Loterias: autênticos empreendimentos

Dom Bosco não foi apenas um incansável educador e pastor de almas, mas também um homem de extraordinária iniciativa, capaz de inventar soluções novas e corajosas para sustentar suas obras. As necessidades econômicas do Oratório de Valdocco, em constante expansão, o levaram a buscar meios cada vez mais eficazes para garantir alimentação, alojamento, escola e trabalho a milhares de jovens. Entre esses, as loterias representaram uma das ideias mais engenhosas: verdadeiras empreitadas coletivas, que envolviam nobres, sacerdotes, benfeitores e cidadãos comuns. Não era simples, pois a legislação piemontesa regulava rigorosamente as loterias, permitindo sua organização por particulares apenas em casos bem definidos. E não se tratava apenas de arrecadar fundos, mas de criar uma rede de solidariedade que unia a sociedade turinesa em torno do projeto educativo e espiritual do Oratório. A primeira, em 1851, foi uma aventura memorável, cheia de imprevistos e sucessos.

Todo o dinheiro que chegava às mãos de Dom Bosco permanecia ali por pouco tempo, porque era imediatamente usado para fornecer alimentação, alojamento, escola e trabalho para dezenas de milhares de meninos ou para construir colégios, orfanatos e igrejas ou para apoiar as missões sul-americanas. Suas contas, como sabemos, estavam sempre no vermelho; as dívidas o acompanharam durante toda a sua vida.
Ora, entre os meios inteligentemente adotados por Dom Bosco para financiar suas obras, podemos certamente colocar as loterias: cerca de quinze foram organizadas por ele, tanto pequenas quanto grandes. A primeira, modesta, foi a de Turim, em 1851, em favor da igreja de São Francisco de Sales, em Valdocco, e a última, grandiosa, em meados da década de 1880, foi a que se destinava a cobrir as imensas despesas da igreja e do Internato do Sagrado Coração, na estação Términi, em Roma.
Ainda não foi escrita uma verdadeira história dessas loterias, embora não faltem fontes a esse respeito. Somente com relação à primeira, a de 1851, nós mesmos recuperamos uma dúzia de documentos inéditos. Com eles, reconstruímos sua história atormentada em dois tópicos.

Pedido de autorização
De acordo com a lei de 24 de fevereiro de 1820 – modificada pelas Patentes Reais de janeiro de 1835 e pelas Instruções da Companhia Geral das Finanças Reais de 24 de agosto de 1835 e, mais tarde, pelas Patentes Reais de 17 de julho de 1845 – era necessária uma autorização governamental prévia para qualquer loteria nacional (Reino da Sardenha).
Para Dom Bosco, tratava-se, antes de tudo, de ter a certeza moral de ser bem-sucedido no projeto. Ele a tinha graças ao apoio econômico e moral dos primeiros benfeitores: as nobres famílias Callori e Fassati e o Cônego Anglesio do Cottolengo. Assim, ele se lançou no que viria a ser um autêntico empreendimento. Em pouco tempo, ele conseguiu criar uma comissão organizadora, inicialmente composta por dezesseis personalidades conhecidas, que depois aumentou para vinte. Entre elas, havia numerosas autoridades civis oficialmente reconhecidas, como um senador (nomeado tesoureiro), dois vice-prefeitos, três conselheiros municipais; depois, sacerdotes de prestígio, como os teólogos Pedro Baricco, vice-prefeito e secretário da Comissão, João Borel, capelão da corte, José Ortalda, diretor da Pia Obra da Propagação da Fé, Roberto Murialdo, cofundador do Colégio dos Pequenos Artesãos e da Associação de Caridade; e, por fim, homens experientes, como um engenheiro, um ourives avaliador, um comerciante atacadista etc. Todos eles, em sua maioria, proprietários, conhecidos de Dom Bosco e “próximos” da obra de Valdocco.
Uma vez concluída a Comissão, no início de dezembro de 1851, Dom Bosco encaminhou o pedido formal ao Intendente Geral de Finanças, Cavalheiro Alexandre Pernati di Momo (futuro Senador e Ministro do Interior do Reino), bem como “amigo” da obra de Valdocco.

O pedido de doações
Ao pedido de autorização, ele anexou uma circular muito interessante, na qual, depois de traçar uma história comovente do Oratório – prestigiada pela família real, pelas autoridades governamentais e municipais – salientava que a necessidade constante de ampliar a Obra de Valdocco para acolher cada vez mais jovens estava consumindo os recursos econômicos da caridade privada. Portanto, para pagar as despesas de conclusão da nova capela em construção, decidiu-se apelar para a caridade pública por meio de uma loteria de doações a serem oferecidas espontaneamente: “Esse meio consiste em uma loteria de objetos, que o abaixo-assinado teve a ideia de empreender para cobrir as despesas de conclusão da nova capela, e à qual Vossa Senhoria sem dúvida desejará dar seu apoio, refletindo sobre a excelência da obra à qual se destina. Seja qual for o objeto que Vossa Senhoria queira oferecer, seja de seda, lã, metal ou madeira, ou o trabalho de um artista de renome, ou de um trabalhador modesto, ou de um artesão esforçado, ou de uma senhora caridosa, todos serão aceitos com gratidão, porque, em matéria de caridade, toda pequena ajuda é uma grande coisa, e porque as ofertas, mesmo pequenas, de muitos podem, em conjunto, ser suficientes para completar a obra desejada”.
A circular também indicava os nomes dos promotores, a quem as doações poderiam ser entregues, e as pessoas de confiança que os recolheriam e guardariam. Os 46 promotores incluíam várias categorias de pessoas: profissionais, professores, empresários, estudantes, clérigos, lojistas, comerciantes, padres; por outro lado, entre os cerca de 90 promotores, pareciam prevalecer as mulheres nobres (baronesa, marquesa, condessa e suas damas de honra).
Não deixou de anexar ao requerimento o “plano da loteria” em todos os seus muitos aspectos formais: coleta dos objetos, recibo de entrega dos objetos, sua avaliação, bilhetes autenticados a serem vendidos em número proporcional ao número e ao valor dos objetos, sua exibição ao público, sorteio dos ganhadores, publicação dos números sorteados, tempo para receber os prêmios etc. Uma série de tarefas exigentes das quais Dom Bosco não se esquivou. A capela Pinardi já não era suficiente para seus jovens: eles precisavam de uma igreja maior, aquela projetada de São Francisco de Sales (doze anos depois, precisariam de outra ainda maior, a de Maria Auxiliadora!)

Resposta positiva
Dada a seriedade da iniciativa e a alta “qualidade” dos membros da Comissão proponente, a resposta da Intendência só poderia ser positiva e imediata. No dia 17 de dezembro, o referido vice-prefeito Pedro Baricco transmitiu a Dom Bosco o respectivo decreto, com o convite para transmitir cópias dos futuros atos formais da loteria à administração municipal, responsável pela regularidade de todos os requisitos legais. Nesse ponto, antes do Natal, Dom Bosco enviou a circular acima para a gráfica, fez com que ela circulasse e começou a coletar doações.
Ele tinha dois meses para fazer isso, pois outras loterias também estavam ocorrendo durante o ano. No entanto, as doações chegavam lentamente, de modo que, em meados de janeiro, Dom Bosco foi obrigado a reimprimir a circular acima e pediu a colaboração de todos os jovens de Valdocco e amigos para escrever endereços, visitar benfeitores conhecidos, divulgar a iniciativa e coletar as doações.
Mas “o melhor” ainda estava por vir.

A sala de exposições
Valdocco não tinha espaço para expor as doações; então Dom Bosco pediu ao vice-prefeito Baricco, tesoureiro da comissão da loteria, que solicitasse ao Ministério da Guerra três salas na parte do Convento de São Domingos que estavam à disposição do exército. Os padres dominicanos concordaram. O ministro Afonso Lamarmora concedeu-as em 16 de janeiro. Mas logo Dom Bosco percebeu que não seriam suficientes; então pediu ao rei, por meio do esmoler, o abade Estanislau Gazzelli, uma sala maior. O superintendente real Pamparà disse-lhe que o rei não tinha instalações adequadas e propôs alugar as instalações para o jogo de “Trincotto” (ou “pallacorda”: uma antiga espécie de tênis de mão) às suas próprias custas. Essa sala, porém, só estaria disponível para o mês de março e sob certas condições. Dom Bosco recusou a proposta, mas aceitou as 200 liras oferecidas pelo rei para o aluguel do local. Em seguida, procurou outro salão e encontrou um adequado por recomendação da prefeitura, atrás da igreja de São Domingos, a algumas centenas de metros de Valdocco.

Chegada das doações
Nesse meio tempo, Dom Bosco havia pedido ao Ministro das Finanças, o famoso Conde Camilo Cavour, uma redução ou isenção no custo da postagem de cartas circulares, bilhetes e das próprias doações. Por meio do irmão do conde, o muito religioso marquês Gustavo di Cavour, ele recebeu a aprovação de várias reduções postais.
Agora era uma questão de encontrar um especialista para avaliação do conjunto das doações e o consequente número de bilhetes a serem vendidos. Dom Bosco pediu ao Intendente e também sugeriu seu nome: um ourives que era membro da Comissão. O Intendente, porém, respondeu por meio do prefeito, pedindo-lhe uma cópia dupla das doações recebidas para poder nomear seu próprio perito. Dom Bosco realizou imediatamente o pedido e, assim, em 19 de fevereiro, o perito avaliou os 700 objetos coletados em 4124,20 liras. Depois de três meses chegaram a 1.000 doações, depois de quatro meses a 2.000, até a conclusão de 3.251 doações, graças às contínuas “buscas” de Dom Bosco junto a pessoas, sacerdotes e bispos e aos repetidos pedidos formais à Comuna para que prorrogasse o prazo para a extração. Dom Bosco também não deixou de criticar a estimativa feita pelo avaliador municipal das ofertas que chegavam continuamente, que ele dizia ser inferior ao seu valor real; e, de fato, foram acrescentados outros avaliadores, especialmente um pintor para as obras de arte.
O valor final foi tal que Dom Bosco foi autorizado a emitir 99.999 bilhetes ao preço de 50 centavos cada. Ao catálogo já impresso com as doações numeradas com o nome do doador e dos promotores, foi acrescentado um suplemento com as últimas ofertas recebidas. Entre elas estavam as do Papa, do Rei, da Rainha Mãe, da Rainha Consorte, de deputados, senadores, autoridades municipais, mas também de muitas pessoas humildes, especialmente mulheres, que ofereceram objetos e móveis domésticos, mesmo os de pouco valor (copo, tinteiro, vela, garrafa, saca-rolhas, tampa, dedal, tesoura, lâmpada, fita métrica, cachimbo, chaveiro, sabonete, apontador, açucareiro). As doações mais oferecidas foram livros, 629 deles, e fotos, 265. Até mesmo os meninos de Valdocco competiram para oferecer seu próprio pequeno presente, talvez um livreto dado a eles pelo próprio Dom Bosco.

Um trabalho imenso até o sorteio dos números
Nesse momento, era necessário imprimir os bilhetes em uma série progressiva em duas formas (canhoto e bilhete), fazer com que ambos fossem assinados por dois membros da comissão, enviar o bilhete com uma nota, documentar o dinheiro arrecadado… Muitos benfeitores receberam dezenas de bilhetes, com um convite para adquiri-los ou repassá-los a amigos e conhecidos.
A data do sorteio, inicialmente marcada para 30 de abril, foi adiada para 31 de maio e depois para 30 de junho, para ser realizada em meados de julho. Esse último adiamento foi devido à explosão do depósito de pólvora de Bairro Dora, que devastou a área de Valdocco.
Durante duas tardes, de 12 a 13 de julho de 1852, os bilhetes foram sorteados na sacada da prefeitura. Quatro urnas com rodas de cores diferentes continham 10 balas (de 0 a 9) idênticas e da mesma cor da roda. Inseridas uma a uma pelo vice-prefeito nas urnas e giradas, oito jovens do Oratório realizaram a operação e o número sorteado foi proclamado em voz alta e depois publicado na imprensa. Muitas doações foram deixadas no Oratório, onde mais tarde foram reutilizados.

Valia a pena?
Com os cerca de 74.000 bilhetes vendidos e deduzidas as despesas, Dom Bosco ficou com cerca de 26.000 liras, que depois dividiu igualmente com a vizinha obra do Cottolengo. Um pequeno capital, é claro (metade do preço de compra da casa Pinardi no ano anterior); mas o maior resultado do trabalho árduo que ele teve para realizar a loteria – documentado por dezenas de cartas, muitas vezes inéditas – foi o envolvimento direto e sincero de milhares de pessoas de todas as classes sociais em seu “incipiente projeto Valdocco”: torná-lo conhecido, apreciado e depois apoiado econômica, social e politicamente.
Dom Bosco recorreu muitas vezes a loterias, sempre com um duplo objetivo: angariar fundos para suas obras em favor dos meninos pobres, para as missões, e oferecer meios para que os crentes (e os não crentes) praticassem a caridade, o meio mais eficaz, como ele repetia continuamente, para “obter o perdão dos pecados e assegurar a vida eterna”.

“Eu sempre precisei de todos” (Dom Bosco)

Ao senador José Cotta

José Cotta, banqueiro, foi um grande benfeitor de Dom Bosco. A seguinte declaração em papel selado, datada de 5 de fevereiro de 1849, está preservada nos arquivos: “Os padres abaixo-assinados T. João Borrelli de Turim e P. João Bosco de Castelnuovo d’Asti declaram ser devedores de três mil francos ao Ilustríssimo Cavalheiro Cotta, que os emprestou para uma obra piedosa. Essa soma deve ser reembolsada pelos abaixo-assinados em um ano, com juros legais”. Assinado: Padre João Borel, P. João Bosco.

Na parte inferior da mesma página e na mesma data, o P. José Cafasso escreve: “O abaixo-assinado agradece sinceramente ao Ilustríssimo Sr. Cav. Cotta pelo acima exposto e, ao mesmo tempo, se torna fiador do mesmo pela soma mencionada”. Na parte inferior da página, Cotta assina que recebeu 2.000 liras em 10 de abril de 1849, outras 500 liras em 21 de julho de 1849 e o saldo em 4 de janeiro de 1851.




Tornar-se um sinal de esperança em Essuatíni – Lesoto – África do Sul após 130 anos

No coração da África Austral, entre as belezas naturais e os desafios sociais de Essuatíni, Lesoto e África do Sul, os Salesianos celebram 130 anos de presença missionária. Neste tempo de Jubileu, de Capítulo Geral e de aniversários históricos, a Inspetoria África Meridional compartilha seus sinais de esperança: a fidelidade ao carisma de Dom Bosco, o compromisso educativo e pastoral entre os jovens e a força de uma comunidade internacional que testemunha fraternidade e resiliência. Apesar das dificuldades, o entusiasmo dos jovens, a riqueza das culturas locais e a espiritualidade do Ubuntu continuam a indicar caminhos de futuro e comunhão.

Saudações fraternas dos Salesianos da menor Visitadoria e da mais antiga presença na Região África-Madagascar (desde 1896, quando os primeiros 5 coirmãos foram enviados pelo P. Rua). Este ano agradecemos aos 130 SDB que trabalharam em nossos 3 países e que agora intercedem por nós do céu. “Pequeno é belo”!

No território da AFM vivem 65 milhões de pessoas que se comunicam em 12 línguas oficiais, entre tantas maravilhas da natureza e grandes recursos do subsolo. Estamos entre os poucos países da África subsaariana onde os católicos são uma pequena minoria em relação às outras Igrejas cristãs, com apenas 5 milhões de fiéis.

Quais são os sinais de esperança que nossos jovens e a sociedade estão buscando?
Em primeiro lugar, estamos tentando superar os famigerados recordes mundiais da crescente disparidade entre ricos e pobres (100.000 milionários contra 15 milhões de jovens desempregados), da falta de segurança e do aumento da violência no cotidiano, do colapso do sistema educacional, que produziu uma nova geração de milhões de analfabetos, lidando com várias dependências (álcool, drogas…). Além disso, 30 anos após o fim do regime do apartheid em 1994, a sociedade e a Igreja ainda estão divididas entre as várias comunidades em termos de economia, oportunidades e muitas feridas ainda não cicatrizadas. De fato, a comunidade do “País do Arco-Íris” está lutando com muitas “lacunas” que só podem ser “preenchidas” com os valores do Evangelho.

Quais são os sinais de esperança que a Igreja Católica na África do Sul está buscando?
Participando do encontro trienal “Joint Witness” [Testemunha Conjunta] dos superiores religiosos e bispos em 2024, percebemos muitos sinais de declínio: menos fiéis, falta de vocações sacerdotais e religiosas, envelhecimento e diminuição do número de religiosos, algumas dioceses em falência, perda contínua/diminuição de instituições católicas (assistência médica, educação, obras sociais ou mídia) devido à forte queda no número de religiosos e leigos comprometidos. A Conferência Episcopal Católica (SACBC – que inclui Botswana, Essuatíni e África do Sul) indica como prioridade o atendimento aos jovens dependentes de álcool e outras substâncias.

Quais são os sinais de esperança que os salesianos da África Meridional estão buscando?
Rezamos todos os dias por novas vocações salesianas, para poder acolher novos missionários. De fato, terminou a época da Inspetoria Anglo-Irlandesa (até 1988) e o Projeto África não incluía a ponta sul do continente. Após 70 anos em Essuatíni (ex-Suazilândia) e 45 anos no Lesoto, temos apenas 4 vocações locais de cada Reino. Hoje temos apenas 5 jovens coirmãos e 4 noviços em formação inicial. No entanto, a menor Visitadoria da África-Madagascar, através de suas 7 comunidades locais, é responsável pela educação e cuidado pastoral em 6 grandes paróquias, 18 escolas primárias e secundárias, 3 centros de formação profissional (TVET) e vários programas de assistência social. Nossa comunidade inspetorial, com 18 nacionalidades diferentes entre os 35 SDB que vivem nas 7 comunidades, é um grande dom e um desafio a ser acolhido.

Como comunidade católica minoritária e frágil da África Austral
Acreditamos que o único caminho para o futuro é construir mais pontes e comunhão entre os religiosos e as dioceses: quanto mais fracos somos, mais nos esforçamos para trabalhar juntos. Como toda a Igreja Católica busca focar nos jovens, Dom Bosco foi escolhido pelos bispos como Padroeiro da Pastoral Juvenil e sua Novena é celebrada com fervor na maioria das dioceses e paróquias no início do ano pastoral.

Como Salesianos e Família Salesiana, nos encorajamos constantemente uns aos outros: “work in progress” (um trabalho constante)
Nos últimos dois anos, após o convite do Reitor-Mor, temos buscado relançar nosso carisma salesiano, com a sabedoria de uma visão e direção comum (a partir da assembleia anual inspetorial), com uma série de pequenos e simples passos diários na direção certa e com a sabedoria da conversão pessoal e comunitária.

Somos gratos pelo encorajamento do P. Pascual Chávez para nosso recente Capítulo Inspetorial de 2024: «Vocês sabem bem que é mais difícil, mas não impossível, “refundar” do que fundar [o carisma], porque existem hábitos, atitudes ou comportamentos que não correspondem ao espírito do nosso Santo Fundador, Dom Bosco, e ao seu Projeto de Vida, e que têm “direito de cidadania” [na Inspetoria]. Há realmente necessidade de uma verdadeira conversão de cada coirmão a Deus, tendo o Evangelho como suprema regra de vida, e de toda a Inspetoria a Dom Bosco, assumindo as Constituições como verdadeiro projeto de vida».

Foi aprovado o conselho do P. Pascual e o compromisso: “Tornar-se mais apaixonados por Jesus e dedicados aos jovens”, investindo na conversão pessoal (criando um espaço sagrado em nossa vida, para deixar que Jesus a transforme), na conversão comunitária (investindo na formação permanente sistemática mensal segundo um tema) e na conversão inspetorial (promovendo a mentalidade inspetorial através do “One Heart One Soul” [Um só coração e uma só alma] – fruto da nossa assembleia inspetorial) e com encontros mensais online dos diretores.

Na foto de lembrança da nossa Visitadoria do Beato Miguel Rua, ao lado dos rostos de todos os 46 coirmãos e 4 noviços (35 vivem em nossas 7 comunidades, 7 estão em formação no exterior e 5 SDB aguardam visto; um está nas catacumbas de São Calisto e um missionário faz quimioterapia na Polônia). Também somos abençoados por um número crescente de coirmãos missionários enviados pelo Reitor-Mor ou por um período específico por outras Inspetorias africanas para nos ajudar (AFC, ACC, ANN, ATE, MDG e ZMB). Somos muito gratos a cada um desses jovens coirmãos. Acreditamos que, com a ajuda deles, nossa esperança de relançamento carismático está se tornando tangível. Nossa Visitadoria – a menor da África-Madagascar, após quase 40 anos da fundação, ainda não tem uma verdadeira casa inspetorial. A construção começou, com a ajuda do Reitor-Mor, apenas no ano passado. Também aqui dizemos: “trabalhos em andamento”…

Queremos compartilhar também nossos humildes sinais de esperança com todas as outras 92 Inspetorias neste precioso período do Capítulo Geral. A AFM tem uma experiência única de 31 anos de voluntários missionários locais (envolvidos na Pastoral Juvenil do Centro Juvenil Bosco de Joanesburgo desde 1994), o programa “Love Matters” [O amor é o que importa] para um crescimento sexual saudável dos adolescentes desde 2001. Nossos voluntários, de fato, envolvidos por um ano inteiro na vida da nossa comunidade, são os membros mais preciosos da nossa Missão e dos novos grupos da Família Salesiana que estão crescendo lentamente (VDB, Salesianos Cooperadores e Ex-alunos de Dom Bosco).

Nossa casa-mãe na Cidade do Cabo celebrará já no próximo ano seu centésimo trigésimo (130º) aniversário e, graças ao centésimo quinquagésimo (150º) aniversário das Missões Salesianas, realizamos, com a ajuda da Inspetoria da China, uma especial “Sala da Memória de São Luís Versiglia”, onde nosso Protomártir passou um dia durante seu retorno da Itália para a China-Macau em maio de 1917.

Dom Bosco ‘Ubuntu’ – caminho sinodal
“Estamos aqui graças a vocês!” – Ubuntu é uma das contribuições das culturas da África Meridional para a comunidade global. A palavra na língua Nguni significa “Eu sou porque vocês são” (“I’m because you are!”. Outras possíveis traduções: “Eu existo porque vocês existem”). No ano passado iniciamos o projeto “Eco Ubuntu” (projeto de conscientização ambiental com duração de 3 anos) que envolve cerca de 15.000 jovens das nossas 7 comunidades em Essuatíni, Lesoto e África do Sul. Além da linda celebração e da partilha do Sínodo dos Jovens 2024, nossos 300 jovens [que participaram] guardam principalmente o Ubuntu em suas memórias. O entusiasmo deles é uma fonte de inspiração. A AFM precisa de vocês: Estamos aqui graças a vocês!

Marco Fulgaro




Dom Bosco e os títulos de Nossa Senhora

A devoção mariana de Dom Bosco nasce de uma relação filial e viva com a presença materna de Maria, experimentada em todas as fases de sua vida. Desde os pilares votivos erguidos durante a infância em Becchi, passando pelas imagens veneradas em Chieri e Turim, até as peregrinações realizadas com seus meninos aos santuários do Piemonte e da Ligúria, cada etapa revela um título diferente da Virgem — Consolata, Dolorosa, Imaculada, Nossa Senhora das Graças e muitos outros — que fala aos fiéis de proteção, conforto e esperança. O título que definiria para sempre sua veneração, no entanto, foi “Maria Auxiliadora”: foi a própria Nossa Senhora, segundo a tradição salesiana, quem o indicou. Em 8 de dezembro de 1862, Dom Bosco confidenciou ao clérigo Giovanni Cagliero: “Até agora”, acrescentou, “celebramos com solenidade e pompa a festa da Imaculada, e neste dia foram iniciadas as primeiras obras de nossos oratórios festivos. Mas Nossa Senhora quer que a honremos sob o título de Maria Auxiliadora: os tempos são tão tristes que realmente precisamos que a Santíssima Virgem nos ajude a conservar e defender a fé cristã.” (MB VII, 334)

Os títulos marianos
            Escrever hoje um artigo sobre os “títulos marianos” sob os quais Dom Bosco venerou a Santíssima Virgem durante a sua vida pode parecer fora de lugar. Alguém, de fato, poderia dizer: Nossa Senhora não é uma só? Para que servem tantos títulos se não para criar confusão? E então, afinal de contas, a Nossa Senhora de Dom Bosco não é Maria Auxiliadora?
Deixando para os especialistas as reflexões mais profundas que justificam esses títulos do ponto de vista histórico, teológico e devocional, vamos nos contentar com uma passagem da “Lumen Gentium”, o documento sobre a Igreja do Concílio Vaticano II, que nos tranquiliza, lembrando-nos de que Maria é nossa mãe e que “com a sua multiforme intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna. Cuida, com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre perigos e angústias, caminham ainda na terra, até chegarem à pátria bem-aventurada. Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos de Advogada, Auxiliadora, Socorro, Medianeira” (Lumen Gentium 62).
Esses quatro títulos admitidos pelo Concílio, bem considerados, englobam em síntese toda uma série de títulos e invocações com os quais o povo cristão chamou Maria, títulos que fizeram Alexandre Manzoni exclamar:
«O Vergine, o Signora, o Tuttasanta, che bei nomi ti serba ogni loquela: più d’un popol superbo esser si vanta in tua gentil tutela» (de Il nome di Maria”). [Ó Virgem, ó Senhora, ó Santíssima, toda oração te reserva grandes nomes. Muitos povos se gloriam orgulhosamente de serem guardados sob a tua proteção] (de “O Nome de Maria”).

A própria Liturgia da Igreja parece entender e justificar os louvores que o povo cristão eleva a Maria, quando pergunta: “Como cantaremos teus louvores, Santa Virgem Maria?”.
Portanto, deixemos as dúvidas de lado e vejamos quais títulos marianos eram caros a Dom Bosco, antes mesmo que ele difundisse o de Maria Auxiliadora em todo o mundo.

Em sua juventude
            As edículas ou ermidas sagradas espalhadas pelas ruas das cidades em muitas partes da Itália, as capelas e os pilares rurais encontrados nos cruzamentos de estradas ou na entrada de estradas particulares em nossas terras constituem um patrimônio de fé popular que até hoje o tempo não apagou.
Seria uma tarefa árdua calcular exatamente quantas podem ser encontradas nas estradas do Piemonte. Somente na área de “Becchi-Morialdo” há cerca de vinte, e nada menos que quinze na área de Capriglio.
Em sua maioria, são pilares votivos herdados dos antigos e restaurados várias vezes. Há também os mais recentes que documentam uma piedade que não desapareceu.
O pilar mais antigo da região de Becchi parece datar de 1700. Foi erguido no fundo da “planície” em direção ao Mainito, onde as famílias que viviam na antiga “Scaiota”, mais tarde uma propriedade rural salesiana, agora em reforma, costumavam se reunir.
Esse é o pilar da Consolata, com uma pequena estátua da Virgem Consoladora dos Aflitos, sempre homenageada com flores do campo trazidas pelos devotos.
Joãozinho Bosco deve ter passado por esse pilar muitas vezes, tirando o chapéu, talvez dobrando o joelho e murmurando uma Ave Maria, como sua mãe lhe ensinara.
Em 1958, os salesianos reformaram o velho pilar e, com um solene serviço religioso, o inauguraram para um renovado culto da comunidade e da população.
Aquela pequena estátua da Consolata poderia ter sido a primeira efígie de Maria que Dom Bosco venerou ao ar livre durante sua vida.

Na antiga casa
            Sem mencionar as igrejas de Morialdo e Capriglio, não sabemos exatamente quais imagens religiosas estavam penduradas nas paredes da propriedade Biglione ou da “Casetta” de Dom Bosco. Sabemos que mais tarde, na casa de José, quando Dom Bosco foi se hospedar lá, pôde ver dois quadros antigos nas paredes de seu quarto, um da Sagrada Família e outro de Nossa Senhora dos Anjos. Assim assegurou a Irmã Eulália Bosco. Onde José as conseguiu? Será que João as viu quando era menino? O da Sagrada Família ainda está em exibição hoje no quarto do meio, no primeiro andar da casa de José. Mostra São José sentado em sua mesa de trabalho, com o Menino nos braços, enquanto Nossa Senhora, de pé do outro lado, observa.
Sabemos também que na propriedade Moglia, perto de Moncucco, Joãozinho costumava fazer as orações e rezar o rosário com a família dos proprietários em frente de um pequeno quadro de Nossa Senhora das Dores, que ainda é mantido nos Becchi no primeiro andar da casa de José, no quarto de Dom Bosco, acima da cabeceira da cama. Ele está muito enegrecido, com uma moldura preta contornada em ouro na parte interna.
Em Castelnuovo, Joãozinho tinha ocasiões frequentes de ir à Igreja de Nossa Senhora do Castelo para rezar à Santíssima Virgem. Na Festa da Assunção, os habitantes do vilarejo levavam a estátua de Nossa Senhora em procissão. Nem todo mundo sabe que essa estátua, assim como o quadro do ícone no altar-mor, representam Nossa Senhora da Correia, a dos Agostinianos.
Em Chieri, o estudante e clérigo seminarista João Bosco rezou muitas vezes no altar de Nossa Senhora das Graças na Catedral de Santa Maria da Escada, no do Santo Rosário na Igreja de São Domingos e diante da Imaculada Conceição na capela do Seminário.
Assim, em sua juventude, Dom Bosco teve a oportunidade de venerar Maria Santíssima sob os títulos de Consolata, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora do Rosário e Imaculada.

Em Turim
            Em Turim, João Bosco já havia ido à Igreja de Nossa Senhora dos Anjos para fazer o exame de admissão à Ordem Franciscana em 1834. Voltou lá várias vezes para fazer os Exercícios Espirituais, em preparação para as Ordens Sagradas, na Igreja da Visitação, e recebeu as Ordens Sagradas na Igreja da Imaculada Conceição, na Cúria Arquiepiscopal.
Quando chegava ao Colégio Eclesiástico, certamente rezava com frequência diante da imagem da Anunciação, na primeira capela à direita, na Igreja de São Francisco de Assis. A caminho da Catedral entrando, como é costume ainda hoje, pelo portal da direita, quantas vezes ele parou por um momento em frente à antiga estátua de Nossa Senhora das Graças, conhecida pelos antigos turinenses como “La Madòna Granda”.
Se pensarmos, então, nas caminhadas de peregrinação que Dom Bosco costumava fazer com seus meninos de Valdocco aos santuários marianos de Turim nos dias do Oratório itinerante, podemos nos lembrar, em primeiro lugar, do Santuário da Consolata, o coração religioso de Turim, cheio de lembranças do primeiro Oratório. Dom Bosco levou muitas vezes os seus jovens à “Consolata”. Ele mesmo recorreu à “Consolata”, em lágrimas, quando da morte de sua mãe.
Mas não podemos nos esquecer dos passeios pela cidade a Nossa Senhora do Pilar, Nossa Senhora da Campanha, no Monte dos Capuchinhos, à Igreja da Natividade em Pozzo Strada, à Igreja das Graças em Crocetta.
A viagem de peregrinação mais espetacular daqueles primeiros anos do Oratório foi a Nossa Senhora de Superga. Essa monumental igreja dedicada à Natividade de Maria lembrou aos jovens de Dom Bosco que a Mãe de Deus é “como uma aurora que surge”, um prelúdio da vinda de Cristo.
Assim, Dom Bosco fez com que seus meninos vivenciassem os mistérios da vida de Maria por meio de seus mais belos títulos.

Nos passeios de outono
            Em 1850, Dom Bosco inaugurou os passeios “ao ar livre”, primeiro nos Becchi e arredores, depois nas colinas de Monferrato até Casale, de Alexandria até Tortona e na Ligúria até Gênova.
Nos primeiros anos, seu destino principal, se não exclusivo, era os Becchi e arredores, onde celebrava a festa do Rosário com solenidade na pequena capela erguida no andar térreo da casa de seu irmão José em 1848.
Os anos de 1857 a 1864 foram os anos dourados das caminhadas de outono, e os meninos participavam delas em grupos cada vez maiores, entrando nos vilarejos com a banda de música à frente, recebidos festivamente pelo povo e pelos párocos locais. Eles descansavam em celeiros, comiam refeições frugais de camponeses, realizavam cultos devotos nas igrejas e, à noite, faziam apresentações em um palco improvisado.
Em 1857, o destino da peregrinação foi Santa Maria di Vezzolano, um santuário e abadia muito queridos por Dom Bosco, localizados abaixo do vilarejo de Albugnano, a 5 km de Castelnuovo.
Em 1861, foi a vez do santuário de Crea, famoso em todo o Monferrato. Naquela mesma viagem, Dom Bosco levou novamente os meninos a Nossa Senhora do Poço, em São Salvador.
Em 14 de agosto de 1862, de Vignale, onde se encontravam os jovens, Dom Bosco conduziu o alegre grupo em uma peregrinação ao santuário de Nossa Senhora das Graças, em Casorzo. Poucos dias depois, em 18 de outubro, antes de deixarem Alexandria, foram novamente à catedral para rezar a Nossa Senhora da Salve (Rainha), venerada com tanta piedade pelos alexandrinos, para obter uma feliz conclusão de seu passeio.
Também na última caminhada de 1864 em Gênova, no caminho de volta, entre Serravalle e Mornese, um grupo liderado pelo P. Cagliero fez uma devota peregrinação ao santuário de Nossa Senhora da Guarda, em Gavi.
Esses passeios de peregrinação retomavam os vestígios de uma religiosidade popular característica de nosso povo; eram a expressão de uma devoção mariana, que João Bosco havia aprendido com sua mãe.

E mais ainda…
            Nos anos de 1860, o título de Maria Auxiliadora começou a dominar a mente e o coração de Dom Bosco, com a construção da igreja com a qual ele sonhava desde 1844 e que se tornou o centro espiritual de Valdocco, a igreja-mãe da Família Salesiana, o ponto de irradiação da devoção a Nossa Senhora, invocada sob esse título.
Mas as peregrinações marianas de Dom Bosco não cessaram por causa disso. Basta segui-lo em suas longas viagens pela Itália e pela França para ver com que frequência ele aproveitava a oportunidade para uma visita rápida ao santuário da Virgem do lugar.
De Nossa Senhora de Oropa, no Piemonte, a Nossa Senhora do Milagre, em Roma; de Nossa Senhora do Boschetto, em Camogli, a Nossa Senhora de Gennazzano; de Nossa Senhora do Fogo, em Forlì, a Nossa Senhora do Olmo, em Cuneo; de Nossa Senhora da Boa Esperança, em Bigione, a Nossa Senhora das Vitórias, em Paris.
Nossa Senhora das Vitórias, colocada em um nicho dourado, é uma rainha de pé, segurando seu Filho Divino com as duas mãos. Jesus tem seus pés apoiados na bola estrelada que representa o mundo.
Diante dessa Rainha das Vitórias em Paris, Dom Bosco fez um “sermão de caridade” em 1883, ou seja, uma dessas conferências para obter ajuda para suas obras de caridade para jovens pobres e abandonados. Foi sua primeira conferência na capital francesa, no santuário que é para os parisienses o que o santuário da Consolata é para o povo de Turim.
Esse foi o ponto culminante das andanças marianas de Dom Bosco, que começaram aos pés da coluna da Consolata, sob a “Scaiota” dos Becchi.




O P. Pedro Ricaldone renasce em Mirabello Monferrato

O P. Pedro Ricaldone (Mirabello Monferrato, 27 de abril de 1870 – Roma, 25 de novembro de 1951) foi o quarto sucessor de Dom Bosco à frente dos Salesianos, homem de vasta cultura, profunda espiritualidade e grande amor pelos jovens. Nascido e criado entre as colinas de Monferrato, sempre carregou consigo o espírito daquela terra, traduzindo-o em um compromisso pastoral e formativo que o tornaria uma figura de destaque internacional. Hoje, os habitantes de Mirabello Monferrato querem trazê-lo de volta às suas terras.

O Comitê P. Pedro Ricaldone: renascimento de uma herança (2019)
Em 2019, um grupo de ex-alunos e ex-alunas, historiadores e apaixonados por tradições locais deu vida ao Comitê P. Pedro Ricaldone em Mirabello Monferrato. O objetivo – simples e ambicioso ao mesmo tempo – foi desde o início trazer a figura do P. Pedro de volta ao coração da cidade e dos jovens, para que sua história e sua herança espiritual não se percam.

Para preparar o 150º aniversário de nascimento (1870-2020), o Comitê pesquisou o Arquivo Histórico Municipal de Mirabello e o Arquivo Histórico Salesiano, encontrando cartas, anotações e volumes antigos. Desse trabalho nasceu uma biografia ilustrada, pensada para leitores de todas as idades, na qual a personalidade de Ricaldone emerge de forma clara e cativante. Fundamental, nesta fase, foi a colaboração com o P. Egídio Deiana, estudioso da história salesiana.

Em 2020, estava prevista uma série de eventos – exposições fotográficas, concertos, espetáculos teatrais e circenses – todos centrados na memória do P. Pedro. Embora a pandemia tenha obrigado a reprogramar grande parte das celebrações, em julho do mesmo ano, realizou-se um evento comemorativo com uma exposição fotográfica sobre as etapas da vida de Ricaldone, uma animação infantil com oficinas criativas e uma celebração solene, com a presença de alguns Superiores Salesianos.
Aquele encontro marcou o início de uma nova fase de atenção ao território de Mirabello.

Além dos 150 anos: o concerto pelo 70º aniversário de morte
O entusiasmo pela recuperação da figura do P. Pedro Ricaldone levou o Comitê a prolongar suas atividades mesmo após o 150º aniversário.
Em vista do 70º aniversário de morte (25 de novembro de 1951), o Comitê organizou um concerto intitulado “Apressar a aurora radiosa do dia esperado”, frase extraída da circular do P. Pedro sobre o Canto Gregoriano de 1942.
Em plena Segunda Guerra Mundial, o P. Pedro – então Reitor-Mor – escreveu uma célebre circular sobre o Canto Gregoriano na qual destacava a importância da música como caminho privilegiado para reconduzir os corações dos homens à caridade, à mansidão e, sobretudo, a Deus: “A alguns poderá causar espanto que, em meio a tanto fragor de armas, eu vos convide a ocupar-vos de música. No entanto, penso, mesmo prescindindo de alusões mitológicas, que este tema responde plenamente às exigências da hora atual. Tudo o que possa exercer eficácia educativa e reconduzir os homens a sentimentos de caridade e mansidão e, sobretudo, a Deus, deve ser por nós praticado, diligentemente e sem demora, para apressar a aurora radiosa do dia esperado”.

Passeios e raízes salesianas: o “Passeio de Dom Bosco”
Embora tenha nascido como uma homenagem ao P. Ricaldone, o Comitê acabou por divulgar novamente também a figura de Dom Bosco e de toda a tradição salesiana, da qual o P. Pedro foi herdeiro e protagonista.
A partir de 2021, a cada segundo domingo de outubro, o Comitê promove o “Passeio de Dom Bosco”, repropondo a peregrinação que Dom Bosco realizou com os jovens de Mirabello a Lu Monferrato de 12 a 17 de outubro de 1861. Naqueles cinco dias, foram planejados os detalhes do primeiro colégio salesiano fora de Turim, confiado ao Beato Miguel Rua, com o P. Álbera entre os professores. Embora a iniciativa não diga respeito diretamente ao P. Pedro, ela destaca suas raízes e o vínculo com a tradição salesiana local que ele mesmo levou adiante.

Hospitalidade e intercâmbios culturais
O Comitê tem incentivado o acolhimento de grupos de jovens, escolas profissionais e clérigos salesianos de todo o mundo. Algumas famílias oferecem hospitalidade gratuita, renovando a fraternidade típica de Dom Bosco e do P. Pedro. Em 2023, um numeroso grupo da Crocetta passou por Mirabello, enquanto durante todo o verão chegam grupos internacionais acompanhados pelo P. Egídio Deiana. Cada visita é um diálogo entre memória histórica e a alegria dos jovens.

Em 30 de março de 2025, quase cem capitulares salesianos fizeram uma parada em Mirabello, nos locais onde Dom Bosco abriu seu primeiro colégio fora de Turim e onde o P. Pedro viveu seus anos de formação. O Comitê, junto com a Paróquia e a Pro Loco [escritório de promoção cultural e turística], organizou a acolhida e produziu um vídeo informativo sobre a história salesiana local, apreciado por todos os participantes.

As iniciativas continuam e hoje o Comitê, liderado por seu presidente, colabora na criação do Caminho Monferrino de Dom Bosco, um itinerário espiritual de aproximadamente 200 km pelas rotas outonais percorridas pelo Santo. O objetivo é obter o reconhecimento oficial em nível regional, mas também oferecer aos peregrinos uma experiência formativa e de evangelização. Os passeios juvenis de Dom Bosco, de fato, eram experiências de formação e evangelização: o mesmo espírito que o P. Pedro Ricaldone defenderia e promoveria depois durante todo o seu reitorado.

A missão do Comitê: manter viva a memória do P. Pedro
Por trás de cada iniciativa está a vontade de destacar a obra educativa, pastoral e cultural do P. Pedro Ricaldone. Os fundadores do Comitê guardam memórias pessoais da infância e desejam transmitir às novas gerações os valores de fé, cultura e solidariedade que animaram o sacerdote de Mirabello. Numa época em que tantos pontos de referência vacilam, redescobrir o caminho do P. Pedro significa oferecer um modelo de vida capaz de iluminar o presente: “Onde passam os Santos, Deus caminha com eles e nada mais é como antes” (São João Paulo II).
O Comitê P. Pedro Ricaldone se faz porta-voz dessa herança, confiando que a memória de um grande filho de Mirabello continue a iluminar o caminho para as gerações futuras, traçando uma senda sólida feita de fé, cultura e solidariedade.




Finalmente na Patagônia!

Entre 1877 e 1880, ocorre a virada missionária salesiana rumo à Patagônia. Após a oferta da paróquia de Carhué em 12 de maio de 1877, dom Bosco sonha com a evangelização das terras austrais, mas dom Cagliero o aconselha a ter cautela diante das dificuldades culturais. As tentativas iniciais sofrem atrasos, enquanto a “campanha do deserto” do general Roca (1879) redefine os equilíbrios com os índios. Em 15 de agosto de 1879, o arcebispo Aneiros confia aos salesianos a missão patagônica: «Finalmente chegou o momento em que posso oferecer a vocês a Missão da Patagônia, pela qual seu coração tanto suspirou». Em 15 de janeiro de 1880, parte o primeiro grupo liderado por dom Giuseppe Fagnano, inaugurando a epopeia salesiana no sul da Argentina.

            O que fez Dom Bosco e o P. Cagliero suspenderem, ao menos temporariamente, qualquer projeto missionário na Ásia foi a notícia de 12 de maio de 1877: o arcebispo de Buenos Aires havia oferecido aos salesianos a missão de Caruhé (sudeste da Província de Buenos Aires), lugar de guarnição e de fronteira entre numerosas tribos de indígenas do vasto deserto dos Pampas e a Província de Buenos Aires.
            Abriam-se assim aos salesianos, pela primeira vez, as portas da Patagônia: Dom Bosco ficou muito entusiasmado; mas o P. Cagliero imediatamente esfriou seu entusiasmo: “Repito-lhe, porém, que em relação à Patagônia não se deve correr com excesso de velocidade, nem ir para lá a vapor, porque os salesianos ainda não estão preparados para esse empreendimento […] muito foi publicado e pudemos fazer muito pouco em relação aos índios. Não se pode desconhecer esta empresa, que é fácil de idealizar, mas difícil de realizar. Faz muito pouco tempo que chegamos aqui. Devemos sim trabalhar com zelo e atividade para esse fim, mas sem fazer alarde, para não despertar a admiração dessa gente daqui, por querermos aspirar nós, que chegamos ontem, à conquista de um país que ainda não conhecemos e cuja língua nem sequer sabemos”.
            Como a opção de Carmen de Patagónes não estava mais disponível, com a paróquia confiada pelo arcebispo a um padre lazarista, os salesianos ficaram com a paróquia mais ao norte de Carhué e a paróquia mais ao sul de Santa Cruz, para a qual o P. Cagliero obteve uma passagem marítima na primavera, o que lhe teria atrasado em seis meses o seu planejado retorno à Itália.
            A decisão de quem deveria “entrar por primeiro na Patagônia” foi, portanto, deixada para Dom Bosco, que pretendia oferecer-lhe essa honra. Mas antes mesmo de saber, o P. Cagliero decidiu voltar: “A Patagônia está me esperando, os de Dolores, Carhué, Chaco estão nos pedindo, e eu vou agradar a todos eles fugindo!” (8 de julho de 1877). Retornou para participar do 1º Capítulo Geral da Sociedade Salesiana, a ser realizado em Lanzo Torinese, em setembro. Entre outras coisas, era sempre membro do Capítulo Superior da Congregação, onde ocupou o importante cargo de Catequista Geral (era o terceiro na Congregação, depois de Dom Bosco e do P. Rua).
            O ano de 1877 se encerrou com a terceira expedição de 26 missionários liderados pelo P. Tiago Costamagna e com o novo pedido de Dom Bosco à Santa Sé para uma Prefeitura em Carhué e um Vicariato em Santa Cruz. No entanto, para dizer a verdade, durante todo o ano, a evangelização direta dos salesianos fora da cidade havia se limitado à breve experiência do P. Cagliero e do clérigo Evásio Rabagliati na colônia italiana de Vila Liberdade em Entre Ríos (abril de 1877), nos limites da Diocese de Paraná, e a algumas excursões ao acampamento pampeano dos salesianos no Paraná, em San Nicolás de los Arroyos.

O sonho se realiza (1880)
            Em maio de 1878, a primeira tentativa de chegar a Carhué, feita pelo P. Costamagna e pelo clérigo Rabagliati, fracassou por causa de uma tempestade no oceano. Mas, nesse meio tempo, Dom Bosco já havia retornado à carga com o novo Prefeito da Propaganda Fide, Cardeal João Simeoni, propondo um Vicariato ou Prefeitura com sede em Carmen, como o próprio P. Fagnano havia sugerido, que ele via como um ponto estratégico para chegar aos nativos.
            No ano seguinte (1879), justamente quando o plano de entrada dos salesianos no Paraguai estava sendo abandonado, as portas da Patagônia finalmente se abriram para eles. De fato, em abril, o general Júlio A. Roca iniciou a famosa “campanha do deserto” com o objetivo de subjugar os índios e obter segurança interna, impelindo-os para além dos rios Negro e Neuquén. Foi o “golpe de misericórdia” para seu extermínio, após os inúmeros massacres do ano anterior.
            O vigário geral de Buenos Aires, Dom Espinosa, como capelão de um forte exército de seis mil homens, foi acompanhado pelo clérigo argentino Luís Botta e pelo P. Costamagna. O futuro bispo percebeu logo a ambiguidade da posição deles, escreveu imediatamente a Dom Bosco, mas não viu outra maneira de abrir o caminho para a Patagônia aos missionários salesianos. E, de fato, assim que o governo pediu ao arcebispo que estabelecesse algumas missões nas margens do Rio Negro e na Patagônia, pensou-se imediatamente nos salesianos.
            Os salesianos, por sua vez, tinham a intenção de pedir ao governo uma concessão de dez anos de um território administrado por eles para construir, com materiais pagos pelo governo e com a mão de obra dos índios, os edifícios necessários para uma espécie de redução naquele território: os indígenas teriam evitado a contaminação dos colonos cristãos “corruptos e perversos” e os missionários plantariam ali a cruz de Cristo e a bandeira argentina. Mas o inspetor salesiano, P. Francisco Bodrato, não se sentia em condições de decidir por conta própria, e o P. Lasagna o desaconselhou em maio, alegando que o governo de Avellaneda estava no fim de seu mandato e não estava interessado no problema religioso. Portanto, era melhor preservar a independência e a liberdade de ação dos salesianos.
            Em 15 de agosto de 1879, Dom Aneiros ofereceu formalmente a Dom Bosco a missão da Patagônia: “Chegou finalmente o momento em que posso oferecer-lhe a Missão da Patagônia, pela qual o seu coração tanto ansiava, bem como o cuidado das almas entre os patagônios, que pode servir de centro para a missão”.
            Dom Bosco aceitou-a de imediato e de bom grado, mesmo que ainda não fosse o tão desejado consentimento para a ereção de circunscrições eclesiásticas autônomas em relação à Arquidiocese de Buenos Aires, uma realidade constantemente recusada pelo Ordinário diocesano.

A partida
            O grupo de missionários partiu para a tão sonhada Patagônia no dia 15 de janeiro de 1880: era formado pelo P. José Fagnano, diretor da Missão e pároco em Carmen de Patagónes (o padre lazarista havia se retirado), dois sacerdotes, um dos quais era responsável pela paróquia de Viedma, na outra margem do Rio Negro, um leigo salesiano (coadjutor) e quatro religiosas. Em dezembro, o P. Domingos Milanesio chegou para ajudar e, alguns meses depois, o P. José Beauvoir chegou com outro noviço coadjutor. A epopeia missionária salesiana na Patagônia estava começando.




Presentes dos jovens a Maria (1865)

No sonho narrado por Dom Bosco na Crônica do Oratório, datado de 30 de maio, a devoção mariana converte-se num vívido juízo simbólico sobre os jovens do Oratório: um cortejo de jovens apresenta-se, cada qual com um dom, diante de um altar esplendidamente adornado para a Virgem. Um anjo, guardião da comunidade, acolhe ou rejeita as oferendas, desvendando-lhes o significado moral – flores perfumadas ou murchas, espinhos de desobediência, animais que personificam vícios graves como a impureza, o roubo e o escândalo. No âmago da visão, ecoa a mensagem educativa de Dom Bosco: humildade, obediência e castidade são os três pilares para se merecer a coroa de rosas de Maria.

            O Servo de Deus se consolava com a devoção a Maria Santíssima, honrada no mês de maio pela comunidade inteira de maneira especial. De suas pequenas falas à noite, a Crônica tem-nos conservado somente aquela do dia 30 do mês, que, entretanto, é de enorme preciosidade.

30 de maio

            Vi um grande altar dedicado a Maria, magnificamente decorado. Vi todos os jovens do Oratório, que em procissão se dirigiam para ele. Cantavam os louvores à Virgem Celeste, mas nem todos do mesmo modo, ainda que cantassem o mesmo hino. Muitos cantavam verdadeiramente bem e com precisão de ritmo, alguns mais forte outros mais suave. Outros cantavam com vozes péssimas e roucas. Uns destoavam. Havia os que avançavam silenciosos e saíam da fila. Uns bocejavam e pareciam enjoados; uns se empurravam e riam entre si. Todos também levavam seus presentes para oferecer a Maria. Todos tinham um ramalhete de flores, uns grandes e outros menores, diferentes um do outro. Quem tinha rosas, quem cravos, outro, violetas etc. Alguns levavam à Virgem presentes de fato estranhos: um a cabeça de um porco, outro um gato, quem um prato de sapos, quem um coelho, outro um cordeiro e outras ofertas.
            Um belo jovem estava na frente do altar, o qual, se observado com atenção se via que tinha asas nas costas. Talvez fosse o Anjo da Guarda do Oratório. À medida que os jovens chegavam, ele pegava as ofertas e as colocava sobre o altar.
            Os primeiros ofereceram magníficos buquês de flores; o anjo, sem nada dizer, os colocou no altar. Muitos outros trouxeram seus ramalhetes. O anjo os olhou, mandou desmanchar o ramalhete, fez tirar algumas flores que estavam estragadas, jogando-as fora e, refeito o ramalhete, o colocou sobre o altar. A outros que tinham flores bonitas, mas sem aroma, como seriam as dálias, as camélias etc., o anjo as fez jogar fora, pois Maria quer a realidade e não as aparências. E assim, refeito o ramalhete, o anjo o ofereceu à Virgem. Dentre as flores, muitas tinham espinhos, poucos ou muitos. Outras tinham pregos, e o anjo retirou estes e aqueles.
            Chegou, então, aquele trazia o porco, e o anjo lhe disse: – Tem coragem de oferecer a Maria este presente? Sabe o que significa o porco? Significa o vício feio da impureza. Maria que é toda pura não pode aceitar este dom. Retire-se, portanto, pois você não é digno de ficar na frente dela.
            Aproximaram-se os que tinham um gato. O anjo lhes disse: – Vocês também ousam trazer a Maria estes presentes? Sabem o que significa o gato? Simboliza o roubo, e vocês o oferecem à Virgem? São ladrões os que pegam dinheiro, coisas, livros dos companheiros; os que roubam comida do Oratório; que estragam as roupas por despeito, e desperdiçam o dinheiro dos pais porque não estudam. – E fez que estes também se retirassem à parte.
            Vieram os que tinham os pratos com sapos, e o anjo, indignado, disse: – Os sapos significam os vergonhosos pecados de escândalo, e vocês vêm para oferecê-los à Vigem? Voltem; retirem-se com os outros indignos. – Retiraram-se confusos.
            Alguns vinham com um punhal cravado no coração. Este punhal significava os sacrilégios. O anjo lhes disse: – Vocês não percebem que estão com a morte na alma? Que se estão com vida, é por misericórdia especial de Deus? De outra maneira estariam perdidos. Por favor, façam arrancar esse punhal! – E estes também foram rejeitados.
            Aos poucos todos os jovens se aproximaram. Há quem ofereceu cordeiros, coelhos, peixes, nozes, uva etc., etc. O anjo aceitou tudo e tudo colocou sobre o altar. E, após ter separados os jovens bons dos maus, mandou todos, dos quais foram aceitos os presentes a Maria, fazerem fila diante do altar. Os que tinham sido postos à parte, foram, para minha dor, muito mais numerosos do que acreditava.
            Apareceram, então, de um e de outro lado do altar, outros dois anjos. Seguravam duas riquíssimas cestas cheias de coroas feitas de rosas estupendas. Essas rosas não eram propriamente rosas da terra, mas sim, eram como que artificiais, símbolos da imortalidade.
            E o Anjo da Guarda pegou uma por uma daquelas coroas, e coroou todos os jovens que estavam enfileirados diante do altar. Entre as coroas havia umas maiores e outras menores, mas todas de admirável beleza. Notem que não estavam presentes somente os jovens atualmente da casa, mas também muitos outros que eu nunca vi. Pois bem, aconteceu uma coisa maravilhosa! Havia jovens de fisionomia tão feia que quase causavam nojo e repugnância. As estes couberam as coroas mais bonitas, significando que um exterior tão feio era suprido pelo presente, a virtude da castidade em grau eminente. Muitos se distinguiam por outras virtudes, como obediência, humildade, amor a Deus, e todos, de acordo com a grandeza destas virtudes, recebiam coroas correspondentes. E o anjo lhes disse:
            – Maria hoje quis que vocês fossem coroados com tão belas rosas. Recordem-se, contudo, de continuar de forma que não lhes sejam tiradas. Os meios para conservá-las são três. Pratiquem: 1º a humildade; 2º a obediência; 3º a castidade. Três virtudes que os farão sempre aceitos por Maria e, um dia, os tornarão dignos de receber uma coroa infinitamente mais linda do que estas.
            Então os jovens começaram a entoar diante do altar o Ave, Maris Stella (Ave, estrela do mar).
            E, tendo cantado a primeira estrofe, se movimentaram para retornar em procissão como tinham vindo, cantando o hino: Lodate Maria! Suas vozes eram tão fortes que eu fiquei espantado e maravilhado. Segui-os ainda por alguns instantes, voltando para ver os jovens separados pelo anjo. Porém não os vi mais.
            Meus caros! Sei quem foi coroado e quem o anjo expulsou. Di-lo-ei aos interessados, a fim de que procurem levar à Virgem presentes que ela se digne aceitar.
            Enquanto isso, algumas observações. – A primeira: Todos levavam flores à Virgem; havia flores de todos os tipos. Porém, observei que todos, quem mais quem menos, no meio das flores tinham espinhos. Pensei e pensei o que significariam aqueles espinhos, e descobri que realmente significavam a desobediência. Conservar dinheiro sem autorização e sem querer entregá-lo ao Prefeito [ecônomo]; solicitar permissão para ir a um lugar e depois ir num outro; ir para a aula quando os outros lá já se encontram há algum tempo; preparar saladas e outras comidas às escondidas; ir aos dormitórios dos outros quando é absolutamente proibido, qualquer que seja o motivo que possam ter; levantar-se tarde de manhã; deixar as práticas de piedade prescritas; conversar quando é tempo de fazer silêncio; comprar livros sem os mostrar; enviar sem licença cartas por meio de terceiros, para que não sejam vistas, e recebê-las usando o mesmo expediente; fazer contratos de compra e venda um com o outro. Eis o que significam os espinhos. Muitos de vocês perguntarão: é então pecado transgredir as regras da casa? Pensei seriamente nesta questão; respondo-lhes absolutamente, sim. Não lhes digo se grave ou leve: as circunstâncias dirão, mas é pecado. Alguém me dirá: mas na lei de Deus não está que devemos obedecer às regras da casa! Ouçam: está nos mandamentos: – honra pai e mãe! Sabem o que significam estas palavras pai e mãe? Referem-se também a quem lhes faz as vezes. Não está também escrito na sagrada escritura: oboedite praepositis vestris (Obedecei aos vossos dirigentes – Hb 13,17)? Se vocês têm de obedecer, é natural que eles têm de mandar. Eis a origem das regras de um Oratório, e eis se são obrigatórias ou não.
            Segunda observação: – Alguns tinham pregos no meio de suas flores, pregos que tinham servido para pregar o Senhor Jesus. E como? Sempre se começa pelas pequenas coisas e depois se chega às grandes. Aquele um queria ter dinheiro para satisfazer seus caprichos, portanto, para gastá-lo à sua maneira, não quis entregá-lo; depois começou a roubar livros de aula e terminou por furtar dinheiro e coisas dos colegas. Esse outro queria satisfazer a gula, e por isso garrafas etc., depois se permitiu licenças, em suma, caiu em pecado mortal. Eis como se acharam pregos naqueles ramalhetes; eis como o bom Jesus foi crucificado. O apóstolo diz que os pecados colocam de novo o Salvador na Cruz: Rursus crucifigentes filium Dei (Crucificam novamente o Filho e Deus – Hb 6,6).
            Terceira observação. – Muitos jovens tinham, entre as flores frescas e odoríferas, também flores murchas e podres, ou flores bonitas, mas sem aroma. Aquelas significavam as obras boas, mas feitas em pecado mortal, obras que não ajudam a aumentar seus merecimentos. As flores sem aroma são as obras realizadas por objetivos humanos, por ambição, somente para agradar aos professores e aos superiores. Então o anjo os censurava por ousarem levar semelhantes ofertas a Maria, e os mandava de volta para refazer o ramalhete. Eles se retiravam, o desfaziam, tiravam as flores estragadas e, depois, ajeitadas de novo as flores, as amarravam como antes, e as levavam ao anjo que, então, as aceitava e as colocava na mesa. Estes ao voltar não seguiam nenhuma ordem de fila, mas mal estavam prontos, quem antes, quem depois, cada um trazia de volta seu ramalhete e ia se colocar com aqueles que deviam receber a coroa.
            Neste sonho eu vi tudo o que foi e o que será de meus jovens. Para muitos já o disse. Aos outros, di-lo-ei. Por enquanto, procurem que esta Virgem Celeste sempre receba de vocês presentes que nunca tenham de ser recusados.
(MBp VIII, 157-161)

Foto de abertura: Carlo Acutis durante uma visita ao Santuário Mariano de Fátima.




A nova Sede Central dos Salesianos. Roma, Sagrado Coração

Hoje, a vocação original da casa do Sagrado Coração vê um novo início. Tradição e inovação continuam a caracterizar o passado, o presente e o futuro desta obra tão significativa.

Quantas vezes Dom Bosco desejou vir a Roma para abrir uma casa salesiana. Desde a primeira viagem, em 1858, o seu objetivo era estar presente na Cidade Eterna com uma presença educativa. Veio a Roma por vinte vezes e somente na última viagem, em 1887, conseguiu realizar seu sonho abrindo a casa do Sagrado Coração, no “Castro Pretorio”.
A Obra salesiana está localizada no bairro “Esquilino”, nascido em 1875, após a abertura da “brecha de Porta Pia” e a exigência dos Savoia de construir, na nova capital ,os ministérios do Reino da Itália. O bairro, também chamado “Umbertino”, é de arquitetura piemontesa, e todas as ruas tem o nome de batalhas ou eventos ligados ao estado sabaudo. Não podia faltar neste lugar, que remete a Turim, um Templo, que fosse também paróquia, construído por um piemontês, o P. João Bosco. O nome da igreja não foi escolhido por Dom Bosco, mas era o desejo do Papa Leão XIII para relançar a devoção, mais atual do que nunca, ao Coração de Jesus.
Hoje, a casa do Sagrado Coração está completamente renovada para responder às exigências da Sede Central dos Salesianos. Desde o momento de sua fundação até hoje a casa passou por diversas transformações. A Obra nasce como Paróquia e Templo Internacional para a difusão da devoção ao Sagrado Coração, e desde o seu início Dom Bosco tinha o claro objetivo de construir ao lado um Abrigo para hospedar até 500 jovens pobres. O P. Rua concluiu a Obra e abriu oficinas para artesãos (escola de artes e ofícios). Nos anos seguintes foram abertas a escola de Ensino Fundamental e o Ensino Médio clássico. Por alguns anos foi também a sede da Universidade do “Pontificio Ateneo Salesiano” e uma casa de formação para os salesianos que estudavam nas universidades romanas, mas que também se dedicavam à escola e ao oratório (entre estes estudantes está “Don Quadrio”). Foi também a sede da Inspetoria Romana e, a partir de 2008, da Circunscrição da Itália Central. Desde 2017, uma vez deixada a casa de “via della Pisana”, tornou-se a Sede Central dos Salesianos. Em 2022 se iniciou sua reforma para adequar os ambientes à função de casa do Reitor-Mor. Nesta casa viveram ou passaram: Dom Bosco, o P. Rua, o cardeal Cagliero (o seu apartamento era no primeiro andar de “via Marsala”), Zeferino Namuncurá, Dom Versiglia, Artêmides Zatti, todos os Reitores-Mores que sucederam Dom Bosco, São João Paulo II, Santa Teresa de Calcutá, o Papa Francisco. Entre os diretores da casa está D. Giuseppe Cognata: durante o seu reitorado, foi colocada em 1930 a estátua do Sagrado Coração no campanário.
Graças ao Sagrado Coração o carisma salesiano se difundiu em vários bairros de Roma; todas as outras presenças salesianas de Roma, de fato, eram uma ramificação desta casa: “Testaccio”, “Pio XI”, “Borgo Ragazzi Don Bosco”, “Don Bosco Cinecittà”, “Gerini”, “Università Pontificia Salesiana”.

Lugar de acolhida
Desde o seu início, os traços característicos da Casa do Sagrado Coração são dois:
1) a catolicidade, pois abrir uma casa em Roma sempre significou para os fundadores das ordens religiosas uma proximidade ao Papa e uma ampliação dos horizontes em nível universal. Na primeira conferência aos Salesianos Cooperadores, no mosteiro romano de “Tor De’ Specchi”, em 1874, Dom Bosco afirmou que os salesianos se espalhariam por todo o mundo e ajudar suas obras significava viver o mais autêntico espírito de catolicidade;
2) a atenção aos jovens pobres: a localização vizinha à estação, lugar de chegadas e partidas, onde sempre se reuniram os mais pobres, está presente na história do Sagrado Coração.
No início, o Abrigo hospedava os jovens pobres para lhes ensinar um ofício, sucessivamente o oratório acolhia os jovens do bairro; após a guerra, os engraxates (jovens que lustravam os sapatos das pessoas que saíam da estação) foram acolhidos e cuidados, primeiro nesta casa e depois foram transferidos para o “Borgo Ragazzi Don Bosco”; na metade dos anos 80, com a primeira imigração na Itália, jovens imigrantes foram hospedados em colaboração com a nascente Caritas; nos anos 90, um Centro Diurno acolhia jovens em alternativa à prisão e lhes ensinava os fundamentos da leitura e da escrita, e também um ofício; desde 2009 um projeto de integração entre jovens refugiados e jovens italianos viu florescer tantas iniciativas de acolhimento e de evangelização. A Casa do Sagrado Coração por cerca de 30 anos foi, também, sede do Centro Nacional das Obras Salesianas da Itália.

O novo início
Hoje, a vocação original da casa do Sagrado Coração vê um novo início. Tradição e inovação continuam a caracterizar o passado, o presente e o futuro desta obra tão significativa.
Em primeiro lugar, a presença do Reitor-Mor com seu conselho e dos salesianos que se ocupam da dimensão mundial da Congregação indica a continuidade da catolicidade. Uma vocação à acolhida de tantos salesianos provenientes de todo o mundo e que encontram no Sagrado Coração um lugar para se sentirem em casa, experimentarem a fraternidade, encontrarem-se com o sucessor de Dom Bosco. Ao mesmo tempo, é o lugar no qual o Reitor-Mor anima e governa a Congregação, traçando as linhas para ser fiéis a Dom Bosco hoje.
Em segundo lugar, a presença de um significativo lugar salesiano onde Dom Bosco escreveu a “Carta de Roma” e onde compreendeu o sonho dos nove anos. Dentro da casa haverá o “Museu Casa Dom Bosco de Roma”, que em três andares contará a presença de Dom Bosco na Cidade Eterna. A centralidade da educação como “coisa do coração” em seu Sistema Preventivo, a relação com os Papas que amaram Dom Bosco e que ele, em primeiro lugar, amou e serviu, o Sagrado Coração como lugar de expansão do carisma em todo o mundo, o fatigante percurso de aprovação das Constituições Salesianas, a compreensão do sonho dos nove anos e seu último suspiro educativo ao escrever a “Carta de Roma” são os elementos temáticos que, em formato multimídia imersivo, serão contados àqueles que visitarem o museu.
Em terceiro lugar, a devoção ao Sagrado Coração representa o centro do carisma. Dom Bosco, antes mesmo de receber o convite para construir a igreja do Sagrado Coração, havia orientado os jovens para esta devoção. No livro “O jovem instruído” existem orações e práticas de piedade dirigidas ao Coração de Cristo. Mas depois que aceitou a proposta de Leão XIII, Dom Bosco se torna um verdadeiro apóstolo do Sagrado Coração. Não poupa suas forças para procurar dinheiro para a construção da igreja. O cuidado dos mínimos detalhes infunde nas escolhas arquitetônicas e artísticas da Basílica o seu pensamento e a sua devoção ao Sagrado Coração. Para financiar a construção da igreja e da casa, ele funda a Pia Obra do Sagrado Coração de Jesus, a última das cinco fundações realizadas por Dom Bosco ao longo de sua vida, junto com os Salesianos, as Filhas de Maria Auxiliadora, os Salesianos Cooperadores e a Associação de Maria Auxiliadora. A Pia Obra foi criada para a celebração perpétua de seis missas diárias na igreja do Sagrado Coração de Roma. Dela fazem parte todas as pessoas inscritas, vivas e falecidas, através da oração e das boas obras feitas pelos Salesianos e pelos jovens em todas as suas casas.
A visão de Igreja que deriva da fundação da Pia Obra é a de um “corpo vivo” composto por fiéis vivos e falecidos em comunhão entre si através do Sacrifício de Jesus, renovado quotidianamente na celebração eucarística a serviço dos jovens mais pobres. O desejo do Coração de Jesus é que todos sejam uma coisa só (ut unum sint) como Ele e o Pai. A Pia Obra conecta, através da oração e das ofertas, os benfeitores vivos e falecidos, os Salesianos de todo o mundo e os jovens que vivem no Sagrado Coração. Somente através da comunhão, que tem sua fonte na Eucaristia, os benfeitores, os Salesianos e os jovens podem contribuir para construir a Igreja, para fazer resplandecer o seu rosto missionário. A Pia Obra tem, ainda, a tarefa de promover, difundir e aprofundar a devoção ao Sagrado Coração em todo o mundo, adaptando-a aos tempos e ao sentir da Igreja.

A estação central para evangelizar
Finalmente, a atenção aos jovens pobres se manifesta na vontade missionária de alcançar os jovens de toda Roma através do Centro Juvenil aberto na “via Marsala”, bem na saída da estação “Termini”, onde a cada dia passam cerca de 300.000 pessoas. Um lugar que seja casa para os tantos jovens italianos e estrangeiros que visitam ou vivem em Roma e têm sede, nem sempre se dando conta, de Deus. Além do mais, desde sempre ao redor da estação “Termini” se aglomera muita gente pobre, marcada pelo cansaço da vida. Uma outra porta também aberta na “via Marsala”, além daquelas do Centro Juvenil e da Basílica, expressa o desejo de responder às necessidades dessas pessoas com o Coração de Cristo: nelas também resplandece a glória de seu rosto.
A profecia de Dom Bosco sobre a Casa do Sagrado Coração, de 5 de abril de 1880, acompanha e guia a realização do que aqui foi dito:

Mas Dom Bosco mirava longe. Nosso Dom João Marenco lembrava uma misteriosa palavra dele que o tempo não deve deixar cair no esquecimento. No mesmo dia em que aceitou a pesadíssima oferta, o Beato perguntou-lhe:
– Sabe por que aceitamos a casa de Roma?
– Eu não, respondeu Marenco.
– Pois então, preste atenção. Nós a aceitamos porque, quando o Papa for aquele que agora não é, e como deve ser, colocaremos na nossa casa a estação central para evangelizar o campo romano. Será trabalho não menos importante do que esse de evangelizar a Patagonia. Então, os salesianos serão conhecidos e sua glória resplandecerá. (MB XIV, 480-481).

dom Francesco Marcoccio




O P. Crespi e o Jubileu de 1925

Em 1925, em vista do Ano Santo, o P. Carlo Crespi promoveu uma exposição missionária internacional. Chamado do Colégio “Manfredini di Este”, foi encarregado de documentar as atividades missionárias no Equador, recolhendo materiais científicos, etnográficos e audiovisuais. Graças a viagens e projeções, sua obra conectou Roma e Turim, evidenciando o compromisso salesiano e fortalecendo os laços entre instituições eclesiásticas e civis. Sua coragem e a sua visão transformaram o desafio missionário em uma exposição de sucesso, deixando uma marca indelével na história da “Propaganda Fide” e da ação missionária salesiana.

            Quando Pio XI, em vista do Ano Santo de 1925, quis fazer em Roma uma documentada Exposição Missionária Internacional Vaticana, os Salesianos abraçaram a iniciativa com uma Mostra Missionária, a ser realizada em Turim em 1926, também em função do 50º aniversário das missões salesianas. Para tal, os Superiores logo pensaram no P. Carlo Crespi e o chamaram do Colégio “Manfredini di Este”, onde ensinava Ciências Naturais, Matemática e Música.
            Em Turim, o P. Carlo se reuniu com o Reitor-Mor, P. Filipe Rinaldi, com o superior responsável pelas missões, P. Pedro Ricaldone e, em particular, com Dom Domenico Comin, vigário apostólico de Méndez e Gualaquiza (Equador), que deveria apoiar sua obra. Naquele momento, viagens, explorações, pesquisas, estudos e tudo o mais que deveria nascer da obra de Carlo Crespi, tiveram o aval e o início oficial dos Superiores. Mesmo que ainda faltavam quatro anos para a planejada Exposição, pediram ao P. Carlo que se ocupasse dela em tempo integral, e assim se realizasse um trabalho cientificamente sério e credível.
            Tratava-se de:
            1. Criar um clima de interesse em favor dos Salesianos que atuavam na missão equatoriana de Méndez, valorizando seus feitos através de documentações escritas e orais, e providenciando uma adequada coleta de fundos.
            2. Recolher material para a montagem da Exposição Missionária Internacional de Roma e, transferi-lo posteriormente para Turim, para comemorar solenemente os primeiros cinquenta anos das missões salesianas.
            3. Efetuar um estudo científico do referido território, a fim de apresentar os resultados, não somente nas mostras de Roma e de Turim, mas sobretudo em um Museu permanente e em uma precisa obra “histórico-geo-etnográfica”.
            De 1921 em diante, os Superiores encarregaram o P. Carlo de conduzir em diversas cidades italianas atividades de propaganda em favor das missões. Para sensibilizar a opinião pública a respeito, o P. Carlo organizou a projeção de documentários sobre a Patagônia, a Terra do Fogo e os índios do Mato Grosso. Aos filmes gravados pelos missionários, uniu uma trilha sonora executada por ele ao piano.
            A propaganda com conferências rendeu cerca de 15 mil liras [reavaliados, correspondem a € 14.684], gastas com as viagens, o transporte e a aquisição dos seguintes materiais: uma máquina fotográfica, uma câmera cinematográfica, uma máquina de escrever, algumas bússolas, teodolitos, níveis, pluviômetros, uma caixa de remédios, utensílios de agricultura, barracas.
            Diversos industriais da região de Milão doaram grande quantidade de tecido no valor de 80 mil liras [€ 78.318], que foram distribuídos mais tarde entre os índios.
            Em 22 de março de 1923, o P. Crespi embarca no navio “Venezuela” rumo ao porto fluvial e marítimo mais importante do Equador, Guayaquil, a capital comercial e econômica do país, apelidada por sua beleza de “A Pérola do Pacífico”.
            Em um escrito posterior, relembrará com grande comoção sua partida para as Missões: “Recordo minha partida de Gênova em 22 de março de 1923 […]. Quando foram removidas as plataformas que ainda nos mantinham ligados à terra natal e o navio começou a se mover, minha alma foi invadida por uma alegria tão avassaladora, tão sobre-humana, tão inefável, que tal coisa não havia provado em nenhum momento em minha vida, nem mesmo no dia da minha primeira Comunhão e nem no dia da minha primeira Missa. Naquele instante comecei a compreender o que era o missionário e o que Deus lhe reservava […]. Rezai fervorosamente para que Deus nos conserve a santa vocação e nos torne dignos da nossa santa missão; para que não pereça nenhuma das almas que Deus, nos seus eternos decretos, quis que se salvassem pelo nosso trabalho, para que nos faça audazes campeões da fé, até à morte, até ao martírio” (Carlo Crespi, Nuovo drappello. L’inno della riconoscenza, in Bollettino Salesiano, L, n.12, dezembro de 1926).
            O P. Carlo cumpriu o encargo recebido colocando em prática seus conhecimentos universitários, em particular através das amostras de minerais, flora e fauna provenientes do Equador. Porém, logo foi além da missão que lhe foi confiada, entusiasmando-se com temas de caráter etnográfico e arqueológico que, em seguida, ocuparão muito tempo de sua intensa vida.
            Desde os primeiros roteiros, Carlo Crespi não se limita a admirar, mas recolhe, classifica, anota, fotografa, filma e documenta qualquer coisa que atraia sua atenção de estudioso. Com entusiasmo, adentra-se no Oriente equatoriano para gravar filmes e documentários, e para recolher importantes coleções botânicas, zoológicas, étnicas e arqueológicas.
            Este é aquele mundo magnético que já lhe vibrava no coração antes mesmo de chegar lá, do qual assim se refere dentro de seus livretos: “Nestes dias uma voz nova, insistente, me soa na alma, uma sacra nostalgia dos países de missão; alguma vez também pelo desejo de conhecer, em particular, coisas científicas. Oh, Senhor! Estou disposto a tudo, a abandonar a família, os parentes, os colegas de estudos; tudo para salvar alguma alma, se este é o teu desejo, a tua vontade” (Sem lugar, sem data. – Apontamentos pessoais e reflexões do Servo de Deus sobre temas de natureza espiritual extraídos de 4 livretos).
            Um primeiro roteiro, que durou três meses, iniciou-se em Cuenca, tocou Gualaceo, Indanza e terminou no rio Santiago. Alcançou, então, o vale do rio São Francisco, a lagoa de Patococha, Tres Palmas, Culebrillas, Potrerillos (a localidade mais alta, a 3.800 metros acima do nível do mar), Rio Ishpingo, a colina de Puerco Grande, Tinajillas, Zapote, Loma de Puerco Chico, Plan de Milagro e Pianoro. Em cada um destes lugares recolheu amostras para secar e integrar às várias coleções. Blocos de anotações e numerosas fotografias documentam tudo com precisão.
            O P. Carlo Crespi organizou uma segunda viagem através dos vales de Yanganza, Limón, Peña Blanca, Tzaranbiza, bem como ao longo do caminho de Indanza. Como é fácil supor, os deslocamentos na época eram difíceis: existiam somente trilhas de mulas, além de precipícios, condições climáticas inóspitas, feras perigosas, serpentes letais e doenças tropicais.
            A tudo isso se somava o perigo de ataques por parte dos indomáveis habitantes do Oriente, dos quais o P. Carlo, porém, conseguiu se aproximar, lançando as sementes do longa-metragem “Los invencibles Shuaras del Alto Amazonas”, que filmará em 1926 e que será projetado em 26 de fevereiro de 1927, em Guayaquil. Superando todas estas insídias, conseguiu reunir seiscentas variedades de coleópteros, sessenta pássaros de maravilhosa plumagem empalhados, musgos, líquens, samambaias. Estudou cerca de duzentas espécies locais e, servindo-se da subclassificação de Carlo Allioni utilizada pelos naturalistas, encontrou 21 variedades de samambaias, pertencentes à zona tropical abaixo dos 800 m acima do nível do mar; 72 da subtropical, que vai dos 800 m aos 1.500 m acima do nível do mar; 102 da Subandina, entre os 1.500 m e os 3.400 m acima do nível do mar, e 19 da Andina, superior aos 3.600 m acima do nível do mar (Muito interessante é o comentário do prof. Roberto Bosco, prestigioso botânico e membro da Sociedade Botânica Italiana que, quatorze anos depois, em 1938, decidiu estudar e ordenar sistematicamente “a vistosa coleção de samambaias” preparada em poucos meses pelo “Prof. Carlo Crespi, com material do Equador).
            As espécies mais dignas de nota, estudadas por Roberto Bosco, foram batizadas de “Crespianas”.
            Resumindo: já em outubro de 1923, para preparar a Exposição Vaticana, o P. Carlo havia organizado as primeiras excursões missionárias por todo o Vicariato, até Méndez, Gualaquiza e Indanza, recolhendo materiais etnográficos e muita documentação fotográfica. As despesas foram cobertas com tecidos doados e com os fundos recolhidos na Itália. Com o material coletado, que posteriormente transferiria para a Itália, organizou uma Feira de Exposição entre os meses de junho e julho de 1924, na cidade de Guayaquil. O trabalho suscitou críticas entusiasmadas, reconhecimento e ajuda. Desta Exposição se referirá, dez anos depois, em uma carta de 31 de dezembro de 1935 aos Superiores de Turim, para informá-los sobre os fundos recolhidos de novembro de 1922 a novembro de 1935.
            O P. Crespi passou o primeiro semestre de 1925 nas florestas da zona de Sucùa-Macas, estudando a língua Shuar e recolhendo ulterior material para a Exposição missionária de Turim. Em agosto do mesmo ano começou uma negociação com o Governo para obter um grande financiamento, que se concluiu em 12 de setembro com um contrato de 110.000 sucres (equivalente a 500.000 liras de então e que hoje seriam € 489.493,46), que permitia terminar a estrada de mulas Pan-Méndez. Além disso, obteve também a permissão de retirar da alfândega 20 toneladas de ferro e material apreendido de alguns comerciantes.
            Em 1926 o P. Carlo, regressando à Itália levou consigo gaiolas com animais vivos da zona oriental do Equador (uma difícil coleta de pássaros e animais raros) e caixas com material etnográfico, que apresentou na a Exposição Missionária de Turim, organizada pessoalmente por ele, que também fez o discurso oficial de encerramento, em 10 de outubro.
            No mesmo ano se ocupou em organizar a Exposição e, depois, em fazer diversas conferências e a participar do Congresso Americano de Roma com duas conferências científicas. Este seu entusiasmo e esta sua competente pesquisa científica respondiam, perfeitamente, às diretivas dos Superiores, e, portanto, através da Exposição Missionária Internacional de 1925, em Roma, e de 1926, em Turim, o Equador pôde ser amplamente conhecido. Além disso, em âmbito eclesial, contatou a Obra de Propaganda Fide, a Santa Infância e a Associação para o Clero Indígena. Em âmbito civil, estreitou relações com o Ministério das Relações Exteriores do Governo italiano.
            Destes contatos e dos colóquios com os Superiores da Congregação Salesiana obtiveram-se alguns resultados. Em primeiro lugar, os Superiores o presentearam com o envio de 4 sacerdotes, 4 seminaristas, 9 irmãos coadjutores e 4 irmãs religiosas para o Vicariato. Além disso, obteve uma série de ajudas econômicas dos Organismos Vaticanos e a colaboração com material sanitário para os hospitais no valor de cerca de 100.000 liras (€ 97.898,69). Como reconhecimento dos Superiores Maiores pelo seu empenho pela Exposição Missionária, eles se encarregaram da construção da Igreja de Macas, com duas cotas de 50.000 liras (€ 48,949, 35), enviadas diretamente a Dom Domenico Comin.
            Terminada sua tarefa de colecionador, fornecedor e animador das grandes mostras internacionais, em 1927 o P. Crespi voltou ao Equador, que se tornou a sua segunda pátria. Estabeleceu-se no Vicariato, sob a jurisdição do bispo, Dom Comin, e em espírito de obediência dedicou-se a viagens de propaganda e sensibilização para assegurar subvenções e fundos especiais, necessários às obras das missões, tais como a estrada Pan Méndez, o Hospital Guayaquil, a escola Guayaquil em Macas, o Hospital Quito em Méndez, a Escola agrícola de Cuenca (cidade onde, ainda em 1927, começou a desenvolver seu apostolado sacerdotal e salesiano).
            Por alguns anos ainda continuou se ocupou das ciências, mas sempre com o espírito apostólico.

Carlo Riganti
Presidente Associação Carlo Crespi

Imagem: 24 marzo 1923 – Padre Carlo Crespi In partenza per l’Ecuador sul Piroscafo Venezuela




Quando o Senhor bate à porta

Um confrade me disse: «Padre, só precisamos da sua proximidade, da sua escuta, da sua oração. Isso nos consola, nos encoraja e nos dá força e esperança para continuarmos a servir os jovens, pobres e feridos, assustados e aterrorizados!»

Em 25 de março de 2025 a Igreja celebra a solenidade da Anunciação do Anjo Gabriel a Maria. Uma das solenidades mais significativas para a fé cristã. Nesta solenidade fazemos memória da iniciativa de Deus que passa a fazer parte daquela história humana que Ele mesmo criou. Naquele dia, na Santa Eucaristia, nós recitamos o Credo e, quando professamos que o Filho de Deus se fez homem, nós, pela nossa fé nos ajoelhamos como sinal de admiração por esta maravilhosa iniciativa de Deus, diante da qual só nos resta colocar-se de joelhos.
Na experiência da Anunciação, Maria tem medo: “Não temas, Maria”, diz-lhe o Anjo. Depois de ter feito as suas perguntas, asseguradando-se de que se trata do projeto de Deus para ela, Maria responde com uma simples frase que permanece para nós, hoje, como um apelo e um convite. Maria, a Bendita entre as mulheres, diz simplesmente: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”.
No dia 25 de março passado, o Senhor bateu à porta do meu coração através do chamado que me fizeram os meus irmãos no Capítulo Geral 29º. Pediram-me para me colocar à disposição para assumir a missão de ser Reitor-Mor dos Salesianos de Dom Bosco, a Congregação de São Francisco de Sales. Confesso que naquele momento senti o peso do convite, daquelas coisas que nos que desorientam visto que aquilo que o Senhor estava me pedindo não era uma coisa simples. A questão é que, quando chega o chamado a quem crê, nós entramos naquele espaço sagrado onde fortemente nos damos conta de que é Ele quem toma a iniciativa. O caminho diante de nós é apenas o de simplesmente abandonar-se nas mãos de Deus, sem “se” e sem “mas”. E tudo isso, obviamente, não é fácil.

«Verás como o Senhor age»
Nestas primeiras semanas ainda me pergunto, como Maria, o que significa isso tudo? Depois, pouco a pouco, começo a sentir aquela mesma consolação que um nosso Inspetor Salesiano contava: “Quando o Senhor chama, é Ele quem toma a iniciativa e é d’Ele que depende o que se faz. Apenas estejas preparado e disponível. Verás como o Senhor age”.
À luz desta experiência pessoal, mas de alcance muito amplo, já que se trata da Congregação e da Família Salesiana, dirigi-me imediatamente aos meus caros irmãos Salesianos. Desde o primeiro momento, pedi-lhes que me acompanhassem com a sua oração, a sua proximidade, o seu apoio.
Devo confessar que já nestas primeiras semanas percebo que esta missão deve inspirar-se em Maria. Ela, após o anúncio do Anjo, pôs-se a caminho para ajudar a sua prima Isabel. E assim me coloquei ao serviço dos meus irmãos, a ouvi-los, compartilhando e assegurando-lhes o apoio de toda a Congregação, especialmente para aqueles que vivem em situações de guerras, conflitos e pobreza extrema.
Impressionou-me o comentário de um Inspetor que, com os seus irmãos salesianos, está vivendo uma situação extremamente difícil. Após um colóquio muito fraterno, disse-me: “Padre, só precisamos da sua proximidade, da sua escuta, da sua oração. Isso nos consola, nos encoraja e nos dá força e esperança para continuarmos a servir os jovens, pobres e feridos, assustados e aterrorizados”! Após este comentário, ficamos em silêncio, ele e eu, e dos seus olhos caíam algumas lágrimas, assim como também dos meus.
Terminado o encontro, fiquei sozinho no meu escritório. Perguntei-me se esta missão que o Senhor me pede para aceitar não é, porventura, a de tornar-me irmão ao lado dos meus irmãos que sofrem, mas não perdem a esperança? Que lutam para fazer o bem pelos pobres e não têm nenhuma intenção de parar? Sentia dentro de mim uma voz que me dizia que vale a pena dizer ‘sim’ quando o Senhor bate à porta, custe o que custar!




Dom Bosco, promotor da “misericórdia divina”

Como padre muito jovem, Dom Bosco publicou um volume, em pequeno formato, intitulado “Exercício da devoção à Misericórdia de Deus”.

Tudo começou com a Marquesa de Barolo
            A Marquesa Júlia Colbert di Barolo (1785-1864), declarada Venerável pelo Papa Francisco em 12 de maio de 2015, cultivou pessoalmente uma devoção especial à misericórdia divina; por isso, nas comunidades religiosas e educacionais que havia fundado perto de Valdocco, tinha introduzido o costume de uma semana de meditações e orações sobre este assunto. Mas ela não estava satisfeita. Ela queria que essa prática se espalhasse também em outros lugares, especialmente nas paróquias, no meio do povo. Pediu o consentimento da Santa Sé, que não só concordou, mas também concedeu várias indulgências em favor dessa prática devocional. Tratava-se então de fazer uma publicação adequada ao fim a que se destinava.
            Estamos no verão de 1846, quando Dom Bosco, tendo superado a grave crise de esgotamento que o havia levado à beira da sepultura, se retirou para junto de Mamãe Margarida nos Becchi para convalescer e se “demitiu” de seu muito apreciado serviço como capelão de uma das obras de Barolo, com grande desgosto da própria Marquesa. Mas “seus jovens” o chamaram para a casa Pinardi, recentemente alugada.
            A essa altura interveio o famoso patriota Sílvio Péllico, secretário da marquesa e admirador e amigo de Dom Bosco, que tinha musicado alguns de seus poemas. As memórias salesianas nos dizem que Péllico, com uma certa ousadia, propôs à marquesa que encarregasse Dom Bosco de fazer a publicação que lhe interessava. O que fez a marquesa? Ela aceitou, embora não com muito entusiasmo. Quem sabe? Talvez ela quisesse colocá-lo à prova. E Dom Bosco também aceitou.

Um tema muito caro ao seu coração
            O tema da misericórdia de Deus estava entre seus interesses espirituais, aqueles sobre os quais ele havia sido formado no seminário de Chieri e, sobretudo, no Colégio Eclesiástico de Turim. Fazia só dois anos ele havia terminado de frequentar as aulas de seu conterrâneo São José Cafasso, apenas quatro anos mais velho que ele, mas seu diretor espiritual, cujos sermões seguia nos exercícios espirituais para sacerdotes, mas também o formador de meia dúzia de outros fundadores, alguns deles até santos. Pois bem, Cafasso, embora filho da cultura religiosa de seu tempo – feita de prescrições e da lógica de “fazer o bem para escapar do castigo divino e merecer o Paraíso” – não perdia uma oportunidade de falar da misericórdia de Deus, tanto em suas aulas como na pregação. E como podia deixar de fazê-lo, se se dedicava constantemente ao sacramento da Penitência e à assistência aos condenados à morte? Tanto mais que esta devoção indulgenciada constituía na época uma reação pastoral contra o rigorismo do jansenismo que sustentava a predestinação dos que eram salvos.
            Assim, Dom Bosco, logo que voltou do seu povoado, no início de novembro, começou a trabalhar, seguindo as práticas piedosas aprovadas por Roma e espalhadas pelo Piemonte. Com a ajuda de alguns textos que facilmente pôde encontrar na biblioteca do Colégio que ele conhecia muito bem, no fim do ano publicou, às suas custas, um livrinho de 111 páginas, num formato pequeno, intitulado “Exercício de devoção à Misericórdia de Deus”. Ele o doou imediatamente às meninas, mulheres e freiras das fundações Barolo. Não está documentado, mas a lógica e a gratidão quer que ele o tenha presenteado também à Marquesa Barolo, promotora do projeto. Mas a mesma lógica e gratidão fariam com que a Marquesa não se deixasse vencer em generosidade, enviando-lhe, talvez anonimamente como em outras ocasiões, uma contribuição para as despesas.
            Não há aqui espaço para apresentar os conteúdos “clássicos” do livrinho de meditações e orações de Dom Bosco; gostaríamos apenas de assinalar que seu princípio básico é: “cada um deve invocar a Misericórdia de Deus para si e para todos os homens, porque «somos todos pecadores», […] todos necessitados de perdão e de graça […] todos chamados à salvação eterna”.
            Significativo, pois, é o fato de que, ao concluir cada dia da semana, Dom Bosco, na lógica do título “exercícios de devoção”, ofereça uma prática de piedade: convidar outros a intervir, perdoar aquele que nos ofendeu, fazer logo uma mortificação para obter a misericórdia de Deus para todos os pecadores, dar alguma esmola ou substituí-la pela recitação de orações ou jaculatórias etc. No último dia, a prática é substituída por um belo convite, talvez até alusivo à Marquesa Barolo, para rezar “pelo menos uma Ave Maria para a pessoa que promoveu essa devoção”.

Prática educativa
            Mas, além dos escritos com fins edificantes e formativos, pode-se perguntar como Dom Bosco educou concretamente seus jovens para que confiassem na misericórdia divina. A resposta não é difícil e poderia ser documentada de muitas maneiras. Limitar-nos-emos a três experiências vitais vividas em Valdocco: os sacramentos da Confissão e da Comunhão e sua figura de um “pai cheio de bondade e de amor”.

A Confissão
            Dom Bosco iniciou centenas de jovens de Valdocco na vida cristã adulta. Mas com que meios? Dois em particular: Confissão e Comunhão.
            Como se sabe, Dom Bosco é um dos grandes apóstolos da Confissão, e isso se deve, antes de tudo, ao exercício pleno desse ministério, como fez, aliás, seu mestre e diretor espiritual, o P. Cafasso, acima mencionado, e a figura muito admirada de seu quase contemporâneo o santo Cura d’Ars (1876-1859). Se a vida do segundo, como está escrito, “foi passada no confessionário” e a do primeiro pôde oferecer muitas horas do dia (“o tempo necessário”) para ouvir em confissão “bispos, sacerdotes, religiosos, eminentes leigos e pessoas simples que a ele afluíam”. Dom Bosco não pôde fazer o mesmo por causa das muitas ocupações em que esteve envolvido. No entanto, no confessionário, ele se colocou à disposição dos jovens (e dos salesianos) todos os dias em que eram celebradas funções religiosas em Valdocco ou em casas salesianas, ou em ocasiões especiais.
            Tinha começado a fazer isso tão logo tinha terminado de “aprender a ser padre” no Colégio (1841-1844), quando aos domingos reunia os jovens no oratório itinerante no decurso de dois anos, quando ia ouvir confissões no santuário da Consolata ou nas paróquias piemontesas para as quais era convidado, quando aproveitava as viagens de carruagem ou de trem para ouvir confissões de cocheiros ou de passageiros. Nunca deixou de fazer isso até o fim da vida; quando lhe foi pedido para não se cansar com confissões, respondeu que por esta altura era a única coisa que ainda podia fazer por seus jovens. E qual foi o seu pesar quando, por razões burocráticas e mal-entendidos, sua licença de confissão não foi renovada pelo Arcebispo! Os testemunhos sobre Dom Bosco como confessor são inúmeros e, de fato, a famosa fotografia que o retratava no ato de confessar um jovem cercado de tantos outros esperando para fazê-lo, deve ter agradado ao próprio santo, que talvez tenha tido a ideia disso, e que continua sendo um ícone significativo e indelével de sua figura no imaginário coletivo.
            Mas, além de sua experiência como confessor, Dom Bosco foi um incansável promotor do sacramento da Reconciliação, divulgou sua necessidade, sua importância, a utilidade de sua frequência, apontou os perigos de uma celebração sem as condições necessárias, ilustrou as maneiras clássicas de abordá-la frutuosamente. Fê-lo através de palestras, boas noites, lemas espirituosos e palavrinhas ao ouvido, cartas circulares aos jovens nos colégios, cartas pessoais e a narração de numerosos sonhos que tinham como objeto a confissão, bem ou mal feita. De acordo com sua inteligente prática catequética, ele lhes contava episódios de conversões de grandes pecadores, e também suas próprias experiências pessoais a esse respeito.
            Dom Bosco, um profundo conhecedor da alma juvenil, para induzir todos os jovens ao arrependimento sincero, baseia-se no amor e gratidão para com Deus, apresentado em sua infinita bondade, generosidade e misericórdia. Em vez disso, para sacudir os corações mais frios e endurecidos, ele descreve os possíveis castigos do pecado e impressiona salutarmente suas mentes com descrições vívidas sobre o juízo divino e o inferno. Mesmo nesses casos, porém, não satisfeito em levar os meninos ao arrependimento por seus pecados, ele procura levá-los à necessidade da misericórdia divina, uma disposição importante para antecipar seu perdão mesmo antes da confissão sacramental. Como de costume, Dom Bosco não entra em discussões doutrinárias; apenas se interessa por uma confissão sincera, que cura terapeuticamente a ferida do passado, recompõe o tecido espiritual do presente para o futuro de uma “vida de graça”.
            Dom Bosco acredita no pecado, acredita no pecado grave, acredita no inferno e fala de sua existência aos leitores e ouvintes. Mas também está convencido de que Deus é a misericórdia em pessoa, razão pela qual deu ao homem o sacramento da Reconciliação. E assim ele insiste nas condições para recebê-lo bem, e sobretudo no confessor como “pai” e “médico” e não tanto como “médico e juiz”: “O confessor sabe quanto a misericórdia de Deus seja maior do que suas faltas e lhe concede o perdão através de sua intervenção” (Esboço biográfico do jovem Miguel Magone, pág. 24-25).
            Segundo as memórias salesianas, ele sugeria muitas vezes aos seus jovens que invocassem a misericórdia divina, que não desanimassem depois do pecado, mas que voltassem à confissão sem medo, confiando na bondade do Senhor e depois tomassem resoluções firmes para o bem.
            Como “educador no campo da juventude”, Dom Bosco sentiu a necessidade de insistir menos no ex opere operato (pela própria ação do sacramento) e mais no ex opere operantis (pela ação do indivíduo), isto é, nas disposições do penitente. Em Valdocco todos se sentiam convidados a fazer uma boa confissão, todos sentiam o risco de más confissões e a importância de fazer uma boa confissão; muitos deles sentiam então que estavam vivendo em uma terra abençoada pelo Senhor. Não foi à toa que a misericórdia divina fez despertar um jovem falecido depois que os panos funerários foram exibidos, para que pudesse confessar seus pecados (a Dom Bosco).
            Em suma, o sacramento da confissão, bem explicado em suas características específicas e frequentemente celebrado, foi talvez o meio mais eficaz pelo qual o santo piemontês levou seus jovens a confiar na imensa misericórdia de Deus.

A Comunhão
            Mas a comunhão, o segundo pilar da pedagogia religiosa de Dom Bosco, também serviu para este propósito.
            Dom Bosco é certamente um dos maiores promotores da prática sacramental da Comunhão frequente. Sua doutrina, modelada no modo de pensar da Contrarreforma, deu mais importância à Comunhão do que à celebração litúrgica da Eucaristia, mesmo havendo uma evolução em sua frequência. Nos primeiros vinte anos de sua vida sacerdotal, na esteira de Tertuliano e Santo Agostinho e, depois, do Concílio de Trento e de Santo Afonso, sugeriu a Comunhão semanal, ou várias vezes por semana ou mesmo diariamente, dependendo da perfeição das disposições correspondentes às graças do sacramento. Domingos Sávio, que em Valdocco tinha começado a se confessar e a comungar quinzenalmente, passou a fazê-lo todas as semanas, depois três vezes por semana, finalmente, depois de um ano de intenso crescimento espiritual, todos os dias, obviamente sempre seguindo o conselho de seu confessor, o próprio Dom Bosco.
            Mais tarde, na segunda metade dos anos 60, Dom Bosco, com base em suas experiências pedagógicas e de uma forte corrente teológica a favor da comunhão frequente, que teve como líderes o bispo francês Dom de Ségur e o prior de Gênova, Padre José Frassinetti, Dom Bosco passou a convidar mais vezes seus jovens para a comunhão frequente, convencido de que permitia passos decisivos na vida espiritual e favorecia seu crescimento no amor de Deus. E no caso da impossibilidade da Comunhão Sacramental diária, ele sugeriu a Comunhão espiritual, talvez durante uma visita ao Santíssimo Sacramento, tão apreciada por Santo Afonso. O importante, porém, era manter a consciência em estado de poder comungar todos os dias: a decisão estava, de certa maneira, a cargo do confessor.
            Para Dom Bosco, toda comunhão dignamente recebida – jejum prescrito, estado de graça, disposição para desligar-se do pecado, uma bela ação de graças depois – anula as faltas diárias, fortalece a alma para evitá-las no futuro, aumenta a confiança em Deus e em sua infinita bondade e misericórdia; além disso, é fonte de graça para ter sucesso na escola e na vida, é uma ajuda para suportar os sofrimentos e vencer as tentações.
            Dom Bosco crê que a comunhão é uma necessidade para que os “bons” se mantenham como tais e para que os “maus” se tornem “bons”. É para aqueles que querem se tornar santos, não para os santos, como os remédios são dados aos doentes. Obviamente, ele sabe que a frequência, por si só, não é um indício seguro de bondade, pois há aqueles que a recebem com muita tibieza e por hábito, tanto mais que a própria superficialidade dos jovens muitas vezes não lhes permite compreender toda a importância do que estão fazendo.
            Com a Comunhão, então, pode-se pedir graças particulares do Senhor para si mesmo e para os outros. As cartas de Dom Bosco estão cheias de pedidos a seus jovens para rezar e comungar de acordo com sua intenção, a fim de que o Senhor lhe conceda bom êxito nos “assuntos” de toda ordem em que se encontre envolvido. E ele fez o mesmo com todos os seus correspondentes, que foram convidados a se aproximar deste sacramento para obter as graças pedidas, enquanto ele faria o mesmo na celebração da Santa Missa.
            Dom Bosco se preocupava muito que seus rapazes crescessem alimentados pelos sacramentos, mas também queria o máximo respeito pela liberdade deles. E deixou instruções precisas a seus educadores em seu tratado sobre o Sistema Preventivo: “Nunca se obriguem os jovens a frequentar os santos sacramentos: basta encorajá-los e dar-lhes comodidade de se aproveitarem deles”.
            Ao mesmo tempo, porém, permaneceu inflexível em sua convicção de que os sacramentos são de suma importância. Escreveu peremptoriamente: “Diga-se o que se quiser sobre os vários sistemas de educação, mas não encontro base segura a não ser na frequência da Confissão e da Comunhão” (O pastorzinho dos Alpes, ou vida do jovem Francisco Besucco de Argentera, 1864. p. 100).

Uma paternidade e misericórdia personificada
            A misericórdia de Deus, operante particularmente no momento dos sacramentos da Confissão e da Comunhão, encontrava então sua expressão externa não só num Dom Bosco “padre confessor”, mas também num “pai, irmão, amigo” dos jovens na vida cotidiana ordinária. Com algum exagero, pode-se dizer que a confiança deles em Dom Bosco era tal que muitos deles quase não faziam distinção entre Dom Bosco “confessor” e Dom Bosco “amigo” e “irmão”; outros, às vezes, podiam trocar a acusação sacramental com as efusões sinceras de um filho para com seu pai; por outro lado, o conhecimento que Dom Bosco tinha dos jovens era tal que, com perguntas sóbrias, ele os inspirava com extrema confiança e não raro sabia como fazer a acusação no lugar deles.
            A figura de Deus Pai, misericordioso e providente, que ao longo da história manifestou sua bondade desde Adão, para com os homens, justos ou pecadores, mas todos necessitados de ajuda e objeto de cuidados paternos, e em todo caso todos chamados à salvação em Jesus Cristo, é assim modulada e refletida na bondade de Dom Bosco “Pai de seus jovens”, que só quer o bem deles, que não os abandona, sempre pronto a compreendê-los, a compadecer-se deles, a perdoá-los. Para muitos deles, órfãos, pobres e abandonados, acostumados desde tenra idade ao duro trabalho cotidiano, objeto de manifestações muito modestas de ternura, filhos de uma época em que o que prevalecia era a submissão decisiva e a obediência absoluta a qualquer autoridade constituída, Dom Bosco era talvez a carícia jamais experimentada de um pai, a “ternura” de que fala o Papa Francisco.
            Sua carta aos jovens da casa Mirabello, no final de 1864, continua comovente: “Aquelas vozes, aqueles vivas, aquele beijo e aquele aperto de mão, aquele sorriso cordial, aquele falar um com o outro sobre a alma, aquele encorajar o outro a fazer o bem são coisas que embalsamaram meu coração, e por isso não posso pensar nisso sem me comover até as lágrimas”. Eu lhes direi […] que vocês são a pupila do meu olho” (Epistolário II, editado por F. Motto II, carta n. 792).
            Ainda mais comovente é sua carta aos jovens de Lanzo de 3 de janeiro de 1876: “Deixem-me dizer-lhes e que ninguém se ofenda, vocês são todos ladrões; digo-o e repito, vocês me tiraram tudo. Quando estive em Lanzo, vocês me encantaram com sua benevolência e com sua bondade amorosa, vocês me ataram as faculdades da mente com sua piedade; ainda sobrava-me esse pobre coração, cujos afetos vocês já me havia roubado inteiramente. Agora sua carta marcada por 200 mãos amigas e caríssimas tomou posse de todo esse coração, ao qual nada mais restou senão um vivo desejo de amá-los no Senhor, de lhes fazer o bem e de salvar as almas de todos” (Epistolário III, carta n. 1389).
            A bondade amorosa com que ele tratava e queria que os salesianos tratassem os meninos tinha um fundamento divino. Afirmava-o citando uma expressão de São Paulo: “A caridade é benigna e paciente; sofre tudo, mas espera tudo, e suporta qualquer problema”.
            A bondade amorosa foi, portanto, um sinal de misericórdia e de amor divino que fugia ao sentimentalismo e às formas de sensualidade por causa da caridade teológica que foi sua fonte. Dom Bosco comunicava esse amor aos meninos individualmente e também a grupos deles: “Que eu lhes nutro muito carinho, não preciso lhes dizer, eu lhes dei provas claras disso. Que vocês também me amam, não preciso que me digam, porque me demonstraram isso constantemente. Mas em que se baseia esse nosso afeto mútuo? […] Portanto, o bem de nossas almas é o fundamento de nosso afeto” (Epistolário II, n. 1148). O amor de Deus, o primum teológico, é, portanto, o fundamento do primum pedagógico.
            A bondade amorosa foi também a tradução do amor divino em amor verdadeiramente humano, feito de sensibilidade reta, cordialidade amável, afeto benevolente e paciente, tendente à comunhão profunda do coração. Em suma, aquele amor efetivo e afetivo que se experimenta de maneira privilegiada na relação entre educando e educador, quando gestos de amizade e de perdão por parte do educador induzem o jovem, em virtude do amor que guia o educador, a abrir-se à confiança, a sentir-se apoiado em seu esforço de superação e de compromisso, a dar seu consentimento e a aderir em profundidade aos valores que o educador vive pessoalmente e lhe propõe. O jovem compreende que essa relação o reconstrói e o reestrutura como homem. O empreendimento mais árduo do Sistema Preventivo é precisamente o de conquistar o coração do jovem, de gozar de sua estima, de sua confiança, de fazer dele um amigo. Se um jovem não ama o educador, este pode fazer muito pouco do jovem e em favor do jovem.

As obras de misericórdia
            Poderíamos agora continuar com as obras de misericórdia, que o Catecismo distingue entre obras corporais e espirituais, estabelecendo dois grupos de sete. Não seria difícil documentar como Dom Bosco viveu, praticou e encorajou a prática dessas obras de misericórdia e como, por seu “ser e trabalhar”, ele constituiu de fato um sinal e um testemunho visível, em obras e palavras, do amor de Deus pela humanidade. Devido a limitações de espaço, limitamo-nos a indicar a possibilidade de pesquisa. Resta, porém, inquestionável que hoje elas parecem ficar abandonadas também por causa da falsa oposição entre misericórdia e justiça, como se a misericórdia não fosse uma maneira típica de expressar esse amor que, como tal, jamais poderá contradizer a justiça.