosa.
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

Oremos
Deus, em cuja paixão, segundo a profecia de Simeão, a doce alma da Gloriosa Virgem e Mãe Maria Dolorosa foi traspassada pela espada, concedei propício que, nós que recordamos a memória de suas dores, alcancemos felizmente o efeito da vossa paixão. Vós que viveis e reinais pelos séculos dos séculos. Amém.

Louvado seja Deus e a Virgem Dolorosa.

Com permissão da Revisão Eclesiástica

A Festa das Sete Dores de Maria Virgem Dolorosa, celebrada pela Pia União e Sociedade, ocorre no terceiro domingo de setembro na Igreja de São Francisco de Assis.

Texto da 3ª edição, Turim, Tipografia de Giulio Speirani e filhos, 1871




O Venerável Mons. Stefano Ferrando

Monsenhor Stefano Ferrando foi um exemplo extraordinário de dedicação missionária e serviço episcopal, unindo o carisma salesiano a uma vocação profunda ao serviço dos mais pobres. Nascido em 1895 no Piemonte, entrou jovem na Congregação Salesiana e, após servir no exército durante a Primeira Guerra Mundial, o que lhe valeu a medalha de prata por valor, dedicou-se ao apostolado na Índia. Bispo de Krishnagar e depois de Shillong por mais de trinta anos, caminhou incansavelmente entre as populações, promovendo a evangelização com humildade e profundo amor pastoral. Fundou instituições, apoiou os catequistas leigos e encarnou em sua vida o lema “Apóstolo de Cristo”. Sua vida foi um exemplo de fé, entrega a Deus e doação total, deixando um legado espiritual que continua a inspirar a missão salesiana no mundo.

O Venerável Bispo Dom Estêvão Ferrando soube conjugar a vocação salesiana com o carisma missionário e o ministério episcopal. Nascido em 28 de setembro de 1895, em Rossiglione (Gênova, diocese de Acqui), filho de Agostinho e Josefina Salvi, distinguiu-se por um ardente amor a Deus e uma terna devoção à Santíssima Virgem Maria. Em 1904, ingressou nas escolas salesianas, primeiramente em Fossano e depois em Turim-Valdocco, onde conheceu os sucessores de Dom Bosco e a primeira geração de salesianos, e iniciou seus estudos sacerdotais; nesse meio tempo, alimentou o desejo de partir como missionário. Em 13 de setembro de 1912, fez sua primeira profissão religiosa na Congregação Salesiana de Foglizzo. Convocado às armas em 1915, participou da Primeira Guerra Mundial. Por sua coragem, recebeu a medalha de prata por bravura. Voltou para casa em 1918; emitiu seus votos perpétuos em 26 de dezembro de 1920.
Foi ordenado sacerdote no Bairro São Martinho (Alessandria) em 18 de março de 1923. Em 2 de dezembro do mesmo ano, com nove companheiros, embarcou em Veneza como missionário para a Índia. Em 18 de dezembro, após 16 dias de viagem, o grupo chegou a Bombaim e, em 23 de dezembro, a Shillong, local de seu novo apostolado. Como mestre de noviços, ele educou os jovens salesianos no amor de Jesus e Maria e tinha um grande espírito de apostolado.
Em 9 de agosto de 1934, o Papa Pio XI o nomeou Bispo de Krishnagar. Seu lema era “Apóstolo de Cristo”. Em 26 de novembro de 1935, foi transferido para Shillong, onde permaneceu como bispo por 34 anos. Enquanto trabalhava em uma situação difícil de impacto cultural, religioso e social, o Bispo Dom Ferrando trabalhou incansavelmente para estar perto das pessoas que lhe foram confiadas, trabalhando com zelo na vasta diocese que abrangia toda a região do nordeste da Índia. Ele preferia viajar a pé em vez do carro, que teria à sua disposição: isso lhe permitia conhecer as pessoas, parar e conversar com elas, envolver-se em suas vidas. Esse contato ao vivo com a vida das pessoas foi um dos principais motivos da fecundidade de sua proclamação evangélica: a humildade, a simplicidade e o amor pelos pobres levaram muitos a se converterem e a pedir o batismo. Ele fundou um seminário para a formação de jovens salesianos indianos, construiu um hospital, ergueu um santuário dedicado a Maria Auxiliadora e fundou a primeira congregação de irmãs autóctones, a Congregação das Irmãs Missionárias de Maria Auxiliadora (1942).

Homem de caráter forte, ele não desanimou diante das inúmeras dificuldades, que enfrentou com um sorriso e a mansidão. A perseverança diante dos obstáculos era uma de suas principais características. Ele procurou unir a mensagem do Evangelho à cultura local na qual ela deveria ser inserida. Era intrépido em suas visitas pastorais, que fazia aos lugares mais remotos da diocese, a fim de recuperar a última ovelha perdida. Mostrou sensibilidade e promoção especiais para com os catequistas leigos, que considerava complementares à missão do bispo e dos quais dependia grande parte da fecundidade da proclamação do Evangelho e de sua penetração no território. Sua atenção ao trabalho de pastoral familiar também era imensa. Apesar de seus inúmeros compromissos, o Venerável era um homem com uma rica vida interior, alimentada pela oração e pelo recolhimento. Como pastor, era apreciado por suas irmãs, sacerdotes, irmãos salesianos e no episcopado, bem como pelo povo, que o sentia profundamente próximo a eles. Ele se doou de forma criativa ao seu rebanho, cuidando dos pobres, defendendo os intocáveis, cuidando dos doentes de cólera.
As pedras angulares de sua espiritualidade eram o vínculo filial com a Virgem Maria, o zelo missionário, a referência contínua a Dom Bosco, como se depreende de seus escritos e de toda a sua atividade missionária. O momento mais luminoso e heroico de sua vida virtuosa foi sua partida da diocese de Shillong. Dom Ferrando teve que apresentar sua renúncia ao Santo Padre quando ainda estava na plenitude de suas faculdades físicas e intelectuais, para permitir a nomeação de seu sucessor, que deveria ser escolhido, de acordo com as instruções superiores, entre os sacerdotes autóctones que ele havia formado. Foi um momento particularmente doloroso, vivido pelo grande bispo com humildade e obediência. Ele entendeu que era hora de se retirar em oração, de acordo com a vontade do Senhor.
Retornou a Gênova em 1969 e continuou sua atividade pastoral, presidindo as cerimônias de confirmação e dedicando-se ao sacramento da penitência.
Foi fiel à vida religiosa salesiana até o fim, decidindo viver em comunidade e renunciando aos privilégios que sua posição como bispo poderia ter-lhe reservado. Continuou a ser “um missionário” na Itália. Não “um missionário que se desloca, mas […] um missionário que é. Sua vida nessa última temporada tornou-se uma vida “irradiante”. Ele se tornou um “missionário da oração” que dizia: “Estou feliz por ter vindo embora para que outros pudessem me substituir e fazer obras tão maravilhosas”.
De Gênova Quarto, ele continuou a animar a missão em Assam, aumentando a conscientização e enviando ajuda financeira. Viveu essa hora de purificação com espírito de fé, de abandono à vontade de Deus e de obediência, tocando com as próprias mãos o pleno significado da expressão evangélica “somos apenas servos inúteis”, e confirmando com sua vida o caetera tolle, o aspecto oblativo-sacrifical da vocação salesiana. Morreu em 20 de junho de 1978 e foi sepultado em Rossiglione, sua terra natal. Em 1987, seus restos mortais foram levados de volta à Índia.

Na docilidade ao Espírito, desenvolveu uma fecunda ação pastoral, que se manifestou no grande amor aos pobres, na humildade de espírito e na caridade fraterna, na alegria e no otimismo do espírito salesiano.
Junto com muitos missionários que compartilharam com ele a aventura do Espírito na terra da Índia, entre os quais os Servos de Deus Francisco Convertini, Constantino Vendrame e Orestes Marengo, Dom Ferrando inaugurou um novo método missionário: ser missionário itinerante. Esse exemplo é um incentivo providencial, especialmente para as congregações religiosas tentadas por um processo de institucionalização e fechamento, para que não percam a paixão de ir ao encontro das pessoas e das situações de maior pobreza e miséria material e espiritual, indo aonde ninguém quer ir e confiando, como ele fez. “Olho para o futuro com confiança, confiando em Maria Auxiliadora… Vou me confiar a Maria Auxiliadora, que já me salvou de tantos perigos”.




Santa Mônica, mãe de Santo Agostinho, testemunha de esperança

Uma mulher de fé inabalável, de lágrimas fecundas, atendida por Deus após dezessete longos anos. Um modelo de cristã, esposa e mãe para toda a Igreja. Uma testemunha de esperança que se transformou em poderosa intercessora no Céu. O próprio Dom Bosco recomendava às mães, aflitas pela vida pouco cristã de seus filhos, que se encomendassem a ela nas orações.

Na grande galeria dos santos e santas que marcaram a história da Igreja, Santa Mônica (331-387) ocupa um lugar singular. Não por milagres espetaculares, não pela fundação de comunidades religiosas, nem por feitos sociais ou políticos de destaque. Mônica é lembrada e venerada sobretudo como mãe, a mãe de Agostinho, o jovem inquieto que, graças às suas orações, às suas lágrimas e ao seu testemunho de fé, tornou-se um dos maiores Padres da Igreja e Doutores da fé católica.
Mas limitar sua figura ao papel materno seria injusto e redutor. Mônica foi uma mulher que soube viver sua vida ordinária – esposa, mãe, crente – de forma extraordinária, transfigurando o cotidiano pela força da fé. É um exemplo de perseverança na oração, de paciência no casamento, de esperança inabalável diante dos desvios do filho.
As informações sobre sua vida chegam até nós quase exclusivamente pelas Confissões de Agostinho, um texto que não é uma crônica, mas uma leitura teológica e espiritual da existência. Ainda assim, nessas páginas Agostinho traça um retrato inesquecível da mãe: não apenas uma mulher boa e piedosa, mas um autêntico modelo de fé cristã, uma “mãe das lágrimas” que se tornam fonte de graça.

As origens em Tagaste
Mônica nasceu em 331 em Tagaste, cidade da Numídia, Souk Ahras na atual Argélia. Era um centro vibrante, marcado pela presença romana e por uma comunidade cristã já enraizada. Proveniente de uma família cristã abastada: a fé já fazia parte de seu horizonte cultural e espiritual.
Sua formação foi marcada pela influência de uma ama austera, que a educou na sobriedade e na temperança. Santo Agostinho escreverá sobre ela: “Não falarei, portanto, de seus dons, mas dos teus dons a ela, que não se fez sozinha, nem foi educada sozinha. Tu a criaste sem que nem o pai nem a mãe soubessem que filha teriam; e a ensinaste no teu temor com a vara do teu Cristo, ou seja, a disciplina do teu Unigênito, numa casa de crentes, membro saudável da tua Igreja.” (Confissões IX, 8, 17).

Nas mesmas Confissões, Agostinho também relata um episódio significativo: a jovem Mônica havia adquirido o hábito de beber pequenos goles de vinho da adega, até que uma serva a repreendeu chamando-a de “bêbada”. Essa repreensão foi suficiente para que ela se corrigisse definitivamente. Essa historieta, aparentemente sem importância, mostra sua honestidade em reconhecer seus pecados, em deixar-se corrigir e em crescer em virtude.

Aos 23 anos, Mônica foi dada em casamento a Patrício, um funcionário municipal pagão, conhecido por seu temperamento colérico e sua infidelidade conjugal. A vida matrimonial não foi fácil: a convivência com um homem impulsivo e distante da fé cristã colocou à prova sua paciência.
No entanto, Mônica nunca caiu em desânimo. Com uma atitude de mansidão e respeito, soube conquistar progressivamente o coração do marido. Não respondia com dureza às explosões de raiva, não alimentava conflitos inúteis. Com o tempo, sua constância deu frutos: Patrício se converteu e recebeu o batismo pouco antes de morrer.
O testemunho de Mônica mostra como a santidade não se expressa necessariamente em gestos grandiosos, mas na fidelidade cotidiana, no amor que sabe transformar lentamente as situações difíceis. Nesse sentido, é um modelo para muitas esposas e mães que vivem casamentos marcados por tensões ou diferenças de fé.

Mônica mãe
Do casamento nasceram três filhos: Agostinho, Navígio e uma filha cujo nome desconhecemos. Mônica derramou sobre eles todo seu amor, mas sobretudo sua fé. Navígio e a filha seguiram um caminho cristão linear: Navígio tornou-se sacerdote; a filha seguiu o caminho da virgindade consagrada. Agostinho, por sua vez, tornou-se logo o centro de suas preocupações e lágrimas.
Desde garoto, Agostinho mostrava uma inteligência extraordinária. Mônica o enviou para estudar retórica em Cartago, desejosa de garantir-lhe um futuro brilhante. Mas junto com os progressos intelectuais vieram também as tentações: sensualidade, mundanismo, más companhias. Agostinho abraçou a doutrina maniqueísta, convencido de encontrar nela respostas racionais para o problema do mal. Além disso, começou a conviver sem casar com uma mulher, da qual teve um filho, Adeodato. Os desvios do filho levaram Mônica a negar-lhe acolhida em sua casa. Mas não por isso deixou de orar por ele e de oferecer sacrifícios: “do coração sangrante de minha mãe te era oferecido por mim noite e dia o sacrifício de suas lágrimas”. (Confissões V, 7,13) e “derramava mais lágrimas do que jamais derramam as mães pela morte física dos filhos” (Confissões III, 11,19).

Para Mônica foi uma ferida profunda: o filho, que ela havia consagrado a Cristo no ventre, estava se perdendo. A dor era indescritível, mas ela nunca deixou de esperar. O próprio Agostinho escreverá: “O coração de minha mãe, atingido por tal ferida, nunca mais sararia: porque não sei expressar adequadamente seus sentimentos por mim e quão maior foi seu trabalho ao me dar à luz em espírito do que aquele com que me deu à luz na carne.” (Confissões V, 9,16).

Surge espontânea a pergunta: por que Mônica não batizou Agostinho logo após o nascimento?
Na verdade, embora o batismo infantil já fosse conhecido e praticado, ainda não era uma prática universal. Muitos pais preferiam adiá-lo para a idade adulta, considerando-o um “banho definitivo”: temiam que, se o batizado pecasse gravemente, a salvação estaria comprometida. Além disso, Patrício, ainda pagão, não tinha interesse em educar o filho na fé cristã.
Hoje vemos claramente que foi uma escolha infeliz, pois o batismo não só nos torna filhos de Deus, mas nos dá a graça de vencer as tentações e o pecado.
Uma coisa, porém, é certa: se ele tivesse sido batizado quando criança, Mônica teria poupado a si mesma e ao filho muitos sofrimentos.

A imagem mais forte de Mônica é a de uma mãe que ora e chora. As Confissões a descrevem como uma mulher incansável em interceder junto a Deus pelo filho.
Um dia, um bispo de Tagaste – segundo alguns, o próprio Ambrósio – a tranquilizou com palavras que ficaram célebres: “Vai, não pode se perder o filho de tantas lágrimas”. Essa frase tornou-se a estrela guia de Mônica, a confirmação de que sua dor materna não era em vão, mas parte de um misterioso desígnio de graça.

Tenacidade de uma mãe
A vida de Mônica foi também uma peregrinação nos passos de Agostinho. Quando o filho decidiu partir às escondidas para Roma, Mônica não poupou esforços; não deu a causa como perdida, mas o seguiu e o procurou até encontrá-lo. Ela o alcançou em Milão, onde Agostinho havia conseguido uma cátedra de retórica. Ali encontrou um guia espiritual em Santo Ambrósio, bispo da cidade. Entre Mônica e Ambrósio nasceu uma profunda sintonia: ela reconhecia nele o pastor capaz de guiar o filho, enquanto Ambrósio admirava sua fé inabalável.
Em Milão, a pregação de Ambrósio abriu novas perspectivas para Agostinho. Ele abandonou progressivamente o maniqueísmo e começou a olhar para o cristianismo com novos olhos. Mônica acompanhava silenciosamente esse processo: não forçava os tempos, não exigia conversões imediatas, mas orava, apoiava e permanecia ao lado dele até sua conversão.

A conversão de Agostinho
Parecia que Deus não a ouvia, mas Mônica nunca deixou de orar e oferecer sacrifícios pelo filho. Após dezessete anos, finalmente suas súplicas foram atendidas – e como! Agostinho não só se tornou cristão, mas também sacerdote, bispo, doutor e padre da Igreja.
Ele mesmo reconhece: “Tu, porém, na profundidade dos teus desígnios, atendeste ao ponto vital do seu desejo, sem te importares com o objeto momentâneo de seu pedido, mas cuidando de fazer de mim aquilo que sempre te pedia que fizesse.” (Confissões V, 8,15).

O momento decisivo chegou em 386. Agostinho, atormentado interiormente, lutava contra as paixões e resistências de sua vontade. No célebre episódio do jardim de Milão, ao ouvir a voz de uma criança dizendo “Tolle, lege” (“Toma, lê”), abriu a Carta aos Romanos e leu as palavras que mudaram sua vida: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não atendais aos desejos e paixões da vida carnal” (Rm 13,14).
Foi o início de sua conversão. Junto com o filho Adeodato e alguns amigos, retirou-se para Cassicíaco para se preparar para o batismo. Mônica estava com eles, participando da alegria de ver finalmente atendidas as orações de tantos anos.
Na noite de Páscoa de 387, na catedral de Milão, Ambrósio batizou Agostinho, Adeodato e os outros catecúmenos. As lágrimas de dor de Mônica se transformaram em lágrimas de alegria. Continuou a servi-los, tanto que em Cassicíaco Agostinho dirá: “Cuidou como se fosse mãe de todos e nos serviu como se fosse filha de todos.”.

Óstia: o êxtase e a morte
Após o batismo, Mônica e Agostinho se prepararam para voltar à África. Parando em Óstia, aguardando o navio, viveram um momento de intensa espiritualidade. As Confissões narram o êxtase de Óstia: mãe e filho, à janela, contemplaram juntos a beleza da criação e se elevaram a Deus, antecipando a bem-aventurança do céu.
Mônica dirá: “Filho, quanto a mim não encontro mais nenhum atrativo nesta vida. Não sei por que ainda estou aqui e o que faço aqui. Este mundo não é mais objeto de desejos para mim. Havia apenas um motivo para querer ficar um pouco mais nesta vida: ver-te cristão católico antes de morrer. Deus me atendeu além de toda minha expectativa, concedeu-me ver-te a seu serviço e liberto das aspirações de felicidade terrena. Para que estou aqui?” (Confissões IX, 10,11). Ela havia alcançado seu objetivo terreno.
Alguns dias depois, Mônica adoeceu gravemente. Sentindo a proximidade da morte, disse aos filhos: “Meus filhos, sepultem aqui sua mãe: não se preocupem com o lugar. Só lhes peço uma coisa: lembrem-se de mim no altar do Senhor, onde quer que estejam”. Essa foi a síntese de sua vida: não importava o local do sepultamento, mas o vínculo na oração e na Eucaristia.
Morreu aos 56 anos, em 12 de novembro de 387, e foi sepultada em Óstia. No século VI, suas relíquias foram transferidas para uma cripta escondida na mesma igreja de Santa Áurea. Em 1425, as relíquias foram transladas para Roma, na basílica de Santo Agostinho no Campo de Márcio, onde ainda hoje são veneradas.

O perfil espiritual de Mônica
Agostinho descreve sua mãe com palavras bem medidas:
“[…] feminina na aparência, viril na fé, vigilante na serenidade, maternal no amor, cristã na piedade […]”. (Confissões IX, 4,8).
E ainda:
“[…] viúva casta e sóbria, assídua na esmola, devota e submissa aos teus santos; que não deixava passar um dia sem levar a oferta ao teu altar, que duas vezes ao dia, de manhã e à noite, sem falta visitava tua igreja, e não para conversar inutilmente e tagarelar como as outras velhas, mas para ouvir tuas palavras e fazer ouvir suas orações. As lágrimas de tal mulher, que com elas te pedia não ouro nem prata, nem bens volúveis ou instáveis, mas a salvação da alma de seu filho, tu poderias desprezá-las, tu que assim a fizeste com tua graça, recusando-lhe teu socorro? Certamente não, Senhor. Tu, ao contrário, estavas ao lado dela e a atendias, operando segundo a ordem com que predestinaste que devesse operar.” (Confissões V, 9,17).

Desse testemunho agostiniano, emerge uma figura de surpreendente atualidade.
Foi uma mulher de oração: nunca deixou de invocar a Deus pela salvação de seus entes queridos. Suas lágrimas tornam-se modelo de intercessão perseverante.
Foi uma esposa fiel: em um casamento difícil, nunca respondeu com ressentimento à dureza do marido. Sua paciência e mansidão foram instrumentos de evangelização.
Foi uma mãe corajosa: não abandonou o filho em seus desvios, mas o acompanhou com amor tenaz, capaz de confiar nos tempos de Deus.
Foi uma testemunha de esperança: sua vida mostra que nenhuma situação é desesperadora, se vivida na fé.
A mensagem de Mônica não pertence apenas ao século IV. Fala ainda hoje, em um contexto em que muitas famílias vivem tensões: filhos se afastam da fé, pais experimentam a dificuldade da espera.
Ensina aos pais a não desistir, a crer que a graça opera de maneiras misteriosas.
Mostra às mulheres cristãs como a mansidão e a fidelidade podem transformar relações difíceis.
A quem se sinta desanimado na oração, testemunha que Deus escuta, mesmo que os tempos não coincidam com os nossos.
Não é por acaso que muitas associações e movimentos escolheram Mônica como padroeira das mães cristãs e das mulheres que rezam pelos filhos afastados da fé.

Uma mulher simples e extraordinária
A vida de Santa Mônica é a história de uma mulher simples e extraordinária ao mesmo tempo. Simples porque vivida no cotidiano de uma família; extraordinária porque transfigurada pela fé. Suas lágrimas e suas orações moldaram um santo e, através dele, marcaram profundamente a história da Igreja.
Sua memória, celebrada em 27 de agosto, na véspera da festa de Santo Agostinho, nos lembra que a santidade muitas vezes passa pela perseverança oculta, pelo sacrifício silencioso, pela esperança que não decepciona.
Nas palavras de Agostinho, dirigidas a Deus pela mãe, encontramos a síntese de sua herança espiritual: “Não posso dizer o quanto minha alma lhe é devedora, meu Deus; mas tu sabes tudo. Recompensa-a com tua misericórdia pelo que te pediu com tantas lágrimas por mim” (Conf., IX, 13).

Santa Mônica, através dos acontecimentos de sua vida, alcançou a felicidade eterna que ela mesma definiu: “A felicidade consiste, sem dúvida, em alcançar o fim e devemos confiar que podemos ser conduzidos a ele por uma fé firme, por uma viva esperança, por uma ardente caridade”. (A Felicidade 4,35).




Dom Bosco com seus salesianos

Se com seus meninos Dom Bosco brincava alegremente para vê-los alegres e serenos, com seus salesianos revelava também em tom de brincadeira a estima que tinha por eles, o desejo de vê-los formar com ele uma grande família, pobre sim, mas confiante na Divina Providência, unida na fé e na caridade.

Os feudos de Dom Bosco
Em 1830, Margarida Occhiena, viúva de Francisco Bosco, fez a divisão dos bens herdados de seu marido entre seu enteado Antônio e seus dois filhos José e João. Consistia, entre outras coisas, de oito lotes de terra com prado, campo e vinhedo. Não sabemos nada exato sobre os critérios seguidos por Mamãe Margarida ao dividir a herança paterna entre os três. Entretanto, entre os lotes de terra havia um vinhedo próximo aos Becchi (em Bric dei Pin), um campo em Valcapone (ou Valcappone) e outro em Bacajan (ou Bacaiau). De qualquer forma, essas três terras constituem os “feudos” que Dom Bosco, às vezes, chamava por brincadeira de sua propriedade.
Os Becchi, como todos sabemos, são o humilde povoado do vilarejo onde Dom Bosco nasceu; Valcapponé (ou Valcapone) era um local a leste do Colle, sob a Serra di Capriglio, mas no fundo do vale, na área conhecida como Sbaruau (= espantalho), porque era densamente arborizada, com algumas cabanas escondidas entre os galhos, que serviam como local de armazenamento para lavanderias e como refúgio para bandidos. Bacajan (ou Bacaiau) era um campo a leste do Colle, entre os lotes de Valcapone e Morialdo. Estes são os “feudos” de Dom Bosco!
As Memórias Biográficas dizem que, por algum tempo, Dom Bosco conferiu títulos de nobreza a seus colaboradores leigos. Assim, havia o Conde dos Becchi, o Marquês de Valcappone, o Barão de Bacaiau, isto é, os três terrenos que Dom Bosco devia conhecer como parte de sua herança. “Com esses títulos costumava chamar Rossi, Gastini, Enria, Pelazza, Buzzetti, não só em casa, mas também fora, sobretudo quando viajava com alguns deles” (MB VIII, 198-199 – MB VIII, 231-232).
Entre esses “nobres” salesianos, sabemos com certeza que o conde dos Becchi (ou do Bricco del Pino) era José Rossi, o primeiro salesiano leigo, ou “Coadjutor”, que amava Dom Bosco como um filho muito afeiçoado e lhe foi fiel para sempre.
Um dia, Dom Bosco foi à estação de Porta Nova e José Rossi o acompanhou carregando sua mala. Eles chegaram quando o trem estava prestes a partir e os vagões estavam cheios de gente. Dom Bosco, não conseguindo encontrar um assento, voltou-se para Rossi e, em voz alta, disse-lhe:
– Oh, senhor conde, lamento que esteja tendo tanto trabalho por mim!
– Imagine, Dom Bosco, é uma honra para mim!
Alguns viajantes que estavam na janela, ao ouvirem aquelas palavras “Senhor Conde” e “Dom Bosco”, olharam uns para os outros com espanto e um deles gritou do vagão:
– Dom Bosco! Senhor Conde! Subam aqui; ainda há dois lugares!
– Mas eu não queria incomodá-los – respondeu Dom Bosco.
– Subam! É uma honra para nós. Vou retirar minhas malas; estarão à vontade!
E assim o “Conde dos Becchi” pôde entrar no trem com Dom Bosco e a mala.

As bombas e uma cabana
Dom Bosco viveu e morreu pobre. Para comer, ele se contentava com muito pouco. Até mesmo um copo de vinho já era demais para ele, e ele sistematicamente misturava com água.
“Muitas vezes se esquecia de beber por estar absorto em outros pensamentos, e cabia aos vizinhos de mesa completar-lhe o copo. Então, se o vinho era do bom, logo procurava água “para fazê-lo melhor”, dizia. E acrescentava sorrindo: ‘Renunciei ao mundo e ao demônio, mas não às pompas’, aludindo às bombas que tiram água dos poços” (MB IV, 191-192 – MBp IV, 181).
Até mesmo para as acomodações, sabemos como ele vivia. Em 12 de setembro de 1873, foi realizada a Conferência Geral dos Salesianos para reeleger um ecônomo e três conselheiros. Naquela ocasião, Dom Bosco pronunciou palavras memoráveis e proféticas sobre o desenvolvimento da Congregação. Então, quando chegou a hora de falar sobre o Capítulo Superior, que a essa altura parecia precisar de uma residência adequada, ele disse, em meio à hilaridade universal: “Se fosse possível, eu gostaria de fazer no meio do pátio uma ‘söpanta’ (leia-se: supanta = barraca, abrigo), onde o Capítulo Superior pudesse ficar separado de todos os mortais. Como os membros deste Capítulo Superior têm o direito de continuar a viver nesta terra, ele poderá estar ora aqui, ora lá, nas diversas casas, segundo parecer melhor!” (MB X, 1061-1062 – MBp X, 888-889).

Otis, botis, pija tutis
Um jovem lhe perguntava um dia como ele conhecia o futuro e adivinhava tantos segredos. Respondeu-lhe:
– “Escute-me. A maneira é esta, e se explica com: Ótis, bótis, pija tútis. Sabe o que significam estas palavras? Preste atenção. São palavras gregas. E soletrando, repetiu: Ó-tis, bó-tis, pi-ja tú-tis. Entende?
– É um negócio complicado de entender!
– Também sei disso. Eu mesmo nunca quis revelar a ninguém o que significa essa epígrafe. E ninguém sabe mesmo. Nem nunca saberá. É conveniente não o revelar. Este é o grande segredo com que opero todas as coisas fora do comum. Com ele eu leio as consciências, e por meio dele revelam-se os mistérios. Mas se você é esperto, veja se pode entender alguma coisa.
E repetia aquelas quatro palavras, acentuando-as sucessivamente ao pronunciar cada uma delas. Passava o indicador na testa, sobre a boca, sobre o queixo, sobre o peito do jovem e acabava por dar-lhe, de improviso, um tapinha no rosto. O jovem ria, mas insistia:
– Mas, ao menos, traduza-me as quatro palavras em língua vulgar.
– Posso traduzi-las, mas não entenderá a tradução.
E, brincando, falava em dialeto piemontês:
– Quand ch’at dan ed bòte, pije tute (Quando lhe dão bofetadas, tome-as todas) (MB VI, 424 – MB VI, 401-402). E queria dizer que, para se tornar santo, é preciso aceitar todos os sofrimentos que a vida nos reserva.

Protetor dos funileiros
Todos os anos, os jovens do Oratório de São Leão, em Marselha, faziam um passeio à casa do Sr. Olive, um generoso benfeitor dos Salesianos. Naquela ocasião, o pai e a mãe serviam os superiores à mesa, e seus filhos, os alunos.

Em 1884, o passeio aconteceu durante a estada de Dom Bosco em Marselha.
Enquanto os alunos estavam se divertindo nos jardins, o cozinheiro correu até a Madame Olive para lhe dizer:
– Madame, a panela de sopa para os meninos está vazando e não há como remediar a isso. Terão de ficar sem sopa!
A senhora, que tinha muita fé em Dom Bosco, teve uma ideia. Mandou chamar todos os jovens:
– “Escutem”, disse-lhes ela, “se quiserem comer a sopa, ajoelhem-se aqui e rezem uma oração a Dom Bosco para que a panela deixe de vazar”.
Eles obedeceram. A panela parou de vazar instantaneamente. Mas Dom Bosco, ao ouvir o fato, riu muito e disse:
– De agora em diante, chamarão Dom Bosco de patrono dos funileiros (MB XVII, 55-56).




O cardeal Augusto Hlond

Era o segundo de 11 filhos; seu pai era um trabalhador ferroviário. Tendo recebido de seus pais uma fé simples, mas forte, aos 12 anos, atraído pela fama de Dom Bosco, seguiu seu irmão Inácio para a Itália para se consagrar ao Senhor na Sociedade Salesiana; e logo atraiu outros dois irmãos para lá: Antônio, que se tornaria salesiano e um músico renomado, e Clemente, que se tornaria missionário. O colégio de Valsalice o acolheu para seus estudos ginasiais. Em seguida, foi admitido no noviciado e recebeu a batina do Beato Miguel Rua (1896). Depois de fazer sua profissão religiosa em 1897, seus superiores o enviaram a Roma, à Universidade Gregoriana, para o curso de filosofia, que ele coroou com um diploma. De Roma, retornou à Polônia para fazer seu tirocínio prático no colégio de Oświęcim. Sua fidelidade ao sistema de educação de Dom Bosco, seu compromisso com a assistência e com a escola, sua dedicação aos jovens e a amabilidade de seus modos lhe renderam grande ascendência. Ele também se tornou rapidamente conhecido por seu talento musical.
Concluídos os estudos de teologia, recebeu a ordenação sacerdotal em 23 de setembro de 1905; foi ordenado em Cracóvia pelo bispo Dom Nowak. De 1905 a 1909, frequentou a Faculdade de Artes das Universidades de Cracóvia e Leópolis. Em 1907, foi encarregado da nova casa em Przemyśl (1907-1909), de onde passou a dirigir a casa de Viena (1909-1919). Ali, sua coragem e habilidade pessoal tiveram um alcance ainda maior devido às dificuldades específicas que o instituto enfrentou na capital imperial. O P. Augusto Hlond, com sua virtude e tato, conseguiu, em pouco tempo, não apenas resolver a situação econômica, mas também fazer florescer um trabalho com jovens que atraiu a admiração de todas as classes de pessoas. O cuidado com os pobres, os trabalhadores e os filhos do povo lhe atraiu a afeição das classes mais humildes. Querido pelos bispos e núncios apostólicos, ele gozava da estima das autoridades e da própria família imperial. Em reconhecimento a esse trabalho social e educativo, por três vezes, recebeu algumas das mais prestigiosas honrarias.
Em 1919, o desenvolvimento da Inspetoria Austro-Húngara aconselhou uma divisão proporcional ao número de casas, e os superiores nomearam o P. Hlond como inspetor da Inspetoria Germano-Húngara, com sede em Viena (1919-1922), confiando-lhe o cuidado dos coirmãos austríacos, alemães e húngaros. Em menos de três anos, o jovem inspetor abriu uma dúzia de novas presenças salesianas e as formou no mais genuíno espírito salesiano, suscitando numerosas vocações.
Estava em pleno fervor de sua atividade salesiana quando, em 1922, tendo a Santa Sé que providenciar a organização religiosa para a Silésia polonesa, ainda sangrando por conflitos políticos e nacionais, o Santo Padre Pio XI confiou-lhe a delicada missão, nomeando-o Administrador Apostólico. Sua mediação entre alemães e poloneses deu origem, em 1925, à diocese de Katowice, da qual se tornou bispo. Em 1926, ficou Arcebispo de Gniezno e Poznań e Primaz da Polônia. No ano seguinte, o Papa o criou cardeal. Em 1932, fundou a Sociedade de Cristo para os emigrantes poloneses, com o objetivo de ajudar os muitos compatriotas que haviam deixado o país.
Em março de 1939, participou do conclave que elegeu Pio XII. Em 1º de setembro do mesmo ano, os nazistas invadiram a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. O cardeal levantou sua voz contra as violações dos direitos humanos e da liberdade religiosa cometidas por Hitler. Forçado ao exílio, ele se refugiou na França, na Abadia de Hautecombe, denunciando a perseguição aos judeus na Polônia. A Gestapo entrou na abadia e o prendeu, deportando-o para Paris. O cardeal se recusa categoricamente a apoiar a formação de um governo polonês pró-nazista. Ele foi preso primeiro em Lorena e depois em Westfália. Libertado pelas tropas aliadas, ele retornou à sua terra natal em 1945.
Na nova Polônia libertada do nazismo, ele encontrou o comunismo. Ele defendeu corajosamente os poloneses contra a opressão marxista ateísta, escapando até mesmo de várias tentativas de assassinato. Morreu em 22 de outubro de 1948 de pneumonia, aos 67 anos de idade. Milhares de pessoas compareceram ao seu funeral.
O Cardeal Hlond era um homem virtuoso, um exemplo brilhante de religioso salesiano e um pastor generoso e austero, capaz de visões proféticas. Obediente à Igreja e firme no exercício da autoridade, demonstrou humildade heroica e constância inequívoca nos momentos de maior provação. Cultivou a pobreza e praticou a justiça para com os pobres e necessitados. Os dois pilares de sua vida espiritual, na escola de São João Bosco, eram a Eucaristia e Maria Auxiliadora.
Na história da Igreja da Polônia, o Cardeal Augusto Hlond foi uma das figuras mais eminentes pelo testemunho religioso de sua vida, pela grandeza, variedade e originalidade de seu ministério pastoral, pelos sofrimentos que enfrentou com um intrépido espírito cristão pelo Reino de Deus. O ardor apostólico distinguiu o trabalho pastoral e a fisionomia espiritual do Venerável Augusto Hlond, que tomou como lema episcopal Da mihi animas coetera tolle, como verdadeiro filho de São João Bosco; confirmou-o com sua vida de consagrado e de bispo, dando testemunho de incansável caridade pastoral.
Devemos lembrar o seu grande amor a Nossa Senhora, aprendido em sua família e a grande devoção do povo polonês à Mãe de Deus, venerada no santuário de Częstochowa. Além disso, de Turim, onde iniciou sua jornada como salesiano, difundiu o culto a Maria Auxiliadora na Polônia e consagrou a Polônia ao Imaculado Coração de Maria. Sua entrega a Maria sempre o sustentou na adversidade e na hora de seu encontro final com o Senhor. Ele morreu com as contas do rosário nas mãos, dizendo aos presentes que a vitória, quando chegasse, seria a vitória de Maria Imaculada.
O Venerável Cardeal Augusto Hlond é uma testemunha singular de como devemos aceitar o caminho do Evangelho todos os dias, apesar do fato de que ele nos traz problemas, dificuldades e até mesmo perseguição: isso é santidade. «Jesus lembra as inúmeras pessoas que foram, e são, perseguidas simplesmente por ter lutado pela justiça, ter vivido os seus compromissos com Deus e com os outros. Se não queremos afundar numa obscura mediocridade, não pretendamos uma vida cômoda, porque, “quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la” (Mt 16,25). Não podemos esperar que tudo à nossa volta seja favorável, porque muitas vezes as ambições de poder e os interesses mundanos jogam contra nós… A cruz, especialmente as fadigas e os sofrimentos que suportamos para viver o mandamento do amor e o caminho da justiça, é fonte de amadurecimento e santificação.» (Francisco, Gaudete et Exsultate, nn. 90-92).




A educação da consciência com São Francisco de Sales

Provavelmente foi o advento da Reforma protestante que colocou na ordem do dia o problema da consciência e, mais precisamente, da «liberdade de consciência». Em uma carta de 1597 a Clemente VIII, o decano de Sales deplorava a «tirania» que o «estado de Genebra» impunha «sobre as consciências dos católicos». Pedia à Santa Sé que interviesse junto ao rei da França para obter que os genebrinos concedessem «o que chamam liberdade de consciência». Contrário a soluções militares para a crise protestante, ele vislumbrava na libertas conscientiae uma possível saída para o confronto violento, desde que a reciprocidade fosse respeitada. Reivindicada por Genebra em favor da Reforma, e por Francisco de Sales em benefício do catolicismo, a liberdade de consciência estava prestes a se tornar um dos pilares da mentalidade moderna.

Dignidade da pessoa humana
A dignidade do indivíduo reside na consciência, e a consciência é, antes de tudo, sinônimo de sinceridade, honestidade, franqueza, convicção. O decano de Sales reconhecia, por exemplo, «para aliviar sua consciência», que o projeto das Controvérsias lhe fora de certa forma imposto por outros. Quando apresentava suas razões a favor da doutrina e da prática católica, preocupava-se em precisar que o fazia «de consciência». «Digam-me de consciência», perguntava aos seus contraditores. A «boa consciência», de fato, faz com que alguém evite certos atos que o colocam em contradição consigo mesmo.
No entanto, a consciência subjetiva individual não pode ser sempre tomada como garantia da verdade objetiva. Não se está sempre obrigado a acreditar no que alguém diz de consciência. «Mostrem-me claramente – diz o decano aos senhores de Thonon – que não mentem de forma alguma, que realmente não me enganam, quando me dizem que de consciência tiveram esta ou aquela inspiração». A consciência pode ser vítima da ilusão, de forma voluntária ou mesmo involuntária. «Os avarentos inveterados não só não confessam sê-lo, como também não pensam de consciência que o sejam».
A formação da consciência é uma tarefa essencial, porque a liberdade de consciência implica o risco de «fazer o bem e o mal», mas «escolher o mal não é usar, mas abusar da nossa liberdade». É uma tarefa difícil, porque a consciência às vezes nos aparece como um adversário que «combate sempre contra nós e por nós»: ela «opõe resistência constante às nossas más inclinações», mas o faz «para nossa salvação». Quando alguém peca, «o remorso interior se move contra sua consciência com a espada em punho», mas o faz para «transpassá-la com um santo temor».
Um meio para exercer uma liberdade responsável é a prática do «exame de consciência». Fazer o exame de consciência é como seguir o exemplo das pombas que se olham «com olhos límpidos e puros», «se limpam com cuidado e se adornam o melhor que podem». Filoteia é convidada a fazer esse exame todas as noites, antes de ir dormir, perguntando-se «como se comportou nas várias horas do dia; para facilitar, pensará onde, com quem e em quais ocupações se dedicou».
Uma vez por ano devemos fazer um exame aprofundado do «estado da nossa alma» diante de Deus, do próximo e de nós mesmos, sem esquecer um «exame dos afetos da nossa alma». O exame – diz Francisco de Sales às visitandinas – levará vocês a sondar «a fundo a sua consciência».
Como aliviar a consciência quando alguém a sente carregada de um erro ou de uma falha? Alguns o fazem de forma errada, julgando e acusando os outros «de vícios dos quais são vítimas», pensando assim em «adoçar os remorsos da sua consciência». Dessa forma, multiplica-se o risco de fazer julgamentos temerários. Pelo contrário, «aqueles que cuidam corretamente da sua consciência não estão sujeitos a julgamentos temerários». Convém considerar à parte o caso dos pais, educadores e responsáveis pelo bem público, porque «uma boa parte da sua consciência consiste em vigiar atentamente a consciência dos outros».

O respeito por si mesmo
Da afirmação da dignidade e da responsabilidade de cada um deve nascer o respeito por si mesmo. Já Sócrates e toda a antiguidade pagã e cristã haviam mostrado o caminho:

É uma afirmação dos filósofos, que porém foi considerada válida pelos doutores cristãos: «Conhece-te a ti mesmo», ou seja, conhece a excelência da tua alma para não a rebaixar e desprezar.

Alguns de nossos atos constituem não apenas uma ofensa a Deus, mas também uma ofensa à dignidade da pessoa humana e à razão. Suas consequências são deploráveis:

A semelhança e imagem de Deus, que carregamos em nós, é manchada e desfigurada, a dignidade do nosso espírito desonrada, e somos tornados semelhantes aos animais irracionais […], tornando-nos escravos das nossas paixões e invertendo a ordem da razão.

Há êxtases e arrebatamentos que nos elevam acima da nossa condição natural e outros que nos rebaixam: «Ó homens, até quando sereis tão insensatos – escreve o autor do Teótimo – a ponto de querer pisotear a vossa dignidade natural, descendo voluntariamente e precipitando-vos na condição dos animais?».
O respeito por si mesmo permitirá evitar dois perigos opostos: o orgulho e o desprezo pelos dons que se tem. Em um século em que o senso de honra era exaltado ao máximo, Francisco de Sales teve que intervir para denunciar delitos, em particular no problema do duelo, que lhe fazia «arrepiar os cabelos da cabeça», e ainda mais o orgulho insensato que era a causa. «Estou escandalizado» – escrevia à esposa de um marido duelista –; «na verdade, não consigo entender como se pode ter uma coragem tão desregrada mesmo por bagatelas e coisas sem importância». Lutando em duelo é como se «se tornassem um o carrasco do outro».
Outros, ao contrário, não ousam reconhecer os dons recebidos e pecam assim contra o dever da gratidão. Francisco de Sales denuncia «certa falsa e tola humildade que impede descobrir o bem que há neles». Estão errados, porque «os bens que Deus colocou em nós devem ser reconhecidos, estimados e honrados sinceramente».
O primeiro próximo que devo respeitar e amar, parece querer dizer o bispo de Genebra, é o próprio eu. O verdadeiro amor por mim mesmo e o respeito devido exigem que eu tenda à perfeição e que me corrija, se necessário, mas docemente, razoavelmente e «seguindo o caminho da compaixão» em vez do da ira e da fúria.
Existe, de fato, um amor por si mesmo não apenas legítimo, mas também benéfico e mandado: «A caridade bem ordenada começa por si mesmo» – diz o provérbio – e reflete bem o pensamento de Francisco de Sales, mas desde que não se confunda o amor por si mesmo com o amor-próprio. O amor por si mesmo é bom, e Filoteia é convidada a interrogar-se sobre a maneira como ama a si mesma:

Mantém uma boa ordem no amor por si mesma? Porque só o amor desordenado por nós mesmos pode nos levar à ruína. Ora, o amor ordenado quer que amemos a alma mais do que o corpo, que busquemos adquirir as virtudes mais do que qualquer outra coisa.

Ao contrário, o amor-próprio é um amor egoísta, «narcisista», cheio de si mesmo, ciumento da própria beleza e unicamente preocupado com o próprio interesse: «Narciso – dizem os profanos – era um jovem tão arrogante que não queria oferecer seu amor a ninguém; e, finalmente, contemplando-se em uma fonte límpida, foi totalmente arrebatado por sua beleza».

O «respeito devido às pessoas»
Se se respeita a si mesmo, a gente estará mais preparado e disposto a respeitar os outros. O fato de ser «a imagem e semelhança de Deus» tem como corolário a afirmação segundo a qual «todos os seres humanos gozam da mesma dignidade». Francisco de Sales, embora vivendo em uma sociedade marcada pelo antigo regime, fortemente desigual, promoveu um pensamento e uma prática caracterizados pelo «respeito devido às pessoas».
É preciso começar pelas crianças. A mãe de São Bernardo – diz o autor da Filoteia – amava seus filhos recém-nascidos «com respeito como uma coisa sagrada que Deus lhe confiara». Uma repreensão muito grave dirigida pelo bispo de Genebra aos pagãos dizia respeito ao seu desprezo pela vida de seres indefesos. O respeito pela criança que está para nascer emerge neste trecho de uma carta, redigida segundo a retórica barroca da época, dirigida por Francisco de Sales a uma mulher grávida. Ele a encoraja explicando que a criança que está se formando em suas entranhas não é apenas «uma imagem viva da divina Majestade», mas também a imagem de sua mãe. Recomenda a outra mulher:

Ofereça frequentemente à glória eterna do seu Criador a criaturinha cuja formação Ele quis que você assumisse como sua cooperadora.

Outro aspecto do respeito devido aos outros diz respeito ao tema da liberdade. A descoberta de novas terras teve, como consequência nefasta, o ressurgimento da escravidão, que remetia às práticas dos antigos romanos na época do paganismo. A venda de seres humanos os rebaixava ao nível dos animais:

Um dia, Marco Antônio comprou de um mercador dois jovens; então, como ainda acontece hoje em algumas regiões, vendiam-se crianças; havia homens que as conseguiam e depois as traficavam como se faz com cavalos em nossos países.

O respeito pelos outros é continuamente ameaçado de forma mais sutil pela maledicência e pela calúnia. Francisco de Sales insiste bastante nos «pecados da língua». Um capítulo da Filoteia que trata explicitamente desse assunto intitula-se A honestidade nas palavras e o respeito que se deve às pessoas. Arruinar a reputação de alguém é cometer um «assassinato espiritual»; é privar «a vida civil» daquele de quem se fala mal. Assim também, «ao censurar o vício», esforçar-se-á para poupar o máximo possível «a pessoa implicada nele».
Certas categorias de pessoas são facilmente denegridas ou desprezadas. Francisco de Sales defende a dignidade do povo baseando-se no Evangelho: «São Pedro – comenta – era um homem rude, grosseiro, um velho pescador, um trabalhador de baixa condição; São João, ao contrário, era um cavalheiro, doce, amável, sábio; São Pedro, porém, ignorante». Ora, foi São Pedro quem foi escolhido para guiar os outros e para ser o «superior universal».
Ele proclama a dignidade dos doentes, dizendo que «as almas que estão na cruz são declaradas rainhas». Denunciando a «crueldade para com os pobres» e exaltando a «dignidade dos pobres», justifica e esclarece a atitude que se deve ter para com eles, explicando «como devemos honrá-los e, portanto, visitá-los como representantes de Nosso Senhor». Ninguém é inútil, ninguém é insignificante: «Não há no mundo objeto que não possa ser útil para alguma coisa; mas é preciso saber encontrar seu uso e lugar».

O «um-diferente» salesiano
O problema que sempre atormentou as sociedades humanas é o de conciliar entre si a dignidade e a liberdade de cada indivíduo com as dos outros. Recebeu de Francisco de Sales um esclarecimento original, graças à invenção de uma nova palavra. De fato, admitindo que o universo é formado por «todas as coisas criadas, visíveis e invisíveis» e que «a sua diversidade é reconduzida à unidade», o bispo de Genebra propôs chamá-lo de «um-diferente», ou seja, «único e diferente, único com diversidade e diferente com unidade».
Para ele, todo ser é único. As pessoas são como as pérolas de que fala Plínio: «são tão únicas, cada uma em sua qualidade, que nunca se encontram duas perfeitamente iguais». É significativo que suas duas principais obras, Introdução à vida devota e Tratado do amor de Deus, sejam dirigidas a uma pessoa singular, Filoteia e Teótimo. Que variedade e diversidade entre os seres! «Sem dúvida, como vemos que nunca se encontram dois homens perfeitamente iguais quanto aos dons da natureza, assim nunca se encontram perfeitamente iguais quanto aos dons sobrenaturais». A variedade o encantava também do ponto de vista puramente estético, mas temia uma curiosidade indiscreta sobre suas causas:

Se alguém se perguntasse por que Deus fez as melancias maiores que os morangos, ou os lírios maiores que as violetas; por que o alecrim não é uma rosa ou por que o cravo não é uma calêndula; por que o pavão é mais belo que um morcego, ou por que o figo é doce e o limão azedo, ririam de suas perguntas e diriam: pobre homem, como a beleza do mundo exige variedade, é necessário que nas coisas haja perfeições diferentes e diferenciadas e que uma não seja a outra; por isso umas são pequenas, outras grandes, umas ácidas, outras doces, umas mais belas, outras menos. […] Todas têm seu mérito, sua graça, seu esplendor, e todas, vistas no conjunto de suas variedades, constituem um maravilhoso espetáculo de beleza.

A diversidade não impede a unidade; pelo contrário, a torna ainda mais rica e bela. Cada flor tem suas características, que a distinguem de todas as outras: «Não é próprio das rosas serem brancas, me parece, porque as vermelhas são mais belas e têm um perfume melhor, o qual, porém, é próprio do lírio». Certamente, Francisco de Sales não suporta confusão e desordem, mas é igualmente inimigo da uniformidade. A diversidade dos seres pode levar à dispersão e à ruptura da comunhão, mas se há amor, «vínculo da perfeição», nada está perdido; pelo contrário, a diversidade é exaltada pela união.
Em Francisco de Sales há certamente uma cultura real do indivíduo, mas esta nunca é um fechamento ao grupo, à comunidade ou à sociedade. Ele vê espontaneamente o indivíduo inserido em um contexto ou «estado» de vida, que marca fortemente a identidade e a pertença de cada um. Não será possível estabelecer um programa ou projeto igual para todos, pelo simples fato de que será aplicado e realizado de maneira diferente «para o cavalheiro, para o artesão, para o criado, para o príncipe, para a viúva, para a jovem, para a casada»; é preciso ainda adaptá-lo «às forças e aos deveres de cada um em particular». O bispo de Genebra vê a sociedade dividida em espaços vitais caracterizados pela pertença social e solidariedade de grupo, como quando trata «da companhia de soldados, da oficina dos artesãos, da corte dos príncipes, da família de pessoas casadas».
O amor personaliza e, portanto, individualiza. O afeto que liga uma pessoa a outra é único, como demonstra Francisco de Sales em sua relação com a senhora de Chantal: «Cada afeto tem sua peculiaridade que o diferencia dos outros; o que sinto por você possui certa particularidade que me consola infinitamente e, para dizer tudo, para mim é sobremaneira frutífero». O sol ilumina todos e cada um: «iluminando um canto da terra, não o ilumina menos do que faria se não brilhasse em outro lugar, mas somente naquele canto».

O ser humano está em transformação
Humanista cristão, Francisco de Sales acredita finalmente na possibilidade que a pessoa humana tem de se aperfeiçoar. Erasmo havia forjado a fórmula: Homines non nascuntur sed finguntur [Os homens não nascem prontos, mas precisam se fazer]. Enquanto o animal é um ser predeterminado, guiado pelo instinto, o homem, ao contrário, está em perpétua evolução. Não só muda, mas pode mudar a si mesmo, tanto para melhor quanto para pior.
O que preocupava inteiramente o autor do Teótimo era aperfeiçoar a si mesmo e ajudar os outros a se aperfeiçoarem, e não apenas no âmbito religioso, mas em tudo. Do nascimento à sepultura, o homem está em situação de aprendiz. Imitemos o crocodilo que «nunca deixa de crescer enquanto vive». De fato, «permanecer no mesmo estado por muito tempo não é possível: quem não avança, retrocede neste trânsito; quem não sobe, desce nesta escada; quem não vence é vencido nesta luta». Ele cita São Bernardo que dizia: «Está escrito de modo particular para o homem que nunca estará no mesmo estado: é preciso que avance ou retroceda». Vamos em frente:

Não sabes que estás em caminho e que o caminho não é feito para sentar, mas para avançar? E é tão feito para avançar que mover-se para frente se chama caminhar.

Isso significa também que a pessoa humana é educável, capaz de aprender, de se corrigir e de melhorar. E isso é verdade em todos os níveis. A idade às vezes não tem nada a ver. Olhem para esses meninos cantores da catedral, que superam em muito as capacidades do seu bispo nesse campo: «Admiro essas crianças – dizia – que mal sabem falar e que já cantam sua parte; compreendem todos os sinais e regras musicais, enquanto eu não saberia mesmo como me virar, eu que sou um homem feito e que gostaria de passar por uma grande personalidade». Ninguém neste mundo é perfeito:

Há pessoas de natureza leve, outras grosseiras, outras ainda muito relutantes em ouvir as opiniões alheias, e outras finalmente propensas à indignação, outras à cólera e outras ao amor; para resumir, encontramos poucas pessoas em que não seja possível descobrir uma ou outra dessas imperfeições.

Deve-se então desesperar de poder melhorar o próprio temperamento, corrigindo alguma de nossas inclinações naturais? De jeito nenhum.

Por mais que, de fato, sejam em cada um de nós como próprias e naturais, se com a aplicação a um apego contrário podem ser corrigidas e reguladas, e até mesmo alguém pode se livrar delas e se purificar, então, digo a você, Filoteia, que é preciso fazê-lo. Encontrou-se até o modo de tornar doces as amendoeiras amargas: basta furá-las na base e fazer sair o suco; por que não poderíamos então fazer sair nossas inclinações perversas, para assim nos tornarmos melhores?

Daí a conclusão otimista, mas exigente: «Não há natureza boa que não possa se tornar má, por meio de hábitos viciosos; não há natureza tão perversa que não possa, primeiramente com a graça de Deus e depois com empenho industrioso e diligência, ser domada e vencida». Se o homem é educável, não se deve desesperar de ninguém e deve-se evitar preconceitos contra as pessoas:

Não digam: fulano é um bêbado, mesmo que o tenham visto bêbado; é um adúltero, por tê-lo visto pecar; é um incestuoso, por tê-lo apanhado naquela desgraça; porque um único ato não basta para dar nome à coisa. […] E mesmo quando um homem tenha sido viciado por muito tempo, ainda assim correria o risco de mentir ao chamá-lo viciado.

A pessoa humana nunca termina de cultivar seu jardim. É a lição que o fundador das visitandinas lhes incutia, quando as chamava «a cultivar a terra e o jardim» de seus corações e espíritos, porque não existe «homem tão perfeito que não precise se empenhar tanto para crescer na perfeição quanto para mantê-la».




Ninguém assustava as galinhas (1876)

Ambientada em janeiro de 1876, a peça apresenta um dos mais sugestivos “sonhos” de Dom Bosco, instrumento predileto com que o santo turinense sacudia e guiava os jovens do Oratório. A visão se abre para uma planície interminável onde fervilham os trabalhos dos semeadores: o trigo, símbolo da Palavra de Deus, só germinará se protegido. Mas galinhas vorazes caem sobre a semente e, enquanto os camponeses cantam versículos evangélicos, os clérigos encarregados da custódia permanecem mudos ou distraídos, deixando que tudo se perca. A cena, animada por diálogos argutos e citações bíblicas, torna-se parábola da murmuração que apaga o fruto da pregação e advertência à vigilância ativa. Com tons ao mesmo tempo paternos e severos, Dom Bosco transforma o elemento fantástico em lição moral incisiva.

Na segunda metade de janeiro o Servo de Deus teve um sonho simbólico do qual falou com alguns Salesianos. P. Barberis pediu-lhe para contá-lo em público porque os seus sonhos agradavam muito aos jovens, faziam-lhes muito bem e os afeiçoava ao Oratório.
– Sim, isso é verdade, respondeu o Beato, fazem bem e são ouvidos com avidez; o único prejudicado sou eu, pois precisaria ter pulmões de ferro. Bem se pode dizer que no Oratório não há sequer um que não se sinta emocionado com tais narrações, pois na maioria das vezes esses sonhos impressionam a todos e cada um quer saber em que situação o tenha visto, o que deva fazer, que significado tenha isto ou aquilo. E eu fico aflito dia e noite. Se depois quero despertar o desejo das confissões gerais, não tenho outra coisa a fazer senão narrar um sonho. Escute, faça uma coisa. Domingo irei falar aos jovens e você interrompe-me em público. Eu então contarei o sonho.
No dia 23 de janeiro, após as orações da noite, ele subiu na cátedra. O seu rosto, radiante de alegria, manifestava, como sempre, a própria alegria de encontrar-se entre seus filhos. Após um pouco de silêncio, P. Barberis pediu para falar e perguntou:
– Desculpe, senhor Dom Bosco, permite-me fazer-lhe uma pergunta?
– Pois não, diga.
– Ouvi dizer que nestas noites passadas, teve um sonho de semeadura, com semeador, com galinhas e que já o contou ao clérigo Calvi. Poderia fazer o favor de contá-lo também a nós? Isso nos daria muito prazer.
– Curioso! – disse Dom Bosco em tom de bronca. E então explodiu uma gargalhada geral.
– Não importa, sabe, que me chame de curioso; contanto que nos conte o sonho. E com este meu pedido creio interpretar a vontade de todos os jovens que certamente o ouvirão com muito gosto.
– Se é assim, eu o conto. Não queria dizer nada porque há coisas que se referem a vários de vocês em particular e algumas também para você, que fazem arder um pouco as orelhas; mas já que me pediram, eu contarei.
– Mas, eh!, senhor Dom Bosco, se há alguma paulada para mim, poupe-a aqui em público.
– Eu contarei as coisas como as sonhei, cada um tome a sua parte. Mas antes de tudo é preciso que cada um tenha em mente que os sonhos me acontecem dormindo e dormindo não se pensa; por isso, se há algo de bom, alguma advertência a tomar, se tome. Além disso, ninguém fique preocupado. Disse que sonhando eu de noite dormia, porque alguns sonham também de dia e algumas vezes até mesmo estando acordados e com não leve incômodo dos professores para os quais tornam-se estudantes que importunam.

Parecia-me estar longe daqui e encontrar-me em Castelnuovo d’Asti, minha terra. Diante de mim, havia uma grande extensão de terra, situada em uma vasta e bela planície; mas aquele terreno não era nosso e não sabia de quem era.
Naquele campo vi muitos que trabalhavam com pás, enxadas e outros instrumentos. Havia um que arava, quem semeava o grão, quem aplainava a terra, quem fazia outras coisas. Havia aqui e lá chefes escolhidos para dirigir os trabalhos e, entre esses, parecia-me estar também eu. Coros de camponeses estavam em outro lugar cantando. Eu observava maravilhado e não sabia dar-me conta daquele lugar. Dizia a mim mesmo: – Mas, com que finalidade estas pessoas trabalham tanto? E respondia a mim mesmo: – Para prover o pão de cada dia aos meus jovens. E era realmente uma maravilha ver como aqueles bons agricultores não desistiam sequer um instante do trabalho e sem cessar continuavam no seu trabalho com um ardor contínuo e com a mesma constância. Só alguns estavam rindo e brincando entre eles.
Enquanto eu contemplava tão belo quadro, olho ao meu redor e vejo que me rodeavam alguns padres e muitos dos meus clérigos, alguns próximos e outros a uma certa distância. Dizia comigo mesmo: – Mas eu sonho; os meus clérigos estão em Turim, aqui, ao invés, estamos em Castelnuovo. E depois, como pode ser isso? Eu estou com roupa de inverno da cabeça aos pés, somente ontem eu estava com tanto frio e agora aqui se semeia o grão. Eu me tocava as mãos e caminhava e dizia: – Mas realmente não estou sonhando, este é um campo real; este clérigo aqui é o clérigo A… em pessoa; este outro é o clérigo B. E depois, como no sonho eu poderia ver esta coisa e aquela outra?
Nesse meio tempo, vi ali perto mais à parte, um velho que aparentemente se mostrava muito benévolo e sensato, prudente, atento a observar-me e aos outros. Aproximei-me dele e lhe perguntei: – Diga-me, bravo homem, escute-me! Que é isso que eu vejo e não compreendo nada? Onde estamos aqui? Quem são esses trabalhadores? De quem é este campo?
– Oh, respondeu-me aquele homem; belas perguntas a serem feitas! É um padre e não sabe estas coisas?
– Mas por isso diga-me! Você acredita que eu sonho ou que esteja acordado? Pois me parece sonhar e não me parecem possíveis as coisas que vejo.
– Possibilíssimas, antes, reais e me parece que o senhor esteja bem desperto. Não se percebe? Fala, ri, brinca.
– E no entanto há alguns, eu acrescentei, que no sonho parecem falar, escutar, agir, como se estivessem acordados.
– Mas não; deixe de lado tudo isso. O senhor está aqui com corpo e alma.
– Seja pois assim; e se eu despertar, diga-me, então, de quem é este campo.
– O senhor estudou latim; qual é o primeiro nome da segunda declinação que estudou no Donato? Sabe-o ainda?
– Eh, claro que sei; mas o que tem a ver isso com a minha pergunta?
– Tem a ver e muitíssimo. Diga, pois, qual é o primeiro nome que se estuda na segunda declinação.
– É Dominus.
– E como é o genitivo?
– Domini!
– Bravo, bem, Domini; este campo é pois Domini, do Senhor.
– Ah! Agora começo a compreender alguma coisa! – exclamei.
Estava maravilhado pela conclusão obtida daquele bom velho. No momento vi várias pessoas chegando com sacos de grãos para semear e um grupo de camponeses cantava: Exit, qui seminat, seminare semem suum (O semeador saiu a semear a sua semente – Lc 8,5).
A mim parecia um pecado jogar fora aquela semente e fazê-las morrer enterrada. Era tão belo aquele grão! Não seria melhor, dizia comigo mesmo, não seria melhor triturá-lo e fazer dele pão ou massa? – Mas depois pensava: – Quem não semeia não recolhe. Se não se lança a semente e essa não apodrece, o que se recolherá depois?
Naquele instante vejo sair de todas as partes uma multidão de galinhas e irem para a semeadura bicar todo grão que outros espalhavam.
E aquele grupo de cantores continuava o seu canto: Venerunt aves caeli, sustulerunt frumentum e reliquerunt zizaniam (Vieram as aves do céu, pegaram o trigo e deixaram a cizânia – cf. Mt 12,43).
Dou uma olhada ao redor e observo aqueles clérigos que estavam comigo. Um com as mãos entrelaçadas estava olhando com fria indiferença; outro tagarelava com os colegas, outros se abraçavam; outros olhavam o céu, outros riam daquele quadro, outros continuavam tranquilamente o seu recreio e os seus jogos, outros terminavam algum trabalho seu; mas ninguém espantava as galinhas para fazê-las ir embora. Eu me dirijo a eles muito magoado e, chamando cada um pelo nome, dizia: – Mas o que fazem? Não veem aquelas galinhas comendo todo o grão? Não veem que destroem a boa semente, fazem desaparecer as esperanças destes bons lavradores? O que colherão depois? Por que estão assim calados? Por que não gritam, por que não as fazem ir embora?
Mas os clérigos encolhiam os ombros, olhavam-me e nada diziam. Alguns nem sequer se viraram: não cuidavam antes daquele campo nem cuidarão depois que eu ralhei.
Vocês são todos insensatos! – eu continuava. As galinhas já estão todas com o papo cheio. Vocês não poderiam bater as mãos e fazer assim? E, no entanto, eu batia as mãos encontrando-me em uma verdadeira confusão, pois de nada adiantavam as minhas palavras. Então alguns se puseram a afugentar as galinhas, mas eu repetia comigo mesmo: – Eh, sim! Agora que todo o grão foi comigo, se espantam as galinhas!
Naquele momento me surpreendeu o ouvido o canto daquele grupo de lavradores os quais cantavam assim: Canes muti nescientes latrare (São cães mudos incapazes de ladrar – cf. Is 56,10).
Então me dirigi àquele bom velho e, entre estupefato e indignado, disse-lhe: – Vamos lá! Dê-me uma explicação do que vejo; eu não entendo nada disso. O que é aquela semente que se lança por terra?
– Oh, amigo! Semen est verbum Dei (A semente é a Palavra de Deus – Lc 8,11).
– Mas o que quer dizer isso, pois vejo que lá as galinhas a comem?
O velho, mudando o tom de voz, prosseguiu:
– Oh! Se quer uma explicação mais completa eu lha dou. O campo é a vinha do Senhor, da qual se fala no Evangelho, e se pode também entender do coração do homem. Os cultivadores são os operários evangélicos que, especialmente com a pregação, semeiam a Palavra de Deus. Esta palavra produziria muito fruto naquele coração, terreno bem preparado. Mas quê? Vêm os pássaros do céu e a levam embora.
– O que significam esses pássaros?
– Quer que eu lhe diga o que indicam? Indicam as murmurações. Ouvida aquela pregação que traria efeito, vai-se com os colegas. Um faz o comentário sobre um gesto, em voz alta, durante uma palavra do pregador, e então se perde todo o fruto da pregação. Um outro culpa o pregador por algum defeito físico ou intelectual, um terceiro ri do seu italiano, e todo o fruto da pregação fica perdido. O mesmo deve-se dizer de uma boa leitura cujo bem fica impedido por uma murmuração. As murmurações são tanto piores, pois geralmente são secretas, ocultas e ali vivem e crescem onde nada mais podemos esperar. O grão, ainda que seja num campo não muito cultivado, todavia nasce, cresce, alcança uma boa altura e produz fruto. Quando num campo, há pouco semeado, vem um temporal, então ele se torna chão batido e não produz mais tanto fruto, mas ainda produz. Se também a semeadura não for tão boa, no entanto crescerá: trará pouco fruto, mas o trará. Ao invés, quando as galinhas ou os pássaros bicam as sementes, não tem mais jeito: o campo não produz mais nada; não traz fruto de qualidade. Do mesmo modo, se às pregações, aos conselhos, aos bons propósitos houver por trás alguma outra coisa como distração, tentação etc., haverá menos fruto; mas quando há murmuração, o falar mal ou coisa semelhante, aqui não há o pouco que permanece, mas há logo o tudo que é levado embora. E a quem compete bater palmas, insistir, ralhar, vigiar, para que estas murmurações, estas más conversas não aconteçam? O senhor o sabe!
– Mas o que faziam esses clérigos? – eu lhe perguntei. Não podiam eles impedir tanto mal?
– Não impediram nada, ele prosseguiu. Alguns estavam observando como estátuas mudas, outros não olhavam, não pensavam, não viam e ali estavam com os braços cruzados, outros não tinham a coragem para impedir esse mal; alguns poucos, porém, se uniam também aos murmuradores, tomavam parte nas suas maledicências, faziam o papel de destruidores da Palavra de Deus. Você que é padre insista sobre isto: prega, exorta, fala, não tenha medo de jamais falar demais; e todos saibam que criticar quem prega, quem exorta, quem dá bom conselho é o que provoca a parte maior do mal. E o ficar calado quando se vê alguma desordem e não impedi-la, especialmente quem poderia ou deveria, isto é, em resumo, tornar-se cúmplice do mal alheio.
Eu, ciente de tudo por essas palavras, queria ainda olhar, observar esta e aquela coisa, repreender os clérigos, estimulá-los a cumprir o próprio dever. E eles já se mexiam e procuravam afugentar as galinhas. Mas eu, tendo dado alguns passos, tropecei num rastelo, destinado a aplainar a terra, deixado naquele campo, e acordei. Agora deixemos de lado tudo e vamos à moral. P. Barberis, o que nos diz a respeito deste sonho?
– Digo, respondeu P. Barberis, que é uma boa surra e um golpe a quem toca.
– Está certo, retomou Dom Bosco, é uma lição que precisa fazer-nos bem; e tenham em mente isto, meus queridos jovens, evitar entre vocês de qualquer maneira a murmuração, como um mal extraordinário, fugindo dela como se foge da peste, e não só evitá-la vocês, mas com toda força procurar fazer com os outros a evitem. Algumas vezes santos conselhos, ótimas obras não fazem o bem, que leva a impedir uma murmuração e qualquer palavra que possa prejudicar a outros. Armemo-nos de coragem e combatamo-la com franqueza. Não há pior desgraça do que a de fazer perder a palavra de Deus. E basta um mote, basta uma brincadeira.
Contei-lhes um sonho ocorrido já em várias noites, mas nesta noite passada tive um outro que agora desejo narrar-lhes. Ainda não é muito tarde; são apenas as nove eu posso expô-lo a vocês. Contudo procurarei não demorar.
Pareceu-me, então, encontrar-me num lugar que agora não me lembro mais qual fosse; eu não estava mais em Castelnuovo, mas parece-me que nem mesmo estivesse no Oratório. Veio alguém apressadamente me chamar: – Dom Bosco, venha! Dom Bosco, venha!
– Mas qual é o motivo de tanta pressa? – eu respondi.
– Está sabendo das coisas acontecidas?
– Eu não entendo o que você quer dizer: explique-me claramente, respondi ansioso.
– Não sabe, Dom Bosco, que tal jovem tão bom, tão animado, está gravemente enfermo, aliás, moribundo?
– Eu duvido que você queira brincar comigo, lhe disse: porque exatamente esta manhã falei e passeei com o mesmo jovem que você agora me diz estar moribundo.
– Ah, Dom Bosco! Eu não o estou enganando e me julgo na obrigação de narrar-lhe a pura verdade. Aquele jovem tem grande necessidade do senhor e deseja vê-lo e falar-lhe pela última vez. Mas venha logo porque senão não chega em tempo.
Eu, sem saber o lugar, fui apressadamente atrás daquele tal. Chego em um lugar e vejo gente triste e chorando que me diz:  Ajude-nos logo, por favor, porque está nas últimas.
– Mas o que aconteceu? – respondo. Fui levado em um quarto onde vejo deitado um jovem muito pálido no rosto, com uma cor quase cadavérica, com uma tosse e um estertor que o sufocava e mal permitia que ele falasse.
– Mas você não é o fulano de tal? – eu lhe disse:
– Sim, sou o tal.
– Como está?
– Estou mal!
– E como é que agora o vejo neste estado? Você não estava andando tranquilo sob os pórticos ontem e esta manhã?
– Sim, respondeu o jovem, ontem e esta manhã passeava sob os pórticos; mas agora faça depressa que eu tenho necessidade de confessar-me; vejo que me resta muito pouco tempo.
– Não se aflija, não se aflija; você confessou-se há poucos dias.
– É verdade e me parece não havia nenhuma falta grave no meu coração; todavia desejo receber a santa absolvição antes de apresentar-me ao Divino Juiz.
Eu ouvi a sua confissão. Mas observei que piorava visivelmente e um catarro estava para sufocá-lo. – Mas aqui é preciso agir rápido, digo comigo mesmo, se quiser que receba ainda o santo viático e o óleo santo. Antes, o viático não poderá mais recebê-lo, seja porque requer mais tempo para os preparativos, seja porque a tosse poderia impedi-lo de engolir. Depressa, o óleo santo!
Assim dizendo, saio do quarto e mando imediatamente um homem pegar a bolsa com os óleos santos. Os jovens que estavam na sala me perguntavam:
– Mas está realmente em perigo? Está mesmo moribundo, como se está dizendo?
– Infelizmente! – eu respondia. Não vê que a respiração se lhe torna cada vez mais lenta e o catarro o sufoca?
– Mas será melhor trazer-lhe também o viático e assim fortalecido mandá-lo nos braços de Maria.
Mas enquanto eu me apressava preparando o necessário, ouço um voz. – Expirou!
Entro de novo no quarto e encontro o enfermo com os olhos arregalados; não respira mais; está morto.
– Está morto? – perguntei para aqueles dois que o assistiam.
– Está morto, responderam-me. Está morto.
– Mas como vai, assim tão depressa? Diga-me: não é esse o fulano?
– Sim, é o fulano.
– Não posso acreditar! Ainda ontem passeava comigo sob os pórticos.
– Ontem passeava e agora está morto, me replicaram.
– Felizmente era um jovem bom! – exclamei. E dizia aos jovens que estavam ao meu redor: – Veem, veem? Este não pôde nem mesmo receber o viático e a extrema unção. Agradeçamos, porém, ao Senhor que lhe deu tempo para confessar-se. Este jovem era bom, frequentava bastante os sacramentos, e esperamos que tenha ido para uma vida feliz, ou ao menos no purgatório. Mas se tocasse um pouco a outros o mesmo destino, o que seria agora de alguns?
Dito isso, colocamo-nos todos de joelhos e rezamos um De profundis pela alma do pobre falecido.
Enquanto eu ia para o quarto, vejo chegar Ferraris [Coadjutor João Antônio Ferraris, livreiro] da livraria, o qual todo aflito, me diz:
– Sabe, Dom Bosco, o que aconteceu?
– Eh, infelizmente já sei! Morreu o tal! – respondo.
– Não é isso que eu quero dizer; há outros dois mortos.
– Como? Quem?
– O sicrano e o beltrano.
– Mas quando? Não compreendo.
– Sim, dois outros que morreram antes que o senhor chegasse.
– E por que não me chamou?
– Faltou tempo. Mas o senhor sabe dizer-me quando este aqui morreu?
– Morreu agora, respondi.
– O senhor sabe que dia é hoje e de que mês? – continuou Ferraris.
– Claro que sei: hoje é 22 de janeiro, segundo dia da novena de São Francisco de Sales.
– Não, disse Ferraris. O senhor se engana, Dom Bosco; veja bem. – Eu ergo os olhos para o calendário e vejo: 26 de maio.
– Mas esta é boa! – exclamei. Estamos em janeiro e eu bem consciente de como estou vestido; não se veste assim em maio; em maio o aquecedor não estaria ligado.
            – Eu não sei o que dizer-lhe ou que explicação dar-lhe, mas agora estamos no dia 26 de maio.
– Mas se apenas ontem faleceu este nosso companheiro e estávamos em janeiro.
– Engana-se, insistiu Ferraris; estávamos no tempo pascal.
– Mais uma você acrescenta e ainda maior!
– Tempo pascal, sem dúvida; estávamos no tempo pascal, e ele teve mais sorte de morrer na Páscoa do que os outros dois, que morreram no mês de Maria.
– Você está zombando de mim, eu lhe disse. Explique-se melhor, do contrário eu não o entendo.
– Eu não estou zombando, em absoluto. A coisa é assim. Se depois quiser saber mais, e que eu me explique melhor, eis! Esteja atento!
– Abri os braços, depois bati as duas mãos uma contra a outra bem forte. E despertei. Então exclamei: – Oh, que sorte! Não é realidade, mas um sonho. Que medo que eu tive!
Eis o sonho que tive na noite passada. Vocês deem a ele a importância que quiserem. Eu mesmo não quero dar-lhe fé totalmente. Hoje, porém, quis ver se aqueles que me pareceram mortos no sonho estavam vivos ainda, e os vi sãos e fortes. Certamente não convém que eu diga e não direi quem são aqueles. Todavia estarei de olho sobre os dois; se for necessário algum conselho para viver bem, lhes darei, e os prepararei fazendo vistas largas sem que percebam; porque assim, se lhes ocorresse morrer, a morte não os encontre despreparados. Mas ninguém fique falando: Será este, será aquele. Cada um pense em si.
E não fiquem preocupados com isso. O efeito que deve surtir em vocês é simplesmente o que nos sugere o Divino Salvador no Evangelho: Estote parati, quia, qua hora non putatis, filius hominis veniet (Estejam preparados porque o Filho do homem virá na hora em que não pensais – Lc 12,4). É esta uma importante advertência que nos faz o Senhor, meus queridos jovens. Estejam sempre preparados porque na hora em que menos esperamos pode vir a morte, e aquele que não estiver preparado para morrer bem, corre o grave risco de morrer mal. Eu procuro estar preparado o melhor que posso e vocês façam o mesmo, a fim de que a qualquer hora que agrade ao Senhor chamar-nos, possamos estar prontos para passar à eternidade. Boa noite!

As palavras de Dom Bosco eram ouvidas sempre em religioso silêncio, mas quando ele falava destas coisas extraordinárias, entre as centenas de meninos que lotavam o lugar, não se ouvia um rumor de tosse nem a mais leve roçadura dos pés. A forte impressão durava semanas e meses; e com a impressão aconteciam mudanças radicais no comportamento de alguns endiabrados. Fazia-se depois fila ao redor do confessionário de Dom Bosco. Não vinha à cabeça de ninguém supor que ele inventasse aquelas narrativas para assustar e melhorar a vida dos jovens, porque os anúncios de mortes próximas tornavam-se realidade sempre e certos estados de consciência vistos em sonhos correspondiam à realidade.
Mas o temor produzido por tão lúgubres prognósticos não era uma angústia opressora? Não parece. Apresentavam-se muitas possibilidades e hipóteses a uma multidão de mais de oitocentos jovens a fim de que cada um pudesse preocupar-se disso. Além do mais, a persuasão realmente difundida, que quem morria no Oratório ia certamente para o Paraíso, e que Dom Bosco preparava os designados sem assustá-los, contribuía para expulsar todo temor do espírito. Por outro lado, sabe-se bem quão grande é a volubilidade juvenil, num instante a fantasia dos jovens é atingida e abalada; mas depois aquela lembrança se liberta bem depressa de qualquer preocupação. É o que nos atestavam unânimes os sobreviventes daqueles tempos.
Tendo os jovens ido dormir, alguns coirmãos que rodeavam o Beato cobriam-no de perguntas para saber se algum deles estava entre aqueles que deviam morrer. O Servo de Deus, sorrindo conforme o seu costume e girando a cabeça, repetia:
– Já, já! Virei dizer-lhes quem é, com perigo de fazer alguém morrer antes do tempo!
Visto que ali não se tirava nada, perguntaram-lhe se no primeiro sonho havia também clérigos fazendo parte das galinhas, que se entregassem à murmuração. Dom Bosco, que passeava, parou, olhou para os interlocutores e deu um risinho como para dizer: – Eh! Alguém sim; mas poucos, e não acrescentou nada mais. – Então lhe pediram que dissesse ao menos se eles estavam entre os cães mudos; o Beato se firmou nos princípios gerais, observando que era preciso estar atentos para evitar e fazer evitar as murmurações e em geral todas as desordens, especialmente as más conversas. – Ai do padre e do clérigo, disse, o qual, encarregado da vigilância, vê as desordens, e não as impede! Desejo que se saiba e se lembrem que com a palavra “murmurações” eu não entendo apenas o cortar a casaca pelas costas, mas toda conversa, todo gracejo, toda palavra que possa diminuir em um colega o fruto da Palavra de Deus ouvida. Em geral, entendo dizer que é um grande mal calar-se, quando se conhece alguma desordem, não a impedindo ou não procurando que a impeça quem de direito.
Um mais ousado fez ao Servo de Deus uma pergunta um tanto arriscada.
– E P. Barberis, por que entra no sonho? O senhor disse que havia também para ele, e o próprio P. Barberis parecia esperar para si uma boa paulada. – P. Barberis estava presente. Inicialmente Dom Bosco acenava a não querer responder. Mas depois, permanecendo ao seu lado apenas alguns padres e mostrando-se P. Barberis satisfeito que ele revelasse o segredo, o Beato disse:
– Eh! P. Barberis não prega suficientemente sobre este ponto; não insiste quanto é preciso sobre este assunto. – P. Barberis confirmou que nem no ano anterior nem no ano em curso jamais se tinha fixado de propósito sobre aqueles temas aos seus noviços; gostou muito da observação e pendurou-a na orelha para o futuro.
Dito isto, subiram as escadas e todos, após beijar a mão de Dom Bosco, se afastaram e foram dormir. Todos, menos P. Barberis que, conforme o costume, acompanhou-o até a porta do seu quarto. Dom Bosco, vendo que ainda era cedo e pressentindo que não poderia dormir, porque fortemente impressionado pelas coisas expostas, contra o seu hábito costumeiro, fez P. Barberis entrar em seu aposento, dizendo:
– Já que ainda temos tempo podemos dar dois passos num vai-e-vem pela sala.
Assim continuou a discorrer por uma meia hora. Disse então outras coisas: – Eu, no sonho, vi todos e vi o estado em que cada um se encontrava; se galinha, se cão mudo, se no número daqueles que avisados se puseram mãos à obra ou não se moveram. Sirvo-me desta doutrina confessando, exortando em público até ver que produzam o bem. No início não dava muita importância a esses sonhos; mas percebi que na maior parte das vezes são mais eficazes que as pregações; antes, para alguns são mais eficazes do que um curso de Exercícios Espirituais, por isso sirvo-me deles. E por que não? Lê-se na Sagrada Escritura: Probate spiritus: quod bonum est tenete (Examinai vossas almas; guardai o que é bom – cf. 1Ts 5,21). Vejo que valem, vejo que agradam, e por que mantê-los secretos? Antes, vejo que contribuem para afeiçoar muitos à Congregação.
– Experimentei eu mesmo, interrompeu P. Barberis, quão úteis são esses sonhos e quão salutares. Mesmo narrados alhures, fazem bem. Onde Dom Bosco é conhecido, pode-se dizer que são sonhos que ele teve; onde não é conhecido, pode-se apresentar como semelhança. Oh, se se pudesse fazer disso uma antologia, expondo-lhes em forma de semelhanças! Seriam procurados e lidos por crianças e por adultos, por jovens e por idosos, com vantagem para suas almas.
– Já, já! Fariam bem, estou intimamente convicto disso.
– Mas, talvez, lamentou P. Barberis, ninguém os recolheu por escrito.
– Eu, retomou Dom Bosco, não tenho tempo e de muitas coisas não me lembro mais.
– Aquilo de que me lembro, replicou P. Barberis, são os sonhos que se referiam aos progressos da Congregação, ao estender-se do manto de Nossa Senhora.
– Ah, sim! – exclamou o Beato. E acenou a várias visões deste gênero. Tomando depois um ar mais sério e meio conturbado, prosseguiu:
– Quando penso na minha responsabilidade na posição em que me encontro, tremo inteiramente… Que contas tremendas deverei prestar a Deus por todas as graças que nos concede para o bom andamento da nossa Congregação!
(MBp XII, 36-48)

Foto: shutterstock.com




Dom Bosco e a Igreja do Santo Sudário

O Santo Sudário de Turim, impropriamente chamado de “Santo Sudário” pelo costume francês de chamá-lo de “Le Saint Suaire”, era propriedade da Casa de Saboia desde 1463 e foi transferido de Chambery para a nova capital da Saboia em 1578.
            Naquele mesmo ano, foi realizada a primeira Exposição, que Emanuel Filiberto quis fazer em homenagem ao Card. Carlos Borromeu, que veio a Turim em peregrinação para venerá-la.

Exposições no século XIX e o culto ao Sudário
            No século XIX, as Exposições de 1815, 1842, 1868 e 1898 são particularmente dignas de nota: a primeira por ocasião do retorno da família de Saboia aos seus estados, a segunda no casamento de Vítor Emanuel II com Maria Adelaide de Habsburgo-Lorena, a terceira no casamento de Humberto I com Margarida de Saboia-Gênova e a quarta na Exposição Universal.
            Os santos de Turim do século XIX, Cottolengo, Cafasso e Dom Bosco, eram devotos do Santo Sudário, imitando o exemplo do Beato Sebastião Valfré, o apóstolo de Turim durante o cerco de 1706.
            As Memórias Biográficas nos asseguram que Dom Bosco o venerou especialmente na Exposição de 1842 e na de 1868, quando também levou os meninos do oratório para vê-lo (MBp II, 110-111; IX, 182).
            Hoje, a tela de valor inestimável, doada por Umberto II de Saboia à Santa Sé, é confiada ao Arcebispo de Turim “Custódio Pontifício” e mantida na suntuosa Capela Guarini, atrás da Catedral.
            Em Turim, há também, na Rua Piave, na esquina da Rua São Domingos, a Igreja do Santo Sudário, construída pela Confraria de mesmo nome e reconstruída em 1761. Adjacente à igreja está o “Museu Sindonológico” e a sede do Sodalício “Cultores Sanctae Sindonis” [Cultores do Santo Sudário], um centro de estudos sindonológicos para o qual fizeram valiosas contribuições estudiosos salesianos como o P. Natal Noguier de Malijay, o P. Antônio Tonelli, o P. Alberto Caviglia, o P. Pedro Scotti e, mais recentemente, o P. Pedro Rinaldi e o P. Luís Fossati, para citar apenas os principais.

A Igreja do Santo Sudário em Roma
            Também existe uma Igreja do Santo Sudário em Roma, ao longo da rua homônima que vai do Largo Argentina paralelamente à Avenida Vitório. Erguida em 1604 com um projeto de Carlos di Castellamonte, era a Igreja dos Piemonteses, Saboianos e Niceanos, construída pela Confraria do Santo Sudário que havia surgido em Roma naquela época. Depois de 1870, ela se tornou a igreja particular da Casa de Saboia.
            Durante suas estadas em Roma, Dom Bosco celebrou a missa nessa igreja várias vezes e formulou um plano para ela e para a casa adjacente, de acordo com o propósito da então extinta Confraria, dedicada a obras de caridade para jovens abandonados, doentes e prisioneiros.
            A Confraria havia deixado de funcionar no início do século e a propriedade e a administração da igreja haviam passado para a Delegação Sarda junto à Santa Sé. Na década de 1860, a igreja estava precisando de grandes reformas, tanto que em 1868 foi temporariamente fechada.
            Mas, já em 1867, Dom Bosco teve a ideia de propor ao governo da Saboia que lhe entregasse o uso e a administração da igreja, oferecendo sua colaboração em dinheiro para concluir o trabalho de restauração. Talvez ele tenha previsto a entrada das tropas piemontesas em Roma, não muito distante, e, desejando abrir uma casa lá, pensou em fazê-lo antes que a situação se precipitasse, tornando mais difícil obter a aprovação da Santa Sé e o respeito do Estado pelos acordos (MBp IX, 461-462).
            Ele então apresentou o pedido ao governo. Em 1869, durante uma escala em Florença, ele preparou uma minuta de acordo que, ao chegar a Roma, apresentou a Pio IX. Depois de obter seu consentimento, ele passou para a solicitação oficial ao Ministério das Relações Exteriores, mas, infelizmente, a ocupação de Roma acabou prejudicando todo o caso. O próprio Dom Bosco percebeu a inadequação de insistir. Assumir, de fato, naquela época, a oficialização de uma igreja romana pertencente à Casa da Saboia por uma Congregação religiosa com sua Casa Mãe em Turim, poderia ter parecido um ato de oportunismo e servilismo em relação ao novo Governo.
            Em 1874, Dom Bosco testou novamente o terreno com o governo. Mas, infelizmente, as notícias intempestivas que vazaram dos jornais interromperam definitivamente o projeto (MBp X, 1041-1042).
            Gostaríamos, porém, de recordar o fato de que Dom Bosco, ao procurar uma oportunidade favorável para abrir uma casa em Roma, pôs os olhos na Igreja do Santo Sudário.




A décima colina (1864)

O sonho da “Décima Colina”, narrado por Dom Bosco em outubro de 1864, é uma das páginas mais sugestivas da tradição salesiana. Nele, o santo se encontra em um vale imenso cheio de jovens: alguns já no Oratório, outros ainda a serem encontrados. Guiado por uma voz misteriosa, ele deve conduzi-los por uma escarpa íngreme e depois por dez colinas, símbolo dos dez mandamentos, em direção a uma luz que prefigura o Paraíso. O carro da Inocência, as hostes penitenciais e a música celestial desenham um afresco educativo: mostram a dificuldade de preservar a pureza, o valor do arrependimento e o papel insubstituível dos educadores. Com essa visão profética, Dom Bosco antecipa a expansão mundial de sua obra e o compromisso de acompanhar cada jovem no caminho da salvação.

            Dom Bosco tinha tido um sonho na noite anterior. Ao mesmo tempo um menino, chamado C… E…, de Casale Monferrato, teve o mesmo sonho, parecendo-lhe estar com Dom Bosco e conversar com ele. Quando acordou ficou muito impressionado e foi contar o sonho ao seu professor, que o exortou a contar tudo a Dom Bosco. O menino foi procurá-lo e se encontrou com o próprio, que descia a escada e soube que ele também estava à sua procura para lhe relatar a mesma coisa.
            Pareceu a Dom Bosco estar num vale enorme repleto de milhares de garotos, mas tão numerosos que ele não acreditava poder encontrar tantos no mundo inteiro. Entre estes ele podia reconhecer todos aqueles que foram e que estão agora no Oratório. Todos os outros eram talvez aqueles que virão mais tarde. No meio dos jovens, podiam-se ver os padres e os clérigos da casa.
            Uma escarpada muito alta fechava um lado daquele vale. Enquanto Dom Bosco pensava o que poderia fazer com todos estes jovens, “uma voz” lhe disse:
            – Está vendo aquela escarpada? Pois bem, precisa que você e os seus jovens alcancem o topo.
            Então Dom Bosco ordenou àquela multidão de jovens de se dirigir até o ponto indicado. Os jovens foram correndo e iniciaram a subir pela escarpada. Os padres da casa também correram e subiam ajudando os jovens: Levantavam os que caíam e carregavam os que, cansados, não aguentavam mais. P. Rua, com as mangas arregaçadas, trabalhava mais que todos e, até agarrando os meninos de dois em dois, lançava-os até o cume da escarpada, onde caíam em pé e corriam alegremente a brincar. P. Cagliero e P. Francesia corriam no meio dos meninos gritando:
            – Coragem, continuem; continuem, coragem.
            Em pouco tempo aquela multidão de jovens chegou no topo da escarpada; também Dom Bosco tinha chegado e disse: – E agora, o que vamos fazer?
            – E a “voz” continuou:
            – Você deve ultrapassar com os seus jovens estas dez colinas que estão à sua frente, uma após a outra.
            – Mas como é que vão conseguir aguentar uma caminhada tão longa, estes garotos tão pequenos e delicados?
            Foi-lhe respondido: – Quem não puder andar com suas próprias pernas será carregado.
            E eis, de fato, na extremidade da colina aparecer uma magnífica carruagem. Impossível descrever a beleza daquela carruagem, mas vou tentar. Era triangular e tinha três rodas que se movimentavam em todos os sentidos. Nos três cantos havia três hastes cujas extremidades se encontravam num mesmo ponto por cima da mesma carruagem, formando como que um pináculo de caramanchão. Sobre este ponto de união se levantava um magnífico estandarte sobre o qual estava escrito em caracteres cubitais: Innocentia (Inocência). Havia uma faixa ao redor da carruagem com a escrita: Adjutorio Dei Altissimi Patris et Filii et Spiritus Sancti (Com a ajuda do Deus Altíssimo Pai e Filho e Espírito Santo).
            A carruagem, que era de grande esplendor, por causa do ouro e pedras preciosas, veio até o meio dos jovens. Dada a ordem, muito meninos subiram na carruagem. Seu número era de quinhentos. Quinhentos apenas eram ainda inocentes, no meio a tantos milhares de jovens.
            Dispostos estes na carruagem, Dom Bosco pensava por qual caminho deveria ir, quando viu abrir-se à sua frente uma estrada ampla e bonita, mas cheia de espinhos. Apareceram então, de repente, seis jovens, já falecidos no Oratório, vestidos de branco, carregando outra belíssima bandeira onde estava escrito: Poenitentia (Penitência). Estes se puseram à frente daquelas legiões de jovens que deviam seguir o caminho a pé. Então foi dado o sinal da partida. Muitos padres puseram-se no timão da carruagem, que, dirigida por eles, começou a se mover. Os seis meninos, vestidos de branco, seguem-no. Atrás deles vinha a multidão. Os garotos que estavam na carruagem entoaram o Laudate pueri Dominum (Louvai, meninos, ao Senhor – Sl 112,1) com uma melodia magnífica e inexprimível.
            Dom Bosco caminhava encantado com aquela música celestial, quando se lembrou de olhar atrás para ver se todos os jovens o acompanhavam. Mas, oh, doloroso espetáculo! Muitos tinham ficado no vale, muitos voltaram atrás. Dom Bosco, agitado por dor inexprimível, decidiu voltar atrás para tentar convencer aqueles jovens levianos e ajudá-los a segui-lo. Mas foi-lhe decididamente negado.
            Exclamou ele: – Mas aqueles coitados vão se perder.
            Foi-lhe respondido:
            – Pior para eles: eles foram chamados como os outros e não quiseram acompanhá-lo. A estrada a ser percorrida, eles a viram e isso basta.
            Dom Bosco queria replicar; pediu, suplicou: inútil.
            Foi-lhe dito: – A obediência é para você também! – E teve que continuar o caminho.
            Nem tinha ainda suavizado esta dor, quando um outro acidente aconteceu. Muitos dos que estavam na carruagem, aos poucos, foram caindo por terra. De quinhentos, ficaram apenas 150 debaixo do estandarte da inocência.
            O coração de Dom Bosco partia-se por tanta angústia. Ele esperava que o que estava acontecendo fosse um sonho, fazia de tudo para acordar, mas infelizmente tudo aquilo era a triste realidade. Batia palmas e ouvia o som delas; gemia e ouvia seus gemidos ecoarem pelo quarto; queria fazer sumir aquele terrível fantasma, mas não podia.
            Neste ponto, narrando o sonho, exclamava: – Meus queridos jovens! Eu conheci e vi os que ficaram no vale, os que voltaram ou caíram da carruagem! Eu reconheci a todos vocês. Mas tenho a certeza de que farei de tudo para salvá-los. Muitos de vocês, convidados por mim para se confessar, não acataram o meu chamado! Pelo amor de Deus, salvem suas almas.
            Muitos dos garotos que tinham caído da carruagem foram aos poucos se juntar entre os que caminhavam atrás da segunda bandeira. E a música da carruagem continuava tão suave que aos poucos fez esquecer a dor que Dom Bosco sentia. Sete colinas já estavam ultrapassadas e, chegando aquelas legiões na oitava, entraram num maravilhoso povoado, onde pararam para descansar um pouco. As casas daquele lugar eram de uma riqueza e beleza indescritível.
            Dom Bosco, falando aos jovens sobre este lugar, acrescentou:
            – Vou dizer para vocês o que Santa Teresa afirmou das coisas do Paraíso: são coisas que ao se falar se degradam, porque são tão belas que é inútil esforçar-se para descrevê-las. Por isso digo-lhes só que os portais das casas pareciam um conjunto de ouro, cristal e diamante que surpreendia, enchia os olhos e infundia muita alegria. Os campos estavam cheios de árvores carregadas ao mesmo tempo de flores, botões, fruta madura e fruta verde. Era uma visão maravilhosa.
            Os jovens espalharam-se pelo povoado daqui e dali, uns para uma coisa, outros para outra, pois grande era a curiosidade deles e o desejo de provar daquela fruta.
            Foi nesta vila que aquele jovem de Casale se encontrou com Dom Bosco e conversou longamente com ele. Dom Bosco e o menino lembravam perfeitamente as perguntas feitas e as respostas. Singular combinação de dois sonhos.
            Dom Bosco neste ponto teve mais uma estranha surpresa. Os seus jovens apareceram-lhe, de repente, de idade avançada, curvos, desdentados, cheios de rugas no rosto, cabelos brancos, claudicantes, apoiados em bengalas. Ficou admirado com esta metamorfose, mas a “voz” lhe disse:
            – Você se admira; mas saiba que não são poucas horas desde que saiu do vale, mas já se passaram anos e anos. Foi aquela música que lhe fez parecer curto o caminho. Como prova, olhe a sua fisionomia e verá o que estou lhe dizendo.  – E foi apresentado a Dom Bosco um espelho. Ele olhou-se no espelho e viu que o seu aspecto era de um homem idoso, com o rosto cheio de rugas e com poucos dentes e estragados.
            A comitiva, entretanto, retomou o caminho, e os jovens de vez em quando pediam para parar a fim de olhar aquelas coisas novas. Mas Dom Bosco lhes dizia: – Em frente, em frente; nós não precisamos de nada; não temos fome, nem sede, portanto em frente.
            (Lá no fundo, distante, sobre a décima colina despontava uma luz que ia sempre aumentando, como que saída de um portal). Recomeçou, então, o canto, mas tão bonito que só mesmo no Paraíso se poderia ouvir coisa igual e deleitar-se. Não era música de instrumentos, nem parecia de vozes humanas. Era uma música impossível de descrever; e tamanha foi a alegria que invadiu a alma de Dom Bosco que acordou e se viu em sua cama.
            Dom Bosco, então, explicou o sonho:
            – O vale é o mundo. A escarpada são os obstáculos para afastar-se dele. A carruagem, vocês já entenderam. As turmas dos jovens a pé são os que, perdida a inocência, arrependeram-se de suas faltas.
            Dom Bosco acrescentou ainda que as dez colinas representavam os dez mandamentos da lei de Deus, cuja observância leva à vida eterna.
            Enfim, anunciou que, se fosse necessário, estaria disposto a revelar em particular a alguns jovens o que faziam naquele sonho; se ficaram no vale ou se caíram da carruagem.
            Descido do estrado, o aluno Antônio Ferraris aproximou-se dele e contou, estando nós presentes e entendendo perfeitamente o que ele dizia, como na noite anterior ele sonhou de estar com sua querida mãe, que lhe perguntou se por ocasião da Páscoa viria para casa de férias. Dom Bosco respondeu-lhe que antes da Páscoa estaria no Paraíso. Em seguida o jovem, em confiança, baixinho, falou algumas outras coisas ao ouvido de Dom Bosco. Antônio Ferraris faleceu no dia 16 de março de 1865.
            Colocamos logo por escrito o sonho, e na mesma noite de 22 de outubro de 1864, no final, acrescentamos a seguinte nota: “Eu tenho certeza de que Dom Bosco, pelas suas explicações, procurou encobrir o que o sonho tem de mais surpreendente, pelo menos por alguma circunstância. Aquela dos dez mandamentos não me convence. A oitava colina onde Dom Bosco parou, e se viu no espelho muito mais idoso, eu creio que indique o fim de sua vida, que deveria acontecer depois dos setenta anos. O futuro dirá”.
            Este futuro é agora, tempo que passou e confirmou a nossa opinião. O sonho indicava a Dom Bosco a duração de seu viver. Vamos confrontar com esse o da Roda, que a gente só pôde conhecer alguns anos depois. Os giros da Roda correspondem a uma dezena de anos; e assim, também, parece que tenha o mesmo espaço de tempo o proceder de colina em colina. Cada um das colinas corresponde a dez anos, de modo que elas significam cem anos, o máximo da vida de um homem. Agora, nós vemos Dom Bosco, menino de dez anos, iniciar sua missão entre os colegas dos Becchi e, assim, iniciar sua viagem; percorre todas as sete colinas, isto é, sete dezenas, portanto, a sua idade chega a setenta anos; sobe na oitava colina e aqui faz uma parada: vê casas e campos maravilhosos, isto é, a sua Congregação (Pia Sociedade), tornada grande e cheia de frutos pela infinita bondade de Deus. É ainda longo o caminho a percorrer na oitava colina, e retoma a viagem; mas não chega à nona colina, pois ele acordou. Assim ele não viveu a oitava dezena de anos, vindo a falecer aos 72 anos e cinco meses.
            O que diz o leitor sobre isso? Vou acrescentar que, na noite seguinte, tendo Dom Bosco perguntado nosso parecer sobre o sonho, respondi que o sonho não dizia respeito somente aos jovens, mas indicava a expansão da Congregação (Pia Sociedade) em todo o mundo.
            – Que nada – retrucou um dos nossos irmãos; temos já o Colégio de Mirabello e de Lanzo e talvez vamos ter mais alguns outros no Piemonte. O que quer mais?
            – Não! O sonho nos aponta outros destinos.
            E Dom Bosco aprovava, sorrindo, a nossa certeza.
(MBp VII, 820-826)




A educação feminina com São Francisco de Sales

O pensamento educativo de São Francisco de Sales revela uma visão profunda e inovadora do papel da mulher na Igreja e na sociedade de seu tempo. Convencido de que a formação das mulheres era fundamental para o crescimento moral e espiritual de toda a comunidade, o santo bispo de Genebra promoveu uma educação equilibrada, respeitosa da dignidade feminina, mas também atenta às fragilidades. Com um olhar paterno e realista, soube reconhecer e valorizar as qualidades das mulheres, encorajando-as a cultivar a virtude, a cultura e a devoção. Fundador da Ordem da Visitação com Joana de Chantal, defendeu vigorosamente a vocação feminina, mesmo contra críticas e preconceitos. Seu ensinamento continua a oferecer reflexões atuais sobre a educação, o amor e a liberdade na escolha da própria vida.

                Por ocasião de sua viagem a Paris em 1619, Francisco de Sales encontrou Adrien Bourdoise, um padre reformador do clero, que o repreendeu por se ocupar demais das mulheres. O bispo teria respondido com calma que as mulheres eram metade da humanidade e que, formando boas cristãs, haveria bons jovens e, com bons jovens, bons padres. Aliás, São Jerônimo não lhes dedicou muito tempo e vários escritos? A leitura de suas cartas é recomendada por Francisco de Sales à senhora de Chantal, que encontrará nelas, entre outras coisas, numerosas indicações “para educar suas filhas”. Deduz-se que o papel das mulheres na educação justificava, aos seus olhos, o tempo e a solicitude que lhes dedicava.

Francisco de Sales e as mulheres de seu tempo
                “É preciso ajudar o sexo feminino, desprezado”, disse certa vez o bispo de Genebra a Jean-François de Blonay. Para compreender as preocupações e o pensamento de Francisco de Sales, convém situá-lo em sua época. É preciso dizer que algumas de suas afirmações ainda parecem muito ligadas à mentalidade corrente. Nas mulheres de sua época, ele lamentava “essa ternura feminina consigo mesmas”, a facilidade “em se compadecer e desejar ser compadecidas”, uma maior propensão do que os homens “a dar crédito aos sonhos, a ter medo dos espíritos e a ser crédulas e supersticiosas” e, acima de tudo, as “contorções de seus pensamentos vaidosos”. Entre os conselhos dados à senhora de Chantal relativos à educação das filhas, escrevia sem hesitação: “Tire-lhes a vaidade da alma: ela nasce quase ao mesmo tempo que o sexo”.
                No entanto, as mulheres são dotadas de grandes qualidades. Ele escreveu sobre a senhora de La Fléchère, que acabara de perder o marido: “Se eu tivesse apenas esta ovelha perfeita no meu rebanho, não me angustiaria por ser pastor desta diocese aflita. Depois da senhora de Chantal, não sei se alguma vez encontrei uma alma mais forte num corpo feminino, um espírito mais sensato e uma humildade mais sincera”. As mulheres não são de forma alguma as últimas na prática das virtudes: “Não vimos muitos grandes teólogos que disseram coisas maravilhosas sobre as virtudes, mas não as praticavam, enquanto, ao contrário, há tantas mulheres santas que não sabem falar de virtudes, mas sabem muito bem como praticá-las?”.
                São as mulheres casadas as mais dignas de admiração: “Ó meu Deus! Como são agradáveis a Deus as virtudes de uma mulher casada; na verdade, elas devem ser fortes e excelentes para poderem permanecer nessa vocação!”. Na luta para preservar a castidade, ele acreditava que “as mulheres muitas vezes lutaram com mais coragem do que os homens”.
                Fundador de uma congregação de mulheres junto com Joana de Chantal, ele manteve contato constante com as primeiras religiosas. Ao lado dos elogios, começaram a chover críticas. Empurrado para essas trincheiras, o fundador teve que se defender e defendê-las, não apenas como religiosas, mas também como mulheres. Em um documento que deveria servir de prefácio às Constituições das Visitandinas, encontramos a veia polêmica de que ele era capaz, dirigindo-se não mais contra os “hereges”, mas contra os “censores” maliciosos e ignorantes:

A presunção e a arrogância inoportuna de muitos filhos deste século, que criticam ostensivamente tudo o que não está de acordo com o seu espírito […], oferecem-me a oportunidade, ou melhor, obrigam-me a redigir esta Prefácio, minhas queridas Irmãs, para armar e defender a vossa santa vocação contra as pontas das suas línguas pestilentas; para que as almas boas e piedosas, que sem dúvida estão ligadas ao vosso amável e honrado Instituto, encontrem aqui como repelir as flechas lançadas pela temeridade desses censores bizarros e insolentes.

                Prevendo talvez que tal preâmbulo corria o risco de prejudicar a causa, o fundador da Visitação escreveu uma segunda edição suavizada, com o objetivo de destacar a igualdade fundamental entre os sexos. Depois de citar o Gênesis, desta vez ele fez o seguinte comentário: “A mulher, portanto, não menos que o homem, tem a graça de ter sido feita à imagem de Deus; igual honra em ambos os sexos; suas virtudes são iguais”.

A educação das filhas
                O inimigo do amor verdadeiro é a “vaidade”. Este era o defeito que Francisco de Sales, assim como os moralistas e pedagogos de seu tempo, mais temia na educação das jovens. Ele destaca várias manifestações disso. Veja “estas moças da alta sociedade, que, tendo-se bem estabelecido, andam por aí cheias de orgulho e vaidade, com a cabeça erguida, os olhos abertos, ansiosas por serem notadas pelos mundanos”.
                O bispo de Genebra diverte-se um pouco ao ridicularizar essas “moças da sociedade”, que “usam chapéus espalhados e empoados”, com a cabeça “ferrada como se fossem ferraduras de cavalo”, todas “empinadas e enfeitadas com flores como não se pode dizer” e “carregadas de enfeites”. Há aquelas que “usam vestidos apertados e muito incômodos, para parecerem magras”; eis uma verdadeira “loucura que, na maioria das vezes, as torna incapazes de fazer qualquer coisa”.
                O que pensar, então, de certas belezas artificiais transformadas em “boutiques de vaidade”? Francisco de Sales prefere um “rosto limpo e puro”, deseja “que não haja nada afetado, porque tudo o que é embelezado desagrada”. É preciso, então, condenar todo “artifício”? Ele admite de bom grado que “no caso de algum defeito da natureza, é preciso corrigi-lo de modo a ver a correção, mas despojado de todo artifício”.
                E o perfume? perguntava-se o pregador falando de Madalena. “É uma coisa excelente – responde –, até quem está perfumado percebe algo de excelente”; acrescentando, como bom conhecedor, que “o almíscar da Espanha goza de grande estima no mundo”. No capítulo sobre a “decência das vestes”, ele permite que as jovens tenham roupas com vários ornamentos, “porque podem desejar livremente ser agradáveis a muitos, mas com o único objetivo de conquistar um jovem com vistas a um santo matrimônio”. Ele encerrava com esta observação indulgente: “O que vocês querem? É conveniente que as moças sejam um tanto graciosas”.
                É oportuno acrescentar que a leitura da Bíblia o preparou para não ser severo diante da beleza feminina. No amante do Cântico dos Cânticos, ele admirava “a notável beleza de seu rosto semelhante a um buquê de flores”. Ele descreve Jacó que, ao encontrar Raquel junto ao poço, “derramava lágrimas de alegria ao ver uma virgem que lhe agradava e o encantava pela graça do rosto”. Ele também gostava de contar a história de Santa Brígida, nascida na Escócia, um país onde se admiram “as mais belas criaturas que se podem ver”; ela era “uma jovem extremamente atraente”, mas sua beleza era “natural”, indica o nosso autor.
                O ideal de beleza salesiana chama-se “boa graça”, que designa não só “a perfeita harmonia das partes que tornam belo”, mas também a “graça dos movimentos, dos gestos e das ações, que é como a alma da vida e da beleza”, ou seja, a bondade do coração. A graça exige “simplicidade e modéstia”. Ora, a graça é uma perfeição que deriva do íntimo da pessoa. É a beleza unida à graça que faz de Rebeca o ideal feminino da Bíblia: ela era “tão bela e graciosa junto ao poço onde tirava água para dar de beber ao rebanho”, e sua “bondade familiar” a inspirava, além disso, a dar de beber não só aos servos de Abraão, mas também aos seus camelos.

Educação e preparação para a vida
                Na época de São Francisco de Sales, as mulheres tinham poucas oportunidades de acesso aos estudos superiores. As meninas aprendiam o que ouviam de seus irmãos e, quando a família tinha condições, frequentavam um convento. A leitura era certamente mais frequente do que a escrita. Os colégios eram reservados aos meninos, portanto, aprender latim, a língua da cultura, era praticamente proibido para as meninas.
                É preciso acreditar que Francisco de Sales não era contra que as mulheres se tornassem pessoas cultas, mas desde que não caíssem na pedanteria e na vaidade. Ele admirava Santa Catarina, que era “muito erudita, mas humilde em tanta ciência”. Entre as interlocutoras do bispo de Genebra, a senhora de La Fléchère havia estudado latim, italiano, espanhol e belas-artes, mas era uma exceção.
                Para encontrar um lugar na vida, tanto no âmbito social quanto no religioso, em determinado momento as jovens frequentemente precisavam de uma ajuda especial. Georges Rolland relata que o bispo ocupou-se pessoalmente de vários casos difíceis. Uma mulher de Genebra, com três filhas, foi generosamente assistida pelo bispo, “com dinheiro e créditos”; “colocou uma das filhas como aprendiz junto a uma senhora honesta da cidade, pagando-lhe a pensão durante seis anos, em grãos e dinheiro”. Ele também doou 500 florins para o casamento da filha de um impressor de Genebra.
                A intolerância religiosa da época às vezes provocava dramas, aos quais Francisco de Sales tentava remediar. Marie-Judith Gilbert, educada em Paris pelos pais nos “erros de Calvino”, descobriu aos dezenove anos o livro da Filoteia, que ousava ler apenas em segredo. Ela simpatizou com o autor, de quem tinha ouvido falar. Vigiada de perto pelo pai e pela mãe, conseguiu ser levada de carruagem, recebeu instrução na religião católica e entrou para as irmãs da Visitação.
                O papel social das mulheres ainda era bastante limitado. Francisco de Sales não era totalmente contra a intervenção das mulheres na vida pública. Ele escreveu nestes termos, por exemplo, a uma mulher levada a intervir na esfera pública, a propósito e a desproposito:

O seu sexo e a sua vocação permitem-lhe reprimir o mal externo a si, mas apenas se isso for inspirado pelo bem e realizado com repreensões simples, humildes e caridosas para com os transgressores e avisando os superiores, na medida do possível.

                Por outro lado, é significativo que uma contemporânea de Francisco de Sales, a senhorita de Gournay, uma das primeiras feministas ante litteram [antes da palavra], intelectual e autora de textos polêmicos como seu tratado A igualdade entre homens e mulheres e A queixa das mulheres, tenha manifestado grande admiração por ele. Ela se empenhou durante toda a sua vida em demonstrar essa igualdade, reunindo todos os testemunhos possíveis a esse respeito, sem esquecer o do “bom e santo bispo de Genebra”.

Educação para o amor
                Francisco de Sales falou muito sobre o amor de Deus, mas também foi muito atento às manifestações do amor humano. Para ele, de fato, o amor é uno, mesmo que seu “objeto” seja diferente e desigual. Para explicar o amor de Deus, ele não soube fazer melhor do que partir do amor humano.
                O amor nasce da contemplação do belo, e o belo se deixa perceber pelos sentidos, sobretudo pelos olhos. Estabelece-se um fenômeno interativo entre o olhar e a beleza: “Contemplar a beleza nos faz amá-la, e o amor nos faz contemplá-la”. O olfato reage da mesma maneira; de fato, “os perfumes exercem seu único poder de atração com sua doçura”.
                Após a intervenção dos sentidos externos, intervêm os sentidos internos, a fantasia, a imaginação, que exaltam e transfiguram a realidade: “Em virtude desse movimento recíproco do amor para a visão e da visão para o amor, da mesma forma que o amor torna mais resplandecente a beleza da coisa amada, assim a visão da coisa amada torna o amor mais apaixonado e agradável”. Compreende-se então por que “aqueles que pintaram Cupido lhe vendaram os olhos, afirmando que o amor é cego”. A este ponto surge o amor-paixão: ele faz “buscar o diálogo, e o diálogo muitas vezes alimenta e aumenta o amor”; além disso, “deseja o segredo, e quando os apaixonados não têm nenhum segredo a dizer, às vezes se agradam em dizê-lo secretamente”; e, finalmente, induz a “proferir palavras que, certamente, seriam ridículas se não brotassem de um coração apaixonado”.
                Ora, esse amor-paixão, que talvez se reduza apenas a “amorezinhos”, a “galanteios”, está exposto a várias vicissitudes, a tal ponto que leva o autor da Filoteia a intervir com uma série de considerações e advertências a respeito das “amizades frívolas que se estabelecem entre pessoas de sexos diferentes e sem intenção de casamento”. Muitas vezes, não passam de “abortos ou, melhor, aparências de amizade”.
                Francisco de Sales também se expressou sobre o tema dos beijos, perguntando-se, por exemplo, com os antigos comentaristas, por que Raquel permitiu que Jacó a abraçasse. Ele explica que existem dois tipos de beijo: um mau e outro bom. Os beijos que os jovens trocam facilmente entre si e que no início não são maus, podem tornar-se maus devido à fragilidade humana. Mas o beijo também pode ser bom. Em determinados lugares, é exigido pelo costume. «O nosso Jacó abraça muito inocentemente a sua Raquel; Rachel aceita este beijo de cortesia por parte deste homem de bom caráter e rosto limpo». «Oh! – concluía Francisco de Sales – dai-me pessoas que tenham a inocência de Jacó e Raquel e eu permitirei que se beijem».
                Na questão da dança e do baile, também em voga na época, o bispo de Genebra evitava mandamentos absolutos, como faziam os rigoristas da época, tanto católicos quanto protestantes, mostrando-se, no entanto, muito prudente. Chegaram mesmo a acusá-lo duramente de ter escrito que “as danças e os bailes, em si mesmos, são coisas indiferentes”. Tal como certos jogos, também eles se tornam perigosos quando se fica tão apegado a eles que não se consegue mais separar-se deles: o baile “deve ser feito por recreação e não por paixão; por pouco tempo e não até ficar cansado e atordoado”. O que é mais perigoso é o fato de que esses passatempos muitas vezes se tornam ocasiões que provocam “disputas, invejas, zombarias, namoricos”.

A escolha do modo de vida
                Quando a filha cresce, chega “o dia em que será preciso falar com ela, refiro-me a uma palavra decisiva, aquela em que se diz às jovens que se quer casá-las”. Homem do seu tempo, Francisco de Sales compartilhava em grande medida a ideia de que os pais tinham uma tarefa importante na determinação da vocação dos filhos, tanto para o casamento quanto para a vida religiosa. “Normalmente não se escolhe o próprio príncipe ou bispo, o próprio pai ou a própria mãe, e muitas vezes nem mesmo o próprio marido”, constatava o autor da Filoteia. No entanto, ele afirma claramente que “as filhas não podem ser dadas em casamento enquanto elas disserem não”.
                A prática corrente é bem explicada nesta passagem da Filoteia: “Para que um casamento se realize verdadeiramente, são necessárias três coisas em relação à jovem que se quer dar em casamento: em primeiro lugar, que lhe seja feita a proposta; em segundo lugar, que ela a aceite; em terceiro lugar, que ela consinta”. Como as moças se casavam muito jovens, não se pode admirar sua imaturidade afetiva. “As moças que se casam muito jovens amam realmente seus maridos, se os têm, mas não deixam de amar também os anéis, as joias, as amigas com quem se divertem muito brincando, dançando e fazendo loucuras”.
                O problema da liberdade de escolha se colocava igualmente para as crianças que se destinavam à vida religiosa. Franceschetta [Francisquinha], filha da baronesa de Chantal, deveria ser colocada em um convento por sua mãe, que desejava vê-la religiosa, mas o bispo interveio: “Se Franceschetta deseja ser religiosa, muito bem; caso contrário, não aprovo que se antecipe sua vontade com decisões que não são suas”. Além disso, não seria conveniente que a leitura das cartas de São Jerônimo orientasse demais a mãe no caminho da severidade e da coação. Por isso, aconselhou-a a “usar moderação” e a proceder com “inspirações suaves”.
                Algumas jovens hesitam diante da vida religiosa e do casamento, sem nunca chegar a se decidir. Francisco de Sales encorajou a futura senhora de Longecombe a dar o passo do casamento, que ele mesmo quis celebrar. Fez esta boa obra, dirá mais tarde o marido, à pergunta da esposa «que desejava casar-se pelas mãos do bispo e que, sem essa presença, nunca poderia dar esse passo, devido à grande aversão que nutria pelo casamento».

As mulheres e a «devoção»
                Alheio a qualquer feminismo ante litteram, Francisco de Sales estava consciente da contribuição excepcional da feminilidade no plano espiritual. Foi observado que, ao favorecer a devoção nas mulheres, o autor da Filoteia favoreceu, ao mesmo tempo, a possibilidade de uma maior autonomia, uma “vida privada feminina”.
                Não é de admirar que as mulheres tenham uma disposição especial para a “devoção”. Depois de enumerar um certo número de doutores e especialistas, ele pôde escrever no prefácio do Teótimo: “Mas para que se saiba que este tipo de escritos se redige melhor com a devoção dos apaixonados do que com a doutrina dos sábios, o Espírito Santo fez com que numerosas mulheres realizassem maravilhas a este respeito. Quem melhor manifestou as paixões celestiais do amor divino do que Santa Catarina de Gênova, Santa Ângela de Foligno, Santa Catarina de Sena e Santa Matilde?”. É conhecida a influência da Madre de Chantal na redação do Teótimo, e em particular do nono livro, “o seu nono livro do Amor de Deus”, segundo a expressão do autor.
                As mulheres podiam se envolver em questões religiosas? “Eis, pois, esta mulher que se faz de teóloga”, diz Francisco de Sales, falando da Samaritana do Evangelho. É preciso necessariamente ver nisso uma desaprovação em relação às teólogas? Não é certo. Tanto mais que ele afirma com veemência: “Eu vos digo que uma mulher simples e pobre pode amar a Deus tanto quanto um doutor em teologia”. A superioridade nem sempre está onde se pensa.
                Há mulheres superiores aos homens, a começar pela Santa Virgem. Francisco de Sales respeita sempre o princípio da ordem estabelecida pelas leis religiosas e civis de seu tempo, às quais prega a obediência, mas sua prática testemunha uma grande liberdade de espírito. Assim, para o governo dos mosteiros femininos, ele considerava que era melhor para elas estarem sob a jurisdição do bispo do que depender de seus irmãos religiosos, que corriam o risco de exercer uma influência excessiva sobre elas.
                As visitandinas, por sua vez, não dependeriam de nenhuma ordem masculina e não teriam nenhum governo central, estando cada mosteiro sob a jurisdição do bispo local. Ele ousou qualificar com o título inesperado de “apóstolas” as irmãs da Visitação que partiam para uma nova fundação.
                Se interpretarmos corretamente o pensamento do bispo de Genebra, a missão eclesial das mulheres consiste em anunciar não a palavra de Deus, mas “a glória de Deus” com a beleza do seu testemunho. Os céus, reza o salmista, narram a glória de Deus apenas com o seu esplendor. “A beleza do céu e do firmamento convida os homens a admirar a grandeza do Criador e a anunciar as suas maravilhas”; e “não é talvez uma maravilha maior ver uma alma adornada com muitas virtudes do que um céu constelado de estrelas?”.