Profetas do perdão e da gratuidade

Nestes tempos, em que as notícias, dia após dia, nos comunicam experiências de conflito, guerra e ódio, quão grande é o risco de nós, como crentes, acabarmos envolvidos numa leitura dos acontecimentos que se reduz apenas ao nível político ou nos limitamos a tomar partido por um lado ou outro com argumentos que têm a ver com a nossa maneira de ver as coisas, com a nossa forma de interpretar a realidade.

No discurso de Jesus que segue as bem-aventuranças, há uma série de “pequenas/grandes lições” que o Senhor oferece. Sempre começam com o versículo “vocês ouviram que foi dito”. Em uma delas, o Senhor recorda o antigo ditado “olho por olho e dente por dente” (Mt 5,38).
Fora da lógica do Evangelho, essa lei não só não é contestada, como pode ser tomada como uma regra que expressa a forma de acertar as contas com aqueles que nos ofenderam. Obter vingança é percebido como um direito, chegando até a ser um dever.
Jesus se apresenta diante dessa lógica com uma proposta completamente diferente, totalmente oposta. Ao que ouvimos, Jesus nos diz: “Mas eu lhes digo” (Mt 5,39). E aqui, como cristãos, devemos ter muito cuidado. As palavras de Jesus que seguem são importantes não apenas por si mesmas, mas porque expressam de forma muito sintética toda a sua mensagem. Jesus não veio para nos dizer que há outra maneira de interpretar a realidade. Jesus não se aproxima de nós para ampliar o espectro das opiniões sobre as realidades terrenas, especialmente aquelas que tocam a nossa vida. Jesus não é uma opinião a mais, mas ele próprio encarna a proposta alternativa à lei da vingança.
A frase “mas eu lhes digo” é de fundamental importância porque agora não é mais a palavra pronunciada, mas a própria pessoa de Jesus. O que Jesus nos comunica, ele vive. Quando Jesus diz “não resistam ao perverso; pelo contrário, se alguém lhe der um tapa na face direita, ofereça também a outra” (Mt 5,39), essas mesmas palavras ele viveu em primeira pessoa. Certamente não podemos dizer que Jesus prega bem, mas faz mal com sua mensagem.
Voltando aos nossos tempos, essas palavras de Jesus correm o risco de ser percebidas como as palavras de uma pessoa fraca, reações de quem não é mais capaz de reagir, mas apenas de sofrer. E, de fato, quando olhamos para Jesus que se entrega completamente no madeiro da Cruz, essa é a impressão que podemos ter. No entanto, sabemos muito bem que o sacrifício na cruz é fruto de uma vivência que parte da frase “mas eu lhes digo”. Porque tudo o que Jesus nos disse, ele acabou por assumir plenamente. E, assumindo plenamente, conseguiu passar da cruz à vitória. A lógica de Jesus aparentemente comunica uma personalidade derrotada. Mas sabemos muito bem que a mensagem que Jesus nos deixou, e que ele viveu plenamente, é o remédio de que este mundo hoje realmente precisa.

Ser profetas do perdão significa assumir o bem como resposta ao mal. Significa ter a determinação de que o poder do maligno não condicionará a minha forma de ver e interpretar a realidade. O perdão não é a resposta do fraco. O perdão é o sinal mais eloquente daquela liberdade capaz de reconhecer as feridas que o mal deixa para trás, mas que essas mesmas feridas jamais serão um barril de pólvora que fomenta a vingança e o ódio.
Reagir ao mal com o mal só faz ampliar e aprofundar as feridas da humanidade. A paz e a concórdia não crescem no terreno do ódio e da vingança.

Ser profetas da gratuidade exige de nós a capacidade de olhar para o pobre e para o necessitado não com a lógica do lucro, mas com a lógica da caridade. O pobre não escolhe ser pobre, mas quem está bem tem a possibilidade de escolher ser generoso, bom e cheio de compaixão. Quão diferente seria o mundo se nossos líderes políticos, neste cenário onde crescem os conflitos e as guerras, tivessem a sensatez de olhar para aqueles que pagam o preço dessas divisões, que são os pobres, os marginalizados, aqueles que não podem fugir porque não conseguem.
Se partirmos de uma leitura puramente horizontal, há motivo para desespero. Não nos resta outra coisa senão ficar presos às nossas murmurações e críticas. E, no entanto, não! Nós somos educadores dos jovens. Sabemos bem que esses jovens, neste nosso mundo, estão buscando pontos de referência de uma humanidade saudável, de líderes políticos capazes de interpretar a realidade com critérios de justiça e paz. Mas quando nossos jovens olham ao redor, sabemos bem que percebem apenas o vazio de uma visão pobre da vida.
Nós, que estamos comprometidos com a educação dos jovens, temos uma grande responsabilidade. Não basta comentar a escuridão que deixa uma quase completa ausência de liderança. Não basta comentar que não há propostas capazes de inflamar a memória dos jovens. Cabe a cada um e a cada uma de nós acender essa vela de esperança nesta escuridão, oferecer exemplos de humanidade bem-sucedida no cotidiano.
Realmente vale a pena hoje ser profetas do perdão e da gratuidade.




Os cordeirinhos e a tempestade de verão (1878)

O relato onírico que se segue, narrado por Dom Bosco na noite de 24 de outubro de 1878, é muito mais do que um simples entretenimento noturno para os jovens do Oratório. Através da delicada imagem dos cordeirinhos surpreendidos por uma violenta tempestade de verão, o santo educador traça uma alegoria vívida das férias escolares: um tempo aparentemente despreocupado, mas carregado de perigos espirituais. O prado convidativo representa o mundo exterior, o granizo simboliza as tentações, enquanto o jardim protegido alude à segurança oferecida pela vida de graça, pelos sacramentos e pela comunidade educativa. Neste sonho, que se torna catequese, Dom Bosco lembra aos seus meninos — e a nós — a urgência de vigiar, recorrer à ajuda divina e apoiar-se mutuamente para voltar íntegros à vida cotidiana.

            Da partida para as férias e do retorno, nenhuma novidade neste ano, se não fosse um sonho em torno dos efeitos que as férias costumam produzir. Dom Bosco narrou-o na noite de 24 de outubro. Assim que fez seu anúncio, viram-se manifestações gerais de júbilo.
            Estou feliz em ver meu exército armado contra diabolum (contra o demônio). Essa expressão, embora latina, também é entendida por Cottino [ajudante no refeitório, que se gabava de ser poeta]. Tantas coisas gostaria de dizer-lhes, sendo a primeira vez que lhes falo depois das férias; mas por enquanto quero contar-lhes um sonho. Sabem que os sonhos são feitos dormindo e que não se deve acreditar neles; mas se não há mal em não acreditar, às vezes não há mal em acreditar e pode até servir como instrução, como, por exemplo, este.
            Eu estava em Lanzo no primeiro turno de exercícios espirituais e dormia quando, como eu disse, tive um sonho. Encontrei-me num lugar onde não sabia qual região fosse, mas era perto de uma cidade onde se estendia um jardim, e próximo a este jardim um vasto prado. Estava na companhia de alguns amigos que me convidaram para entrar no jardim. Entro e vejo muito cordeiros que pulavam, corriam, davam cambalhotas, segundo seu costume. Quando eis que uma porta se abre no gramado e os cordeiros saem para pastar.
            Muitos, no entanto, não se importam em sair, mas param no jardim; e iam aqui e ali cortando um pouco de grama, e assim pastavam, embora não houvesse capim em abundância como fora no prado, aonde chegara o maior número. – Quero ver o que esses cordeirinhos fazem lá fora, – eu disse. Fomos ao prado e vimo-los pastando em paz. E eis que o céu se escurece rapidamente, raios e trovões seguem e uma tempestade se aproxima.
            – O que será desses cordeirinhos, se pegam a tempestade? – eu ia falando. Vamos nos retirar em lugar seguro. – E comecei a chamá-los. Então eu de um lado e os meus companheiros espalhados em lugares diferentes, tentamos empurrá-los para a porta do jardim. Mas eles não queriam saber de entrar; corre aqui, foge de lá, eh, sim! Os cordeirinhos tinham pernas melhores que as nossas. Enquanto isso, gotas grossas começaram a cair, então veio a chuva e eu não conseguia reunir aquele rebanho. Uma ou duas ovelhinhas entraram no jardim, mas todas as outras, e estavam em grande quantidade, permaneceram no prado. – Bem, eu disse, se elas não querem vir, pior para elas! No entanto, nós nos retiramos. – E fomos para o jardim.
            Lá havia uma fonte sobre a qual estava escrito em grandes letras: Fons signatus, fonte selada. Estava coberta e eis que se abre; a água se eleva e se divide em forma de arco-íris, mas parecido a uma abóbada como esse pórtico.
            Enquanto isso, os raios se tornaram mais frequentes, o trovão mais ruidoso e o granizo começou a cair. Nós, com todos os cordeiros que estavam no jardim, nos abrigamos e nos reunimos embaixo daquela abóbada maravilhosa e a água e o granizo não penetravam ali.
            – Mas o que é isso? – eu perguntava aos amigos. O que acontecerá com os pobrezinhos do lado de fora?
            – Verá! – responderam-me. Olhe na testa desses cordeiros; o que vê? – Observei e vi que na testa de cada um desses animais estava escrito o nome de um jovem do Oratório.
            – O que é isso? – perguntei.
            – Verá, verá!
            Enquanto isso, eu não conseguia mais me conter e queria sair para ver o que faziam aqueles pobres cordeiros que tinham ficado de fora. – Vou recolher os que morreram e enviá-los para o Oratório, pensava eu. – Saindo fora daquele arco, eu também peguei a chuva; e vi aquelas pobres criaturinhas caídas no chão que, enquanto se moviam, tentavam se levantar e ir em direção ao jardim; mas não podiam andar. Eu abri a porta, levantei minha voz; mas seus esforços foram inúteis. A chuva e o granizo os machucavam tanto e continuavam a maltratá-los, que dava pena: um ficara ferido na cabeça, outro na mandíbula, outro num olho, ou numa perna, outros em outras partes do corpo.
            Depois de algum tempo a tempestade cessou. – Olhe, me disse aquele que estava ao meu lado; olhe na testa desses cordeiros. – Observei e li em cada fronte o nome de um jovem do Oratório. – Mah! – eu disse; conheço o jovem que tem esse nome e não acho que é um cordeiro.
            Verá, verá, foi-me respondido. – Em seguida, um vaso de ouro com uma tampa de prata foi-me apresentado, e me foi dito: – Toque nas feridas dessas criaturas depois de molhar a mão nesse unguento e imediatamente as feridas sararão.
            Eu me coloco a chamá-las:
             – Brr, brr! – e elas não se mexem. Repito a chamada; nada: tento aproximar-me de uma e ela se afasta. – Não quer? Pior para você, exclamei. Vou para outra. – E vou, mas mesmo essa me escapa. A quantas me aproximava para ungi-las e curá-las, muitas fugiam de mim. Eu as seguia, mas repetia esse jogo inutilmente. Por fim, cheguei a uma que, coitadinha, tinha os olhos fora das órbitas e tão surrada que dava pena. Toquei-a com a mão e ela sarou e pulou para o jardim.
            Então muitas outras ovelhas, tendo visto isto, não mais tiveram repugnância e permitiram ser tocadas, curadas e entraram no jardim. Mas muitas e geralmente as mais feridas ficaram de fora, nem foi possível abordá-las.
            – Se não querem curar-se, pior para elas! Mas não sei como posso levá-las de volta para o jardim.
            – Deixe isso, disse-me um dos amigos que estavam comigo; elas virão, elas virão.
            – Vamos ver! – eu disse, e recoloquei o vaso de ouro lá onde estava antes e voltei ao jardim. Este tinha-se mudado e li sobre a entrada: Oratório. Assim que entrei, eis que aqueles cordeiros que não queriam vir, se aproximam, entram furtivamente e correm para se esconder aqui e ali; e nem mesmo então consegui abordar algum. Havia também vários que, não tendo recebido de bom grado o unguento, esse convertera-se em veneno e, em vez de curá-los, exacerbava suas feridas.
            – Olhe! Vê aquele estandarte? – disse-me um amigo.
            – Virei e vi uma grande bandeira abanar, e podia-se ler nela uma palavra em grandes letras: Férias. – Sim, estou vendo, respondi.
            – Eis o efeito das férias, explicou quem estava me acompanhando, estando eu fora de mim pela dor daquele espetáculo. Os meus jovens deixam o Oratório para ir de férias, com boa vontade para alimentar-se da palavra de Deus e para se manterem bons: mas depois vem a tempestade, que são as tentações; então a chuva, que são os assaltos do diabo; enfim, o granizo cai e é quando os coitados caem em culpa. Alguns ainda se recuperam com a confissão, mas outros não usam bem este sacramento, ou não o frequentam. Tenha isso em mente e nunca se canse de dizer aos seus jovens que as férias são uma grande tempestade para suas almas.
            Observava eu esses cordeiros e via em alguns feridas mortais; e estava tentando encontrar uma maneira de curá-los, quando P. Scappini, que fizera barulho, levantando-se no quarto ao lado, me acordou.
            Este é o sonho, e embora seja um sonho, tem um significado que não prejudicará aqueles que nele prestarão atenção. Também posso dizer que notei alguns nomes entre os muitos cordeiros do sonho e, comparando-os com os jovens, vi que estes se comportavam exatamente como aconteceu no sonho. Seja qual for o caso, devemos nesta novena dos Santos corresponder à bondade de Deus que quer usar de misericórdia e com uma boa confissão purgar as feridas de nossa consciência. Devemos, então, todos concordar em lutar conta o demônio e com a ajuda de Deus sairemos vitoriosos desta batalha e iremos receber o prêmio da vitória no Paraíso.
            Este sonho deve ter tido uma grande influência no início do novo ano escolar; de fato, na novena da Imaculada, as coisas estavam progredindo tão bem, que Dom Bosco expressou sua satisfação dizendo: – Os jovens estão agora no ponto em que, nos últimos anos, mal chegavam em fevereiro. – Na festa da Imaculada Conceição esses viram renovar-se a bela função de despedida da quarta expedição de missionários.
(MB XIII 761-764 / MB PT XIII, 661-665)




Visitar Roma com Dom Bosco. Crônica de sua primeira viagem a Roma

A primeira vez que Dom Bosco esteve em Roma foi entre 18 de fevereiro e 16 de abril de 1858, acompanhado pelo seminarista de vinte e um anos, Miguel Rua. Quatro anos antes, a Igreja havia celebrado um Jubileu extraordinário de seis meses, convocado em ocasião da proclamação do dogma da Imaculada Conceição (8 de dezembro de 1854). Dom Bosco aproveitou a oportunidade dessa grande festa espiritual para publicar o volume “O Jubileu e Práticas devotas para a visita das igrejas”.
Durante aquela que seria sua primeira de outras vinte visitas à Cidade Eterna, Dom Bosco se comportou como um verdadeiro peregrino jubilar, dedicando-se fervorosamente às visitas e devoções previstas, inclusive participando dos solenes ritos pascais oficiados pelo Papa. Foi uma experiência intensa, que ele não guardou para si mesmo, mas a compartilhou com seus jovens com seus característicos entusiasmo e a paixão educativa.
Ao descrever minuciosamente a viagem, as etapas e os lugares sagrados, Dom Bosco tinha um claro objetivo apostólico e educativo: fazer reviver em quem o ouvia ou o lia a mesma profunda experiência de fé, transmitindo-lhes o amor pela Igreja e pela tradição cristã.
Convidamos agora também vocês, leitores, a se unirem espiritualmente a Dom Bosco, repercorrendo na imaginação as ruas da Roma cristã, e se deixando fascinar por seu entusiasmo e seu fervor, com ele renovar a sua fé.

De trem até Gênova
A partida para Roma estava marcada para 18 de fevereiro de 1858. Durante a noite caíra quase um palmo de neve, sobre os dois palmos que já cobriam a terra. Às oito e meia da manhã, enquanto ainda nevava, com a comoção que
experimenta um pai que deixa os seus filhos, despedi-me dos jovens para iniciar a viagem a Roma. Embora tivéssemos certa pressa para chegar a tempo ao trem, ainda nos detivemos um pouco para fazer o testamento: não queria deixar complicações para o Oratório, caso a Providência me quisesse chamar à Eternidade, dando-me em comida aos peixes do Mediterrâneo. […].  Então, correndo, fomos à estação ferroviária e, junto com o P. Mentasti […] partimos com o trem das dez da manhã.
Aqui aconteceu uma coisa desagradável: os vagões estavam quase cheios, então tive que deixar Rua e o P. Mentasti em um vagão e encontrar lugar em outro […].

O menino judeu
Por acaso estava perto de um garotinho de dez anos. Notando seu aspecto simples e seu rosto bondoso, comecei a conversar com ele e […] percebi que ele era judeu. Seu pai, que estava ao seu lado, me assegurou que o filho estava na quarta série, mas a mim parecia que sua escolaridade não era de quem estava nem mesmo na segunda série. No entanto, ele era de inteligência rápida. O pai ficou contente que eu fizesse perguntas ao menino, e nos sugeriu que falássemos sobre a Bíblia. Comecei, então, a questioná-lo sobre a criação do mundo e do ser humano, sobre o Paraíso terrestre, sobre a queda dos progenitores. Ele respondia razoavelmente bem, mas fiquei surpreso quando percebi que não tinha ideia do pecado original e da promessa de um Redentor.
– Não tem na sua Bíblia o que Deus prometeu a Adão quando o expulsou
do paraíso terrestre?
– Não tem, 
lhe respondeu o menino. Diga-me, por favor.
– Sim. Deus disse à serpente: Porque você enganou a mulher, será
maldita entre todos os animais, e Alguém que nascer da mulher esmagará
sua cabeça.
– Quem é este Alguém do qual se fala?
– Este alguém é o Salvador que devia libertar o gênero humano da escravidão do demônio.
– Quando virá o Salvador?
– Ele já veio, e é aquele que nós chamamos… 
Aqui o pai o interrompeu e disse:
– Essas coisas nós não as estudamos, porque não se referem à nossa lei.
– Vocês, porém, fariam bem estudá-las, porque estão contidas nos livros de Moisés e dos Profetas nos quais acreditam.
– Está bem, vamos pensar. Mas, pergunte-lhe alguma coisa de aritmética.
 Vendo que ele não desejava que eu falasse de religião ao seu filho, mudou de assunto e lhe fez várias perguntas sobre coisas indiferentes, de maneira que o pai, seu filho e outros que estavam juntos naquele compartimento se divertiram e riram um pouco. Na estação de Asti, o menino devia descer, e não sabia como separar-se de mim. Tendo lágrimas nos olhos, segurava minha mão e, emocionado, conseguiu apenas me dizer:
– Eu me chamo Sacerdote Leão de Moncalvo. Lembre-se de mim. Indo a Turim, espero fazer-lhe uma visita. O pai, para aliviar a emoção, disse que havia procurado em Turim a “História da Itália” [escrita por mim]. Não tendo encontrado, me pedia para enviar-lhe uma cópia. Prometi enviar a impressa especialmente para a juventude, então desci também para procurar meus companheiros de viagem para ver se havia lugar em seu vagão. Encontrei Rua, que estava com as mandíbulas cansadas de tanto bocejar, pois de Turim a Asti ele havia se entediado muito, não sabendo com quem conversar: seus companheiros de viagem só falavam de danças, teatro e outras coisas de pouco gosto […].

Rumo a Gênova
Chegamos aos Apeninos. Eles se erguiam diante de nós altíssimos e íngremes. Como o trem viajava a grande velocidade, tínhamos a impressão de que iríamos colidir com as rochas quando, de repente, tudo ficou escuro. Havíamos entrado nos túneis. Estes são “furos” que, passando sob as montanhas, economizam várias dezenas de milhas. […]. Sem túneis, seria impossível atravessar as montanhas e, visto que são muitas, existem muitos túneis. Um deles é tão longo quanto a distância entre Turim e Moncalieri; tanto que o comboio ficou no escuro por oito minutos, tempo necessário para percorrer o trecho do túnel.

Ficamos surpresos ao constatar que a neve diminuía à medida que o trem se aproximava da costa de Gênova. Mas qual não foi nossa maravilha quando avistamos os campos sem um fio de branco, as margens verdejantes, os jardins cheios de cores, as plantas de amendoeira floridas e as árvores de pêssego com os botões prestes a se abrir ao sol! Fazendo, então, uma comparação entre Turim e Gênova, dissemos que em Gênova é já primavera e que em Turim ainda é um rigoroso inverno.

Os dois montanheses
Já ia me esquecendo de falar de dois montanheses que subiram em nosso vagão na estação de Busalla. Um deles estava pálido e enfermo e movia-se de dar pena. O outro tinha um ar vivo e, se bem chegasse aos 70 anos, mostrava o vigor de um jovem de vinte e cinco anos. Ele vestia calças curtas e as polainas quase desatadas, de modo que se viam as pernas, os joelhos nus e flagelados pelo frio. Estavam em mangas de camisa com apenas uma malha e um casaco grosso que trazia sobre os ombros. Depois de tê-lo feito falar de várias coisas, eu disse:
– Por que não ajeita sua roupa para defender-se do frio? Ele respondeu:
– Veja, senhor, nós somos montanheses e estamos acostumados com o vento,
a chuva, a neve e o gelo. Quase não percebemos nem o inverno. Nossos meninos caminham também hoje com os pés nus no meio da neve e vão até para divertir-se sem olhar para o frio ou o calor.
 Então entendi que o ser humano vive de hábitos, e o corpo é capaz de suportar, conforme o caso, o frio ou o calor, e aqueles que desejam se proteger de cada pequeno desconforto correm o risco de enfraquecer sua condição em vez de fortalecê-la.

A parada em Gênova
Eis Gênova, eis o mar! Rua se apressa para vê-lo, estica o pescoço: num lado vê um navio, no outro alguns barcos, mais abaixo o farol, que é bem alto. Chegamos à estação e descemos do trem. O cunhado do abade Montebruno nos aguardava com alguns jovens e, assim que saímos do trem, nos acolheram com alegria, e carregando nossas bagagens, nos levaram à obra dos artigianelli (pequenos artesãos, n.d.r.), que é uma casa semelhante ao nosso Oratório. Os cumprimentos foram breves, pois todos estávamos com muita fome: eram três e meia da tarde e eu havia tomado apenas uma xícara de café. À mesa parecia que nada poderia nos saciar, no entanto, depois de comer bastante, estávamos satisfeitos.
Logo depois visitamos a casa: escolas, dormitórios, oficinas: parecia que eu estava vendo o Oratório de dez anos atrás. Os internos eram vinte; outros vinte, embora comessem e trabalhassem aqui, dormiam em outro lugar. Qual é a alimentação deles? No almoço, um bom prato de sopa e… nada mais. No jantar, um pãozinho, que se come em pé, e depois, se vai para a cama!
Ao final, saímos para um passeio pela cidade que, para dizer a verdade, é pouco atraente, embora tenha magníficos palácios e grandes lojas. As ruas são estreitas, tortuosas e íngremes. Mas a coisa mais irritante era um vento incômodo que, soprando quase sem interrupção, tirava o prazer de admirar qualquer coisa, mesmo a mais bela […].

Sendo assim, em Gênova nossas expectativas foram decepcionadas. Como se não bastasse, o vento contrário impediu a atracação do navio no qual deveríamos embarcar, portanto, contra nossa vontade, tivemos que esperar até o dia seguinte. […]. De manhã, celebrei missa na igreja dos Padres Pregadores (Dominicanos) no altar do Beato Sebastião Maggi, um frade que viveu há cerca de trezentos anos. Seu corpo é um prodígio contínuo, pois se conserva inteiro, flexível e com uma cor que você diria que está morto há poucos dias. […]. Depois fomos carimbar, ou seja, assinar o passaporte. O Cônsul Pontifício nos recebeu com muita cortesia. […]. Ele também tentou nos conseguir algum desconto no barco, mas não foi possível.

A Civitavecchia, pelo mar. O embarque
Às seis e meia da tarde, antes de nos dirigirmos ao barco a vapor chamado Aventino, nos despedimos de vários eclesiásticos que vieram dos Artigianelli para nos desejar boa viagem. Também os rapazes, atraídos pelas boas palavras, mas principalmente por alguma coisa a mais no almoço daquele dia, tornaram-se nossos amigos e pareciam estar tristes ao nos ver partir. Vários deles nos acompanharam até o mar e, e saltando com destreza num pequeno barco, quiseram nos escoltar até o barco. O vento estava bastante forte: não acostumados a viajar pelo mar, a cada movimento do barco temíamos virar de cabeça para baixo e afundar, e nossos acompanhantes riam muito. Depois de vinte minutos, finalmente chegamos ao navio.

À primeira vista, parecia um edifício cercado pelas ondas. Subimos a bordo, e levando nossa bagagem para um alojamento bastante espaçoso, nos sentamos para descansar e pensar: cada um de nós experimentava particulares sensações que não sabia como expressar. Rua observava tudo e todos em silêncio. E eis o primeiro contratempo: tendo chegado na hora do almoço, não fomos imediatamente comer; quando pedimos, já tinha acabado tudo. Rua jantou uma maçã, um pãozinho e um copo de vinho Bordô, eu me contentei com um pedaço de pão e um pouco daquele excelente vinho. Vale lembrar que, quando se viaja de navio, as refeições estão incluídas na passagem e, assim, comendo ou não, paga-se da mesma forma.

Depois subimos ao convés para conhecer melhor esse navio “Aventino”. Assim, soubemos que os navios recebem nomes dos lugares mais famosos das regiões para onde estão indo. Um se chama Vaticano, outro Quirinale, outro Aventino (como o nosso), para lembrar as sete famosas colinas de Roma. Este nosso navio partiu de Marselha, passa por Gênova, Livorno, Civitavecchia, depois segue para Nápoles, Messina e Malta. No retorno, repete o mesmo percurso até Marselha. Também é chamado de barco postal porque transporta cartas, pacotes, etc. Independentemente de fazer sol ou chuva, parte sempre.

O enjoo
Nos foi designada um beliche, que é uma espécie de armário com prateleiras onde os passageiros se deitam sobre um colchão em cada prateleira. Às dez, as âncoras foram levantadas e o barco, impulsionado pelo vapor e por um vento favorável, começou a correr em alta velocidade em direção a Livorno. Quando estávamos em alto-mar fiquei enjoado, coisa que me atormentou por dois dias. Esse desconforto causa vômitos frequentes, e quando não se tem mais nada para regurgitar, os espasmos ficam mais violentos, de modo que a pessoa fica tão exausta que recusa comer. A única coisa que pode trazer algum alívio é deitar-se e ficar, quando o vômito permite, com o corpo totalmente estendido.

Livorno
Aquela noite de 20 de fevereiro foi uma noite ruim. Não estávamos em perigo por causa do mar agitado, mas o enjoo me havia prostrado tanto que não conseguia ficar nem deitado, nem em pé. Sai da cama e fui ver se Rua estava vivo ou morto. No entanto, ele não tinha mais do que um pouco de cansaço, nada mais. Ele se levantou imediatamente, colocando-se à minha disposição para aliviar os desconfortos da travessia. Quando Deus quis, chegamos ao porto de Livorno. Por porto entende-se uma enseada do mar protegida da fúria dos ventos por barreiras naturais ou por barreiras construídas pelo ser humano. Aqui os navios estão a salvo de qualquer perigo, aqui descarregam suas mercadorias e carregam outras para outros destinos, aqui se fazem os abastecimentos. Os passageiros que desejam também podem descer à terra para dar uma volta pela cidade, desde que voltem a tempo. […].

Embora eu desejasse descer para visitar a cidade, celebrar a missa e cumprimentar alguns amigos, não pude fazê-lo, na verdade fui forçado a voltar para minha cama e ficar lá quieto e em jejum. Um garçom chamado Charles me olhava com um olhar de compaixão e de vez em quando se aproximava oferecendo seus serviços. Vendo-o tão gentil e cortês, comecei a conversar com ele, e entre outras coisas perguntei se ele não temia ser ridicularizado por ajudar um padre sob o olhar de tantas pessoas.
– Não, ele me disse em francês, veja que ninguém fica maravilhado. Aliás, todos
o admiram com bondade, mostrando desejo de poder de algum modo ajudá-lo. Por outro lado, minha boa mãe recomendou-me muitas vezes de ter grande respeito aos padres e que isso era um meio para obter a bênção do Senhor
. Charles, então, foi chamar um médico: cada navio tem seu médico e os principais remédios para qualquer necessidade. O médico veio e suas maneiras afáveis me animaram um pouco.
– Compreende o francês? Ele me disse. Respondi:
– Compreendo todas as linguagens do mundo, também aquelas não escritas, e até mesmo a linguagem dos surdos-mudos. Eu estava brincando para me despertar da sonolência que me havia tomado. O outro entendeu e começou a rir.
– Peut être, pode ser! Ele dizia enquanto me examinava. No final, me anunciou que ao enjoo havia se juntado a febre e que uma bebida de chá me faria bem. Agradeci e perguntei seu nome.
– Meu nome, disse, é Jobert de Marselha, doutor em medicina e cirurgia. Charles, atento às ordens do doutor, em poucos instantes preparou a Dom Bosco uma ótima xícara de chá, daí há pouco uma outra e depois uma outra. E me fez bem, tanto que consegui dormir.
Às cinco [da tarde] o barco levantou âncoras. Quando estávamos em alto-mar novamente, tive ânsias de vômito ainda mais violentas, ficando mal por cerca de quatro horas e depois, pelo esgotamento (não tinha mais nada no estômago) e ajudado pelo balanço do navio, adormeci e descansei em um sono tranquilo até chegar em Civitavecchia.

Pagar, pagar, pagar
O descanso da noite me fez recuperar as forças. Embora exausto pelo longo jejum, levantei-me e preparei as malas. Estávamos prestes a descer quando nos avisaram de uma dívida que não sabíamos ter contraído. O café não estava incluído na alimentação, mas deveria ser pago à parte e nós, que tomamos quatro xícaras, pagamos um suplemento de dois francos, ou seja, cinquenta centavos por xícara. O capitão, após fazer carimbar os passaportes, nos autorizou o desembarque; e aqui começaram as gorjetas: um franco de cada um para os barqueiros, meio franco para a bagagem (que nós tínhamos que carregar), meio franco para a alfândega, meio franco para quem nos convidava a entrar no carro, meio para o carregador que arrumava as malas, dois francos para o visto no passaporte, um franco e meio para o Cônsul Pontifício. Não dava nem tempo de abrir a boca que já tinha que pagar alguma coisa. Com a adição de que, variando as moedas de nome e valor, tínhamos que confiar em quem nos fazia a troca. […]. Na Alfândega respeitaram um pacote endereçado ao Cardeal Antonelli com o selo pontifício, dentro do qual colocamos as coisas mais importantes. […].

Terminadas as operações, fui ao barbeiro para fazer a barba de dez dias. Tudo correu bem, mas na loja não consegui desviar o olhar de dois chifres em uma mesinha. Eram longos cerca de um metro e adornados com anéis brilhantes e fitas. Pensava que eram destinados a algum uso especial, mas me disseram que eram de novilha, que nós chamamos de boi, colocados lá apenas para ornamentação. […].

Rumo a Roma de carruagem
Enquanto isso, o P. Mentasti estava furioso porque não nos via chegar, enquanto a carruagem já nos aguardava. Tivemos de correr para chegar a tempo. Subimos na carruagem e partimos para Roma. A distância a percorrer era de 47 milhas italianas, que correspondem a 36 milhas piemontesas; a estrada era muito bonita.
Como nossos lugares eram na parte alta podíamos contemplar os prados verdejantes e as cercas vivas floridas. Uma curiosidade nos divertiu bastante. Percebemos que tudo ia em grupos de três: os cavalos da nossa carruagem estavam atrelados em grupos de três; encontramos patrulhas de soldados que iam em grupos de três; até mesmo alguns camponeses caminhavam em grupos de três, assim como algumas vacas e alguns burros pastavam em grupos de três. Nós ríamos sobre essas estranhas coincidências. […].

Uma parada para os cavalos
Em Palo o cocheiro concedeu aos viajantes uma hora de liberdade para dar descanso aos cavalos. Nós aproveitamos para correr até uma estalagem próxima e saciar a fome. As ocupações quase nos fizeram esquecer de comer; desde o meio-dia de sexta-feira, eu não havia tomado mais do que uma xícara de café com leite. Nos reunimos em torno dos pãezinhos e comemos, ou melhor, devoramos tudo. Ao ver o garçom muito exausto e pálido, perguntei o que ele tinha.
– Tenho uma febre que me aflige há muitos meses, respondeu. Então eu fiz o bom médico:
– Deixe comigo, vou prescrever uma receita que eliminará a febre para sempre. Tenha apenas fé em Deus e em São Luís. Pegando então um pedaço de papel com o lápis, escrevi minha receita, recomendando-lhe que a levasse a algum farmacêutico. Ele não cabia em si de tanta alegria e, não sabendo o modo melhor de demonstrar sua gratidão, beijava minha mão e repetia o gesto, e queria beijar também a de Rua, que por modéstia não permitiu.

Foi também simpática a encontro com um policial pontifício. Ele achava que me conhecia, e eu acreditava conhecê-lo, assim nos cumprimentamos ambos com grande festa. E quando percebemos o equívoco, a amizade e as expressões de benevolência e respeito continuaram: para agradá-lo, tive que permitir que ele pagasse uma xícara de café, e da minha parte ofereci-lhe uma dose de rum. E como me pediu uma lembrança, dei-lhe a medalha de São Luís Gonzaga. O nome daquele bom policial era Pedrocchi.

Na cidade dos papas
Subimos novamente na carruagem e voando mais rápido com o desejo do que com as patas dos cavalos, parecia a cada momento que já estávamos em Roma. Com a noite caindo, toda vez que avistávamos ao longe um arbusto ou uma planta, Rua imediatamente exclamava:
– Eis a cúpula de São Pedro. Mas tivemos que continuar a viagem até às dez e meia da noite e, já sendo bastante escuro, não conseguíamos mais discernir nenhum detalhe. Sentimos um arrepio, no entanto, ao saber que estávamos entrando na cidade santa. […]. Finalmente chegando no ponto de parada e não tendo nenhum conhecimento do lugar, procuramos um guia que, por doze tostões nos acompanhou até a casa De Maistre, na via del Quirinale 49, nas Quattro Fontane. Já eram onze horas. Fomos recebidos com bondade pelo conde e pela condessa; os outros já dormiam. Após fazermos um lanche, nos despedimos e fomos dormir.

San Carlino
A parte do Quirinale onde estamos é chamada Quattro Fontane porque jorram quatro fontes perenes de quatro cantos de quatro bairros que aqui se unem. Em frente à casa onde nos hospedamos estava a igreja dos carmelitas. Estes, todos espanhóis, pertenciam à ordem conhecida como da Redenção dos Escravos. A igreja foi construída em 1640 e dedicada a São Carlos; mas para distingui-la de outras dedicadas ao mesmo santo, foi chamada de São Carlinhos[S. Carlino]. Fomos à sacristia, mostramos o Celebret (o documento para celebrar, n.d.r.) e assim pudemos celebrar a missa. […]. Passamos o dia quase inteiramente organizando nossos papéis, entregando recados e encomendas, levando cartas. […].

Pantheon
Aproveitando que ainda tínhamos ainda uma hora antes que escurecesse, fomos ao Pantheon, que é um dos monumentos mais antigos e célebres de Roma. Foi mandado construir por Marco Agripa, genro de César Augusto, vinte e cinco anos antes da era comum (do nascimento de Cristo, n.d.r.). Acredita-se que este edifício tenha sido chamado de Pantheon, que significa todos os deuses, porque de fato era dedicado a todas as divindades. A fachada é realmente estupenda. Oito grossas colunas compõem uma elegante moldura. Logo depois, há um pórtico formado por dezesseis colunas feitas de um único bloco de granito, depois o pronaos, ou ante-templo, constituído por quatro pilares canelados, dentro dos quais estão escavados nichos antigamente ocupados pelas estátuas de Augusto e Agripa.
No interior, apresenta uma alta cúpula aberta no meio, pela qual penetra a luz, mas também o vento, a chuva e a neve, quando cai por estas bandas. Aqui, os mais preciosos mármores foram usados como piso ou como decoração de tudo ao redor. O diâmetro é de cento e trinta e três pés, correspondendo a dezoito trabucos (cerca de 55 m). Este templo serviu ao culto dos deuses até 608 depois de Cristo, quando o Papa Bonifácio IV, para impedir as desordens que aconteciam durante os sacrifícios, o dedicou ao culto do verdadeiro Deus e a todos os santos.

Esta igreja passou por muitas modificações. Quando Bonifácio IV obteve este lugar do imperador Foca e o dedicou ao culto de Deus e de Nossa Senhora, fez transportar de vários cemitérios vinte e oito carros de relíquias que colocou sob o altar-mor. Desde então, começou a ser chamada de Santa Maria ad Martyres. Gostamos muito de ter visitado o túmulo do grande Rafaello. […]. Agora esta igreja também é chamada de Rotonda, pela forma arredondada de sua construção. À frente dela há uma praça cujo centro é ocupado por uma grande fonte de mármore, encimada por quatro golfinhos que jorram água continuamente.

San Pietro in Vincoli
No dia 23 de fevereiro […] ficamos muito contentes com a visita a S. Pietro in Vincoli, igreja ao sul de Roma, quase no fim da cidade. Foi um dia memorável porque coincidia com uma das raras vezes em que eram exibidas as correntes de São Pedro [catene di san Pietro], cujas chaves são guardadas pelo próprio Santo Padre.
Diz a tradição que foi o próprio Pedro quem ergueu aqui a primeira igreja, dedicando-a ao Salvador. Destruída pelo incêndio de Nero, foi reconstruída por São Leão Magno em 442 e dedicada ao primeiro Papa. Foi chamada de San Pietro in Vincoli porque o Pontífice deixou nela a corrente com a qual o Príncipe dos Apóstolos foi, por ordem de Herodes, acorrentado em Jerusalém. O patriarca Giovenale a havia presenteado à imperatriz Eudóxia, que por sua vez a enviou a Roma para sua filha Eudóxia Júnior, esposa de Valentiniano III. Em Roma também se conservava a corrente à qual São Pedro foi acorrentado no cárcere Mamertino. Quando São Leão quis fazer a comparação desta com a de Jerusalém, de maneira prodigiosa as duas correntes se uniram, de modo que hoje formam uma só, que é conservada em um altar específico ao lado da sacristia. Tivemos a consolação de tocar essas correntes com nossas mãos, beijá-las, colocá-las em nosso pescoço e aproximá-las da fronte. Também olhamos com bastante atenção para tentar ver onde as duas se uniam, mas não conseguimos. Apenas pudemos constatar que a corrente de Roma é menor que a de Jerusalém.

Em San Pedro in Vincoli encontra-se a magnífica sepultura de Júlio II. […]. É uma das obras-primas do célebre Michelangelo Buonarroti, que é considerado um dos maiores artistas do mármore, especialmente pela estátua de Moisés [statua del Mosè], colocada perto da urna. O patriarca é representado com as tábuas da lei dobradas sob o braço direito, em ato de falar ao povo que ele observa com atenção, pois se havia rebelado. A igreja tem três naves, separadas por vinte colunas de mármore pario e duas de granito, bem conservado.

San Luigi dei Francesi
Por volta das nove, fomos a Santa Maria sopra Minerva, onde fomos recebidos em audiência privada pelo Cardeal Gaude por cerca de uma hora e meia. Ele falou conosco em dialeto piemontês, interessando-se por nossos oratórios. […]. Depois do meio-dia fomos visitar o marquês Giovanni Patrizi. […]. Em frente ao seu palácio está a igreja de São Luís dos Franceses [chiesa di S. Luigi dei Francesi], que dá nome à praça e à vizinhança. É uma igreja bem cuidada e enriquecida com muitos mármores preciosos. Sua singularidade consiste nos sepulcros de ilustres personagens franceses que morreram em Roma. De fato, o piso e as paredes estão cobertos de epígrafes e lápides. […].
Santa Maria Maggiore all’Esquilino
Do Quirinale se abre uma via que leva ao Esquilino, assim chamado pelos muitos alces que o adornavam. Na parte mais elevada ergue-se Santa Maria Maggiore [S. Maria Maggiore], cuja origem assim é narrada por todos os que se ocupam da história sagrada. Um certo Giovanni, patrício romano, não tendo filhos, desejava empregar seus bens em alguma obra de piedade. […]. Na noite de 4 de agosto de 352, Nossa Senhora lhe apareceu em sonho e ordenou que lhe erguesse um templo no lugar onde, na manhã seguinte, encontraria neve fresca. A mesma visão teve o papa da época, Libério. No dia seguinte, espalhou-se a notícia de que havia caído abundante neve no monte Esquilino; Libério e Giovanni foram até lá e, constatando o prodígio, se colocaram de acordo para concretizar o que lhes foi ordenado no sonho. O papa fez o traçado do novo templo, que foi construído com os recursos de Giovanni: poucos anos depois, Libério o consagrou […]

Em frente à igreja se estende uma vasta praça, no centro da qual está a antiga coluna de mármore branco, retirada do templo da paz. No ano de 1614 o Papa Paulo V dotou-a de uma base e de um capitel, sobre o qual colocou a estátua de Nossa Senhora com o Menino Jesus [la statua della Madonna col Bambino]. A arquitetura da fachada é majestosa e é sustentada por grossas colunas de mármore que formam um espaçoso vestíbulo. No fundo deste foi colocada a estátua de Filipe IV, rei da Espanha, que fez muitas doações em favor desta igreja e quis ele mesmo ser inscrito entre os canônicos dela. O piso é de mosaico precioso trabalhado com mármores de vários tipos, todos de valor incalculável.

A capela à direita do altar-mor conserva a tumba de São Jerônimo, a manjedoura do Salvador [culla del Salvatore] e o altar do Papa Libério. O altar papal é coberto por preciosos mármores de porfírio e sustentado por quatro anjos de bronze dourado. Abaixo dele se abre a Confissão, que é uma capela dedicada a São Matias. Fomos visitá-la no dia da estação quaresmal, assim tivemos a sorte de encontrar exposto sobre um rico altar a cabeça de São Matias. Observando-a atentamente notamos a pele ainda presa à cabeça e que, também, ainda aparecem alguns cabelos presos ao venerado crânio.

A Virgem e a peste
Na capela à esquerda do altar pode-se observar uma pintura da Virgem atribuída a São Lucas [un dipinto della Vergine attribuito a san Luca], muito venerada pelo povo. A imagem sempre foi muito apreciada pelos papas. São Gregório Magno, na terrível peste de 590, a levou em procissão até o Vaticano. Era 25 de abril. Quando o cortejo chegou perto da Mole Adriana (torre Adriana, n.d.r.), foi visto um anjo que guardava a espada na bainha, indicando assim o término da peste. Em memória deste prodígio, a Mole Adriana foi chamada de Castel Sant’Angelo, e desde então a procissão se repete todo ano no dia de São Marcos Evangelista. Em Santa Maria Maggiore tudo é majestoso e grandioso; mas falar ou escrever sobre isso é insuficiente para descrevê-la com precisão. Quem a vê com seus próprios olhos fica maravilhado com tudo o que vê lá.

Hoje, Quarta-feira de Quaresma, aqui em Roma se jejua e isso significa que são proibidos não apenas os alimentos de carne, mas também qualquer sopa ou prato à base de ovos, manteiga ou leite. Óleo, água e sal são os temperos usados nestas Quartas-feiras. A prática é rigorosamente observada por todas as pessoas, de modo que nos mercados e nas lojas não se encontra carne, ovos ou manteiga naquele dia.

A lenda de São Galgano
À noite, a senhora De Maistre nos contou uma história digna de ser lembrada. Ela disse:
No ano passado veio aqui o Vigário Geral de Siena. Entre outras coisas que ele costumava contar havia uma sobre São Galgano, soldado. Esse santo morreu há séculos, e o seu corpo se conserva intacto. Mas a maravilha é que todo ano lhe cortam os cabelos, que crescem sensivelmente e voltam ao mesmo comprimento no ano seguinte. Um protestante, ouvindo sobre tal prodígio, começou a rir dizendo: – Deixa-me lacrar o caixão, e se os cabelos crescerem, eu reconheço o dedo de Deus no prodígio e me torno católico. A coisa chegou ao bispo, que disse: – Sim, logo! Colocarei os lacres episcopais para a autenticidade da relíquia. Que ele coloque os seus para assegurar-se do fato. Assim foi. Mas o protestante, impaciente para ver se o prodígio acontecia, depois de alguns meses pediu para abrir o caixão do santo. Mas, qual não foi sua surpresa quando viu os cabelos de São Galgano crescidos já em um considerável tamanho com a mesma proporção como se fosse vivo ainda?! Então exclamou: – Agora sou católico! De fato, no ano seguinte, no dia da festa do santo, ele, com sua família abjurou os erros de Calvino e de Lutero, e abraçou a religião católica, que agora professa exemplarmente.

Santa Pudenziana al Viminale
Das Quattro Fontane sobe-se ao Viminale, chamado assim pelos muitos vimes, ou seja, os juncos, que outrora o cobriam. Aos pés desta colina, na casa de Pudente, senador romano, hospedou-se São Pedro quando veio a Roma. O santo apóstolo converteu à fé seu anfitrião e transformou sua casa em igreja. São Pio I, por volta de 160, a pedido das virgens Pudenziana e Prassede, filhas do sobrinho do Senador Pudente, consagrou esta igreja, que […] posteriormente foi dedicada a Santa Pudenziana [dedicata a S. Pudenziana] porque ela ali havia habitado e foi ali que morreu. Muitos papas trabalharam na reestruturação deste lugar, que contém preciosos testemunhos da fé cristã. Merece especial atenção o poço de Santa Pudenziana. Acredita-se que ela tenha sepultado os corpos dos mártires neste poço. No fundo, pode-se notar uma grande quantidade de relíquias: a história diz que contém as relíquias de três mil mártires.

Ao lado do altar-mor há uma capela de forma alongada em cujo altar estão estátuas em mármore em que Jesus entrega as chaves a São Pedro. Acredita-se que o altar seja o mesmo sobre o qual São Pedro celebrou a missa, e sobre o qual, com grande consolação, eu também pude fazê-lo. Conservam-se vários pedaços de esponja, os mesmos que Pudenziana usava para recolher o sangue das chagas dos mártires ou da terra que estava impregnada dele.
Continuando à esquerda chega-se a uma capela onde se conserva o testemunho de um grande milagre. Enquanto celebrava a missa, um sacerdote caiu em dúvida sobre a possibilidade da presença real de Jesus na hóstia santa. Após a consagração, a hóstia lhe escapuliu das suas mãos e, caindo no chão, quicou primeiro em um degrau e depois em outro. Onde tocou pela primeira vez, o mármore ficou quase furado; também no segundo degrau formou-se uma cavidade muito profunda em forma de hóstia. Esses dois degraus de mármore são conservados naquele mesmo lugar, de modo bem seguro.

Santa Prassede
De Santa Pudenziana, subindo em direção ao Esquilino, a pouca distância de Santa Maria Maggiore, encontra-se a igreja de Santa Prassede [chiesa di S. Prassede]. Por volta do ano 162 d.C., sobre o local onde estavam as termas, ou seja, as casas de banho de Novato, São Pio I ergueu uma igreja em honra desta virgem, irmã de Novato, Pudenziana e Teotilo. O local serviu de refúgio para os antigos cristãos em tempos de perseguição. A Santa, que se esforçava para fornecer o que era necessário aos cristãos perseguidos, também se encarregava de recolher os corpos dos mártires, que depois sepultava, vertendo seu sangue no poço que está no meio da igreja. Ela é riquíssima em ornamentos e mármores preciosos, como quase todas as igrejas de Roma.

Há também a capela dos mártires Zenone e Valentino, cujos corpos, trazidos por São Pascoal I no ano 899, repousam sob o altar. Aqui se conserva também uma coluna de jaspe, alta cerca de três palmos, que um Cardeal chamado Colonna fez transportar da Terra Santa no ano 1223. Acredita-se que seja aquela à qual o Salvador foi atado durante a flagelação.

Celio
Do Esquilino, olhando para o oeste, vê-se a colina Celio. Antigamente, era chamada de Querchetulano pelas árvores de carvalho que a cobriam. Mais tarde, foi denominada Celio em homenagem a Cele Vilenna, capitão dos etruscos que vieram em socorro de Roma, e que Tarquínio Prisco acolheu nesta colina. A primeira coisa que se nota é o maior obelisco que se conhece. Ramsés, faraó do Egito, fez erguê-lo em Tebas, dedicando-o ao sol. Constantino, o Grande, mandou transportá-lo pelo Nilo até Alexandria, mas, tendo morrido, coube ao filho, Constâncio, levá-lo a Roma. Para a viagem, usou-se um navio de trezentos remos, e pelo rio Tibre foi conduzido à Urbe e colocado em um lugar chamado Circo Massimo. Aqui caiu, quebrando-se em três partes. O Papa Sisto V mandou restaurá-lo e erguê-lo na praça do Laterano no ano de 1588. O obelisco chega à altura de 153 pés romanos. É todo ornamentado com hieróglifos e coroado por uma alta cruz.

À direita da praça está o batistério de Constantino com a igreja de San Giovanni in Fonte [chiesa di S. Giovanni in Fonte]. Diz-se que foi construída por Constantino em ocasião do batismo que recebeu do pontífice São Silvestre no ano 324. Das duas capelas anexas, uma dedicada a São João Batista e a outra a São João Evangelista, recebeu o nome de igreja de San Giovanni in Fonte. O batistério, que é uma bacia de grande largura revestida de mármores preciosos, está no meio. A capelinha anexa, dedicada a São João Batista, acredita-se que fosse um cômodo de Constantino, transformada em oratório e dedicada ao santo Precursor pelo papa São Hilário.

San Giovanni in Laterano
Saindo do batistério e atravessando a vasta praça, encontra-se a basílica de San Giovanni in Laterano [basilica di S. Giovanni in Laterano]. Esta célebre construção é a primeira e principal igreja do mundo católico. Na fachada está escrito: Ecclesiarum Urbis et Orbis Mater et Caput (Mãe e Cabeça de todas as Igrejas de Roma e do Mundo). É a sede do Sumo Pontífice como bispo de Roma; após sua coroação, ele vem até aqui para, solenemente, tomar posse. Foi chamada também de Basílica Costantiniana, porque foi fundada por Constantino, o Grande. Depois foi chamada de Basílica Lateranense porque erguida onde estava o palácio de um certo Pláucio Laterano, assassinado por Nero; e também Basílica do Salvador, em decorrência de uma aparição do Salvador ocorrida durante a sua construção. Chamam-na ainda de Basílica Áurea pelos preciosos dons com que foi enriquecida, e Basílica de São João porque dedicada aos santos João Batista e Evangelista.

Foi Constantino, o Grande, quem a mandou construir perto de seu palácio, por volta do ano 324. Ampliada depois com novos edifícios, foi cedida ao santo Pontífice. Aqui habitaram os papas até a época de Gregório XI. Quando este trouxe a Santa Sé de Avinhão para Roma, transferiu sua residência para o Vaticano.
No ano de 1308 um terrível incêndio a destruiu, mas Clemente V, que então estava em Avinhão, imediatamente enviou seus agentes com grandes somas de dinheiro, e logo breve foi reconstruída. O pórtico é sustentado por vinte e quatro grossos pilares; ao fundo, está a estátua de Constantino encontrada em suas termas no Quirinale. A grande porta de bronze é de extraordinária altura. Ela foi retirada da igreja de Sant’Adriano in Campo Vaccino e trazida para cá. Constitui um raro exemplo de portas antigas chamadas Quadrifores, ou seja, construídas de modo que pudessem ser abertas em quatro partes, uma de cada vez, sem que nenhuma colocasse em perigo a estabilidade da outra. À direita, há uma porta murada que se abre apenas no ano do jubileu e, por isso, é chamada de Porta Santa.

Seu interior tem cinco naves. O comprimento, a altura, a preciosidade dos pavimentos, das esculturas e das pinturas são coisas que chamam a atenção. Deveria-se escrever grossos volumes para falar dignamente sobre isso. As relíquias mais insignes desta igreja são a cabeça dos dois príncipes dos Apóstolos, Pedro e Paulo. Elas estão sob o altar-mor e ficam dentro de uma outra cabeça de ouro. Há também uma relíquia insigne de São Pancrazio, mártir, e guarda-se uma mesa que se acredita ser a mesma sobre a qual Jesus celebrou a sagrada ceia com seus Apóstolos.

Saindo da igreja pela porta principal e atravessando a praça, encontra-se a Escada Santa [Scala Santa], um edifício que o Papa Sisto V mandou erguer para guardar a escada, que antes estava em pedaços no antigo palácio papal do Laterano. Ela é formada por vinte e oito degraus de mármore branco que eram do pretório de Pilatos, em Jerusalém, que Jesus subiu e desceu várias vezes durante sua paixão. Santa Helena, mãe de Constantino, os enviou a Roma junto com muitas outras coisas santificadas pelo sangue de Jesus Cristo. Esta célebre escadaria é mantida em grande veneração e, por isso, sobe-se de joelhos; e desce-se por uma das quatro escadas laterais. Esses degraus se afundaram pelo grande afluxo de cristãos que os subiram, por isso foram cobertos com tábuas de madeira. O próprio Sisto V fez colocar no alto da escada a célebre capela doméstica dos Papas, que está repleta das mais insignes relíquias, e que, por isso, é chamada de Sancta Sanctorum.

Cidade do Vaticano. A construção
A colina do Vaticano [colle Vaticano] contém o que existe de mais excelente nas artes e de memorável na religião; por isso, faremos um relato um pouco mais preciso. Foi chamada Vaticano, de Vagitanus, uma divindade que acreditavam que acompanhava o choro dos recém-nascidos. De fato, a primeira sílaba Uà (“va”, n.d.r.) da qual é composta a palavra é também o primeiro grito das crianças. A colina ficou conhecida quando Calígula construiu nela um circo, que depois ficou conhecido como circo de Nero. Calígula, para passar da margem esquerda para a direita do Tibre, construiu a ponte do Vaticano, também chamada de Triunfal, que agora, porém, não existe mais. O circo de Nero começava onde hoje está a igreja de Santa Marta e se estendia até as escadas da antiga basílica vaticana. Neste circo foi enterrado o corpo do Príncipe dos Apóstolos [corpo del Principe degli Apostoli] .[…].

Ali também foram enterrados os ossos de outros Papas, incluindo Lino, Cleto, Anacleto, Evaristo e outros mais. A Memória de São Pedro, ou seja, a capela construída sobre o túmulo dele, durou até os tempos de Constantino que, por desejo de São Silvestre, por volta de 319, começou a construção de uma igreja em honra do Apóstolo. Ela foi erguida exatamente em torno daquela capela, utilizando material retirado de edifícios públicos. A construção foi chamada de Basílica Constantiniana, e naqueles tempos era considerada uma das mais célebres da cristandade. No meio daquela igreja, feita em forma de cruz latina, havia o altar dedicado a São Pedro, sob o qual estava sepultado seu corpo, protegido por grades; desde então aquele lugar era chamado de Confissão de São Pedro. Terminada a construção e dotada de ricos adornos, o Papa Silvestre a consagrou em 18 de novembro de 324. […]. Os pontífices que vieram depois a embelezaram e a ampliaram. Por onze séculos foi objeto de devoção e admiração dos cristãos que se dirigiam a Roma.

No século XV, começou a ruir, por isso Nicolau V pensou em renová-la, mas teve apenas o mérito de iniciar os trabalhos, pois com a sua morte se suspendeu tudo. Júlio II retomou a construção, mudando o nome dela de Basílica Constantiniana para São Pedro no Vaticano, e colocou a primeira pedra em 18 de abril de 1506. Os arquitetos foram Bramante, depois Fra Giocondo Domenico e Raffaello Sanzio. E além deles, também trabalharam os mais célebres arquitetos e os mais sublimes gênios da época.

A grande praça
 […] Diante da basílica se abre uma vasta praça cuja extensão supera meio quilômetro. Ela é formada por 284 colunas e 64 pilares que, dispostos em semicírculo de ambos os lados em quatro fileiras, formam três corredores, dos quais o mais amplo, o central, pode permitir a passagem de duas carruagens. Sobre a colunata sobressaem 96 estátuas de santos, em mármore, com cerca de 10 pés de altura. No centro, ergue-se o obelisco egípcio. Ele é formado por um só bloco e é o único que permaneceu inteiro. Mede 126 pés de altura, incluindo a cruz e o pedestal. Não possui hieróglifos. Nuccoreo, rei do Egito, o havia erguido em Heliópolis, de onde foi retirado e trazido a Roma por Calígula no 3º ano de seu império. Foi colocado no circo construído ao pé da colina do Vaticano, como demonstram os dizeres que podem ser lidos. Este circo foi chamado de Nero porque foi muito frequentado por ele; aqui, aquele cruel imperador fez um massacre de cristãos, acusando-os de serem os autores do incêndio de Roma, que ele mesmo havia provocado.

Em 1818 foi construída uma meridiana na praça. Foram desenhados no chão os doze signos do zodíaco. O obelisco servia como ponteiro e com sua sombra indicava as estações do sol. Ao redor, foram escritos os nomes dos ventos na direção em que sopra cada um deles. Dos lados, duas fontes iguais jorram perpetuamente água de um grupo de jatos que se elevam até sessenta pés. A rainha da Escócia, recebida com pompa neste lugar, olhou com espanto para as duas fontes, pensando que haviam sido feitas especialmente para sua recepção. Não, disse um senhor que estava ao seu lado, esses jatos são perenes.

Visita a São Pedro
Caminhando em direção à fachada da basílica, chega-se a uma magnífica escadaria ladeada por duas estátuas, uma de São Pedro e a outra de São Paulo, colocadas ali pelo Papa Pio IX. Subindo as escadas, está-se diante da fachada que tem esta inscrição: Em honra do Príncipe dos Apóstolos, Paulo V, Pontífice Máximo, no ano de 1612, 7º de seu pontificado. Acima do pórtico se estende o grande Balcão das bênçãos. A fachada é majestosa e imponente. O pórtico é todo adornado com mármores, pinturas em mosaico e outros trabalhos elegantes. No fundo do vestíbulo, à direita, pode-se observar a belíssima estátua equestre de Constantino em ato de contemplar a prodigiosa cruz que lhe apareceu no céu antes da batalha final com Massenzio.

Do pórtico entra-se na basílica através de quatro portas, das quais a última à direita só se abre no ano santo. A porta maior é de bronze, muito alta, e são necessárias muitas e fortes mãos para abri-la. O interior apresenta-se em cinco naves além da cruz que termina com a tribuna. A curiosidade e a surpresa nos levaram ao meio da nave maior. Aqui paramos para admirar e refletir, sem pronunciar palavra. Pareceu-nos ver a Jerusalém celeste. O comprimento da basílica é de 837 palmos, sua largura de 607. É o maior templo de toda a cristandade. Depois de São Pedro, o maior é o de São Paulo em Londres. Se à igreja de São Paulo acrescentarmos a do nosso Oratório, forma-se o comprimento exato da de São Pedro.

Depois de estarmos por algum tempo imóveis, procuramos a pia de água benta. Avistamos dois anjos no primeiro pilar da basílica, à primeira vista muito pequenos, que seguravam uma espécie de concha. Ficamos maravilhados que uma igreja tão vasta tivesse uma pia de água benta tão pequena. Mas nossa maravilha se transformou em surpresa quando vimos os anjos se tornavam cada vez maiores à medida que nos aproximávamos deles. A concha tornou-se um recipiente de cerca de seis pés de circunferência, e os anjos ao lado nos mostravam suas mãos com dedos do tamanho de nosso braço. Isso demonstra que as proporções deste maravilhoso edifício são tão bem reguladas que tornam menos perceptível a amplitude, a qual, no entanto, se nota cada vez melhor ao examinar cada detalhe. Ao redor dos pilares da nave maior estão as estátuas dos fundadores das ordens religiosas, esculpidas em mármore.

No último pilar, à direita, está colocada a estátua de São Pedro, em bronze, venerada com grande reverência. Foi feita fundir por São Leão Magno com o bronze da estátua de Júpiter Capitolino. Ela recorda a paz que aquele Pontífice obteve de Átila, que estava enfurecido contra a Itália. O pé direito que se projeta para fora do pedestal está consumido pelos lábios dos fiéis que nunca passam diante dele sem beijá-lo com respeito. Enquanto estávamos admirando a estátua, passou o embaixador austríaco em Roma, que se curvou diante do príncipe dos Apóstolos e beijou seu pé.

Naves e capelas
Passamos agora a dizer alguma coisa sobre as naves menores e as capelas que lá se encontram. Na nave da direita encontramos, primeiro, a capela da Pietà. Além de magníficos mosaicos e das estátuas que a adornam, admira-se sobre o altar a célebre estátua esculpida por Michelangelo Buonarroti, em mármore branco, quando ele tinha apenas vinte e quatro anos de idade. Talvez seja a escultura mais bela do mundo. O mesmo Buonarroti se agradou tanto dela deixou a sua assinatura na faixa sobre o peito de Maria.

À esquerda da capela da Pietà está a capela interna dedicada ao Crucifixo e a São Nicolau. Daqui se entra na chamada Capelinha da Coluna Santa, onde se conserva, protegida por uma grade de ferro, uma das colunas em espiral que estavam antigamente diante do altar da Confissão de São Pedro. Esta é a coluna à qual Jesus Cristo se apoiou quando pregou no templo de Salomão. Admira-se com maravilha que a parte tocada pelos sagrados ombros do Salvador nunca está suja de poeira, e por isso não é necessário que seja limpa como o resto.

Após a capela da Pietà está o monumento fúnebre de Leão XII, feito por Gregório XVI. O Pontífice é retratado enquanto abençoa o povo do Balcão (Loggia, n.d.r.) acima do pórtico; ao redor vê-se as cabeças dos Cardeais que participavam da cerimônia. Em frente a este jazigo está o de Cristina Alessandra, rainha da Suécia, morta em Roma no dia 19 de abril de 1689. Esta, protestante, convencida da pouca consistência de sua religião, fez-se instruir no catolicismo e fez a solene abjuração em Ispruch em 3 de novembro de 1655. Vários baixos-relevos que adornam o túmulo representam o acontecimento.

Depois está a capela de São Sebastião, também essa rica em pinturas e mármores. Saindo à direita, encontra-se o túmulo de Inocêncio XII, dos Pignatelli de Nápoles. Em frente, está a sepultura da famosa condessa Matilde, ilustre benfeitora da Igreja e defensora da autoridade pontifícia. Urbano VIII transferir para cá as cinzas dela, retirando-as do mosteiro de São Bento em Mantova. Ela foi a primeira das ilustres mulheres que mereceram uma sepultura na basílica Vaticana. A condessa é representada em pé; a sepultura é ornada por um baixo-relevo que retrata a absolvição concedida por Gregório VII a Henrique IV, imperador da Alemanha, a pedido de Matilde e de outros personagens, em 25 de janeiro de 1077, na fortaleza de Canossa.

Chega-se assim à capela do Sacramento, rica em mármores e mosaicos. Ao lado do altar, uma escada leva ao palácio pontifício. Este altar é dedicado a São Maurício e companheiros mártires, patronos principais do Piemonte. As duas colunas em espiral de um só bloco que ornamentam o altar são duas das doze que se acredita terem sido trazidas a Roma do antigo templo de Salomão. No chão diante do altar, pode ser visto a sepultura em bronze de Sisto IV, Della Rovere. Ele foi executado por ordem de Júlio II, seu sobrinho, e representa as virtudes e a ciência próprias do falecido. Nele estão contidas as cinzas dos dois papas.

Ao sair da capela, à direita está a sepultura de Gregório XIII, Buoncompagni. O adornam duas estátuas: a Religião e a Fortaleza; ao centro, um grande baixo-relevo representa a reforma do calendário, por isso chamada Gregoriana. Aqui estão retratados uma grande quantidade de personagens ilustres que participaram daquela obra, todos em ato de reverenciar o Pontífice. Em frente, dentro de uma urna de estuque, repousam os ossos de Gregório XIV, da família Sfrondato. Aqui termina a nave menor e se entra na cruz grega segundo o desenho do Buonarroti.

Saindo da nave, à direita encontra-se a Capela Gregoriana. Acima do altar é venerada uma antiga imagem de Nossa Senhora dos tempos de Pascoal II. Abaixo repousa o corpo de São Gregório Nazianzeno, transferido por ordem de Gregório XIII da igreja das monjas de Campo Marzio. Prosseguindo o caminho chega-se ao monumento fúnebre de Bento XIV, Lambertini, erguido pelos cardeais que foram criados por ele. Nos dois lados da sepultura erguem-se duas magníficas estátuas que representam o Desinteresse e a Sabedoria, as duas virtudes mais luminosas deste papa. A estátua do Pontífice, em pé, abençoa o povo com gesto majestoso. Este trabalho é tão bem executado que basta olhar para o Papa para reconhecer a sua grandeza e a altivez de sua alma. Em frente está o altar de São Basílio Magno, e sobre ele um precioso quadro em mosaico do imperador Valente desmaiado na presença do Santo, enquanto o observava celebrar a missa.

Chega-se então à tribuna. O primeiro altar à direita é dedicado a São Venceslau, mártir, rei da Boêmia; o do meio é consagrado aos santos Processo e Martiniano, guardas do cárcere Mamertino, convertidos à fé por São Pedro, quando o Apóstolo estava preso. Desses santos toma nome o complexo; seus corpos repousam sob o altar. Três preciosos baixos-relevos representam São Pedro na prisão, libertado pelo Anjo (o do meio), São Paulo pregando no Areópago (o da direita), o terceiro os santos Paulo e Barnabé, considerados divindades pelos habitantes de Listra.
Encontra-se então a sepultura de Clemente XIII, Rezzonico, escultura de Antonio Canova. É uma obra-prima. O quadro do altar que fica em frente ao monumento retrata São Pedro em perigo de afundar, sustentado pelo Redentor. Mais adiante está o altar de São Miguel, depois o de Santa Petronila, filha de São Pedro. Esta santa é representada em um mosaico que narra a exumação de seu cadáver para mostrá-lo a Flaco, nobre romano, que a havia pedido em casamento. Na parte superior é retratada a alma dela que, através de suas orações conseguiu morrer virgem, e é acolhida por Jesus Cristo. Mais adiante, vê-se o sarcófago de Clemente X, Altieri: o baixo-relevo representa a abertura da porta santa no Jubileu de 1675. O altar é coroado pelo quadro de São Pedro que, às orações de uma multidão de pedintes, ressuscita a viúva Tabita.

Através de dois degraus de pórfiro, que faziam parte do altar-mor da antiga basílica, se sobre ao Altar da Cátedra. Um surpreendente grupo de quatro estátuas de metal sustenta a sede pontifical. As duas da frente representam dois padres latinos, Ambrósio e Agostinho; as duas de trás, os padres gregos, Atanásio e João Crisóstomo. O peso desses grupos totaliza 219.161 libras de metal. A cadeira em bronze reveste, como preciosa relíquia, a de madeira entalhada com vários baixos-relevos de marfim. Esta cadeira é a do senador Pudente que serviu o Apóstolo Pedro e muitos outros papas depois dele.

Acima do altar da Cátedra, como segundo plano está representado, em tela, o Espírito Santo entre vidros coloridos e radiantes, de modo que, a quem o olha, parece ver uma estrela de ouro resplandecente. Abaixo, à esquerda de quem olha, está o magnífico sepulcro de Paulo III, Farnese, monumento muito precioso por suas esculturas. A estátua do Pontífice sentado sobre a urna é de bronze, as outras duas estátuas, de mármore, e representam a Prudência e a Justiça. Em frente, está a sepultura do Papa Urbano VIII, cuja estátua é de bronze. A Justiça e a Caridade estão aos seus lados, esculpidas em mármore branco. Sobre a urna vê-se a imagem da morte em ato de escrever, em um livro, o nome do Pontífice. Aqui interrompemos a visita: estávamos cansados, a visita durou das onze da manhã às cinco da tarde.

Roma. Santa Maria della Vittoria
Do Quirinale, olhando para o sul, vê-se a via de Porta Pia, assim chamada pelo Papa Pio IV, que para embelezá-la executou não poucas obras. Ao longo desta estrada, perto da fonte Acqua Felice, ergue-se à esquerda a igreja de S. Maria della Vittoria, edificada por Paulo V em 1605 e assim chamada por causa de uma imagem milagrosa de Nossa Senhora levada para lá pelo P. Domenico, dos Carmelitas Descalços. A esta imagem, ou melhor, à proteção de Maria, Maximiliano, duque da Baviera, deve a grande vitória obtida em poucos dias contra os protestantes, que com um exército numerosíssimo haviam colocado o reino da Áustria de pernas para o ar. A prodigiosa imagem se conserva sobre o altar maior. Nas suas bordas estão penduradas as bandeiras tiradas dos inimigos: um glorioso monumento à proteção de Maria.

Em memória da libertação de Viena, foi instituída a festa do Nome de Maria, que é celebrada por toda a cristandade no domingo entre a oitava do nascimento de Maria. Aconteceu no dia 12 de setembro de 1683, sob o pontificado de Inocêncio XI. Nesta mesma igreja, celebra-se uma especial solenidade no segundo Domingo de novembro, recordando a famosa vitória obtida pelos cristãos contra os turcos, em Lepanto, no dia 7 de outubro de 1571, sob Pio V. Também algumas bandeiras tiradas dos turcos estão penduradas como troféus nos beirais desta igreja.
Diante de Santa Maria della Vittoria encontra-se a fontana di Termini, chamada fonte de Moisés, porque em um nicho está esculpida a estátua de Moisés que, com a vara na mão, faz jorrar água da pedra. É também chamada de Acqua Felice, em homenagem ao Frei Felice, que é o nome de Sisto V quando estava no convento.

A ilha Tiberina [L’isola Tiberina]À tarde, decidimos ir com o Conde De Maistre visitar a grande obra de São Miguel do outro lado do Tibre. Portanto, tivemos que atravessar o rio na altura de uma ilhota chamada Tiberina ou também Licaonia, em homenagem a um templo dedicado a Júpiter Licão. Esta ilha teve origem assim. Quando Tarquínio foi expulso de Roma, o Tibre estava quase sem água, deixando expostos alguns bancos de areia. Os romanos, movidos por ódio contra este rei, foram aos seus campos, cortaram o trigo e outros cereais que estavam próximos da maturação, e jogaram tudo no Tibre. A palha dos cereais se misturou com aquela areia e, uma vez se misturando com a lama do rio, se consolidou a tal ponto que pôde ser cultivada e habitada. Nesta ilha, os pagãos ergueram um templo em honra de Esculápio; mas, em 973, o corpo de São Bartolomeu foi transferido para o templo, e hoje repousa na urna sob o altar-mor.

Passado o Tibre e continuando em direção a São Miguel, encontra-se à direita a igreja de Santa Cecília [chiesa di S. Cecilia], edificada no local onde era sua casa. Urbano I, por volta da metade do terceiro século, a consagrou, e São Gregório Magno a enriqueceu com muitos objetos preciosos. Ao entrar, à direita, está a capela onde era o banheiro de Santa Cecília, no qual se diz que ela recebeu o golpe mortal. O altar-mor, protegido por uma grade de ferro, guarda o corpo da santa. Acima da urna foi esculpida uma comovente estátua em mármore, que a representa deitada e vestida como foi encontrada na sua sepultura.

Chegando ao Refúgio São Miguel, tivemos uma audiência com o Cardeal Tosti, que nos contou vários episódios que lhe aconteceram na época da república. Ele também foi forçado a viver por um tempo longe do refúgio para não ser vitimado por algum atentado. Entre as várias coisas roubadas deste pio purpurado, naquela triste circunstância, estão três caixas de tabaco muito preciosas, seja pela antiguidade seja pela procedência. Levadas aos membros do triunvirato, Mazzini pensou em ficar com uma para si e presentear as outras duas a seus companheiros. Mas eles não se atreveram a ficar com elas. Mazzini resolveu tudo e graciosamente colocou as três no bolso!

Campidoglio
Ao longo do trajeto de volta, a meio caminho se ergue a colina mais alta de Roma, o Campidoglio, assim chamado de caput Toli, cabeça de Tolo, que foi encontrado enquanto Tarquínio, o Soberbo, fazia aplainar o cume para construir nele uma fortaleza. Subimos uma longa escadaria, cuja extremidade se elevam duas estátuas colossais representando Castor e Pólux. O plano que forma a praça era antigamente chamado inter duos lucos, porque ficava entre os bosques que cobriam os dois picos. Aqui Rômulo havia criado um abrigo para os povos vizinhos que quisessem refugiar-se. O Campidoglio de hoje não tem mais a imponência bélica, mas é uma praça majestosa contornada por palácios que abrigam museus, e onde se tratam os assuntos municipais. Em uma parte desta praça existia o templo de Júpiter Ferétrio, assim chamado pelas armas dos vencidos que os vencedores iam pendurar no altar daquele templo.

No meio da praça se ergue a famosa estátua equestre de Marco Aurélio num gesto de pacificador. Ela é a mais bela entre as mais antigas estátuas de bronze que se conservaram intactas. Uma parte dos grandes edifícios que cercam a praça constitui o palácio senatorial, fundado por Bonifácio IX em 1390 sobre o mesmo terreno onde estava o antigo senado dos romanos. Ao lado encontra-se a fonte Acqua Felice, que é adornada por duas estátuas deitadas do Nilo e do Tibre. Daqui, através de uma pequena escada, chega-se à torre do Campidoglio, erguida em forma de campanário no mesmo lugar onde, antigamente, se montavam os observadores para admirar Roma e controlar os inimigos que tentassem se aproximar da cidade. […].
Na parte mais elevada, em direção ao oriente, havia o templo de Júpiter Capitolino, que era chamado de Júpiter ÓtimoMáximo, e havia sido erguido por Tarquínio, o Soberbo, sobre as fundações preparadas por Tarquínio Prisco, que havia feito voto durante a guerra contra os sabinos. Justamente enquanto se fazia a escavação foi encontrado o caput Toli.

Santa Maria in Aracoeli
Onde era o templo de Júpiter Capitolino agora está a majestosa igreja de Santa Maria in Aracoeli [maestosa chiesa di Santa Maria in Aracoeli], edificada no século VI da era cristã. Por algum tempo foi chamada de Santa Maria in Campidoglio, pelo lugar onde se erguia. Foi então chamada Aracoeli pelo seguinte fato. Tendo um raio atingido o Campidoglio, Otaviano Augusto, temendo alguma desgraça, mandou interrogar o oráculo de Delfos. […]. Por este fato, e por algumas ditas das Sibilas, que diziam respeito ao nascimento do Salvador, Augusto fez erguer um altar intitulado: Ara primogeniti Dei, altar do primogênito de Deus. Daí derivou o nome de Santa Maria in Aracoeli, depois que no local foi erguida uma igreja em honra da Mãe de Deus. O interior tem três naves divididas por 22 colunas de mármore que já foram do templo de Júpiter Ferétrio. O altar-mor é digno de especial observação, porque sobre ele se venera uma imagem de Maria, que se pensa ser de São Lucas. Esta, nos tempos de São Gregório Magno, foi levada processionalmente por Roma para obter a libertação da peste. O fato é representado em uma pintura no pilar ao lado do altar. Na interseção da cruz está a capela de Santa Helena, onde foi erguida a Ara Primogeniti. A mesa do altar é uma grande urna de porfírio, dentro da qual foram depositados os corpos de Santa Helena, mãe de Constantino, e dos santos Abundância e Abundâncio.

Em uma sala próxima à sacristia se conserva uma efígie milagrosa do Menino Jesus. As faixas que o revestem são enriquecidas com pedras preciosas. Ela é exposta em veneração durante as festas de Natal, em um belo presépio que é feito em uma capela da igreja. Junto do Menino estão também as figuras de Augusto e da Sibila, lembrando a tradição que afirma que a Sibila Cumaea previu o nascimento do Salvador e, por isso, Augusto erigiu um altar.

Saindo de Aracoeli e indo em direção à parte ocidental do Campidoglio encontra-se a rocha Tarpeia que ocupava a parte voltada para o Tibre, e assim chamada por causa da Virgem Tarpeia, que foi morta traiçoeiramente na guerra dos sabinos. Os traidores da pátria eram jogados do alto desta rocha. Aqui foram martirizados muitos cristãos que, em ódio à fé, foram jogados para baixo. Ali perto estava a Cúria e a cabana de Rômulo, onde, diz-se, ele aguardou o responso dos abutres. […].

Descendo, um pouco mais abaixo está o templo da Concordia [tempio della Concordia], construído por Camilo no ano 387 de Roma. […]. Perto deste templo, na parte esquerda de quem desce, estava o de Júpiter Tonante, do qual restam três colunas de mármore. Foi erguido por Augusto no penhasco capitolino e dedicado a Júpiter, em agradecimento por ter escapado ao raio que matou o servo que o precedia.

Carcere Mamertino
Na manhã de 2 de março, junto com a família De Maistre, fomos visitar o carcere Mamertino, que está aos pés do Campidoglio, na sua parte ocidental. Esta prisão é assim chamada de Mamerto ou Anco Március, quarto rei de Roma, que a fez construir para espalhar terror na plebe, e assim impedir os furtos e os assassinatos. Sérvio Túlio, sexto rei de Roma, acrescentou sob este outro cárcere, que foi chamado Tulliano. Ele tem dois subterrâneos, que na abóbada tem uma abertura onde mal passava um homem. Através desta se desciam com uma corda os condenados. […].

Aqui brota uma fonte de água que se diz ter sido milagrosamente feita jorrar por São Pedro quando, junto com São Paulo, estava preso ali. O príncipe dos Apóstolos usou desta água para batizar os santos Processo e Martiniano, guardiões da prisão, junto com outros 47 companheiros, todos martirizados. Esta água tem aspectos milagrosos. Seu gosto é natural. Nunca aumenta e nunca diminui de volume, qualquer que seja a quantidade que se retire dela. Dois senhores ingleses, quase para zombar dos católicos, quiseram tentar esvaziar a pequena fonte da água, que se assemelha a um recipiente de pequenas dimensões. Eles se cansaram, assim como seus amigos, mas a água permaneceu sempre no mesmo nível. Contam-se muitas curas milagrosas obtidas pelo seu uso. Ao lado da fonte está colocada uma coluna de pedra à qual foram atados os dois príncipes dos Apóstolos. Ao lado da coluna está localizado um altar pequeno e baixo onde, com grande consolação, celebrei a missa, à qual participaram a família De Maistre e outras pessoas piedosas. Acima do altar, um baixo-relevo representa Paulo pregando e Pedro batizando os guardas. […].

Em um canto do primeiro andar da prisão nota-se na parede a impressão de um rosto humano. Diz-se que São Pedro recebeu um forte tapa de um bandido, de modo que batendo com o rosto na parede deixou impresso seu rosto, que milagrosamente se conservou. Acima desta figura está esculpida esta antiga inscrição: “Nesta pedra Pedro bateu a cabeça, golpeado por um bandido, e o prodígio permanece”. Acima desta prisão foi edificada uma igreja, e sobre esta ainda outra, dedicada a São José. Aqui é a sede da confraria dos carpinteiros. Os membros se reúnem nos dias festivos, assistem às funções sagradas e providenciam o que é necessário para a manutenção da igreja e para a limpeza do cárcere. Antigamente, para chegar à entrada da prisão, descia-se por uma escada da qual no seu final estava a abertura por onde eram precipitados os condenados. Aquelas escadas foram chamadas Gemonie por causa dos gemidos dos condenados. […].

Cidade do Vaticano. Devoções jubilares
O dia 3 de março estava reservado para visitar São Pedro. Partindo às seis e meia de casa, com um frescor que alegrava a vida e tornava céleres nossos passos, tomamos a direção da colina vaticana. Chegando à Ponte Elio ou Ponte Sant’Angelo, sobre a qual se passa atravessando o Tibre, recitamos o Credo. Os Pontífices concedem cinquenta dias de indulgência àqueles que recitam o Símbolo dos Apóstolos enquanto passam sobre esta ponte. É chamada Elio por causa de Elio Adriano, que a construiu. Mas também é chamado de ponte Sant’Angelo da Castel Sant’Angelo, que é o primeiro edifício que se encontra na margem oposta.

Diremos algo sobre este castelo. O imperador Adriano quis erguer uma grande sepultura na margem direita do Tibre. Por sua largura, comprimento e altura, chamaram-no de Mole Adriana. Quando o imperador Teodósio fez retirar as colunas do mausoléu de Adriano para dotar a basílica de São Paulo, esta construção ficou sem a metade superior e sem colunas. No ano 537, as tropas de Belisário atacaram os godos para afastá-los de Roma, e então quase todos os restos daquele mausoléu foram reduzidos a pedaços. No século X foi chamado Castro e Torre de Crescencio por um certo Cescenzo Nomentano, que se apoderou dele e o fortificou. Pouco depois, a história lhe deu o nome de Castel Sant’Angelo, derivando talvez de uma igreja dedicada ao anjo Miguel. […]. Mas a opinião mais provável permanece aquela que narra de uma procissão de São Gregório Magno para obter da Virgem a libertação da peste: naquela ocasião apareceu no alto da Mole um anjo que recolocava a espada na bainha, sinal de que o flagelo estava prestes a cessar. Então, Castel Sant’Angelo foi reduzido a uma fortaleza e é a única de Roma.

Continuando nosso caminho, chegamos à grande praça de São Pedro. Passando diante do obelisco, tiramos o chapéu, porque os Papas concederam cinquenta dias de indulgência a quem faz reverência ou descobre a cabeça ao passar perto daquele obelisco, sobre o qual foi colocada uma cruz que contém um pedaço da Santa Cruz de Jesus.
Eis-nos, então, de volta à Basílica Vaticana. Já havíamos visitado a metade e mais a tribuna, que forma como o coro do altar papal, localizado no meio da interseção da cruz, em frente à cátedra de Pedro. Este coro foi feito por Clemente VIII e foi por ele consagrado no ano de 1594: abriga o altar já edificado por São Silvestre. Sendo o altar papal, nele celebra apenas o Papa, e quando algum outro deseja usá-lo, é necessário um “Breve” apostólico. Nos quatro lados se erguem quatro grandes colunas em espiral que sustentam um baldaquino ornamentado com frisos, todo de bronze. A altura deste baldaquino do piso do chão iguala a dos mais altos prédios de Turim.

A tumba de Pedro: curiosidades de um santo
Diante do altar papal, através de uma escada dupla de mármore, desce-se ao nível da Confissão. Na extremidade das escadas estão colocadas duas colunas de alabastro de Orte, um material bastante raro, transparente como diamante. Cento e doze lâmpadas ardem continuamente ao redor do venerando lugar. No fundo, abre-se um nicho formado no antigo oratório erguido por São Silvestre, onde São Anacleto “ergueu uma memória a São Pedro”. Aqui repousa o corpo do Príncipe dos Apóstolos. Nas paredes laterais abrem-se duas portas munidas de um portão de ferro, de onde se passa para as sagradas grutas. Bem em frente ao nicho, no dia 28 de novembro de 1822, foi colocada a estátua em mármore de Pio VI, que, de joelhos, está em fervorosa oração. Esta é uma das mais belas obras de Antonio Canova. Pio VI costumava, durante o dia e às vezes até à noite, ir até o túmulo de São Pedro para rezar. Em vida, mostrou o vivo desejo de ser sepultado ali e, ao morrer, quis que seu desejo fosse atendido. Mas, após uma escavação de pouca profundidade, foi descoberta uma sepultura sobre a qual estava escrito: Linus episcopus. Imediatamente, tudo foi colocado em ordem, e o Pontífice foi sepultado em outro canto da igreja. No lugar escolhido, em vez do corpo, foi colocada a estátua da qual falamos. Nós vimos e tocamos com as mãos o que há aqui de precioso, mas não pudemos ver o corpo do primeiro papa, porque há séculos o sepulcro não foi mais aberto, por temor de que alguém tentasse quebrar alguma relíquia.

Acima deste túmulo foi erguido um rico altar: aqui tive a consolação de celebrar a santa missa. Este altar, com uma pequena capela anexa, recebe luz de algumas claraboias cobertos com grades de metal. Durante a construção da basílica, ocorreu um fato prodigioso, relatado por uma testemunha ocular. Antes que o teto fosse terminado, caíram chuvas tão impetuosas que as águas inundaram o piso da basílica até um palmo de altura. Apesar de tanta abundância, a água não ousou se aproximar do altar da Confissão, e nem desceu no oratório inferior através das três claraboias mencionadas, porque, chegando perto, parou, permanecendo suspensa, de modo que nem uma gota chegou a molhar aquele santuário. Depois de observar cada objeto, olhar cada canto, as paredes, os tetos, o piso, perguntamos se não havia mais nada para ver.
– Nada mais, nos responderam.
– Mas o túmulo do santo apóstolo, onde está?
– Aqui embaixo. Está situado no mesmo lugar que ocupava quando a antiga basílica estava de pé […].
– Mas gostaríamos de vê-lo.
– Não é possível […].
– Mas o papa disse que poderíamos ver tudo. Se ao estar com ele novamente e ele nos perguntar se vimos tudo, eu ficaria triste por não poder responder afirmativamente.
O monsenhor [que nos acompanhava] mandou buscar algumas chaves e abriu uma espécie de armário. Aqui se abria uma cavidade que descia ao subterrâneo. Estava tudo escuro.
– Está satisfeito? Disse-me o monsenhor.
– Ainda não, gostaria de ver.
– E como quer fazer?
– Mande buscar uma vara e uma tocha. Trouxeram a vara e a tocha, que se apagou imediatamente ao ser descida naquele ar sem oxigênio. E a tocha não chegava até o fundo. Então foi trazida uma outra vara, que tinha na extremidade um gancho de ferro. Com ela se conseguiu tocar a tampa do túmulo de São Pedro. Estava a sete/oito metros de profundidade. Batendo levemente, o som que chegava até nós indicava que o gancho estava tocando ora no ferro, ora no mármore. E isso confirmava o que haviam escrito os antigos historiadores.

Seria necessário um volume para descrever as coisas vistas. O que existia na basílica constantiniana se conserva em lápides laterais, ou nos pisos ou nos tetos dos subterrâneos. Destaco apenas uma coisa, a imagem de Santa Maria della Bocciata, muito antiga, colocada em um altar subterrâneo. O nome deriva do seguinte fato. Um jovem, por desprezo ou, talvez, inadvertidamente, atingiu um olho da figura de Maria com uma bola. Ocorreu um grande prodígio. Sangue brotou da fronte e do olho que, ainda vermelho, se vê sobre as bochechas da imagem. Duas gotas espirraram lateralmente sobre a pedra que é zelosamente protegida atrás de dois portões de ferro.

Altares, capelas, sepulturas
Acima do altar papal e do túmulo de São Pedro se ergue a imensa cúpula que encanta quem a observa. Quatro grandes pilares a sustentam: cada um deles tem cento e cinquenta passos, cerca de vinte e cinco trabucos (70,85 m, n.d.r.), de circuito. Em tudo ao redor daquela alta cúpula há elegantes trabalhos em mosaico executados pelos mais célebres autores. Nos pilares estão esculpidos quatro nichos chamados Galeria das Relíquias, que são a Sagrada Face da Verônica, um pedaço da Santa Cruz, a Lança Sagrada e o crânio de Santo André. Entre estas é célebre a relíquia da Sagrada Face, que se crê ser aquele pano do qual se serviu o Divino Salvador para enxugar o rosto pingando sangue. Ele deixou a sua face impressa nele, que o deu a Santa Verônica, enquanto em lágrimas o acompanhava Calvário. Pessoas dignas de fé contam que esta Sagrada Face, em 1849, suou sangue mais vezes, aliás, mudou de cor, a ponto de variar as primeiras feições. Esses fatos foram escritos, e os cônegos de São Pedro o testemunham.

Partindo do altar papal e prosseguindo em direção à parte meridional encontra-se o sepulcro de Alexandre VIII, dos Ottobuoni. Foi erguido pelo sobrinho, o Cardeal Pietro Ottobuoni. A estátua do Papa sentado no trono é de metal. Duas estátuas em mármore estão nos dois lados, representando a Religião e a Prudência. A urna é coberta pelo baixo-relevo da canonização de Lorenzo Giustiniani, Giovanni da Capistrano, Giovanni de San Facondo, Giovanni di Dio e Pasquale Bajlon, feita por Alexandre VIII em 1690. Ao lado se ergue o altar de São Leão Magno, sobre o qual se admira o surpreendente baixo-relevo do Pontífice que vai ao encontro do feroz Átila. Acima estão figurados Pedro e Paulo, ao lado do Papa Átila, apavorado pela aparição dos dois e em ato de se curvar ao Pontífice. Em uma urna sob o altar repousa o corpo do santo Papa e Doutor da Igreja. À frente está o túmulo de Leão XII, morto em 1829, que tinha tanta veneração por este seu glorioso antecessor, que quis ser sepultado ao lado dele. […]

O altar que se segue é dedicado à Vergine della Colonna, assim chamada porque se venera a imagem de Maria pintada sobre uma coluna da antiga basílica constantiniana. Foi colocada ali em 1607. O altar guarda os corpos de Leão II, III e IV. Continuando o giro pela linha meridional, encontramos à direita a sepultura de Alexandre VII, Ghigi, com quatro estátuas: JustiçaPrudênciaCaridade e Verdade. Como este pontífice tinha sempre presente o pensamento da morte, o escultor estendeu uma colcha em relevo, sob a qual a figura da morte mostra uma ampulheta, ou seja, um relógio de areia, que está prestes a terminar sua carga. O Papa está ajoelhado, rezando de mãos postas. O altar à esquerda é dedicado aos apóstolos Pedro e Paulo. Está representada a queda de Simão, o Mago. Em frente está o altar dos Santos Simão e Judas, que aqui repousam. O altar à direita, por sua vez, é dedicado a São Tomé e guarda o corpo de Bonifácio IV, enquanto o da esquerda conserva os restos de Leão IX. Em frente à porta da sacristia, o altar dos Santos Pedro e André apresenta, em precioso mosaico, a morte de Ananias e Safira.

Chega-se assim à capela Clementina, cujo altar, dedicado a São Gregório Magno, tem no alto um belo mosaico do santo no ato de convencer os incrédulos. Sob o altar se venera o seu corpo. Acima da porta, que conduz até o órgão, está o monumento fúnebre de Pio VII. O Pontífice, sentado sobre uma rica cadeira e vestido com as vestes pontifícias, está abençoando. As estátuas colocadas aos lados representam a Sabedoria e a Fortaleza. Antes de chegar à nave lateral está o altar da Transfiguração, cujo mosaico apresenta a transfiguração do Salvador no Monte Tabor.

A nave menor, do lado esquerdo
Entrando na nave menor, em ambos os lados estão duas sepulturas, à direita a de Leão XI, dos Médici. Um baixo-relevo mostra o Pontífice que absolve Henrique IV, rei da França. […]. Mais abaixo há rosas esculpidas com o lema: Sic floruit, para indicar a caducidade da vida e simbolizar a brevidade do pontificado de Leão XI, que foi de apenas 21 dias.
O sarcófago à esquerda é de Inocêncio XI, Odescalchi. O baixo-relevo sobreposto retrata a libertação de Viena dos turcos, ocorrida sob seu pontificado. Avançando pela nave, chega-se à capela do coro, enriquecida com mosaicos e pinturas. Sob o altar repousa o corpo de São João Crisóstomo. Esta capela tem um subterrâneo onde se conservam as cinzas de Clemente XI. É chamada Capela Sistina por causa de Sisto IV, que erigiu outra no mesmo local da antiga basílica. À direita, acessa-se o lugar do coro e à Capela Giulia, assim chamada por causa de Júlio II, que a construiu. Acima desta porta existe uma urna de estuque que abriga as cinzas de Gregório XVI, morto em 1846. Esta urna está reservada para acolher o cadáver do último pontífice até que lhe seja dada uma sepultura.

O sepulcro de Inocêncio VIII, da família Cibo, está em frente. Duas são as figuras daquele Papa: uma sentada com o ferro da lança na mão, em alusão àquela com a qual foi ferido Jesus, enviada a ele como presente por Bajasetto II, imperador dos turcos; a outra deitada, sob a primeira. […]. De frente à portinha que leva à escada da cúpula está o cenotáfio de Tiago III, rei da Inglaterra, da família Stuart, morto em Roma no dia 1º de janeiro de 1766, e de seus dois filhos Carlos III e Henrique IX, cardeal, duque de York. Os três bustos em baixo-relevo são de Antonio Canova.
A última capela é a do Batistério. A pia batismal é de porfírio e era a tampa da urna do imperador Otão II, que foi aqui transportada quando suas cinzas foram colocadas nas grutas vaticanas […].

Roma. Sant’Andrea al Quirinale
Já que o tempo de visita terminava ao meio-dia e meia e visto que estávamos com fome, combinamos com o senhor Carlo, que nos guiava, de adiar para uma outra ocasião a subida à cúpula e a visita ao Palácio Vaticano. Após o almoço e algumas horas de descanso, demos uma olhada no Quirinale e nas coisas mais importantes próximas à nossa moradia. O Quirinale é uma das sete colinas da antiga Roma, assim chamada pelo povo Quirite, que vivia aqui, e por um templo dedicado a Rômulo, venerado com o nome de Quirino. À nossa esquerda, ao prosseguir em direção à praça Monte Cavallo, está a igreja de Santo André[chiesa di Sant’Andrea], onde hoje está o noviciado dos Jesuítas. Ela conserva, em uma capela dedicada a São Estanislau Kostka, o corpo do santo dentro de uma urna de lápis-lazúli, adornada com mármores preciosos. Ao lado desta igreja está o mosteiro das Dominicanas. Acredita-se que essas duas construções tenham surgido sobre as ruínas do templo de Quirino. À direita da estrada se ergue o majestoso Palácio do Quirinale, iniciado por Paulo III há cerca de 300 anos, e concluído por seus sucessores. Sua bela arquitetura é adornada com esculturas, pinturas e mosaicos de grande valor. O Papa reside nele por uma parte do ano. O Palácio tem um espaçoso jardim de cerca de um milha de perímetro. Entre as outras maravilhas que podem ser admiradas está um órgão que toca alimentado pela força da água que corre aqui.

Diante do Quirinale está a praça de Monte Cavallo, assim chamada por causa de dois cavalos colossais em bronze que representam Castor e Pólux. Pio VI fez erguer um obelisco no meio desta praça. Ele é um trabalho executado por ordem de Smarre e Efre, príncipes do Egito, e transportado a Roma pelo imperador Cláudio. Não tem hieróglifos. Ao sul domina o magnífico Palácio Rospigliosi, erguido onde antigamente estavam as termas de Constantino. Os amantes das belas artes podem aqui visitar muitas obras-primas da pintura e da escultura.

Santa Croce in Gerusalemme
O dia 4 de março estava reservado à basílica de Santa Croce in Gerusalemme [basilica di S. Croce in Gerusalemme]. O tempo estava nublado e, após percorrermos um pouco de caminho, fomos surpreendidos pela chuva. Não tendo guarda-chuva, chegamos molhados como dois ratos; mas a consolação sentida na visita nos compensou tanto pela água quanto pelo desconforto sofrido. Esta é uma das sete basílicas que se visitam para ganhar indulgências. Fundada por Constantino, o Grande, onde se erguia o palácio chamado Sassorio, foi por isso chamada de Basílica Sassoriana, e foi erguida em memória da descoberta da Santa Cruz, feita por Santa Helena, mãe do imperador, em Jerusalém. Aquela princesa fez transportar muita terra do Calvário, retirada do local onde foi encontrada a Cruz de Cristo. O edifício recebeu o nome de Santa Cruz pela parte considerável da santa Madeira que ali se conserva, e foi acrescentado em Jerusalém porque esta santa relíquia, junto com muitas outras, foi transportada daquela cidade. A igreja foi consagrada pelo Papa São Silvestre. Sob o altar-mor repousam os corpos de São Cesário e Santo Anastácio, mártires […].

Em frente ao altar está a capela Gregoriana, privilegiada porque se pode lucrar a indulgência plenária aplicável às almas do purgatório, tanto para aqueles que presidem a missa quanto para aqueles que dela participam. Neste altar, com grande consolação, celebrei também eu. Ao lado da igreja ergue-se o convento dos Cistercienses. O Padre Abade é um certo Marchini, piemontês, que nos tratou com muita cortesia. Entre outras coisas, ele nos fez visitar a biblioteca, rica em pergaminhos antigos e outras obras […].

Um dia de chuva
Já que o dia 5 de março foi chuvoso, passamos quase todo o tempo escrevendo. Há algo singular em Roma, que chove e faz sol ao mesmo tempo, de modo que em certas épocas do ano é preciso estar continuamente munido de guarda-chuva para se proteger ou do sol ou da chuva. Às dez horas deste dia faleceu o P. Lolli, reitor do noviciado dos jesuítas, na igreja de Sant’Andrea a Monte Cavallo, um piemontês que residiu por muito tempo em Turim, onde se tornou célebre pela pregação e pela solicitude no apostolado do confessionário. A rainha da Sardenha, Maria Teresa, o havia escolhido como seu confessor […].

Neste dia, soubemos que as doenças em Roma se multiplicaram e que a mortalidade atual é quatro vezes superior à média. Somente nos meses de janeiro e fevereiro morreram cerca de 6.600 pessoas; um número bastante alto, considerando que a população é de cerca de 130 mil habitantes. Quase de noite saí para fazer a barba. Entrei em uma barbearia e fui atendido bastante bem; mas prometi a mim mesmo de não voltar mais lá visto que foram muitos os empurrões e sacudidas que o barbeiro me deu com suas mãos grandes que ele teria deslocado meus dentes e mandíbulas se não tivessem raízes bem firmes.

O Refúgio de São Miguel
De acordo com o convite que nos foi feito pelo Cardeal Tosti, no dia 6 de março fomos com a família De Maistre visitar o Refúgio de São Miguel. Além do que disse na última vez, posso acrescentar o seguinte. O primeiro gesto de cortesia que nos foi oferecido foi um suntuoso café da manhã, do qual, no entanto, não pudemos participar, pois já o havíamos feito antes de partir, e sendo dia de jejum, não podíamos mais comer até o almoço. Assim, nos limitamos a uma pequena xícara de chocolate, que Sua Eminência nos disse ser compatível com o jejum. Também nos foi oferecida uma bebida de excelente sabor de tangerina, uma espécie de vinho feito com frutas secas e misturadas com água e açúcar. Somente Rua, não estando obrigado ao jejum, comeu algo mais sólido.

Depois, começamos a visita àquele espaçoso internato que acolhe mais de oitocentas pessoas. O Cardeal Tosti nos acompanhou por toda parte. Paramos especialmente para ver o trabalho dos jovens. Aqui aprendem os mesmos ofícios que aprendem conosco: a maioria se ocupa com desenho, a pintura e a escultura; e muitos trabalham em uma tipografia interna. O Santo Padre, para ajudar o Refúgio, concedeu-lhe o privilégio da exclusividade de exclusivamente os livros escolares que são usados nos Estados Pontifícios. Acima do edifício, há um terraço com uma vista magnífica: olhando para o oeste, avista-se o acampamento dos franceses que vieram libertar Roma. […]. Às doze e trinta, quando os meninos já estavam almoçando e o Cardeal já demostrando estar cansado, nos despedimos […].

Santa Maria em Cosmedin e a Boca da Verdade
Como de costume, chovia bastante e, como eu e Rua havíamos apenas um guarda-chuva muito pequeno, nos molhamos muito. Atravessamos o Tibre por uma ponte chamada Ponte Rotto porque, havia se arruinado, e foi substituída por uma ponte de ferro muito semelhante àquela que temos sobre o Pó, em Turim. Antigamente, chamava-se ponte Coclite, porque é a mesma em que Horácio Coclite opôs uma histórica resistência ao exército de Porsenna, até que a ponte foi destruída e ele, então, se jogou no Tibre, atravessando a nado até a outra margem, entre as flechadas dos inimigos maravilhados.

Aqui encontramos uma rua chamada Boca da Verdade [Bocca della Verità], porque no final da mesma havia o lugar onde eram levados aqueles que deviam fazer um juramento. Agora há uma igreja chamada S. Maria in Cosmedin, palavra que significa ornamento, porque foi magnificamente adornada pelo papa Adriano I. Em seu interior conserva-se a cátedra que foi usada por Santo Agostinho quando ensinava Retórica. Aguardamos sob o vestíbulo até que parasse a chuva, que já estava inundando todas as ruas. Enquanto aguardávamos, vimos a praça que também se chama Bocca della Verità.

Os vaqueiros
Havia muitos bois atrelados que pastavam, expostos à chuva, ao barro e ao vento. Os vaqueiros se abrigaram sob o mesmo vestíbulo, sentando-se para almoçar com um apetite invejável. Em vez de sopa ou alguma iguaria, tinham um pedaço de bacalhau cru, do qual cada um tirava um pedaço. Algumas broas de milho e centeio eram o seu pão. Água era a bebida. Ao perceber neles um ar de simplicidade e bondade, me aproximei para conversar com eles.
– Estão com muito apetite?
– Muito, respondeu um deles.
– Basta para vocês essa comida para matar a fome e sustentá-los?
– Sim, basta. E graças a Deus podemos tê-la, já que por sermos pobres
não podemos pretender mais do que isso.
– Por que não levam aqueles bois ao estábulo?
– Porque não temos.
– Deixam sempre eles expostos ao vento, à chuva e ao granizo, dia e noite?
– Sim, sempre.
– Fazem a mesma coisa em seus povoados?
– Sim, fazemos o mesmo, porque temos poucos estábulos. Por isso, faça sol, vento, faça neve, seja dia, seja noite estão sempre ao relento.
– E as vacas e os bezerros pequenos, também eles ficam expostos às intempéries?
– Sim, também. Entre nós temos este costume: os animais de estábulo estão sempre no estábulo, e os que começam a ficar fora, estarão sempre fora.
– Moram muito longe daqui?
– Quarenta milhas.
– Nos dias festivos, podem assistir às funções sagradas?
– Oh! Sem dúvida! Temos a nossa Capela, temos o padre que celebra a missa, faz a pregação e a catequese, e todos, mesmo distantes, fazem questão de participar.
– Alguma vez vão também confessar?
– Oh! Sem dúvida. Há cristãos que talvez não cumpram esses santos deveres? Agora tem o Jubileu e nós todos teremos o cuidado de fazê-lo bem.
Dessa conversa se percebe a boa índole desses camponeses, que em sua simplicidade vivem contentes com sua pobreza e alegres com seu estado, contanto que pudessem cumprir os deveres de bom cristão e desempenhar o que cabe ao humilde trabalho deles.

Santa Maria del Popolo
O domingo, 7 de março, estava destinado à visita de S. Maria del Popolo. Algumas piedosas e nobres pessoas desejavam que fôssemos lá celebrar a missa para poderem comungar. Era uma piedosa devoção. Às nove horas o senhor Foccardi, uma pessoa prestativa e cheia de fé, veio nos buscar com sua carruagem, para nos levar ao local indicado. Esta igreja foi construída no local onde foram sepultados Nero e a família Domícia. A tradição diz que ali apareciam continuamente fantasmas que aterrorizavam os cidadãos, de modo que ninguém queria habitar nas proximidades. O papa Pascoal II, no ano de 1099, fez erguer uma igreja lá, e para afastar a infestação diabólica, a dedicou a Maria Santíssima. No ano de 1227, a antiga igreja ameaçava cair e o povo romano contribuiu generosamente com os custos da reconstrução. Por isso, foi chamada Santa Maria do Povo. Uma igreja grandiosa, rica em mármores e pinturas. No altar-mor venera-se uma imagem milagrosa de Nossa Senhora, trazida por ordem de Gregório IX da capela do Salvador, em Latrão. Perto, está o convento dos padres Agostinianos.

Porta del Popolo, antigamente se chamava Porta Flaminia porque estava no início da via Flaminia […]. Fora desta porta, virando à direita, encontra-se a Villa Borghese, um majestoso edifício digno de ser visitado pelos turistas devido aos muitos objetos de arte que ali são conservados. Porta del Popolo delimita uma grande praça chamada Piazza del Popolo, embelezada por copiosas fontes e obeliscos, que, como todos sabem, são monumentos de uma remota antiguidade, erguidos pelos reis do Egito para tornar imortal a memória de suas ações. O soberbo obelisco que se eleva no meio da praça foi construído em Heliopólis por ordem de Ramsés, rei do Egito, que reinou em 522 a.C. O imperador Augusto o fez transportar para Roma; mas, por infortúnio, ele tombou, quebrando-se, e foi coberto por terra. O papa Sisto V, em 1589, fez desenterrá-lo, erguendo-o na praça, após dotar seu cume de uma alta cruz de metal. Suas quatro faces estão cobertas de hieróglifos, ou seja, de símbolos misteriosos que os egípcios usavam para expressar as coisas sagradas e os mistérios de sua teologia.

No fundo da praça ergue-se a igreja de Santa Maria dei Miracoli [chiesa di S. Maria dei Miracoli], construída por Alexandre VII, e chamada assim devido a uma imagem milagrosa de Nossa Senhora cuja pintura, antes, estava sob um arco nas proximidades do Tibre. À esquerda, há outra igreja, S. Maria di Monte Santo, porque foi edificada sobre outra igreja que pertencia aos carmelitas da província de Monte Santo. Foi inaugurada em 1662. Satisfeita, assim, nossa devoção e curiosidade, subimos novamente na carruagem que nos levou à casa da Princesa Potosca, dos Condes e Príncipes Sobieski, antigos soberanos da Polônia. O café da manhã preparado para nós era suntuoso, mas muito requintado, portanto pouco adequado ao nosso apetite. Nos ajustamos da melhor maneira. No entanto, ficamos muito satisfeitos com a conversa verdadeiramente cristã que aquelas senhoras mantiveram durante o tempo que nos detivemos em sua casa.
Uma coisa chamou nossa atenção. Terminada a refeição, a dona da casa mandou trazer um maço de charutos e começou a fumar. Apesar de uma conversa bastante animada, ela continuou com grande avidez a fumar um charuto após o outro, e isso me deixou desconfortável, sendo obrigado a suportar o cheiro de fumaça que impregnava toda a casa. Isso me provocava náuseas, tornando-se insuportável […].

Cidade do Vaticano. A subida à Cúpula
Reservamos o dia 8 de março para visitar a famosa cúpula de São Pedro. O Cônego Lantieri nos havia providenciado o bilhete necessário para satisfazer essa curiosidade. O horário em que é permitida a subida vai das 7h às 11h30 da manhã. O tempo estava ensolarado e, portanto, propício. Depois de celebrar a eucaristia no altar de São Francisco Xavier da Igreja de Jesus [Chiesa del Gesù], onde estão os jesuítas, chegamos ao Vaticano às 9h, acompanhados do senhor Carlo De Maistre. Entregue o bilhete, uma portinha nos foi aberta e começamos a subir por uma escada bastante confortável, como uma subida inclinada. Ao subir, encontramos várias inscrições que lembram o nome e o ano de todos os Papas que abriram e fecharam os anos jubilares. Perto do patamar do terraço estão escritos os mais célebres personagens, reis ou príncipes, que subiram até a bola da cúpula. Lemos com prazer também o nome de vários de nossos soberanos e da família real.

Demos uma olhada no terraço da basílica. Ele se apresenta como uma vasta praça pavimentada onde se pode jogar bola, bocha e coisas semelhantes. Aqui habitam algumas pessoas a quem é confiada a manutenção da parte superior do templo: carpinteiros, ferreiros, trabalhadores do asfalto. Quase no meio do terraço há uma fonte sempre funcionante, onde Rua foi beber.
Da praça abaixo, observamos as estátuas dos doze apóstolos que adornam o frontispício da basílica. De lá pareciam pequenas, mas de perto percebemos que o único dedo polegar do pé tinha a grossura do corpo de uma pessoa. Daí se pode entender a que altura estávamos. Também visitamos o sino maior, que tem um diâmetro de mais de três metros, o que significa três trabucos de circunferência (cerca de 9 metros, n.d.r.).

Uma coisa muito curiosa foi a vista do jardim vaticano, onde o papa costuma passear a pé. Penso que ele tenha a extensão que vai da Porta Susa ao início da Via Po (lugares de Turim, n.d.r.). Ao sul, se viam vastas campinas. Nosso guia nos disse:
– Todo aquele plano estava coberto de soldados franceses quando vieram libertar nossa cidade dos rebeldes. E nos indicava a basilica di S. SebastianoS. Pietro in Montorio, Villa PanfiliVilla Corsini, todos edifícios que sofreram danos gravíssimos por terem sido campos de batalha.
Uma escadinha em caracol ao lado da cúpula nos levou até a primeira balaustrada. Deste patamar parecia que estávamos voando alto e nos afastando da terra. O guia nos abriu uma portinha que levava a uma balaustrada interna que circundava a cúpula. Eu quis medir, e caminhando como um bom viajante, contei 230 passos antes de completar a volta. Uma curiosidade: em qualquer ponto do parapeito em que você esteja, falando até em voz baixa, com o rosto voltado para a parede, o mínimo som se comunica nitidamente de uma parede à outra. Também notamos que os mosaicos da igreja, que de baixo pareciam muito pequenos, de lá tomavam uma forma gigantesca.
– Coragem, nos exortou o guia, se quisermos ver outras coisas. Assim, pegamos outra escada em caracol e chegamos à segunda balaustrada. Aqui parecia que tínhamos sido elevados em direção ao Paraíso, e quando chegamos ao balaústre interno e vimos o chão da basílica, percebemos a extraordinária altura que havíamos alcançado. As pessoas que trabalhavam ou caminhavam lá embaixo pareciam crianças. O altar papal, que é coberto por um baldaquino de bronze que em altura supera as casas mais altas de Turim, de lá parecia uma simples cadeira de bebê.

O último andar sobre o qual subimos é aquele que estava sobre a ponta da cúpula, de onde se desfruta, talvez, a vista mais majestosa do mundo. O olhar se perde em tudo ao redor, em um horizonte formado pelos limites da visão humana. Dizem que olhando para o leste pode-se ver o mar Adriático, a oeste o Mediterrâneo. Nós, porém, só conseguimos avistar a neblina que o tempo chuvoso dos dias anteriores havia espalhado um pouco por toda parte.

Havia ainda a bola, um globo que da terra parece uma das bolas que usamos para passar um tempo; de lá parecia enorme. Os mais corajosos, passando por uma escadinha perpendicular e caminhando como dentro de um saco, subiram como gatos a uma altura de dois trabucos, ou seja, seis metros. Alguns não tiveram coragem suficiente. Nós, que éramos um pouco mais temerários, conseguimos. Da bola tudo parece maravilhoso. Disseram-me que poderia conter dezesseis pessoas; para mim, parecia que poderiam caber confortavelmente trinta. Alguns buracos, quase pequenas janelas, permitem observar a cidade e as campinas. Mas a grande altura causa uma sensação estranha e faz com que a vista não seja totalmente agradável. Pensávamos que lá em cima fizesse frio. Tudo ao contrário: o sol batendo no bronze da bola a aquecia a tal ponto que parecia que estávamos em pleno verão. Acredito que essa seja uma das razões pelas quais, após o almoço, não é permitido subir até lá: pelo calor insuportável. Aqui, depois de falar sobre várias coisas sobre os jovens do oratório, satisfeitos com nossa empreitada, quase como se tivéssemos trazido uma grande vitória, começamos a descida com passos lentos e graves, para não quebrarmos o pescoço, e sem nenhuma parada voltamos ao térreo.

Para descansar um pouco, fomos ouvir o sermão que havia começado exatamente naquele momento na basílica. O pregador nos agradou. Boa língua, belo gesto, mas o tema não nos interessou muito porque tratava da observância das leis civis. O que, no entanto, não serviu para nutrir o espírito serviu muito bem para dar descanso ao corpo. Restando-nos ainda um pouco de tempo, o empregamos para visitar a sacristia, que é uma verdadeira magnificência digna de São Pedro.
Sendo já onze e meia, estando ainda em jejum e de ter caminhado tanto, estávamos com grande apetite; por isso, fomos fazer um lanche. Rua, não satisfeito, achou melhor ir almoçar; assim eu fiquei sozinho com o senhor Carlo De Maistre, companheiro inseparável daquele dia. Restaurados um pouco, fomos visitar Monsenhor Borromeo, mordomo de Sua Santidade, que nos recebeu muito bem e, depois de falar sobre o Piemonte e Milão, sua terra natal, anotou nossos nomes para nos inserir no catálogo das pessoas que desejam receber a palma do Santo Padre na função do Domingo de Ramos.

Nos famosos museus
Ao lado da varanda deste prelado, em torno do pátio do Palácio Pontifício, estão os Museus Vaticanos [Musei Vaticani]. Entramos e vimos coisas realmente excepcionais. Descrevo apenas algumas. Há uma sala de comprimento extraordinário, enriquecida com mármores e pinturas preciosíssimas. No meio da segunda arcada se destaca uma pia batismal de cerca de um metro e meio, feita de malaquita, um dos mármores mais preciosos do mundo. Foi um presente feito pelo imperador da Rússia ao Sumo Pontífice. Há vários outros objetos semelhantes. No fundo daquela grande sala, à esquerda, se abre uma espécie de longo corredor que abriga o museu cristão. […]. No mesmo se entra na Biblioteca Vaticana, onde se conservam os manuscritos mais célebres da antiguidade […].

Pelas ruas de Roma
Do Vaticano, indo em direção ao centro de Roma, chegamos à praça Scossacavalli, onde trabalham os escritores do célebre periódico La Civiltà Cattolica. Paramos para fazer-lhes uma visita e sentimos um verdadeiro prazer ao observar que os principais apoiadores desta publicação são piemonteses. Sentia já um vivo desejo de voltar para casa, superando toda hesitação, e estávamos quase chegando ao Quirinale, quando o senhor Foccardi nos viu passar em frente à sua loja e nos chamou para dentro. A força de convites e cortesia, ele nos reteve um pouco, e quando pedimos para partir, ele disse:
– Aqui está a carruagem, eu os acompanho até em casa. Mesmo subindo de contragosto na carruagem, no entanto, para agradá-lo, acedi. Mas o Foccardi, desejando se prolongar mais conosco, nos fez dar uma longa volta, tanto que chegamos em casa já tarde da noite.

Aqui me foi entregue uma carta. Abri e li. Notifica-se ao senhor Abade Bosco que Sua Santidade se dignou a admiti-lo à audiência amanhã, dia nove de março, das 11h45 a uma hora. Esta notícia, esperada e muito desejada, me causou uma revolução interior e durante toda a noite não consegui falar de outra coisa senão do Papa e da audiência.

A audiência papal. Santa Maria sopra Minerva
Chegou o dia 9 de março, o grande dia da audiência papal. Antes, porém, eu precisava falar com o Cardeal Gaude; por isso, fui celebrar a missa na igreja de S. Maria sopra Minerva, onde o Cardeal tinha sua residência. Antigamente era um templo que Pompeu, o Grande, havia mandado edificar à deusa Minerva; foi chamada de Santa Maria sopra Minerva porque foi construída precisamente sobre as ruínas deste templo. No ano 750, o Papa Zacarias a doou a um convento de freiras gregas. No ano 1370 passou aos padres pregadores (dominicanos, n.d.r.) que ainda a oficiam. Em frente a esta igreja está uma praça onde admiramos um obelisco egípcio com hieróglifos, cuja base repousa sobre o dorso de um elefante de mármore. Entramos e pudemos admirar um dos edifícios sagrados mais belos de Roma. Sob o altar-mor repousa o corpo de Santa Catarina de Sena. Celebrada a missa e indo com toda pressa ao encontro do Cardeal Gaude, conversei com ele, então partimos em direção ao Quirinale.

O pequeno mentiroso
Pelo caminho encontramos um garoto que, com simpatia, nos pediu esmola, e para nos fazer conhecer sua condição nos disse que seu pai havia morrido, sua mãe tinha cinco filhas e que ele sabia falar italiano, francês e latim. Surpreso, dirigi-lhe um discurso em francês, ao qual ele respondeu com um simples oui, sem entender o que eu dizia, nem articular outras expressões; então o convidei a falar latim, e ele, sem prestar atenção às minhas palavras, começou a recitar de memória as seguintes palavras: ego stabam bene, pater meus mortuus est l’annus passatus et ego sum rimastus poverus. Mater mea etc. Aqui não conseguimos mais conter as risadas. Porém, depois o avisamos para não contar mentiras e lhe presenteamos com um tostão.

A antecâmara
Enquanto isso, a hora da audiência se aproximava. […]. Chegando ao Vaticano, subimos as escadas mecanicamente. Por toda parte havia guardas nobres, vestidos de modo a parecerem príncipes. No andar nobre, abriram-nos a porta que introduzia nas salas pontifícias. Guardas e camareiros, vestidos com grande luxo, nos saudavam com profunda reverência. Entregue o bilhete para a audiência, fomos conduzidos de sala em sala até a antecâmara papal. Como havia várias outras pessoas aguardando, esperamos cerca de uma hora e meia antes de sermos recebidos.

Esse tempo o empregamos para observar as pessoas e o lugar onde estávamos. Os domésticos do Papa estavam vestidos quase como os bispos de nossos países. Um Monsenhor, a quem se dá o título de prelado doméstico, introduzia por turno as pessoas para a audiência à medida que terminava a anterior. Admiramos grandes salas bem tapeçadas, majestosas, mas sem luxo. Um simples tapete de pano verde cobria o chão. As tapeçarias eram de seda vermelha, mas sem ornamentos. As cadeiras eram de madeira dura. Uma cadeira colocada sobre um estrado um tanto elegante indicava que aquela era a sala pontifícia. Vimos tudo isso com prazer, lembrando as mordazes e injustas acusações que alguns fazem contra a pompa e o luxo da corte pontifícia. Enquanto estávamos imersos em vários pensamentos, soou o sino, e o prelado nos fez sinal para avançar e nos apresentar a Pio IX. Nesse momento, eu realmente fiquei confuso e tive que cometer uma espécie de autoviolência para não perder o equilíbrio.

Pio IX
Rua me acompanhou trazendo consigo uma cópia das Leituras Católicas. Entramos, fizemos a genuflexão no início, depois no meio da sala, finalmente, a terceira, aos pés do Papa. Cessou toda apreensão quando avistamos no Pontífice a aparência de um homem afável, venerando, e ao mesmo tempo o mais belo que um pintor poderia retratar. Não pudemos beijar seu pé, porque ele estava sentado à mesa; beijamos, porém, sua mão, e Rua, lembrando da promessa feita aos clérigos, a beijou uma vez por si e uma vez por seus companheiros. Então o Santo Padre fez sinal para nos levantarmos e nos colocarmos à sua frente. Eu, segundo a etiqueta, gostaria de falar permanecendo de joelhos.
– Não, ele disse, levantem-se. Convém notar aqui que ao nos apresentarmos ao Papa, nosso nome foi lido errado. De fato, em vez de escrever Bosco, foi escrito Bosser, por isso o Papa começou a me interrogar:
– O senhor é piemontês?
– Sim, Santidade, sou piemontês, e neste momento sinto a maior consolação da minha vida, encontrando-me aos pés do Vigário de Cristo.
– E de que o senhor se ocupa?
– Santidade, eu me ocupo da instrução da juventude e das Leituras Católicas.
– A instrução da juventude sempre foi coisa útil em todos os tempos. Mas hoje em dia é mais do nunca necessária. Há um outro em Turim que se ocupa dos jovens. Então percebi que o Papa tinha em mãos um nome errado, mas, sem saber como, ele também se deu conta de que eu não era Bosser, mas Bosco; assim, assumiu uma aparência muito mais festiva e perguntou muitas coisas sobre os jovens, os clérigos, os oratórios […]. Então, com um rosto sorridente, ele me disse:
– Lembro-me do presente que me enviou em Gaeta e dos ternos sentimentos daqueles meninos que o acompanharam. Aproveitei para expressar a ele o apego de nossos jovens à sua pessoa e pedi-lhe que aceitasse uma cópia das Leituras Católicas: – Santidade, disse-lhe, ofereço-lhe um exemplar daqueles livrinhos até agora
impressos e ofereço-o em nome da direção. A encadernação é trabalho dos
jovens de nossa casa.
– Quantos são esses jovens?
– Santidade, os jovens da casa são perto de duzentos. Os encadernadores são quinze.
– Bem, ele respondeu, eu quero mandar uma medalha a cada um. Então, indo a outro aposento, depois de breves instantes voltou, trazendo pequenas medalhas da Conceição:
– Estas serão para os jovens encadernadores, disse enquanto as entregava a mim. Voltando-se então para Rua, deu-lhe uma maior dizendo:
– Esta é para seu companheiro. Então, voltando-se novamente para mim, me entregou uma pequena caixa que estava dentro de outra maior:
– E esta é para o senhor. Estando de joelhos para receber os presentes, o Santo Padre pediu que nos levantássemos, e pensando que queríamos nos retirar, estava para se despedir, quando eu comecei a falar com ele assim:
– Santidade, tenho algo em particular para comunicar-lhe.
– Está bem, respondeu […]. O Santo Padre é muito rápido em entender as perguntas e prontíssimo em dar as respostas, por isso com ele se trata em cinco minutos o que com outros exigiria mais de uma hora. No entanto, a bondade do Papa e meu vivo desejo de me deter com ele prolongaram a audiência por mais de meia hora, tempo bastante considerável tanto em relação à sua pessoa quanto em relação à hora do almoço, que por nossa causa estava atrasado […].

Gianicolo
Às 13h30 do dia 10 de março, o P. Giacinto, dos Carmelitas Descalços, veio nos buscar com uma carruagem para nos levar à basilica di S. Pancrazio e de S. Pietro in Montorio. São duas igrejas situadas no Gianicolo, chamado assim por causa de Jano que dizem ter vivido ali. Do outro lado do Tibre, no topo desta colina está situada a basílica de São Pancrácio, construída pelo Papa Félix II em 485, cerca de 100 anos após o martírio de Pancrácio. O general Narsete, vencidos os godos, fez uma solene procissão junto com o Papa Pelágio de São Pancrácio até São Pedro. São Gregório Magno, que tinha grande veneração por esta igreja, celebrou nela várias vezes a missa e fez algumas homilias, e finalmente a doou aos monges beneditinos. Em 1673, foi confiada aos Carmelitas Descalços com o convento anexo e um seminário para as missões das Índias […].

Sob o altar-mor, há outro altar subterrâneo onde antigamente era conservado o corpo do Santo, protegido por uma grade de ferro. Havia o costume de levar aqueles que eram suspeitos de perjúrio diante dessa grade, porque se fossem culpados, eram tomados por um visível tremor ou outro sinal.

As Catacumbas
– Venham comigo, nos disse o P. Giacinto, iremos às catacumbas. Ele havia preparado uma luminária para cada um. Nós começamos a segui-lo. No meio da igreja, ele nos indicou uma abertura no chão. Levantando a tampa, apareceu uma cavidade escura e profunda: começavam as catacumbas. Na entrada estava escrito em latim: “Neste lugar foi decapitado o mártir de Cristo Pancrácio”. Aqui estamos nas catacumbas. Imaginem longos corredores ora mais estreitos e mais baixos, ora mais altos e espaçosos, ora cortados por outros corredores, ora em descida, ora em subida, e vocês terão a primeira ideia desses subterrâneos. À direita e à esquerda há pequenas sepulturas escavadas paralelamente no tufo. Aqui antigamente eram sepultados os cristãos, especialmente os mártires. Aqueles que deram a vida pela fé eram designados com emblemas particulares. A palma era sinal da vitória obtida contra os tiranos; a galheta indicava que havia derramado sangue pela fé; o “χ” significava que havia morrido na paz do Senhor ou que havia sofrido por Cristo. Em outros apareciam os instrumentos com os quais foram martirizados. Às vezes, esses emblemas estavam fechados na pequena sepultura do santo. Quando as perseguições não eram muito severas, escrevia-se nome e sobrenome do mártir e algumas linhas que destacavam alguma circunstância importante de sua vida. […].
– Este é o lugar, nos disse o guia, onde estava sepultado São Pancrácio, e ao lado dele São Dionísio, seu tio, e aqui perto outro parente. Depois visitamos algumas sepulturas reunidas em uma saleta cujas paredes apresentavam inscrições antigas que não conseguimos ler. No meio da abóbada estava pintado um jovem que nos pareceu representar São Pancrácio […].

Desta vez o guia nos indicou uma cripta. Cripta, palavra grega, significa profundidade. É um espaço maior que o normal onde os cristãos costumavam se reunir, em tempo de perseguição, para ouvir a Palavra, assistir à missa e às funções sagradas. De um lado ainda há um altar antigo onde é possível celebrar. Na maioria das vezes, a sepultura de algum mártir servia como altar. Depois de um pouco de caminhada, nos mostraram a capela onde São Félix, Papa, costumava descansar e celebrar a Eucaristia. Seu sepulcro está a pouca distância. Por toda parte viam-se esqueletos humanos reduzidos a pedaços pelo tempo. Nossa guia nos assegurou que em breve chegaríamos a um lugar onde se conservavam lápides com as inscrições intactas.

Mas estávamos muito cansados, também porque o ar subterrâneo e as dificuldades do caminho – cada um tinha que cuidar para não bater a cabeça, não esbarrar com os ombros e não escorregar com os pés – nos haviam fatigado bastante. O guia nos advertia que os subterrâneos são muitos e alguns chegam a ter quinze/vinte milhas de comprimento. Se tivéssemos ido sozinhos, poderíamos ter cantado o requiescant in pace, porque teria sido muito difícil encontrar o caminho de volta para fora. Nossa guia, porém, era muito prática e em breve nos reconduziu ao ponto de onde partimos […].

San Pietro in Montorio
Subimos novamente na carruagem com o P. Giacinto e descemos o Gianicolo para ir até San Pedro em Montorio. A palavra é uma corrupção de “monte de ouro”, porque aqui o solo e a areia assumem uma cor amarela, semelhante a do ouro. Também foi chamado Castro Aureo, fortaleza de ouro, pelos restos da fortaleza de Anco Marzio que ainda existem no cume. É uma das igrejas fundadas por Constantino, o Grande, rica em estátuas, pinturas e mármores. Entre a igreja e o convento anexo se destaca um edifício chamado Tempietto di Bramante, de forma redonda. Trata-se de uma das mais notáveis obras de Bramante. Ele foi edificado no local onde foi martirizado São Pedro. Nos fundos, uma escadinha leva a uma capela subterrânea circular, no meio da qual há um buraco onde arde continuamente uma luz. É o lugar onde foi encaixada a ponta da cruz na qual São Pedro foi pregado de cabeça para baixo. A igreja está situada onde termina o Gianicolo e começa o Vaticano.

Perto de San Pietro em Montorio está localizada a magnífica Fontana Paolina, de Paulo V, que a fez construir em 1612. A água jorra de três colunas que parecem um rio. Vem de Bramário, um lugar a 35 milhas de Roma. Essas águas, ao descer, servem para mover moinhos e outras máquinas e se ramificam com grande vantagem em vários pontos da cidade […].

Uma adversidade
No dia 11 de março estivemos ocupados escrevendo e despachar encomendar particulares. Merece uma lembrança ode quando me perdi em Roma. Fui fazer uma visita ao Monsenhor Pacca, prelado doméstico de Sua Santidade. No retorno, estava acompanhado pelo P. Bresciani, tendo enviado Rua para procurar o P. Botandi em Ponte Sisto. O bom Bresciani me conduziu até a academia da Sapienza e, então, me indicou onde passar para chegar ao Quirinale:
– Atravesse esta rua, depois mantenha-se sempre à direita. Eu, em vez de pegar à direita, peguei à esquerda, de modo que após uma hora de caminhada me encontrei na Piazza del Popolo, a quase uma milha de casa. Pobre de mim! Ao menos se eu tivesse Rua comigo, poderíamos nos consolar mutuamente, mas eu estava sozinho. O tempo estava nublado, soprava um vento forte e começava a chover. O que fazer? Dormir no meio daquela praça me desagradava, por isso, com toda a paciência, subi ao Pincio, chamado assim por causa do palácio de um senhor chamado Pincio […]. Este monte não é muito habitado e não é uma das sete colinas de Roma […].

Sant’Andrea della Vale
Na sexta-feira, dia 12, fui celebrar a missa em S. Andrea della Valle, para distingui-lo de outras igrejas dedicadas ao mesmo Apóstolo. Valle foi acrescentado tanto porque a basílica se encontra no ponto mais baixo de Roma quanto também devido a um palácio pertencente à família Valle. Antigamente, a igreja era dedicada a São Sebastião, que aqui sofreu o martírio. Perto dela foi construída outra dedicada a São Luís, rei da França. Mas no ano de 1591, um rico senhor, chamado Gesualdo, fez uma reforma, modificando completamente o projeto. É uma das primeiras igrejas de Roma. Sua cúpula mede 64 palmos de diâmetro, e por isso, depois de São Pedro no Vaticano, é a cúpula mais ampla de todas as outras da cidade. A primeira capela, ao entrar à esquerda, tem um portão de ferro que indica o ponto da cloaca onde se acredita que o corpo do mártir São Sebastião foi jogado. Quase em frente a esta igreja está o palácio Stoppani, que serviu de moradia ao imperador Carlos V quando veio a Roma, como aparece em uma inscrição na parede ao pé da escada.

San Gregorio Magno
Às 13h30, com o senhor Francesco De Maistre, nosso guia, partimos para visitar a igreja de São Gregório Magno [chiesa di S. Gregorio Magno]. Ela está edificada sobre uma parte do monte Celio, chamado antigamente clivus Scauri, ou seja, descida de Scauro, e era a casa habitada por São Gregório e seus pais. Foi ele quem a converteu em mosteiro, onde depois residiu até o ano 590, inicialmente como simples monge, depois como Abade. Quando foi eleito papa (em 590), dedicou aquele edifício ao apóstolo São André, transformando uma parte dos cômodos em igreja. Após sua morte, a igreja foi dedicada a ele mesmo.

É certamente uma das mais belas igrejas de Roma. A primeira capela ao entrar, à esquerda, é dedicada a Santa Silvia, mãe de São Gregório. A última, à direita, é a do Sacramento, sobre cujo altar celebrava o próprio São Gregório. […]. Este altar, venerável pelo título e patrocínio do santo Papa, foi tornado célebre em todo o mundo pelos privilégios concedidos por muitos Papas. Aconteceu que um monge do mosteiro, tendo por ordem do santo oferecido a missa por trinta dias consecutivos em sufrágio da alma de um irmão falecido, outro monge a viu liberada das penas do purgatório.

Ao lado desta capela existe outra menor, onde São Gregório se retirava para descansar. Mostra-se ainda com precisão o lugar onde estava sua cama. Ali ao lado está a cadeira de mármore sobre a qual ele se sentava tanto quando escrevia quanto quando anunciava a palavra de Deus ao povo.
Passado o altar-mor, encontra-se a capela que guarda uma imagem de Nossa Senhora muito antiga e prodigiosa. Acredita-se que seja aquela que o Santo mantinha em casa e sempre que passava diante dela a saudava dizendo “Ave, Maria”. Um dia, porém, o bom Pontífice, por causa da pressa que tinha devido a alguns assuntos urgentes, ao sair não dirigiu à Virgem a saudação habitual. E Ela lhe fez esta doce reprimenda: “Ave, Gregori”, com as quais palavras o convidava a não esquecer aquela saudação que a ela era tão grata.

Em outra capela se ergue a estátua de São Gregório, um trabalho projetado e dirigido por Michelangelo Buonarroti. O Santo está sentado no trono com uma pomba perto do ouvido, que lembra o que afirma Pedro Diácono, familiar do Santo, ou seja, que sempre que Gregório pregava ou escrevia, uma pomba sempre lhe falava ao ouvido. No centro da capela está colocada uma grande mesa de mármore sobre a qual o Pontífice todos os dias oferecia comida a doze pobres, servindo-os com a própria mão. Um dia, sentou-se à mesa com os outros um anjo sob a forma de um jovem, que então, de repente, desapareceu. Desde então, o Santo aumentou para treze o número dos pobres que ele alimentava. Assim teve origem o costume de colocar treze peregrinos à mesa que, na quinta-feira santa, o Papa serve todos os anos com a própria mão. Acima da mesa está gravado o dístico seguinte: “Aqui Gregório alimentava doze pobres; um anjo sentou-se à mesa e completou o número de treze”.

Santi Giovanni e Paolo
Saindo desta igreja e virando à direita, encontra-se a dos Santos João e Paulo [Santi Giovanni e Paolo]. O imperador Joviano permitiu ao monge São Pammáquio construí-la, no ano 400, em honra destes dois irmãos mártires. Ela foi edificada sobre a sua habitação, exatamente onde sofreram o martírio. Foi depois restaurada por São Símaco, Papa, por volta de 444 […]. Ao entrar, apresenta-se à vista um majestoso edifício. No meio, uma grade de ferro delimita o lugar onde os santos foram mortos. Seus corpos, fechados em uma urna preciosa, repousam sob o altar-mor. Na capela ao lado, sob o altar, é guardado o corpo do Beato Paulo da Cruz, fundador dos passionistas, aos quais a igreja é confiada. Este servo de Deus é um piemontês, nascido em Castellazzo, na diocese de Alexandria. Morreu em 1775, aos 82 anos. Os muitos milagres que em Roma e em outros lugares ocorrem por sua intercessão, fizeram crescer a congregação dos passionistas, assim chamados por causa do quarto voto que fazem, ou seja, promover a veneração pela paixão do Senhor.

Um desses religiosos, um genovês, Frei André, depois de nos acompanhar para ver as coisas mais importantes da igreja, nos levou ao convento, um belo edifício que abriga cerca de oitenta padres, em sua maioria piemonteses.
– Este, nos disse Frei André, é o quarto em que morreu nosso santo Fundador. Entramos e admiramos em devoto recolhimento o lugar de onde partiu sua alma para voar ao céu.
– Ali está a cadeira, as vestes, os livros e outros objetos que serviram ao Beato. Cada coisa está selada e são distribuídas como relíquias aos fiéis cristãos. Aquele quarto hoje é uma capela onde se celebra a missa.

Arcos de Constantino e Tito
Cumprimentando ao cortês frei André, nos dirigimos para S. Lorenzo in Lucina. Depois de um pouco de caminho, nos encontramos sob o Arco di Costantino. Ele se conservou quase intacto. Uma inscrição do senado e do povo romano indica que foi dedicado ao imperador Constantino em ocasião da vitória sobre o tirano Massenzio. Este imperador, tornando-se cristão, fez colocar sobre o arco uma estátua com uma cruz na mão em memória da cruz que lhe apareceu diante do exército, para lembrar a todo o mundo que ele professava a religião de Jesus crucificado.
Após mais um trecho de estrada, eis outro arco, o Arco di Tito. Existem três arcos em Roma e o de Tito é o mais antigo e elegante. É enriquecido por baixos-relevos que comemoram as várias vitórias obtidas por aquele valente guerreiro: em um deles está esculpido o candelabro do templo de Jerusalém em memória da queda daquela cidade e de seu templo. Sob este arco passava a célebre Via Sacra, uma das mais antigas de Roma, assim chamada porque através dela se levavam todos os meses as coisas sagradas para a Rocha, e era percorrida pelos áugures para ir buscar suas respostas.

Chegando a San Lorenzo in Lucina, não conseguimos entrar devido aos trabalhos que lá se realizavam […]. Esta igreja é uma das mais vastas paróquias de Roma, e foi erguida por Sisto III com o consentimento do imperador Valentiniano em honra de São Lourenço, mártir. Para distingui-la das outras igrejas erguidas a este levita, foi denominada in Lucina, ou pela santa mártir de tal nome ou talvez porque este fosse o nome do lugar. Anexo a esta igreja, em direção à rua principal, está o Palácio Ottobuoni [palazzo Ottobuoni], construído por volta do ano 1300 sobre as ruínas de um grande edifício antigo chamado Palácio de Domiciano. Estando já cansados e aproximando-se a hora do almoço, voltamos para casa […].

Santa Maria degli Angeli
[…] No dia 13 de março, a estação quaresmal era em S. Maria degli Angeli, onde fomos tanto para lucrar a indulgência plenária quanto também para rezar a Deus em favor de nossa casa. Esta igreja é distinta de outra do mesmo nome, com o acréscimo das Terme di Diocleziano, porque é construída no local onde antigamente se erguiam as famosas termas, ou seja, as casas de banho do imperador Diocleciano. O sumo pontífice Pio IV encarregou Michelangelo Buonarroti, que com seu vasto engenho soube transformar em igreja uma parte daqueles edifícios magníficos. Em um salão das termas já existia uma capelinha dedicada a São Cirilo, mártir. Esta ficou confinada dentro da nova igreja, que o Pontífice dedicou a Santa Maria dos Anjos, para agradar ao duque e rei da Sicília, devotíssimo dos Anjos, que cooperou muito na sua edificação.

No dia da estação quaresmal, a igreja é ornada com especial elegância, e são expostas à veneração pública as relíquias mais insignes. Em uma capela ao lado do altar-mor estava colocado o relicário com muitas relíquias, entre as quais vimos os corpos de São Próspero, São Fortunato e São Cirilo, além da cabeça de São Justino e de São Máximo, mártires, e de muitos outros. Satisfeita assim a nossa devoção, chegamos em casa por volta das seis da tarde, bastante cansados e com bom apetite.

Santa Maria della Quercia
No domingo, 14 de março, celebramos em casa, depois fomos visitar um oratório, segundo as indicações recebidas do Marquês Patrizi. A igreja onde se reúnem os jovens chama-se S. Maria della Quercia. Eis a origem, que remonta aos tempos de Júlio II. Uma imagem de Maria foi pintada em uma telha por um certo Battista Calvaro, que a pendurou em um carvalho dentro de sua vinha, em Viterbo. Esta imagem permaneceu escondida por sessenta anos, até que em 1467 começou a se manifestar com tantas graças e milagres que os fiéis que a visitavam, com suas ofertas, ergueram uma igreja e um mosteiro. O Papa Júlio II desejou que também em Roma houvesse um templo dedicado a Nossa Senhora do Carvalho, que é aquele de que falamos.
Entrando na igreja e chegando na espaçosa sacristia, nos alegrou a presença
de uns quarenta jovens. Pela vivacidade do comportamento pareciam muito com nossos moleques do nosso oratório. As suas funções sagradas se realizam todas pela manhã. Missa, confissão, catecismo e uma breve instrução é o que se faz para eles […].

Após o meio-dia, os jovens vão a S. Giovanni dei Fiorentini, outro oratório onde há apenas recreação, sem funções de igreja. Fomos lá e vimos cerca de cem jovens que se divertiam a valer. Seus jogos eram a tombola e a campana, conhecidas também por nós. Praticam também o jogo do buraco, que consiste em cinco buracos bastante grandes nos quais se colocam duas castanhas ou outra coisa. De uma distância de seis passos, faz-se rolar uma bola. Quem consegue fazê-la entrar em um dos buracos ganha o que está dentro. Lamentamos muito que eles não tivessem outra coisa além da recreação. Se houvesse algum padre entre eles, este poderia fazer o bem para suas almas, pois há grande necessidade. Tanto mais nos entristeceu, pois encontramos neles boas disposições. Vários demonstraram prazer em dialogar conosco, beijando várias vezes a mão tanto a mim quanto a Rua, que, contra sua vontade, era constrangido a consentir […].

Voltando para casa, recebemos a visita de Monsenhor Merode, mestre de câmara de Sua Santidade. Após algumas conveniências, ele me anunciou que o Santo Padre me convidava a pregar os exercícios espirituais às detidas nas prisões perto de Santa Maria degli Angeli alle terme di Diocleziano. Cada desejo do Papa é para mim um comando e, portanto, aceitei com muito prazer […].

Na prisão feminina
Às duas da tarde, fui à superiora da prisão para combinar o dia e a hora em que começaria a pregação. Ela me disse:
– Se está bem para o senhor, pode pregar daqui há pouco, já que as mulheres estão na Igreja e não temos pregador. Assim, comecei naquele momento os exercícios e quase a semana inteira foi empregada inteiramente nesse ministério. A casa correcional chama-se Alle Terme di Diocleziano porque está situada no mesmo local onde estavam as termas daquele famoso imperador. Havia 260 detidas culpadas de graves delitos e condenadas à prisão […]. Os exercícios foram realizados com satisfação. A pregação simples e popular que usamos entre nós foi frutífera nesta prisão. No sábado, depois da última pregação, a madre
superiora, com prazer, falou-me que nenhuma das prisioneiras tinha deixado de aproximar-se dos Sacramentos.

Dois episódios
Um episódio agradável aconteceu ao Santo Padre nesta semana. O Conde Spada foi visitá-lo e teve esta conversa:
– Santidade, eu gostaria de pedir uma lembrança desta visita.
– Peça o que quiser e tentarei agradá-lo.
– Eu gostaria de algo extraordinário.
– Bem, peça.
– Santidade, eu gostaria de ter como lembrança a vossa tabaqueira.
– Mas está cheio de um tabaco de qualidade ínfima.
– Não importa; eu a guardarei com muito carinho.
– Leve-a, faço-lhe este presente com prazer. O Conde Spada partiu mais contente com aquele tabaqueira do que se fosse um grande tesouro. Ela é simples, de chifre de búfalo, unido com dois anéis de latão e não vale quatro tostões, mas é preciosíssimo pela procedência. O bom conde o mostra a seus amigos como um objeto digno de veneração […].

Outra anedota me foi contado sobre este venerando Pontífice. No ano passado, enquanto o Santo Padre viajava por seus estados, estava nas proximidades de Viterbo. Uma garotinha com um feixe de lenha, vendo que a carruagem pontifícia havia parado, pensou que aqueles senhores quisessem comprar seu feixe. Correu em direção a eles:
– Senhores, disse ao Santo Padre, compre-o, a madeira está bem seca.
– Não precisamos, respondeu o Papa.
– Compre-o, vendo-o pelo preço de três tostões.
– Pegue o valor e fique com seu feixe. O Santo Padre deu-lhe três escudos, então se preparou para voltar à carruagem. Mas a garotinha queria que o Santo Padre pegasse seu feixe.
– Leve-o, o senhor ficará contente; na sua carruagem há espaço de sobra. Enquanto o Papa e sua corte riam de tal negócio, a mãe da menina, que trabalhava em um campo próximo, correu gritando:
– Santo Padre, Santo Padre, perdoe-a; esta pobre menina é minha filha. Ela não o conhece. Tenha piedade de nós, que estamos em grande miséria. O Papa acrescentou mais seis escudos e continuou o caminho […].

San Paulo fuori le Mura
No dia 22 de março, Domingo, Dom Bosco foi ao Cardeal vigário, o eminentíssimo Constantino Patrizi […]. Saindo do Vicariato, peregrinou até S. Paolo fuori le Mura para venerar o sepulcro do grande Apóstolo dos Gentios e admirar as maravilhas daquele templo imenso. Depois de um milha de estrada, chegou ao célebre lugar denominado Ad Aquas Salvias, onde São Paulo derramou seu sangue por Jesus Cristo. Exatamente neste ponto, onde há três fontes milagrosas de água que brotaram dos torrões onde a cabeça do santo Apóstolo fez três saltos, foi construída uma igreja. Dom Bosco também rezou na igreja vizinha de Sancta Maria Scala Coeli, de forma octogonal, edificada sobre o cemitério de São Zenão, um tribuno que foi martirizado sob Diocleciano, junto com 10.203 de seus companheiros soldados […].

Colosseo
No dia 23 de março, seu olhar atônito contemplou as gigantescas ruínas do anfiteatro Flaviano ou Colosseo, de forma oval com 527 metros de circunferência externa, e cinquenta metros de altura por um longo trecho. Nos tempos de seu esplendor era coberto de mármores, ornado por colunatas, centenas de estátuas, obeliscos, quadrigas de bronze; e em seu interior sustentava tudo ao redor imensas arquibancadas, que podiam abrigar 200 mil pessoas para assistir aos combates de feras e de gladiadores, e ao massacre de milhares e milhares de mártires. Dom Bosco entrou na arena dos espetáculos que mede 241 metros de circunferência […]

San Clemente
No dia 24 de março Dom Bosco foi à Basílica de São Clemente [basilica di S. Clemente] para venerar as relíquias do quarto Papa depois de São Pedro, as de Santo Inácio, mártir, Bispo de Antioquia; foi também para admirar a arquitetura da antiquíssima igreja com três naves. Na do meio, diante do Altar da Confissão, há um recinto de mármore branco que é o coro para o clero menor, com dois púlpitos: um para o canto do Evangelho, junto ao qual se eleva uma pequena coluna destinada ao círio pascal e outro para o subdiácono que deve ler a epístola; ao lado deste último uma estante para os clérigos cantores e leitores das profecias e dos outros livros das sagradas escrituras. Ao redor da abside há um assento destinado aos sacerdotes e, no fundo, no centro, surge, sobre três degraus, a cátedra do bispo […].

Deaqui Dom Bosco foi para a igreja dos Quatro Coroados [chiesa dei Quattro Coronati]para visitar os sepulcros dos santos mártires Severo, Severino, Carpóforo e Vitorino, mortos sob Diocleciano. Depois passou por S. Giovanni diante da Porta Latina, junto da qual está uma Capela construída no lugar onde São João Evangelista foi colocado na caldeira de óleo fervente; dali avançou até a igrejinha do Quo Vadis, assim chamada porque apareceu naquele lugar o Salvador a São Pedro, que saía de
Roma para fugir do furor da perseguição:
– Senhor, para onde vai? gritou o Apóstolo maravilhado. E Jesus lhe respondeu:
– Venho para ser crucificado de novo. São Pedro entendeu e voltou para Roma onde o esperava o martírio. Desse pequeno templo, Dom Bosco retomou a estrada, depois de ter dado uma olhada à via Apia, ao longo da qual se contam muitíssimos mausoléus dos tempos do paganismo, que recordam qual fim ameace toda a grandeza humana

Dom Bosco… salesiano!
Uma cena graciosa aconteceu na manhã do dia 25 de março. Dom Bosco, atravessando o Tibre, viu em uma pequena praça uns trinta meninos que se divertiam. Sem mais, se pôs no meio deles, que, parando as brincadeiras,olhavam-no maravilhados. Dom Bosco levantou então a mão, mantendo
entre os dedos uma medalha, e depois exclamou:
– Vocês são muitos e sinto não ter muitas medalhas para dar uma para
cada um. 
Aqueles meninos, tomando coragem, gritaram a plenos pulmões, levantando as mãos:
– Não importa, não importa… para mim, para mim! Dom Bosco acrescentou:
– Está bem. Não tendo para todos, esta medalha quero dá-la ao melhor. Quem de vocês é o melhor?
– Sou eu, sou eu! gritaram todos juntos. Ele continuou:
– Mas o que posso fazer se todos são bons igualmente? Está bem: quero dá-la ao mais malandro! Quem entre vocês é o mais malandro?
– Sou eu, sou eu! responderam com gritos atordoantes.
O Marquês Patrizi e os seus amigos, a uma certa distância, sorriam comovidos e maravilhados ao ver Dom Bosco tratar assim familiarmente com aqueles meninos que pela primeira vez tinha encontrado. E exclamavam:
– Eis um outro São Filipe Neri, amigo da juventude. Dom Bosco, de fato, como se fosse um amigo já conhecido daqueles meninos, continuou a interrogá-los, se já tinham ouvido a Santa Missa, em qual igreja costumavam ir, se conheciam os oratórios que estavam por aquelas bandas […]. O diálogo estava animado e finalmente Dom Bosco, depois de tê-los exortados a serem sempre bons cristãos, prometia que passaria outra vez por aquela praça e traria uma medalha, ou melhor, uma imagem para cada um deles; depois, saudando-os afetuosamente, saiu do meio daquela turba, e, voltando àqueles senhores que o esperavam, mostrou-lhes a única medalha que tinha ainda na mão. Nada tinha dado àqueles meninos, no entanto, tinha-os deixado contentes.

Santo Stefano Rotondo
No dia 26 de março, Dom Bosco retornou ao Celio na espaçosa igreja de Santo Estêvão Redondo [chiesa di S. Stefano Rotondo], chamada assim por sua forma. O seu beiral circular é sustentado por 56 colunas. Em todas as paredes ao redor estão pintadas as cenas dos suplícios atrozes com os quais foram massacrados os mártires. É ornada por mosaicos do século VII, que representam Jesus crucificado, com alguns santos, e conserva os corpos de dois confessores da fé, Santo Primo e Santo Feliciano. Dali Dom Bosco passou para S. Maria in Dominica ou della Navicella (por causa de uma barca de mármore que está na praça). Tem três naves separadas por 18 colunas e contém mosaicos do século IX. Entre esses se vê a Virgem no lugar de honra entre muitos anjos e, aos pés dela, ajoelhado, o Papa Pascal […].

O Santo Padre, no entanto, tinha manifestado o desejo que Dom Bosco assistisse no Vaticano ao devoto e magnífico espetáculo de todas as funções da Semana Santa. Por isso, encarregou Monsenhor Borromeu de convidá-lo em seu nome e de arrumar-lhe um lugar no qual pudesse à vontade ser espectador dos ritos sagrados. O Monsenhor o fez procurar por todo o dia, mas sem êxito. Finalmente, quando voltou à residência do Conde De Maistre tarde da noite, soube que Dom Bosco tinha se retirado para o seu quarto. Todavia, dizendo que vinha por ordem do Papa, foi acompanhado até o quarto e apresentou a Dom Bosco a carta-convite com a qual era admitido a receber a palma bendita das mãos de Sua Santidade. Dom Bosco a leu logo e exclamou que iria com grande prazer.

Páscoa Romana de Dom Bosco. O Domingo de Ramos
No domingo, 28 de março, Dom Bosco com o Clérigo Rua entraram na Basílica de São Pedro muito antes que começassem as funções. O Conde Carlos De Maistre o acompanhou até a tribuna dos diplomatas, onde lhe fora preparado o lugar. Dom Bosco estava de olho porque conhecia a importância das cerimônias da Igreja. Ao seu lado estava um milorde inglês protestante, maravilhado com aquela solenidade de ritos. A certo ponto um cantor soprano da Capela Sistina cantou uma parte solo, mas tão bem que Dom Bosco ficou comovido às lágrimas e aquele milorde voltou-se para ele e exclamou em latim, porque em outra língua não sabia como entender-se:
– Post hoc paradisus! (Depois disso, o paraíso!, n.d.r.). Aquele senhor depois de algum tempo converteu-se ao catolicismo e depois foi padre e bispo. Como o Papa abençoara as palmas, quando chegou sua vez, o corpo diplomático desfilou em direção ao trono do Pontífice, e cada embaixador e ministro recebeu a palma de suas mãos. Também Dom Bosco e o Clérigo Rua se ajoelharam aos pés do Pontífice e receberam a palma. Assim Pio IX quis: e não era Dom Bosco um embaixador do Altíssimo? O Clérigo Rua, voltando junto dos rosminianos, presenteou sua palma ao P. Pagani, que muito agradeceu a gentileza […].

Dom Bosco caudatário
O Cardeal Marini, que era um dos dois cardeais diáconos assistentes ao trono, para que Dom Bosco pudesse assistir a todas as funções da Semana Santa, tomou-o como caudatário. Assim, ele esteve, em veste violeta, quase o tempo todo do cerimonial ao lado do Papa e pôde saborear os cantos gregorianos e as músicas de Allegri e de Palestrina.
Na Quinta-feira Santa, viu pontificar a Missa do Cardeal Mario Mattei como o mais ancião dos bispos suburbicários, em vez do cardeal decano do sacro colégio que estava impedido. Dom Bosco seguiu o Pontífice que em procissão levava o Santíssimo Sacramento à Capela Paulina para repô-lo na urna aí preparada; acompanhou-o no balcão vaticano do qual abençoa Roma e o mundo; assistiu ao lava-pés feito pelo Papa a treze sacerdotes e participou da ceia comemorativa
deles, servida pelo mesmo Vigário de Jesus Cristo.

A bênção Urbi et Orbi
[…] No dia 4 de abril as salvas da artilharia do Castel Sant’Angelo anunciavam o dia de Páscoa. Pio IX desceu pelas dez horas à Basílica para o pontifical. Logo depois, precedido por um cortejo de bispos e cardeais, ele foi até a Loggia para a bênção Urbi et Orbi. Dom Bosco, com o Cardeal Marini e um bispo, ficou por um instante perto da sacada, coberta por um magnífico tecido sobre o qual foram depositadas três áureas tiaras. O cardeal disse a Dom Bosco:
– Observe que espetáculo! Dom Bosco olhava atônito para a praça. Uma multidão
de 200 mil pessoas se aglomerava com o rosto voltado para a Loggia. Os tetos, as janelas, os terraços de todas as casas estavam ocupados. O Exército francês ocupava uma parte do espaço entre o obelisco e a escadaria de São Pedro. Os batalhões da infantaria pontifícia estavam enfileirados à direita e à esquerda. Atrás, a cavalaria e a artilharia. Milhares de carruagens estavam paradas nas duas alas da praça, perto dos pórticos de Bernini, e ao fundo perto das casas. Especialmente sobre aquelas alugadas estavam em pé grupos de pessoas que pareciam dominar a praça. Era um vozear clamoroso, um pisoteio de cavalos, uma confusão incrível. Ninguém pode fazer ideia de tal espetáculo.

Encurralado  
Dom Bosco, que deixara o Papa na Basílica no ato da veneração das insignes relíquias expostas, pensava que ele demoraria a chegar. Absorto em contemplar tanta gente de todas as nações, não percebeu a chegada do papa sentado na cadeira gestatória. Encontrou-se, então, numa posição difícil; apertado entre a cadeira e a balaustrada, apenas podia mexer-se; tudo ao redor da cadeira estava ocupado por cardeais, bispos, cerimoniários e sediários, de tal maneira que não via espaço para sair dali. Voltar o olhar para o Papa era inconveniente; dar-lhe os ombros, falta de educação; permanecer no centro do balcão, uma coisa ridícula. Não podendo fazer melhor, voltou-se de lado; então, a ponta de um pé do Papa pousou sobre seu ombro.

Nesse interim, um silêncio solene reinou na praça de modo que se podia ouvir o zumbido de uma mosca voando. Os próprios cavalos estavam imóveis. Dom Bosco, por nada perturbado, atento ao mínimo incidente, observou que um só relincho e o som de um relógio que batia as horas fizeram se ouvir enquanto o Papa, sentado, recitava algumas orações de rito. Ele, no entanto, visto que o pavimento da Loggia estava ornado de folhagens e flores, curvou-se e recolheu algumas daquelas flores e as colocou entre as páginas do livro que tinha em mãos. Finalmente Pio IX levantou-se para abençoar: abriu os braços, elevou ao céu as mãos, estendeu-as sobre a multidão, que inclinou a cabeça, e a sua voz no cantar a fórmula da bênção, sonora, forte, solene, se ouvia além da praça Rusticucci e do sótão do palácio dos escritores da Civiltà Cattolica.

A multidão respondeu à bênção do Papa com uma imensa ovação. Então o Cardeal Ugolini leu em latim o Breve da indulgência plenária e logo em seguida o Cardeal Marini o repetiu, mas em língua italiana. Dom Bosco havia se ajoelhado, e quando se levantou, o cortejo papal já havia desaparecido. Todos os sinos ocavam em festa, o canhão de Castel Sant’Angelo ribombava, as bandas militares faziam soar suas trompetas. O cardeal Marini, acompanhado pelo caudatário, desceu e foi em direção à sua carruagem. Assim que esta se moveu, Dom Bosco sentiu-se tomado pelo mal causado por aquele movimento que revirava seu estômago; não podendo mais resistir, manifestou ao cardeal seu desconforto. Por seu conselho, subiu na caixa com o cocheiro, mas o mal-estar não diminuiu, então desceu para caminhar a pé. Estando vestido de roxo, teria sido objeto de admiração ou escárnio se tivesse atravessado Roma assim; por isso, o secretário gentilmente desceu da carruagem e o acompanhou ao palácio […].

A lembrança do Papa
Dom Bosco, no dia 6 de abril, voltou para uma audiência particular com Pio IX em companhia do Clérigo Rua e do Teólogo Murialdo, admitido no Vaticano por gentil mediação do próprio Dom Bosco. Entraram na antessala às 9 horas da noite e logo Dom Bosco foi chamado. O Papa apenas o viu à sua frente e lhe disse com jeito sério:
– Dom Bosco, aonde o senhor se meteu no dia de Páscoa na hora da bênção papal? Ali, na frente do Papa! E tendo o ombro sob o meu pé como se o Pontífice tivesse necessidade de ser escorado por Dom Bosco.
– Santo Padre, respondeu Dom Bosco, tranquilo e humilde, fui pego de surpresa e peço-lhe perdão se de qualquer modo o ofendi!
– E o senhor acrescenta ainda a afronta em perguntar-me se me ofendeu? Dom Bosco olhou para o Papa, parecendo-lhe fictício tal comportamento. E, de fato, um sorriso sinalizava aparecer naqueles lábios venerandos. E o Pontífice continuou: Mas o que lhe passou na cabeça de colher flores naquele momento? Precisou de toda a gravidade de Pio IX para não desatar a rir. […].
– Beatíssimo Padre, suplicou Dom Bosco, tenha a bondade de sugerir-me uma máxima que eu possa repetir aos meus jovens como lembrança saída dos lábios do Vigário de Jesus Cristo.
– A presença de Deus! Respondeu o Papa. Diga aos seus jovens em meu nome que se guiem sempre com esse pensamento!… E agora não tem mais nada para me pedir? O senhor deseja certamente ainda alguma coisa.
– Santo Padre, a Vossa Santidade se dignou conceder-me tudo quanto pedi e por agora não me resta mais nada senão agradecê-la do mais íntimo do meu coração.
– No entanto, no entanto, o senhor deseja ainda algo. A essa réplica, Dom Bosco estava lá como suspenso sem proferir palavra, quando o Pontífice acrescentou:
– E como? Não deseja deixar alegres seus meninos, quando voltar a eles?
– Santidade, isso sim.
– Então, espere. Poucos instantes antes tinham entrado naquela sala o Teólogo Murialdo, o Clérigo Rua e P. Cerutti de Varazze, chanceler na Cúria Arquiepiscopal de Gênova. Eles ficaram maravilhados com a familiaridade com que o Papa tratava Dom Bosco e do que viram naquele momento. O Papa abriu o cofre, tirou com as duas mãos um monte de moedas romanas de ouro e sem contá-las entregou a Dom Bosco, dizendo:
– Pegue e dê uma boa merenda aos seus filhinhos. Cada um pode imaginar a impressão que fez em Dom Bosco esse gesto de paterna bondade de Pio IX que com grande amor se dirigia também aos eclesiásticos sobrevindos, abençoava os terços, os crucifixos e outros objetos de devoção que lhe apresentaram, e dava a todos uma preciosa lembrança em medalhas.

O desafio educativo de Dom Bosco
Entre os cardeais que passou a homenagear está o Eminentíssimo Tosti, a convite do qual dirigiu novamente algumas palavras aos jovens do Refúgio de São Miguel. O cardeal, satisfeito pela cortesia de Dom Bosco, sendo a hora de seu passeio, manifestou o desejo de tê-lo por companhia, e ambos saíram com a carruagem. Começou-se a falar do sistema mais apto para a educação dos jovens. Dom Bosco estava persuadido que os alunos daquele Internato não tinham familiaridade com os superiores, aliás, tinham medo deles: coisa pouco agradável, sob a direção de padres. Por isso dizia:
– Veja, Eminência, é impossível poder educar bem os jovens se eles não têm confiança nos superiores.
– Mas como, replicou o cardeal, se pode ganhar essa confiança?
– Procurando que eles se aproximem de nós, evitando qualquer causa que se afastem de nós.
– E como se pode fazer para aproximá-los de nós?
– Aproximando-nos deles, buscando adaptar-nos aos seus gostos, fazendo-nos semelhantes a eles. Quer fazer uma prova? Diga-me: em que ponto de Roma se pode encontrar um bom número de meninos?
– Na ‘iazza Termini e na Piazza del Popolo.
– Pois bem, vamos então à Piazza del Popolo.

O cardeal deu ordem ao cocheiro e foram. Assim que chegaram, Dom Bosco desceu da carruagem, e o cardeal ficou observando-o. Vendo um grupo de meninos que brincavam, Dom Bosco aproximou-se, mas os garotos fugiram. Então, chamou-os com boas maneiras e eles, depois de alguma hesitação, retornaram. Dom Bosco lhes deu alguma coisinha, pediu notícias de suas famílias, perguntou do que brincavam, convidou-os a retomar a brincadeira, pôs-se a comandar o divertimento deles, e ele mesmo tomou parte. Então, outros jovens que estavam olhando de longe correram em grande número dos quatro cantos da praça e rodearam o padre, que os acolheu amorosamente e tinha para todos uma boa palavra e um presentinho. Perguntava se fossem bons, se rezassem as orações, se iam se confessar. Quando quis ir embora, eles o seguiram por um bom trecho e só o deixaram quando subiu na carruagem. O cardeal estava maravilhado.
– Viu?
– Tem razão! exclamou o cardeal […].

As últimas visitas
Suas últimas visitas foram reservadas à Confissão de São Pedro e às Catacumbas. Depois de ter rezado na Basílica de São Sebastião [basilica di S. Sebastiano], visto as duas das flechas que feriram o santo tribuno e a coluna na qual foi amarrado, desceu às galerias que guardam os ossos de milhares e milhares de mártires e onde São Filipe Neri tantas noites esteve em vigília rezando fervorosamente. Passou, depois, às Catacumbas de São Calisto [Catacombe di san Callisto]. Aí esperava-o o Cavaleiro G. B. De Rossi, quem descobrira aquelas catacumbas e ao qual Monsenhor de San Marzano o tinha apresentado. Quem entra naqueles lugares experimenta uma tal comoção que permanece inesquecível pelo resto da vida; e Dom Bosco estava absorto em santos e doces pensamentos percorrendo aqueles subterrâneos, onde os primeiros cristãos, com a missa, as orações em comum, o canto dos salmos e das profecias, a comunhão eucarística, o ouvir a palavra dos bispos e dos papas tinham encontrado a força necessária para o martírio que os esperava. É impossível olhar com olhos enxutos aqueles lóculos que tinham guardado os corpos ensanguentados ou queimados de tantos heróis da fé, as tumbas de quase catorze papas que tinham dado a vida para testemunhar o que ensinavam e a cripta de Santa Cecília.

Dom Bosco observava os muitos afrescos antiquíssimos que simbolizavam Jesus Cristo e a Eucaristia; e as imagens que representavam o matrimônio de Maria Santíssima com São José; a Assunção de Maria ao céu, a Mãe de Deus com o Menino nos braços ou sobre os joelhos. Ele ficou encantado pelo sentimento de simplicidade que resplandece nessas imagens, nas quais a arte cristã primitiva soubera reproduzir a beleza incomparável da alma e o ideal altíssimo da perfeição moral que se deve atribuir à Virgem. Não faltavam outras figuras de santos e de mártires. Dom Bosco saiu das catacumbas às 6h da tarde e tinha entrado nelas às 8h da manhã […].

Rumo a casa
Dom Bosco, no dia 14 de abril, partia de Roma com o Clérigo Rua, feliz pelo lançamento das bases da Sociedade de São Francisco de Sales […]. Alugou uma carruagem, fez uma breve parada no povoado de Palo e encontrou o dono perfeitamente livre das febres: a sua cura fora instantânea. Ele nunca esqueceu o benefício e, depois de muito tempo, por volta do ano de 1875 ou 1876, tendo ido a Gênova por razões comerciais, quis avançar sua viagem até Turim. Informando-se e sabendo por telégrafo que Dom Bosco estava no Oratório, foi até lá; mas Dom Bosco, naquele dia, estava almoçando com o Sr. Carlos Occelletti. Foi logo encontrá-lo, numa felicidade sem fim. O Sr. Occelletti lembrava sempre com grande satisfação a história que ouvira sobre aquela cura. Tendo chegado em Civitavecchia e feita uma visita ao Delegado Pontifício, Dom Bosco foi ao porto para embarcar.

As ondas dessa vez estavam calmas e o tempo bom, assim Dom Bosco pôde descer em Livorno, conversar com algum amigo e visitar algumas igrejas. Retomado o mar à noite, Rua se lembra como a barca chegasse ao porto de Gênova ao surgir de uma esplêndida aurora que iluminava o magnífico panorama da soberba cidade. Dom Bosco tinha acabado de pôr os pés em terra e logo se dirigiu ao Colégio dos Artigianelli, onde o esperava o P. Montebruno e o Sr. Giuseppe Canale. Depois do meio-dia subiu no trem. Atravessando a cidade, teve uma grata surpresa: tocando os sinos, o Angelus, muitas pessoas pelas ruas e pelas praças tiraram o chapéu, e os mesmos carregadores se levantaram de seus bancos para recitar a oração. Muitas vezes ele descrevera esse espetáculo para a edificação de seus alunos. Chegou em Turim no dia 16 de abril, sendo acolhido pelos jovens com tal exultação e afeto que nenhum pai poderia desejar-se melhor dos próprios filhos.




A síndrome de Filipe e a de André

No relato do evangelho de João, capítulo 6, versículos 4-14, que apresenta a multiplicação dos pães, temos alguns detalhes sobre os quais me detenho um pouco toda vez que medito ou comento esse trecho.

Tudo começa quando, diante da “grande” multidão faminta, Jesus convida os discípulos a assumirem a responsabilidade de alimentá-la. 
Os detalhes de que falo são, primeiro, quando Filipe diz que não é possível assumir esse chamado devido à quantidade de pessoas presentes. André, por sua vez, enquanto observa que “aqui há um menino que tem cinco pães de cevada e dois peixes”, acaba subestimando essa mesma possibilidade com um simples comentário: “mas o que é isso para tanta gente?” (v.9). 
Desejo simplesmente compartilhar com vocês, queridas leitoras e queridos leitores, como nós cristãos, que temos o chamado de compartilhar a alegria da nossa fé, às vezes, sem perceber, podemos ser contagiados pela síndrome de Filipe ou pela de André. Às vezes, talvez até por ambas! 
Na vida da Igreja, assim como na vida da Congregação e da Família Salesiana, os desafios não faltam e nunca faltarão. Nosso chamado não é formar um grupo de pessoas onde se busca apenas estar bem, sem incomodar e sem ser incomodado. Não é uma experiência feita de certezas pré-fabricadas. Fazer parte do corpo de Cristo não deve nos distrair nem nos afastar da realidade do mundo como ele é. Pelo contrário, nos impulsiona a estar plenamente envolvidos nas questões da história humana. Isso significa, antes de tudo, olhar a realidade não apenas com olhos humanos, mas também, e principalmente, com os olhos de Jesus. Somos convidados a responder guiados pelo amor que encontra sua fonte no coração de Jesus, ou seja, viver para os outros como Jesus nos ensina e nos mostra.

A síndrome de Filipe 
A síndrome de Filipe é sutil e por isso muito perigosa. A análise que Filipe faz é justa e correta. Sua resposta ao convite de Jesus não está errada. Seu raciocínio segue uma lógica humana muito linear e sem falhas. Ele olhava a realidade com seus olhos humanos, com uma mente racional e, no fim das contas, não viável. Diante desse modo “racional” de proceder, o faminto para de me interpelar, o problema é dele, não meu. Para ser mais preciso à luz do que vivemos diariamente: o refugiado poderia ficar em sua casa, não deve me incomodar; o pobre e o doente cuidem de si mesmos e não cabe a mim fazer parte do problema deles, muito menos encontrar a solução para eles. Eis a síndrome de Filipe. Ele é um seguidor de Jesus, mas sua maneira de ver e interpretar a realidade ainda está parada, não desafiada, a anos-luz da do seu mestre.

A síndrome de André
Segue a síndrome de André. Não digo que seja pior que a síndrome de Filipe, mas falta pouco para ser mais trágica. É uma síndrome fina e cínica: vê alguma possibilidade, mas não vai além. Há uma pequena esperança, mas humanamente não é viável. Então chega-se a desqualificar tanto o dom quanto o doador. E o doador, que neste caso tem “azar”, é um menino que está simplesmente pronto para compartilhar o que tem! 
Duas síndromes que ainda estão conosco, na Igreja e também entre nós pastores e educadores. Abafar uma pequena esperança é mais fácil do que dar espaço à surpresa de Deus, uma surpresa que pode fazer florescer uma esperança, ainda que pequena. Deixar-se condicionar por clichês dominantes para não explorar oportunidades que desafiam leituras e interpretações redutivas é uma tentação permanente. Se não tomarmos cuidado, nos tornamos profetas e executores da nossa própria ruína. Ao permanecer fechados numa lógica humana, “academicamente” refinada e “intelectualmente” qualificada, o espaço para uma leitura evangélica torna-se cada vez mais limitado e acaba desaparecendo. 
Quando essa lógica humana e horizontal é colocada em crise, para se defender, um dos sinais que surge é o do “ridículo”. Quem ousa desafiar a lógica humana porque deixa entrar o ar fresco do Evangelho será cheio de ridículo, atacado, zombado. Quando isso acontece, estranhamente podemos dizer que estamos diante de um caminho profético. As águas se movem.

Jesus e as duas síndromes
Jesus supera as duas síndromes “pegando” os pães considerados poucos e, por consequência, irrelevantes. Jesus abre a porta para aquele espaço profético e de fé que nos é pedido habitar. Diante da multidão, não podemos nos contentar em fazer leituras e interpretações autorreferenciais. Seguir Jesus implica ir além do raciocínio humano. Somos chamados a olhar os desafios com seus olhos. Quando Jesus nos chama, não pede soluções, mas a doação de todo nós mesmos, com o que somos e o que temos. No entanto, o risco é que, diante do seu chamado, permaneçamos presos, consequentemente escravos, do nosso pensamento e ávidos pelo que acreditamos possuir. 
Só na generosidade fundada no abandono à sua Palavra chegamos a colher a abundância da ação providencial de Jesus. “Eles, então, os recolheram e encheram doze cestos com os pedaços que sobraram dos que tinham comido daqueles cinco pães de cevada” (v.13): o pequeno dom do menino frutifica de maneira surpreendente somente porque as duas síndromes não tiveram a última palavra. 
O Papa Bento comenta assim esse gesto do menino: “Na cena da multiplicação, é também destacada a presença de um menino que, diante da dificuldade de alimentar tanta gente, compartilha o pouco que tem: cinco pães e dois peixes. O milagre não surge do nada, mas de uma primeira modesta partilha do que um simples menino tinha consigo. Jesus não nos pede o que não temos, mas nos mostra que, se cada um oferece o pouco que tem, o milagre pode sempre se realizar novamente: Deus é capaz de multiplicar nosso pequeno gesto de amor e nos tornar participantes do seu dom” (Ângelus, 29 de julho de 2012). 
Diante dos desafios pastorais que temos, diante de tanta sede e fome de espiritualidade que os jovens expressam, tentemos não ter medo, não ficar presos às nossas coisas, aos nossos modos de pensar. Ofereçamos a Ele o pouco que temos, confiemos na luz da sua Palavra e que esta, e somente esta, seja o critério permanente das nossas escolhas e a luz que guia nossas ações.

Foto: Milagre evangélico da multiplicação dos pães e dos peixes, vitral da Abadia de Tewkesbury em Gloucestershire (Reino Unido), obra de 1888, realizada pela Hardman & Co




Entrevista com o Reitor-Mor, P. Fabio Attard

Fizemos uma entrevista exclusiva com o Reitor-Mor dos Salesianos, P. Fabio Attard, percorrendo as etapas fundamentais de sua vocação e de sua trajetória humana e espiritual. Sua vocação nasceu no oratório e se consolidou através de uma rica formação que o levou da Irlanda à Tunísia, de Malta a Roma. De 2008 a 2020, foi Conselheiro Geral para a Pastoral Juvenil, função que desempenhou com uma visão multicultural adquirida através de experiências em diferentes contextos. A sua mensagem central é a santidade como fundamento da ação educativa salesiana: “Gostaria de ver uma Congregação mais santa”, afirma, sublinhando que a eficiência profissional deve estar enraizada na identidade consagrada.

Qual é a história da sua vocação?

Nasci em Gozo, Malta, em 23 de março de 1959, quinto de sete filhos. Na época do meu nascimento, meu pai era farmacêutico em um hospital, enquanto minha mãe tinha uma pequena loja de tecidos e costura, que com o tempo cresceu e se tornou uma pequena rede de cinco lojas. Ela era uma mulher muito trabalhadora, mas o negócio sempre foi familiar.

Frequentei as escolas primárias e secundárias locais. Um elemento muito bonito e particular da minha infância é que meu pai era catequista leigo no oratório, que até 1965 era dirigido pelos salesianos. Quando jovem, ele frequentava aquele oratório e acabou ficando lá como único catequista leigo. Quando comecei a frequentá-lo, aos seis anos, os salesianos tinham acabado de deixar a obra. Assumiu um jovem padre (que ainda está vivo) que continuou as atividades do oratório com o mesmo espírito salesiano, tendo ele próprio vivido lá como seminarista.
Continuávamos com o catecismo, a bênção eucarística diária, o futebol, o teatro, o coro, as excursões, as festas… tudo o que se vive normalmente num oratório. Havia muitas crianças e jovens, e eu cresci nesse ambiente. Na prática, minha vida se passava entre a família e o oratório. Eu também era coroinha na minha paróquia. Assim, depois do ensino médio, me orientei para o sacerdócio, porque desde criança tinha esse desejo no coração.

Hoje percebo o quanto fui influenciado por aquele jovem sacerdote, que eu admirava: ele estava sempre presente conosco no pátio, nas atividades do oratório. No entanto, naquela época os salesianos já não estavam mais lá. Entrei então no seminário, onde na época se faziam dois anos de curso preparatório como internos. Durante o terceiro ano – que correspondia ao primeiro ano de filosofia – conheci um amigo da família de cerca de 35 anos, uma vocação adulta, que havia entrado como aspirante salesiano (hoje ainda está vivo e é coadjutor). Quando ele deu esse passo, acendeu-se uma chama dentro de mim. E com a ajuda do meu diretor espiritual, comecei um discernimento vocacional.
Foi um caminho importante, mas também exigente: eu tinha 19 anos, mas aquele guia espiritual me ajudou a buscar a vontade de Deus, e não simplesmente a minha. Assim, no último ano – o quarto de filosofia –, em vez de segui-lo no seminário, vivi como aspirante salesiano, completando os dois anos de filosofia exigidos.

Na família, o ambiente era fortemente marcado pela fé. Participávamos todos os dias da missa, rezávamos o rosário em casa, éramos muito unidos. Ainda hoje, embora nossos pais estejam no céu, mantemos essa mesma unidade entre irmãos e irmãs.

Outra experiência familiar me marcou profundamente, embora só tenha percebido isso com o tempo. Meu irmão, o segundo da família, morreu aos 25 anos de insuficiência renal. Hoje, com os avanços da medicina, ele ainda estaria vivo graças à diálise e aos transplantes, mas naquela época não havia tantas possibilidades. Estive ao seu lado nos últimos três anos de sua vida: dividíamos o mesmo quarto e muitas vezes eu o ajudava à noite. Ele era um jovem sereno, alegre, que vivia sua fragilidade com uma alegria extraordinária.
Eu tinha 16 anos quando ele morreu. Passaram-se cinquenta anos, mas quando penso naquela época, naquela experiência cotidiana de proximidade, feita de pequenos gestos, reconheço o quanto isso marcou minha vida.

Nasci em uma família onde havia fé, senso de trabalho, responsabilidade compartilhada. Meus pais são dois exemplos extraordinários para mim: viveram com grande fé e serenidade a cruz, sem nunca sobrecarregar ninguém, e ao mesmo tempo souberam transmitir a alegria da vida familiar. Posso dizer que tive uma infância muito bonita. Não éramos ricos, nem pobres, mas sempre sóbrios, discretos. Eles nos ensinaram a trabalhar, a administrar bem os recursos, a não desperdiçar, a viver com dignidade, com elegância e, acima de tudo, com atenção aos pobres e aos doentes.

Como sua família reagiu quando o senhor tomou a decisão de seguir a vocação consagrada?

Chegou o momento em que, junto com meu diretor espiritual, esclarecemos que meu caminho era o dos salesianos. Eu também precisava comunicar isso aos meus pais. Lembro que era uma noite tranquila, estávamos jantando juntos, só nós três. A certa altura, eu disse: “Quero lhes dizer uma coisa: fiz meu discernimento e decidi entrar para os salesianos”.
Meu pai ficou muito feliz. Ele respondeu imediatamente: “Que o Senhor te abençoe”. Minha mãe, por outro lado, começou a chorar, como todas as mães fazem. Ela me perguntou: “Então você vai se afastar?” Mas meu pai interveio com doçura e firmeza: “Quer ele se afaste ou não, este é o seu caminho”.
Eles me abençoaram e me encorajaram. São momentos que ficam gravados para sempre.

Lembro-me particularmente do que aconteceu no final da vida dos meus pais. Meu pai faleceu em 1997 e, seis meses depois, descobriram um tumor incurável em minha mãe.
Naquela época, os superiores me pediram para ir lecionar na Universidade Pontifícia Salesiana (UPS), mas eu não sabia que decisão tomar. Minha mãe não estava bem, estava perto da morte. Conversando com meus irmãos, eles me disseram: “Faça o que os superiores pedem”.
Eu estava em casa e conversei com ela: “Mãe, os superiores estão me pedindo para ir para Roma”.
Ela, com a lucidez de uma verdadeira mãe, respondeu: “Ouça, meu filho, se dependesse de mim, eu pediria que você ficasse aqui, porque não tenho mais ninguém e não gostaria de ser um fardo para seus irmãos. Mas…” – e aqui ela disse uma frase que guardo no coração – “Você não é meu, você pertence a Deus. Faça o que seus superiores lhe dizem.”
Essa frase, pronunciada um ano antes de sua morte, é para mim um tesouro, uma herança preciosa. Minha mãe era uma mulher inteligente, sábia, perspicaz: sabia que a doença a levaria ao fim, mas naquele momento soube ser livre interiormente. Livre para dizer palavras que confirmavam mais uma vez o dom que ela mesma havia feito a Deus: oferecer um filho à vida consagrada.

A reação da minha família, desde o início até o fim, foi sempre marcada por um profundo respeito e um grande apoio. E ainda hoje, meus irmãos e irmãs continuam a levar adiante esse espírito.

Qual foi o seu percurso formativo desde o noviciado até hoje?

Foi um percurso muito rico e variado. Comecei o pré-noviciado em Malta, depois fiz o noviciado em Dublin, na Irlanda. Uma experiência realmente bonita.

Depois do noviciado, meus companheiros se mudaram para Maynooth para estudar filosofia na universidade, mas eu já tinha concluído esse curso anteriormente. Por isso, os superiores me pediram para permanecer no noviciado por mais um ano, onde ensinei italiano e latim. Depois, voltei para Malta para fazer dois anos de estágio, que foram muito bonitos e enriquecedores.

Depois, fui enviado a Roma para estudar teologia na Pontifícia Universidade Salesiana, onde passei três anos extraordinários. Esses anos me deram uma grande abertura mental. Vivíamos no seminário com quarenta coirmãos provenientes de vinte nações diferentes: Ásia, Europa, América Latina… até o corpo docente era internacional. Era em meados dos anos 80, cerca de vinte anos após o Concílio Vaticano II, e ainda se respirava muito entusiasmo: havia debates teológicos animados, a teologia da libertação, o interesse pelo método e pela prática. Esses estudos me ensinaram a ler a fé não apenas como conteúdo intelectual, mas como uma escolha de vida.

Após esses três anos, continuei com mais dois de especialização em teologia moral na Academia Alfonsiana, com os padres redentoristas. Lá também encontrei figuras significativas, como o famoso Bernhard Häring, com quem fiz uma amizade pessoal e ia regularmente todos os meses para conversar com ele. Foram cinco anos no total – entre o bacharelado e a licenciatura – que me formaram profundamente do ponto de vista teológico.

Posteriormente, me ofereci para as missões, e os superiores me enviaram para a Tunísia, junto com outro salesiano, para restabelecer a presença salesiana no país. Assumimos uma escola administrada por uma congregação feminina que, não tendo mais vocações, estava prestes a fechar. Era uma escola com 700 alunos; por isso tivemos que aprender francês e também árabe. Para nos prepararmos, passamos alguns meses em Lyon, na França, e depois nos dedicamos ao estudo do árabe.
Fiquei lá três anos. Foi outra grande experiência, porque nos encontramos a viver a fé e o carisma salesiano num contexto em que não se podia falar explicitamente de Jesus. No entanto, era possível construir percursos educativos baseados em valores humanos: respeito, disponibilidade, verdade. O nosso testemunho era silencioso, mas eloquente. Naquele ambiente, aprendi a conhecer e a amar o mundo muçulmano. Todos – alunos, professores e famílias – eram muçulmanos e nos acolheram com grande calor. Fizeram-nos sentir parte da sua família. Voltei várias vezes à Tunísia e sempre encontrei o mesmo respeito e apreço, independentemente da nossa pertença religiosa.

Depois dessa experiência, voltei para Malta e trabalhei durante cinco anos na área social. Em particular, numa casa salesiana que acolhe jovens que precisam de um acompanhamento educativo mais atento, também em regime residencial.

Após estes oito anos de pastoral (entre a Tunísia e Malta), foi-me oferecida a possibilidade de concluir o doutorado. Optei por voltar à Irlanda, porque o tema estava relacionado com a consciência segundo o pensamento do cardeal John Henry Newman, hoje santo. Concluído o doutorado, o Reitor-Mor da época, P. Juan Edmundo Vecchi – de grata memória – pediu-me para ingressar como professor de teologia moral na Pontifícia Universidade Salesiana.

Olhando para todo o meu percurso, desde o aspirantado até ao doutorado, posso dizer que foi um conjunto de experiências não só de conteúdos, mas também de contextos culturais muito diferentes. Agradeço ao Senhor e à Congregação, porque me ofereceram a possibilidade de viver uma formação tão variada e rica.

Então o senhor conhece o maltês porque é sua língua materna, o inglês porque é a segunda língua em Malta, o latim porque o senhor o ensinou, o italiano porque estudou na Itália, o francês e o árabe porque esteve em Manouba, na Tunísia… Quantas línguas o senhor conhece?

Cinco, seis línguas, mais ou menos. Mas, quando me perguntam sobre línguas, eu sempre digo que são um pouco coincidências históricas.
Em Malta, já crescemos com duas línguas: o maltês e o inglês, e na escola se estuda uma terceira língua. Na minha época, também se ensinava italiano. Além disso, eu tinha um talento natural para línguas e também escolhi o latim. Mais tarde, quando fui para a Tunísia, foi necessário aprender francês e também árabe.
Em Roma, vivendo com muitos estudantes de espanhol, o ouvido se acostuma e, quando fui eleito Conselheiro para a Pastoral Juvenil, aprofundei um pouco o espanhol, que é uma língua muito bonita.

Todas as línguas são bonitas. Claro, aprendê-las requer empenho, estudo, prática. Há quem tenha mais facilidade, outros menos: faz parte da disposição pessoal. Mas não é um mérito, nem uma culpa. É simplesmente um dom, uma predisposição natural.

De 2008 a 2020, o senhor foi Conselheiro Geral da Pastoral Juvenil por dois mandatos. Como sua experiência nesta missão o ajudou?

Quando o Senhor nos confia uma missão, levamos conosco toda a bagagem de experiências que acumulamos ao longo do tempo.
Tendo vivido em contextos culturais diferentes, não corria o risco de ver tudo através do filtro de uma única cultura. Sou europeu, venho do Mediterrâneo, de um país que foi colônia inglesa, mas tive a graça de viver em comunidades internacionais e multiculturais.

Os anos de estudo na UPS também me ajudaram muito. Tínhamos professores que não se limitavam a transmitir conteúdos, mas nos educavam a fazer síntese, a construir um método. Por exemplo, se estudávamos história da Igreja, compreendíamos como era essencial para compreender a patrística. Se abordávamos a teologia bíblica, aprendíamos a relacioná-la com a teologia sacramental, com a moral, com a história da espiritualidade. Em suma, ensinavam-nos a pensar de forma orgânica.
Essa capacidade de síntese, essa arquitetura do pensamento, torna-se então parte da sua formação pessoal. Quando se estuda teologia, aprende-se a identificar pontos fixos e a conectá-los. O mesmo vale para uma proposta pastoral, pedagógica ou filosófica. Quando se encontra pessoas com grande profundidade, absorve-se não só o que dizem, mas também como o dizem, e isso forma o seu estilo.

Outro elemento importante é que, no momento da minha eleição, eu já tinha vivido experiências em ambientes missionários, onde a religião católica era praticamente ausente, e tinha trabalhado com pessoas marginalizadas e vulneráveis. Também tinha adquirido alguma experiência no mundo universitário e, paralelamente, tinha-me dedicado muito ao acompanhamento espiritual.

Além disso, entre 2005 e 2008 – logo após a experiência na UPS –, a Arquidiocese de Malta me pediu para fundar um Instituto de Formação Pastoral, na sequência de um Sínodo diocesano que reconheceu a necessidade do mesmo. O arcebispo me confiou a tarefa de começar do zero. A primeira coisa que fiz foi formar uma equipe com padres, religiosos, leigos – homens e mulheres. Criamos um novo método de formação, que ainda é usado hoje. O instituto continua funcionando muito bem e, de certa forma, essa experiência foi uma preparação valiosa para o trabalho que realizei posteriormente na pastoral juvenil.
Desde o início, sempre acreditei no trabalho em equipe e na colaboração com os leigos. Minha primeira experiência como diretor foi justamente nesse estilo: uma equipe educativa estável, hoje diríamos uma CEP (Comunidade Educativa-Pastoral), com encontros sistemáticos, não ocasionais. Nós nos reuníamos todas as semanas com os educadores e profissionais. E essa abordagem, que com o tempo se tornou um método, permaneceu para mim uma referência.

A isso se soma também a experiência acadêmica: seis anos como professor na Pontifícia Universidade Salesiana, na qual chegavam estudantes de mais de cem nações, e depois como examinador e diretor de teses de doutorado na Academia Alfonsiana.

Acredito que tudo isso me preparou para viver essa responsabilidade com lucidez e visão.

Assim, quando a Congregação, durante o Capítulo Geral de 2008, me pediu para assumir este cargo, eu já trazia comigo uma visão ampla e multicultural. E isso me ajudou, porque reunir diversidades não era algo difícil para mim: era parte da normalidade. Claro, não se tratava simplesmente de fazer uma “salada” de experiências: era preciso encontrar os fios condutores, dar coerência e unidade.

O que pude viver como Conselheiro Geral não foi um mérito pessoal. Acredito que qualquer salesiano, se tivesse tido as mesmas oportunidades e o apoio da Congregação, poderia ter vivido experiências semelhantes e dado a sua contribuição com generosidade.

Há uma oração, uma boa noite salesiana, um hábito que o senhor nunca deixa de fazer?

A devoção a Maria. Em casa, crescemos com o Rosário diário, rezado em família. Não era uma obrigação, era algo natural: fazíamos antes de comer, porque sempre comíamos juntos. Naquela época era possível. Hoje talvez seja menos, mas naquela época era assim que se vivia: a família reunida, a oração compartilhada, a mesa comum.

No início, talvez eu não percebesse o quanto era profunda essa devoção mariana. Mas com o passar dos anos, quando se começa a distinguir o que é essencial do que é secundário, compreendi o quanto essa presença materna acompanhou minha vida.
A devoção a Maria se expressa de diferentes formas: o Rosário diário, quando possível; um momento de pausa diante de uma imagem ou estátua da Virgem Maria; uma oração simples, mas feita com o coração. São gestos que acompanham o caminho da fé.

Naturalmente, há alguns pontos fixos: a Eucaristia diária e a meditação diária. São pilares que não se discutem, se vivem. Não só porque somos consagrados, mas porque somos crentes. E a fé só se vive alimentando-a.
Quando a alimentamos, ela cresce em nós. E só se crescer em nós, podemos ajudar a que cresça também nos outros. Para nós, que somos educadores, é evidente: se a nossa fé não se traduz em vida concreta, todo o resto se torna fachada.

Essas práticas – a oração, a meditação, a devoção – não são reservadas aos santos. São expressão de honestidade. Se fiz uma escolha de fé, também tenho a responsabilidade de cultivá-la. Caso contrário, tudo se reduz a algo exterior, aparente. E isso, com o tempo, não se sustenta.

Se pudesse voltar atrás, faria as mesmas escolhas?

Absolutamente sim. Na minha vida, houve momentos muito difíceis, como acontece com todos. Não quero passar por “vítima de plantão”. Acredito que toda pessoa, para crescer, precisa passar por fases de escuridão, momentos de desolação, de solidão, de se sentir traída ou acusada injustamente. E eu vivi esses momentos. Mas tive a graça de ter um diretor espiritual ao meu lado.

Quando se vive certas dificuldades acompanhado por alguém, consegue-se intuir que tudo o que Deus permite tem um sentido, tem um propósito. E quando se sai desse “túnel”, descobre-se que se é uma pessoa diferente, mais madura. É como se, através dessa provação, fôssemos transformados.

Se eu tivesse ficado sozinho, teria corrido o risco de tomar decisões erradas, sem visão, cego pelo cansaço do momento. Quando se está zangado, quando se sente sozinho, não é hora de decidir. É hora de caminhar, de pedir ajuda, de se deixar acompanhar.

Viver certas passagens com a ajuda de alguém é como ser uma massa colocada no forno: o fogo a cozinha, a torna madura.
Portanto, à pergunta se mudaria alguma coisa, a minha resposta é: não. Porque mesmo os momentos mais difíceis, mesmo aqueles que eu não compreendia, ajudaram-me a tornar-me na pessoa que sou hoje.
Sinto-me uma pessoa perfeita? Não. Mas sinto que estou a caminho, todos os dias, tentando viver diante da misericórdia e da bondade de Deus.

E hoje, ao dar esta entrevista, posso dizer com sinceridade que me sinto feliz. Talvez ainda não tenha compreendido plenamente o que significa ser Reitor-Mor – isso leva tempo –, mas sei que é uma missão, não um passeio. Traz consigo as suas dificuldades. No entanto, sinto-me amado, estimado pelos meus colaboradores e por toda a Congregação.

E tudo o que sou hoje, sou graças ao que vivi, mesmo nos momentos mais difíceis. Não mudaria nada. Eles fizeram de mim quem sou.

O senhor tem algum projeto que lhe seja particularmente caro?

Sim. Se fecho os olhos e imagino algo que realmente desejo, gostaria de ver uma Congregação mais santa. Mais santa. Mais santa.

Fiquei profundamente inspirado pela primeira carta do padre Pascual Chávez, de 2002, intitulada “Sede santos”. Essa carta me tocou profundamente, deixou uma marca em mim.
Os projetos são muitos, e todos válidos, bem estruturados, com visões amplas e profundas. Mas que valor têm, se são levados adiante por pessoas que não são santas? Podemos fazer um trabalho excelente, podemos até ser apreciados – e isso, em si, não é negativo –, mas não trabalhamos para obter sucesso. O nosso ponto de partida é uma identidade: somos pessoas consagradas.

O que propomos só faz sentido se nasce daí. É claro que desejamos que nossos projetos tenham sucesso, mas ainda mais desejamos que tragam graça, que toquem as pessoas profundamente. Não basta ser eficiente. Temos que ser eficazes, no sentido mais profundo: eficazes no testemunho, na identidade, na fé.
A eficiência pode existir mesmo sem qualquer referência religiosa. Podemos ser excelentes profissionais, mas isso não basta.
Nossa consagração não é um detalhe: é o fundamento. Se ela se torna marginal, se a colocamos de lado para dar espaço à eficiência, então perdemos nossa identidade.

E as pessoas nos observam. Nas escolas salesianas, reconhece-se que os resultados são bons – e isso é bom. Mas será que também nos reconhecem como homens de Deus? Essa é a questão.
Se nos veem apenas como bons profissionais, então somos apenas eficientes. Mas a nossa vida deve alimentar-se Dele – Caminho, Verdade e Vida – não do que “eu penso” ou “eu quero” ou “do que me parece”.

Portanto, mais do que falar de um projeto pessoal, prefiro falar de um desejo profundo: tornar-me santo. E falar disso de forma concreta, não idealizada.
Quando Dom Bosco falava aos seus jovens sobre estudo, saúde e santidade, não se referia a uma santidade feita apenas de oração na capela. Ele pensava em uma santidade vivida na relação com Deus e alimentada pela relação com Deus. A santidade cristã é o reflexo dessa relação viva e cotidiana.

Que conselho o senhor daria a um jovem que se questiona sobre a vocação?

Eu diria para descobrir, passo a passo, qual é o projeto de Deus para ele.
O caminho vocacional não é uma pergunta que se faz, esperando uma resposta pronta da Igreja. É uma peregrinação. Quando um jovem me diz: “Não sei se quero ser salesiano ou não”, tento afastá-lo dessa formulação. Porque não se trata simplesmente de decidir: “Vou ser salesiano”. A vocação não é uma opção em relação a uma “coisa”.

Também na minha própria experiência, quando disse ao meu diretor espiritual: “Quero ser salesiano, tenho que ser”, ele, com muita calma, me fez refletir: “É realmente a vontade de Deus? Ou é apenas um desejo seu?”

E é justo que um jovem procure o que deseja, é algo saudável. Mas quem o acompanha tem a tarefa de educar essa busca, de transformá-la de entusiasmo inicial em caminho de amadurecimento interior.
“Você quer fazer o bem? Ótimo. Então conheça a si mesmo, reconheça que é amado por Deus”.
É somente a partir dessa relação profunda com Deus que pode surgir a verdadeira pergunta: “Qual é o projeto de Deus para mim?”
Porque o que hoje desejo, amanhã pode não me bastar mais. Se a vocação se reduz ao que “gosto”, então será algo frágil. A vocação é, pelo contrário, uma voz interior que interpela, que pede para entrar em diálogo com Deus e para responder.

Quando um jovem chega a este ponto, quando é acompanhado a descobrir aquele espaço interior onde habita Deus, então começa realmente a caminhar.
E por isso, quem acompanha deve ser muito atento, profundo, paciente. Nunca superficial.
O Evangelho de Emaús é uma imagem perfeita: Jesus se aproxima dos dois discípulos, os escuta, mesmo sabendo que estão falando confusamente. Depois de ouvi-los, começa a falar. E eles, no final, o convidam: “Fica conosco, porque já está ficando tarde”.
E o reconhecem no gesto de partir o pão. Então dizem: “Não ardia em nós o nosso coração enquanto ele nos falava pelo caminho?”

Hoje, muitos jovens estão em busca. Nossa tarefa, como educadores, é não ser apressados. Mas ajudá-los, com calma e gradualidade, a descobrir a grandeza que já está em seus corações. Porque lá, naquela profundidade, eles encontram Cristo. Como diz Santo Agostinho: “Tu estavas dentro de mim, e eu estava fora. E lá eu te procurava”.

O senhor teria uma mensagem a transmitir hoje à Família Salesiana?

É a mesma mensagem que compartilhei também nestes dias, durante o encontro da Consulta da Família Salesiana: A fé. Enraizar-nos cada vez mais na pessoa de Cristo.

É desse enraizamento que nasce um conhecimento autêntico de Dom Bosco. Os primeiros salesianos, quando quiseram escrever um livro sobre o verdadeiro Dom Bosco, não o intitularam “Dom Bosco apóstolo dos jovens”, mas “Dom Bosco com Deus” – um texto escrito pelo P. Eugênio Ceria em 1929.
E isso nos faz refletir. Por que eles, que o viam em ação todos os dias, não escolheram destacar o Dom Bosco incansável, organizador, educador? Não, eles quiseram contar o Dom Bosco profundamente unido a Deus.
Quem o conheceu bem não se deteve nas aparências, mas foi à raiz: Dom Bosco era um homem imerso em Deus.

À Família Salesiana, eu digo: recebemos um tesouro. Um dom imenso. Mas todo dom implica uma responsabilidade.
No meu discurso final, eu disse: “Não basta amar Dom Bosco, é preciso conhecê-lo.”
E só podemos conhecê-lo verdadeiramente se formos pessoas de fé.

Devemos olhar para ele com os olhos da fé. Só assim podemos encontrar o crente que foi Dom Bosco, em quem o Espírito Santo agiu com força: com dýnamis, com cháris, com carisma, com graça.
Não podemos nos limitar a repetir certas máximas suas ou a contar seus milagres. Porque corremos o risco de nos determos nas histórias de Dom Bosco, em vez de nos determos na história de Dom Bosco, porque Dom Bosco é maior do que Dom Bosco.
Isso significa estudo, reflexão, profundidade. Significa evitar toda superficialidade.

E então poderemos dizer com verdade: “Esta é a minha fé, este é o meu carisma: enraizados em Cristo, seguindo os passos de Dom Bosco”.




Mensagem do Padre Fábio Attard na festa do Reitor-Mor

Caríssimos irmãos, caríssimos colaboradores e colaboradoras das nossas Comunidades Educativo-Pastorais, caríssimos jovens,

            Permitam-me compartilhar com vocês esta mensagem que vem do fundo do meu coração. Eu a comunico com todo o carinho, apreço e respeito que tenho por cada um de vocês enquanto se empenham na missão de educadores, pastores e animadores dos jovens em todos os continentes.
            Todos nós sabemos que a educação dos jovens exige cada vez mais pessoas adultas significativas, pessoas com uma espinha dorsal moralmente sólida, capazes de transmitir esperança e visão para o futuro deles.
            Enquanto todos nós estamos comprometidos em caminhar com os jovens, acolhendo-os em nossas casas, oferecendo-lhes oportunidades educativas de todos os tipos e gêneros, na variedade de ambientes que promovemos, também estamos conscientes dos desafios culturais, sociais e econômicos que devemos enfrentar.
            Junto com esses desafios que fazem parte de todo processo educativo-pastoral, por se tratar sempre de um diálogo contínuo com as realidades terrenas, reconhecemos que, como consequência das situações de guerras e conflitos armados em várias partes do mundo, o chamado que vivemos está se tornando mais complexo e difícil. Tudo isso afeta o compromisso que estamos levando adiante. É encorajador ver que, apesar das dificuldades que enfrentamos, estamos determinados a continuar vivendo a nossa missão com convicção.
            Nestes últimos meses, a mensagem do Papa Francisco e agora a palavra do Papa Leão XIV têm convidado continuamente o mundo a encarar essa dolorosa situação que parece uma espiral que cresce de forma assustadora. Sabemos que as guerras nunca produzem paz. Estamos conscientes, e alguns de nós o estão vivendo na linha de frente, que todo conflito armado e toda guerra trazem sofrimento, dor e aumentam todo tipo de pobreza. Todos nós sabemos que aqueles que acabam pagando o preço dessas situações são os deslocados, os idosos, as crianças e os jovens que se encontram sem presente e sem futuro.
            Por esse motivo, queridos irmãos, queridos colaboradores e jovens do mundo todo, gostaria de pedir gentilmente que, para a festa do Reitor-Mor, que é uma tradição que remonta aos tempos de Dom Bosco, cada comunidade celebre a Santa Eucaristia pela paz ao redor do dia da festa do Reitor-Mor.
            É um convite à oração que tem a sua fonte no sacrifício de Cristo, crucificado e ressuscitado. Uma oração como testemunho para que ninguém permaneça indiferente diante de uma situação mundial abalada por um número crescente de conflitos.
            Este nosso é um gesto de solidariedade para com todos aqueles, especialmente salesianos, leigos e jovens, que neste momento particular, com grande coragem e determinação, continuam a viver a missão salesiana em meio a situações marcadas por guerras. São salesianos, leigos e jovens que pedem e valorizam a solidariedade de toda a Congregação, solidariedade humana, solidariedade espiritual, solidariedade carismática.
            Enquanto de minha parte e de todo o Conselho Geral estamos fazendo o que é possível para estar muito próximos de todos de forma concreta, acredito que neste momento particular deve ser dado esse sinal de proximidade e encorajamento por parte de toda a Congregação.
            A vocês, queridos irmãos e queridas irmãs em Myanmar, Ucrânia, Oriente Médio, Etiópia, Leste da República Democrática do Congo, Nigéria, Haiti e América Central, queremos dizer em voz alta que estamos com vocês. Agradecemos o seu testemunho. Asseguramos a nossa proximidade humana e espiritual.
            Continuemos a rezar pelo dom da paz. Continuemos a rezar por esses nossos irmãos, leigos e jovens que, vivendo em situações muito difíceis, continuam a esperar e a rezar para que surja a paz. O exemplo deles, a doação de si mesmos e a sua pertença ao carisma de Dom Bosco, é para nós um testemunho forte. Eles, junto com muitas pessoas consagradas, sacerdotes e leigos comprometidos, são os mártires modernos, ou seja, testemunhas da educação e da evangelização, que apesar de tudo, como verdadeiros pastores e ministros da caridade evangélica, continuam a amar, acreditar e esperar por um futuro melhor.
            Todos nós assumimos com todo o nosso coração este chamado à solidariedade. Obrigado.

Prot. 25/0243 Roma, 24 de junho de 2025
don Fabio ATTARD,
Reitor-Mor

Foto: shutterstock.com




Quando o Senhor bate à porta

Um confrade me disse: «Padre, só precisamos da sua proximidade, da sua escuta, da sua oração. Isso nos consola, nos encoraja e nos dá força e esperança para continuarmos a servir os jovens, pobres e feridos, assustados e aterrorizados!»

Em 25 de março de 2025 a Igreja celebra a solenidade da Anunciação do Anjo Gabriel a Maria. Uma das solenidades mais significativas para a fé cristã. Nesta solenidade fazemos memória da iniciativa de Deus que passa a fazer parte daquela história humana que Ele mesmo criou. Naquele dia, na Santa Eucaristia, nós recitamos o Credo e, quando professamos que o Filho de Deus se fez homem, nós, pela nossa fé nos ajoelhamos como sinal de admiração por esta maravilhosa iniciativa de Deus, diante da qual só nos resta colocar-se de joelhos.
Na experiência da Anunciação, Maria tem medo: “Não temas, Maria”, diz-lhe o Anjo. Depois de ter feito as suas perguntas, asseguradando-se de que se trata do projeto de Deus para ela, Maria responde com uma simples frase que permanece para nós, hoje, como um apelo e um convite. Maria, a Bendita entre as mulheres, diz simplesmente: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”.
No dia 25 de março passado, o Senhor bateu à porta do meu coração através do chamado que me fizeram os meus irmãos no Capítulo Geral 29º. Pediram-me para me colocar à disposição para assumir a missão de ser Reitor-Mor dos Salesianos de Dom Bosco, a Congregação de São Francisco de Sales. Confesso que naquele momento senti o peso do convite, daquelas coisas que nos que desorientam visto que aquilo que o Senhor estava me pedindo não era uma coisa simples. A questão é que, quando chega o chamado a quem crê, nós entramos naquele espaço sagrado onde fortemente nos damos conta de que é Ele quem toma a iniciativa. O caminho diante de nós é apenas o de simplesmente abandonar-se nas mãos de Deus, sem “se” e sem “mas”. E tudo isso, obviamente, não é fácil.

«Verás como o Senhor age»
Nestas primeiras semanas ainda me pergunto, como Maria, o que significa isso tudo? Depois, pouco a pouco, começo a sentir aquela mesma consolação que um nosso Inspetor Salesiano contava: “Quando o Senhor chama, é Ele quem toma a iniciativa e é d’Ele que depende o que se faz. Apenas estejas preparado e disponível. Verás como o Senhor age”.
À luz desta experiência pessoal, mas de alcance muito amplo, já que se trata da Congregação e da Família Salesiana, dirigi-me imediatamente aos meus caros irmãos Salesianos. Desde o primeiro momento, pedi-lhes que me acompanhassem com a sua oração, a sua proximidade, o seu apoio.
Devo confessar que já nestas primeiras semanas percebo que esta missão deve inspirar-se em Maria. Ela, após o anúncio do Anjo, pôs-se a caminho para ajudar a sua prima Isabel. E assim me coloquei ao serviço dos meus irmãos, a ouvi-los, compartilhando e assegurando-lhes o apoio de toda a Congregação, especialmente para aqueles que vivem em situações de guerras, conflitos e pobreza extrema.
Impressionou-me o comentário de um Inspetor que, com os seus irmãos salesianos, está vivendo uma situação extremamente difícil. Após um colóquio muito fraterno, disse-me: “Padre, só precisamos da sua proximidade, da sua escuta, da sua oração. Isso nos consola, nos encoraja e nos dá força e esperança para continuarmos a servir os jovens, pobres e feridos, assustados e aterrorizados”! Após este comentário, ficamos em silêncio, ele e eu, e dos seus olhos caíam algumas lágrimas, assim como também dos meus.
Terminado o encontro, fiquei sozinho no meu escritório. Perguntei-me se esta missão que o Senhor me pede para aceitar não é, porventura, a de tornar-me irmão ao lado dos meus irmãos que sofrem, mas não perdem a esperança? Que lutam para fazer o bem pelos pobres e não têm nenhuma intenção de parar? Sentia dentro de mim uma voz que me dizia que vale a pena dizer ‘sim’ quando o Senhor bate à porta, custe o que custar!




Discurso do Reitor-Mor no encerramento do Capítulo Geral 29

Caríssimos irmãos,

Chegamos ao fim da experiência do XXIX Capítulo Geral com o coração cheio de alegria e gratidão por tudo o que pudemos vivenciar, compartilhar e planejar. O dom da presença do Espírito de Deus, que suplicamos todos os dias na oração da manhã e durante o trabalho mediante o diálogo no Espírito, foi a força central da experiência do Capítulo Geral. Buscamos o protagonismo do Espírito e ele nos foi concedido em abundância.
A celebração de cada Capítulo Geral é como um marco na vida de toda congregação religiosa. Isso também é verdade para nós, para a nossa amada Congregação Salesiana. É um momento que dá continuidade ao caminho que, desde Valdocco, continua a ser vivido com empenho e levado adiante com zelo e determinação nas várias partes do mundo.
Chegamos ao final deste Capítulo Geral com a aprovação do Documento Final que servirá como nossa carta de navegação para os próximos seis anos – 2025-2031. Veremos e sentiremos o valor do Documento Final à medida que a mesma dedicação à escuta, a mesma preocupação de nos deixarmos acompanhar pelo Espírito Santo que marcou estas semanas, conseguirmos manter após a conclusão desta experiência salesiana de pentecostes.
Desde o início, desde que o Reitor-Mor P. Ángel Fernández Artime tornou pública a Carta de Convocação para o Capítulo Geral 29, em 24 de setembro de 2023, ACG 441, eram claras as motivações que deveriam guiar os trabalhos pré-capitulares e, mais tarde, os trabalhos do mesmo Capítulo Geral. O Reitor-Mor escreve que:

O tema escolhido é fruto de uma rica e profunda reflexão que fizemos no Conselho-Geral, com base nas respostas recebidas das Inspetorias e da visão que temos da Congregação neste momento. Ficamos agradavelmente surpresos com a grande convergência e harmonia encontradas em muitas contribuições das Inspetorias, que tinham muito a ver com a realidade que encontramos na Congregação, com o caminho de fidelidade que há em muitos setores e também com os desafios do momento presente. (ACG 441)

O processo de escuta das Inspetorias, que levou à identificação do tema para este Capítulo Geral, já é uma indicação clara da metodologia da escuta. À luz do que vivemos nestas semanas, confirma-se o valor do processo de escuta. O modo como primeiro identificamos e depois interpretamos os desafios que a Congregação está decidida a enfrentar evidenciou aquele nosso clima tipicamente salesiano, o espírito de família, que não quer evitar os desafios, que não procura padronizar o pensamento, mas que faz o possível para chegar ao espírito de comunhão em que cada um de nós pode reconhecer o modo de ser Dom Bosco hoje.
O ponto central dos desafios identificados tem a ver com a “referência à centralidade de Deus (como Trindade) e de Jesus Cristo como Senhor da nossa vida, sem jamais esquecer os jovens e o nosso compromisso em relação a eles” (ACG 441). A condução dos trabalhos do Capítulo Geral atesta não só que temos a capacidade de identificar desafios, mas também de encontrar maneiras de trazer à tona harmonia e unidade, reconhecendo e valorizando o fato de encontra-nos em diferentes continentes e contextos, diferentes culturas e línguas. Além disso, esse clima confirma que, quando olhamos para a realidade de hoje com os olhos e o coração de Dom Bosco, quando somos verdadeiramente apaixonados por Cristo e consagrados aos jovens, descobrimos que a diversidade se transforma em riqueza, que caminhar juntos é belo, embora cansativo, que juntos podemos enfrentar desafios.
Em um mundo fragmentado por guerras, conflitos e ideologias que despersonalizam, em um mundo marcado por pensamentos e modelos econômicos e políticos que privam os jovens do seu protagonismo, a nossa presença é um sinal, um «sacramento» de esperança. Os jovens, independentemente da cor da pele, da pertença religiosa ou étnica, pedem-nos para promover propostas e lugares de esperança. Eles são filhas e filhos de Deus à espera de sermos servos humildes.
Um segundo ponto, confirmado e reafirmado por este Capítulo Geral, é a convicção compartilhada de que “se faltassem em nossa Congregação a fidelidade e a profecia, seríamos como uma luz que não brilha e um sal sem sabor” (ACG 441). A questão aqui não é tanto se queremos ou não ser mais autênticos, mas que esse é o único caminho que temos e é o que foi enfatizado intensamente nestas semanas: crescer em autenticidade!
A coragem demonstrada em alguns momentos do Capítulo Geral é uma excelente premissa para a coragem que será exigida de nós no futuro em outros temas que surgiram deste Capítulo Geral. Tenho certeza de que essa coragem encontrou aqui um terreno fértil, um ecossistema saudável e promissor para o futuro. Ter coragem significa não deixar que o medo tenha a última palavra. A parábola dos talentos ensina-o claramente. O Senhor deu-nos apenas um talento: o carisma salesiano, concentrado no Sistema Preventivo. A cada um de nós será perguntado o que fizemos com esse talento. Juntos, somos chamados a fazê-lo frutificar em contextos desafiadores, novos e inéditos. Não temos motivos para enterrá-lo. Temos muitas motivações, muitos gritos de jovens que nos incitam a «sair» e semear esperança. Este passo corajoso, cheio de convicção, já foi dado por Dom Bosco no seu tempo e hoje ele nos pede que o vivamos como ele e com ele.

Gostaria de comentar alguns pontos que já constam no Documento Final e que, acredito, possam servir de setas para nos encorajar em nosso caminho nos próximos seis anos.

1. Conversão pessoal
O nosso caminho como Congregação Salesiana depende das escolhas pessoais, íntimas e profundas que cada um de nós decide fazer. Alargando o plano de fundo com que devemos refletir sobre o tema da conversão pessoal, é importante recordar como, nestes anos após o Concílio Vaticano II, a Congregação trilhou um caminho de reflexão espiritual, carismática e pastoral magistralmente comentado pelo P. Pascual em suas intervenções semanais. Essa leitura e essa contribuição enriquecem ainda mais a importante reflexão que o Reitor-Mor, P. Egídio Viganò, nos deixou em sua última carta à Congregação: Como reler hoje o carisma do Fundador (ACG 352, 1995). Se hoje falamos de uma “mudança de época”, o P. Viganò escrevia em 1995:

A releitura do carisma do nosso Fundador está nos empenhando já há bem trinta anos. Dois grandes fachos de luz nos ajudaram nesse trabalho: primeiro, o Concílio Ecumênico Vaticano II, segundo, a transformação epocal desta hora de aceleração histórica (ACG 352, 1995).

Refiro-me a esse caminho da Congregação, com suas riquezas e patrimônio, porque o tema da conversão pessoal é o espaço em que este caminho da Congregação encontra a sua confirmação e o seu impulso ulterior. A conversão pessoal não é um assunto intimista e autorreferencial. Não se trata de um chamado que toca somente a mim, de uma maneira desvinculada de tudo e de todos. A conversão pessoal é aquela experiência singular de onde sairá e emergirá depois uma pastoral renovada. Podemos constatá-lo porque encontra o seu ponto de partida no coração de cada um de nós. A partir disso, podemos notar a contínua e convicta renovação pastoral. O Papa Francisco condensa essa urgência em uma frase: “A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão «reveste essencialmente a forma de comunhão missionária»” (Christifideles laici 32, Evangelii Gaudium 23).
Isso nos leva a descobrir que, quando insistimos na conversão pessoal, devemos ter o cuidado de não cair, por um lado, numa interpretação intimista da experiência espiritual e, por outro, de não subestimar aquilo que é o fundamento de todo caminho pastoral.
Diante do apelo de renovada paixão por Jesus, convido cada salesiano e cada comunidade a levar a sério as opções e os compromissos concretos que, como Capítulo Geral, consideramos urgentes para um testemunho educativo-pastoral mais autêntico. Acreditamos que não podemos crescer pastoralmente sem essa atitude de escuta da Palavra de Deus. Reconhecemos que os vários empenhos pastorais que temos, as necessidades sempre crescentes que nos são apresentadas e que testemunham uma pobreza que nunca se detém, correm o risco de nos tirar o tempo necessário para «estar com Ele». Já encontramos esse desafio desde o início da nossa Congregação. É uma questão de ter prioridades claras que fortaleçam a nossa espinha dorsal espiritual e carismática que dá alma e credibilidade à nossa missão.
O P. Alberto Caviglia, ao comentar o tema da “Espiritualidade Salesiana” em suas Conferências sobre o Espírito Salesiano, escreve:

A maior admiração daqueles que estudaram Dom Bosco para o processo de canonização… foi a descoberta do incrível trabalho de construção do homem interior.
O Card. Salotti (…), referindo-se aos estudos que estava a fazer, disse ao Santo Padre que «ao estudar os volumosos processos de Turim, mais do que a grandeza exterior da sua obra colossal, ficou impressionado com a vida interior do espírito, de onde nasceu e alimentou-se todo o prodigioso apostolado do Ven. Dom Bosco».
Muitos conhecem apenas o trabalho externo que parece muito rumoroso, mas ignoram em grande parte aquele sábio e sublime edifício de perfeição cristã que ele havia erigido pacientemente em sua alma, exercitando-se todos os dias, a cada hora, na virtude própria do seu estado.

Caríssimos irmãos, aqui temos o nosso Dom Bosco. É este Dom Bosco que hoje somos chamados a descobrir:

Nós o estudamos e imitamos, admirando nele esplêndida harmonia de natureza e graça. Profundamente homem, rico das virtudes do seu povo, era aberto às realidades terrenas; profundamente homem de Deus, cheio dos dons do Espírito Santo, vivia “como se visse o invisível”.
Esses dois aspectos fundiram-se num projeto de vida fortemente unitário: o serviço dos jovens. Realizou-o com firmeza e constância, por entre obstáculos e canseiras, com sensibilidade de um coração generoso. “Não deu passo, não pronunciou palavra, nada empreendeu que não visasse à salvação da juventude… Realmente tinha a peito tão somente as almas” (Const. 21).

Agrada-me recordar aqui um convite feito pela Madre Teresa a suas irmãs poucos anos antes da sua morte. A sua dedicação e a das suas irmãs aos pobres é conhecida por todos. Mas nos faz bem ouvir essas palavras que ela escreveu para suas irmãs:

Enquanto não conseguires ouvir Jesus no silêncio do teu coração, não conseguirás ouvi-lo dizer «tenho sede» no coração dos pobres. Jamais desistas desse contato íntimo e cotidiano com Jesus como uma pessoa real e viva, não só como uma ideia. (“Until you can hear Jesus in the silence of your own heart, you will not be able to hear him saying, “I thirst” in the hearts of the poor. Never give up this daily intimate contact with Jesus as the real living person – not just the idea”, in https://catholiceducation.org/en/religion-and- philosophy/the-fulfillment-jesus-wants-for-us.html)

Só escutando no fundo do coração àquele que nos chama a segui-lo, Jesus Cristo, podemos realmente escutar com um coração autêntico aqueles que nos chamam a servi-los. Se a motivação radical de sermos servos não encontrar suas raízes na pessoa de Cristo, a alternativa é que a nossa motivação seja nutrida pelo terreno do nosso ego. E a consequência é que a nossa própria ação pastoral acaba por inflacionar o próprio ego. A urgência de recuperar nestas semanas o espaço místico, o terreno sagrado do encontro com Deus, um terreno onde devemos tirar as sandálias das nossas certezas e das nossas maneiras de interpretar a realidade com os seus desafios, foi reiterada várias vezes e de várias maneiras.
Caríssimos irmãos, temos aqui o primeiro passo. Aqui comprovamos se queremos realmente ser filhos autênticos de Dom Bosco. Aqui comprovamos se realmente amamos e imitamos Dom Bosco.

2. Conhecer Dom Bosco não só amar Dom Bosco
Estamos cientes de que um dos desafios centrais que temos como Salesianos é comunicar a Boa Nova com o nosso testemunho e com as nossas propostas educativas e pastorais numa cultura que está passando por uma mudança radical. Se no Ocidente falamos de indiferença à proposta religiosa como resultado do desafio da secularização, notamos que em outros continentes o desafio assume outras formas, antes de tudo a mudança para uma cultura globalizada que altera radicalmente a escala dos valores e dos estilos de vida. Em um mundo fluido e hiperconectado, o que conhecíamos ontem mudou radicalmente hoje: em suma, estamos lidando aqui com o tema frequentemente mencionado da mudança de época.
Tendo essa mudança os seus efeitos complexos, é positivo ver como a Congregação desde o CGE (1972) até hoje vive num contínuo caminho de repensamento e reflexão sobre a sua proposta educativo-pastoral. Trata-se de um processo que responde à questão sobre “o que faria Dom Bosco hoje, numa cultura secularizada e globalizada como a nossa?”
Em todo esse movimento, reconhecemos que, desde as suas origens, a beleza e a força do carisma salesiano residem precisamente na sua capacidade interna de dialogar com a história dos jovens que somos chamados a encontrar em cada época. O que contemplamos em Valdocco, nesta terra santa salesiana, é o sopro do Espírito que guiou Dom Bosco e que reconhecemos continuar a nos guiar-nos hoje. As Constituições começam exatamente com essa certeza fundante e fundamental:

O Espírito Santo, com a maternal intervenção de Maria, suscitou São João Bosco.
Formou nele um coração de pai e mestre, capaz de doação total: “Prometi a Deus que até meu último alento seria para meus pobres jovens”.
Para prolongar no tempo a sua missão, guiou-o na criação de várias forças apostólicas, sendo a primeira delas a nossa Sociedade.
A Igreja reconheceu nisso a ação de Deus, sobretudo ao aprovar as Constituições e proclamar santo o Fundador.
Desta presença ativa do Espírito haurimos a energia para a nossa fidelidade e o apoio da nossa esperança. (Const. 1)

O carisma salesiano contém um convite inato a colocar-nos diante dos jovens da mesma forma de Dom Bosco ao colocar-se diante de Bartolomeu Garelli… «seu amigo»!
Tudo isso parece muito fácil de dizer, parece uma exortação amigável. Na realidade, ela esconde em si o convite urgente a nós, filhos de Dom Bosco, para que, no atual momento histórico em que vivemos, reproponhamos o carisma salesiano de modo adequado e significativo. Há, porém, uma condição indispensável que nos permite fazer esse caminho: o conhecimento verdadeiro e sério do bom Dom Bosco. Não podemos dizer que «amamos» Dom Bosco de verdade se não estivermos seriamente empenhados em «conhecer» Dom Bosco.
Muitas vezes, o risco é satisfazer-nos com um conhecimento de Dom Bosco que não se conecta com os desafios de hoje. Com um conhecimento superficial de Dom Bosco, somos realmente pobres daquela bagagem carismática que nos torna seus filhos autênticos. Sem conhecer Dom Bosco, não podemos e não chegamos a encarnar Dom Bosco nas culturas onde estamos. Qualquer esforço nessa pobreza de conhecimento carismático resulta apenas em operações carismáticas cosméticas, que, no final, são uma traição à mesma herança de Dom Bosco.
Se quisermos que o carisma salesiano seja capaz de dialogar com a cultura de hoje, com as culturas de hoje, devemos aprofundá-lo continuamente por si mesmo e à luz das condições sempre mutáveis em que vivemos. A bagagem que recebemos no início da nossa fase formativa inicial, se não for seriamente aprofundada hoje, não é suficiente, é simplesmente inútil, se não for até mesmo prejudicial.
Nessa direção, a Congregação fez e está fazendo um enorme esforço para reler a vida de Dom Bosco, o carisma salesiano à luz das atuais condições sociais e culturais, em todas as partes do mundo. É um patrimônio que temos, mas corremos o risco de não o conhecer porque não o estudamos como ele merece. A perda da memória corre o risco não só de nos fazer perder o contato com o tesouro que temos, mas também de nos fazer acreditar que esse tesouro não existe. E isso será realmente trágico, não tanto e somente para nós salesianos, mas para aquelas multidões de jovens que nos esperam.
A urgência deste aprofundamento não é apenas de natureza intelectual, mas toca a sede que existe de uma formação carismática séria dos leigos em nossas CEPs. O Documento Final trata dessa questão de forma frequente e sistemática. Os leigos que hoje participam conosco da missão salesiana são pessoas ávidas de uma proposta salesiana de formação mais clara. Não podemos viver esses espaços de convergência educativo-pastoral se a nossa linguagem e o nosso modo de comunicar o carisma não tiverem a capacidade cognitiva e a preparação adequada para despertar a curiosidade e a atenção daqueles que vivem conosco a missão salesiana.
Não basta dizer que amamos Dom Bosco. O verdadeiro «amor» a Dom Bosco envolve o empenho de conhecê-lo e estudá-lo, e não apenas à luz do seu tempo, mas também à luz do grande potencial da sua atualidade, à luz do nosso tempo. O Reitor-Mor, P. Pascual Chávez, convidou a Congregação e a Família Salesiana para isso nos três anos que precederam o «Bicentenário do nascimento de Dom Bosco 1815-2013».  É um convite mais atual do que nunca. Este Capítulo Geral é um apelo e uma oportunidade para reforçar o conhecimento histórico, pedagógico e espiritual do nosso Pai e Mestre (P. Pascual Chávez, Estreia 2012, “Conhecendo e imitando Dom Bosco, façamos dos jovens a missão da nossa vida” [ACG 412])
Reconheçamos, caríssimos irmãos que, neste ponto, este tema se liga ao anterior: a conversão pessoal. Se não conhecermos Dom Bosco e não o estudarmos, não poderemos compreender a dinâmica e as lutas do seu itinerário espiritual e, consequentemente, as raízes das suas opções pastorais. Nós o amaremos apenas de modo superficial, sem a verdadeira capacidade de imitá-lo como um homem profundamente santo. Acima de tudo, será impossível inculturar o seu carisma hoje nos diversos contextos e situações. Somente ao fortalecer a nossa identidade carismática poderemos oferecer à Igreja e à sociedade um testemunho credível e uma proposta educativo-pastoral significativa e relevante para os jovens.

3. O caminho continua
Nesta terceira parte, gostaria de encorajar a Congregação inteira a manter viva a atenção em determinadas áreas que, por meio de várias Deliberações e empenhos concretos, quisemos dar um sinal de continuidade.
O campo da animação e coordenação da marginalização e da insatisfação juvenil é uma área em que a Congregação tem se empenhado muito nas últimas décadas. Creio que a resposta das Inspetorias à pobreza crescente é um sinal profético que nos distingue e nos vê a todos determinados a continuar a reforçar a resposta salesiana em favor dos mais pobres.
O empenho das Inspetorias no campo da promoção de ambientes seguros continua a encontrar uma resposta crescente e profissional nas Inspetorias. O esforço nesse campo testemunha que esse caminho é o correto para afirmar o compromisso com a dignidade de todos, especialmente dos mais vulneráveis.
O campo da ecologia integral surge como apelo para um maior trabalho educativo- pastoral. A atenção crescente das comunidades educativo-pastorais às questões ambientais exige uma ação sistemática para promover mudanças de mentalidade. As várias propostas de formação nessa área, já presentes na Congregação, devem ser reconhecidas e acompanhadas.
Depois, há duas áreas que eu gostaria de convidar a Congregação a considerar cuidadosamente nos próximos anos. Elas fazem parte de uma visão mais ampla do trabalho da Congregação. Acredito que essas duas áreas terão consequências substanciais para os nossos processos educativo-pastorais.

3.1 Inteligência artificial – uma missão real num mundo artificial
Como Salesianos de Dom Bosco, somos chamados a caminhar com os jovens em todos os ambientes onde vivem e crescem, inclusive no vasto e complexo mundo digital. Hoje, a Inteligência Artificial (IA) apresenta-se como uma inovação revolucionária, capaz de moldar a maneira como as pessoas aprendem, comunicam-se e constroem relacionamentos. Entretanto, por mais revolucionária que seja, a IA continua a ser exatamente isso: artificial. O nosso ministério, enraizado na conexão humana autêntica e orientado pelo Sistema Preventivo, é profundamente real. A IA pode assessorar, mas não pode amar como nós. Pode organizar, analisar e ensinar de maneiras novas, mas jamais poderá substituir o toque relacional e pastoral que define a nossa missão salesiana.
Dom Bosco era um visionário sem medo de inovar, tanto em nível eclesial quanto em nível educativo, cultural e social. Quando essa inovação servia ao bem dos jovens, Dom Bosco avançava com uma velocidade surpreendente. Ele explorou a imprensa, os novos métodos educativos e as oficinas para elevar os jovens e prepará-los para a vida. Se estivesse entre nós hoje, sem dúvida olharia para a IA com um olhar crítico e criativo. Vê-la-ia não como um fim, mas como um meio, um instrumento para ampliar a eficácia pastoral sem perder de vista a pessoa humana no centro.
A Inteligência Artificial não é apenas um instrumento: ela faz parte da nossa missão como Salesianos que vivem na era digital. O mundo virtual não é mais um espaço separado, mas uma parte integrante da vida cotidiana dos jovens. A inteligência artificial pode ajudar-nos a responder às suas necessidades de forma mais eficiente e criativa, oferecendo caminhos personalizados de aprendizagem, orientação virtual e plataformas que promovem conexões significativas.
Nesse sentido, a inteligência artificial torna-se tanto um instrumento quanto uma missão, pois ajuda-nos a alcançar os jovens onde eles estão, geralmente imersos no mundo digital. Ao mesmo tempo em que adotamos a IA, devemos reconhecer que ela é apenas um aspecto de uma realidade muito ampla que inclui a mídia social, as comunidades virtuais, a narração digital e muito mais. Juntos, esses elementos formam uma nova fronteira pastoral que nos desafia a estar presentes e a ser proativos. A nossa missão não é simplesmente usar a tecnologia, mas evangelizar o mundo digital, levando o Evangelho a espaços onde, de outra forma, ele poderia estar ausente.
A nossa resposta à IA e aos desafios digitais deve estar enraizada no espírito salesiano de otimismo e empenho proativo. Continuemos a caminhar com os jovens, mesmo no vasto mundo digital, com os corações cheios de amor, porque eles são apaixonados por Cristo e enraizados no carisma de Dom Bosco. O futuro é brilhante quando a tecnologia está a serviço da humanidade e quando a presença digital está cheia do autêntico ardor salesiano e da ação pastoral. Abracemos este novo desafio, confiantes de que o espírito de Dom Bosco haverá de guiar-nos em cada nova oportunidade.

3.2 A Universidade Pontifícia Salesiana
A Universidade Pontifícia Salesiana (UPS) é a Universidade da Congregação Salesiana, de todos nós. Ela constitui uma estrutura de grande e estratégica importância para a Congregação. A sua missão consiste em fazer o carisma dialogar com a cultura, a energia da experiência educativo-pastoral de Dom Bosco com a pesquisa acadêmica, de modo a desenvolver uma proposta educativa de alto nível a serviço da Congregação, da Igreja e da sociedade.
Desde o início, a nossa Universidade desempenhou um papel insubstituível na formação de muitos irmãos para funções de animação e governo, e ainda desempenha essa valiosa tarefa. Em uma época marcada pela desorientação generalizada em relação à gramática do ser humano e ao significado da existência, pela desintegração do vínculo social e pela fragmentação da experiência religiosa, pelas crises internacionais e pelos fenômenos migratórios, uma Congregação como a nossa é chamada com urgência a enfrentar a missão educativo-pastoral, servindo-se dos sólidos recursos intelectuais que se desenvolvem em uma universidade.
Como Reitor-Mor e como Grão-Chanceler da UPS, desejo reiterar que as duas prioridades fundamentais da Universidade da Congregação são a formação de educadores e pastores, salesianos e leigos, a serviço dos jovens, e o aprofundamento cultural – histórico, pedagógico e teológico – do carisma. Ao redor desses dois pilares, que requerem diálogo interdisciplinar e atenção intercultural, a UPS é chamada a cumprir com o seu compromisso com a pesquisa, o ensino e a transmissão do conhecimento. Por isso, estou muito contente que, em vista do 150º aniversário do texto de Dom Bosco sobre o Sistema Preventivo, tenha sido lançado um projeto sério de pesquisa, em colaboração com a Faculdade “Auxilium” das FMA, para focalizar a inspiração original da práxis educativa de Dom Bosco e examinar o modo como ela inspira as práticas pedagógicas e pastorais de hoje na diversidade dos contextos e das culturas.
O governo e a animação da Congregação e da Família Salesiana serão certamente beneficiados com o trabalho cultural da Universidade, como também, com o estudo acadêmico, receberão uma linfa preciosa ao manter contato estreito com a vida da Congregação e o seu serviço cotidiano aos jovens mais pobres em todas as partes do mundo.

3.3 150 anos – a viagem continua
Somos chamados a dar graças e louvar a Deus neste Ano Jubilar da Esperança, porque neste ano recordamos o empenho missionário de Dom Bosco, que encontrou um momento muito significativo de desenvolvimento no ano de 1875. A reflexão que nos é oferecida na Estreia 2025 pelo Vigário do Reitor-Mor, P. Stefano Martoglio, recorda-nos o tema central do 150º aniversário da primeira expedição missionária de Dom Bosco: reconhecer, repensar e relançar.
À luz do 29º Capítulo Geral que estamos a concluir, isso nos ajuda a situar esse convite no sexênio que temos pela frente. Somos chamados a ser reconhecidos porque “a gratidão torna evidente a paternidade de toda bela realização. Sem gratidão não há capacidade de acolher”.
Ao reconhecimento, acrescentamos o dever de repensar a nossa fidelidade, porque “a fidelidade envolve a capacidade de mudar, na obediência, para uma visão que vem de Deus e da leitura dos «sinais dos tempos»… Repensar torna-se, então, um ato gerador, em que se unem fé e vida; um momento em que nos perguntamos: o que queres dizer-nos, Senhor?”
Enfim, a coragem de relançar, de recomeçar todos os dias. Como estamos a fazer nestes dias, olhamos adiante para “acolher os novos desafios, relançando a missão com esperança”. (Porque a) Missão é levar a esperança de Cristo com uma consciência clara e lúcida, unida à fé”.

4. Conclusão
Ao final deste discurso de encerramento, gostaria de apresentar uma reflexão de Tomáš HALÍK, tirada do seu livro Il pomeriggio del cristianesimo[A tarde do cristianismo] (HALÍK, Tomáš, Pomeriggio del cristianesimo. Il coraggio di cambiare. Edizioni Vita e Pensiero, Milano 2022). No último capítulo do livro, que traz o título de “A Sociedade do caminho”, o autor apresenta quatro conceitos eclesiológicos.
Acredito que esses quatro conceitos eclesiológicos podem ajudar-nos a interpretar positivamente as grandes oportunidades pastorais que nos aguardam. Proponho esta reflexão com a consciência de que aquilo que o autor propõe está intimamente ligado ao coração do carisma salesiano. É impressionante e surpreendente que, quanto mais nos empenhamos em fazer uma leitura pastoral carismática, pedagógica e cultural da realidade de hoje, a convicção de que o nosso carisma nos dá uma base sólida para que os vários processos que estamos a acompanhar possam encontrar o seu devido lugar em um mundo onde os jovens esperam que lhes seja oferecida esperança, alegria e otimismo. É bom reconhecer com grande humildade, mas ao mesmo tempo com grande senso de responsabilidade, que o carisma de Dom Bosco continua a oferecer hoje diretrizes, não só para nós, como também para toda a Igreja.

4.1 A Igreja como povo de Deus em peregrinação pela história. Essa imagem descreve uma Igreja em movimento e em luta contra as incessantes mudanças. Deus plasma a forma da Igreja na história, revela-se a ela por meio da história e transmite-lhe os seus ensinamentos por meio de eventos históricos. Deus está na história. (HALÍK, Tomáš, Pomeriggio del cristianesimo, p. 229)

O nosso chamado a ser educadores e pastores consiste precisamente em caminhar com o rebanho nessa história, nessa sociedade em constante mudança. A nossa presença nos vários “pátios da vida das pessoas” é a presença sacramental de um Deus que quer encontrar aqueles que o buscam, sem o saber. Nesse contexto, “o sacramento da presença” adquire para nós um valor inestimável, porque se entrelaça com as eventualidades históricas dos nossos jovens e de todos aqueles que vêm até nós nas várias expressões da missão salesiana – o PÁTIO.

4.2 A ‘escola’ é a segunda visão da Igreja – escola de vida e escola de sabedoria. Vivemos em uma época em que nem a religião tradicional nem o ateísmo dominam o espaço público de muitos países europeus, mas sim o agnosticismo, o apateísmo e o analfabetismo religioso… Há, nesta época, uma necessidade urgente de que a sociedade cristã se transforme em uma “escola”, seguindo o ideal original das universidades medievais, que foram estabelecidas como comunidades de professores e alunos, comunidades de vida, oração e ensino. (Ibid., pp. 231-232)

Ao fazer uma retrospectiva do projeto educativo-pastoral de Dom Bosco desde as suas origens, descobrimos como essa segunda proposta toca diretamente a experiência que oferecemos hoje aos nossos jovens: a escola e a formação profissional. São itinerários educativos como instrumento indispensável para dar vida a um processo integral onde se encontrem cultura e fé. Para nós, hoje, esse espaço é uma excelente oportunidade para dar testemunho da boa nova em encontros humanos e fraternos, educativos e pastorais com muitas pessoas e, sobretudo, com muitas crianças e muitos jovens que se sentem acompanhados para um futuro digno. Para nós, pastores, a experiência educativa é um modo de vida que comunica sabedoria e valores em um contexto que encontra e vai além da resistência e derrete a indiferença com empatia e proximidade. Caminhar juntos promove um espaço de crescimento integral inspirado na sabedoria e nos valores do Evangelho – a ESCOLA.

4.3 A Igreja como hospital de campanha… Por muito tempo, face a face com as doenças da sociedade, a Igreja limitou-se à moralidade; agora ela se depara com a tarefa de redescobrir e aplicar o potencial terapêutico da fé. A missão diagnóstica deveria ser realizada por aquela disciplina para a qual propus o nome de cairologia – a arte de ler e interpretar os sinais dos tempos, a hermenêutica teológica dos fatos da sociedade e da cultura. A cairologia deve dedicar a sua atenção aos tempos de crise e às mudanças de paradigmas culturais. Deveria senti-las como parte de uma ‘pedagogia de Deus’, como um momento oportuno para aprofundar a reflexão sobre a fé e renovar a sua prática. De certa forma, a cairologia desenvolve o método de discernimento espiritual, que é um componente importante da espiritualidade de Santo Inácio e seus discípulos; ela aplica-o ao aprofundar e avaliar o estado atual do mundo e as nossas tarefas nele. (Ibid., pp. 233-234)

Este terceiro critério eclesiológico vai ao coração da abordagem salesiana. Não estamos presentes na vida das crianças e dos jovens para condená-los. Nos tornamos disponíveis para oferecer-lhes um espaço saudável de comunhão (eclesial), iluminado pela presença de um Deus misericordioso que não impõe condições a ninguém.Elaboramos e comunicamos as várias propostas pastorais justamente com esta visão de facilitar o encontro dos jovens com uma proposta espiritual capaz de iluminar os tempos em que vivem, de oferecer-lhes uma esperança para o futuro. A proposta da pessoa de Jesus Cristo não é fruto de um estéril confessionalismo ou cego proselitismo, mas a descoberta de uma relação com uma pessoa que oferece amor incondicional a todos. Nosso testemunho e o de todos aqueles que vivem a experiência educativo-pastoral, como comunidade, é o sinal mais eloquente e a mensagem mais crível dos valores que queremos comunicar para poder compartilhá-los – a IGREJA.

4.4 O quarto modelo de Igreja… é necessário que a Igreja institua centros espirituais, lugares de adoração e contemplação, mas também de encontro e diálogo, onde a experiência da fé possa ser compartilhada. Muitos cristãos estão preocupados com o fato de que, em um grande número de países, está se desgastando a rede de paróquias, estabelecida há alguns séculos em uma situação sociocultural e pastoral completamente diferente e dentro de uma autocompreensão diferente de Igreja. (Ibid., pp. 236-237)

O quarto conceito é o de uma “casa” capaz de comunicar acolhimento, escuta e acompanhamento. Uma “casa” onde é reconhecida a dimensão humana da história de cada pessoa e, ao mesmo tempo, é oferecida a possibilidade de permitir a esta humanidade chegar à maturidade. Dom Bosco chama justamente de “casa” o lugar onde a comunidade vive o seu chamado porque, acolhendo as nossas crianças e os nossos jovens, sabe garantir as condições e as propostas pastorais necessárias para que essa humanidade cresça de modo integral. A nossa comunidade, “casa”, é chamada a dar testemunho da originalidade da experiência de Valdocco: uma “casa” que se encontra com a história dos nossos jovens, oferecendo-lhes um futuro digno – a CASA.

Temos em nossas Constituições, Art. 40,a síntese destes “quatro conceitos eclesiológicos”. É uma síntese que serve de convite e também de encorajamento para o presente e o futuro das nossas comunidades educativo-pastorais, das nossas inspetorias, da nossa amada Congregação Salesiana:

O Oratório de Dom Bosco, critério permanente
Dom Bosco viveu uma típica experiência pastoral no seu primeiro Oratório, que foi para os jovens casa que acolhe, paróquia que evangeliza, escola que encaminha para a vida, e pátio para se encontrarem como amigos e viverem com alegria.
Ao realizarmos hoje nossa missão, a experiência de Valdocco continua critério permanente de discernimento e renovação de cada atividade e obra.

Obrigado.
Roma, 12 de abril de 2025




Entrevista com o novo Inspetor Salesiano, P. Peter Končan

Pequena biografia
Concluiu o noviciado na comunidade de Pinerolo, na Itália; professou os primeiros Votos em 8 de setembro de 1993, em Ljubljana Rakovnik, e os Votos perpétuos seis anos depois. Fez sua formação teológica na Pontifícia Universidade Salesiana de Roma, entre 1997 e 2000, e foi ordenado sacerdote em 29 de junho de 2001, em Ljubljana.
Como sacerdote, a maior parte de seu trabalho educativo e pastoral foi realizada na obra salesiana de Želimlje. De 2000 a 2003, atuou como educador e, posteriormente, até 2020, como diretor do internato. Nesse período, foi também professor de ensino religioso no colégio de Ensino Médio e responsável pela formação salesiana dos leigos.
Entre 2010 e 2016, exerceu a função de diretor da comunidade de Želimlje e, de 2021 a 2024, dirigiu a Comunidade Salesiana de Ljubljana Rakovnik. De 2018 a 2024, foi Vigário do Inspetor Salesiano e seu Delegado para a Formação. Em 2021, assumiu ainda a coordenação dessa área em âmbito europeu, liderando a Comissão de Formação da Região Europa Centro-Norte (RECN).
Em 6 de dezembro de 2023, foi nomeado o 15º Inspetor Salesiano da Inspetoria dos Santos Cirilo e Metódio, de Ljubljana.


Poderias se apresentar?
Nasci em 30 de maio de 1974, em Ljubljana (Eslovênia), em uma família camponesa de um pequeno povoado, chamado Šentjošt. Sou o mais novo dos 4 irmãos e, como todos constituíram uma família, hoje tenho 11 sobrinhos, e somos muito ligados. O lugar onde eu nasci e também a minha família foram fortemente marcados pelo terror comunista durante e após a Segunda Guerra mundial: alguns dos meus parentes foram mortos e as casas destruídas… Nesta difícil situação meus pais tiveram que recomeçar do zero a construir nossa casa, e também de usar toda a sua laboriosidade e criatividade para criar seus filhos. Nossos pais nos envolveram no trabalho diário, o que me ensinou que, para se obter algo importante, é preciso trabalhar muito.

Quem te contou a história de Jesus pela primeira vez?
Meus pais sempre expressaram abertamente sua identidade cristã, mesmo que naqueles tempos não fosse oportuno ser cristão, e por isso mesmo tiveram muitos problemas. Todas as noites, terminado o trabalho, nos reuníamos em família para rezar o terço, as ladainhas e outras orações. Como eu gostava de ser coroinha, com muita frequência ia a pé até a igreja que ficava a 2 quilômetros da minha casa para participar da missa. O exemplo dos pais e a vida cristã na família e na paróquia explicam o porquê de me sentir chamado por Deus desde pequeno.

Como você conheceu Dom Bosco?
Meus pais iam frequentemente em peregrinação a Ljubljana Rakovnik, onde estavam os salesianos, e assim conheci também Dom Bosco, que me imediatamente me fascinou. Comecei a frequentar os retiros organizados pelos salesianos e, terminado o Ensino Fundamental, foi muito tranquilo para mim, aos 14 anos, entrar no seminário menor dirigido pelos salesianos em Želimlje. Os meus pais ficaram muito contentes com a minha decisão e sempre me apoiaram em meu caminho. Sou muito grato a eles, verdadeiramente, por todo o amor, pela família serena na qual cresci e por tantos valores importantes que me transmitiram. Dom Bosco também os fascinou tanto que, quando eu estava na formação inicial, eles fizeram as promessas como Salesianos Cooperadores.

Experiência da formação inicial
Eu estava fazendo o Ensino Médio quando terminou o comunismo e a Eslovênia se tornava independente, permitindo aos salesianos retomarem normalmente o seu trabalho, o que me encheu de entusiasmo pelas tantas possibilidades de trabalho juvenil que estavam nascendo; também alargaram meu horizonte os anos vividos nas casas internacionais de formação, na Itália, quando tive a oportunidade de conhecer tantos salesianos de todo o mundo e fazer tantas experiências novas. Neste período trabalhei muito no meu crescimento humano e espiritual, e aprendi a amar muitíssimo a Dom Bosco e seu modo de estar e de trabalhar com os jovens. Cada vez mais me convenci de que esta é uma estrada pensada por Deus para mim e que o carisma salesiano é um grandíssimo dom para os jovens do nosso tempo.

Qual é a sua experiência mais bonita?
Os 20 anos que estive no internato em Želimlje e, depois, em Rakovnik, vivendo com quase 300 jovens todos os dias, foram verdadeiramente muito belos e marcaram muito minha vida. Eu tinha o privilégio de acompanhar o seu crescimento humano, intelectual e espiritual, e de estar próximo das suas alegrias, esperanças e feridas. Os jovens me ensinaram o quanto é importante “perder” tempo para estar com eles. Neste período aprendi e experimentei, também, o quanto são preciosos os colaboradores leigos, sem os quais não podemos levar adiante a nossa missão.

Como são os jovens da inspetoria e quais são os desafios mais relevantes?
Envolvidos nos programas de nossas obras salesianas, ainda existem muitos jovens generosos, com coração aberto e disponível para fazer o bem a outros jovens. Estou muito orgulhoso e contente do entusiasmo com que muitos encontram em Dom Bosco o modelo e a força para o seu crescimento humano e espiritual.
Por outro lado, também é verdade que muitos são influenciados pelo mundo virtual e por todos os outros desafios do nosso tempo. Felizmente, os valores tradicionais não desapareceram totalmente, mas não são mais fortes o suficiente para guiar os jovens. É por isso que, como salesianos, procuramos ajudar os jovens com propostas concretas de apoio e caminhando ao seu lado. No último capítulo inspetorial identificamos algumas pobrezas (desafios) do nosso contexto: a família enfraquecida, a tibieza espiritual, o relativismo e a busca da identidade, a passividade, a apatia e a falta da preparação concreta dos jovens para a vida.

Onde você encontra a força para continuar?
Primeiramente, nos irmãos. Felizmente, tenho ao meu redor salesianos muito bons e generosos que são de grandíssimo apoio. Sozinho, o inspetor não pode fazer muita coisa. Estou convicto de que o único e melhor modo de levar adiante as coisas é aquele em que todos (salesianos, jovens e leigos) colocamos os próprios dons e forças para o bem comum. E, em segundo lugar, nós todos e a nossa missão somos apenas uma pequena parte do grande plano de Deus, que é o verdadeiro protagonista, e saber disso me dá uma grande serenidade interior.

Qual lugar Maria Auxiliadora ocupa na sua vida?
Já na família aprendi que Maria é um grande apoio para a vida cotidiana. Com muito prazer e com tanta confiança participo de peregrinações a vários santuários marianos, onde Maria me enche de paz e força interior para todos os desafios da minha vida. Posso testemunhar muitas das graças que, através de Maria, foram concedidas a mim ou aos meus entes queridos.

P. Peter KONČAN
Inspetor Salesiano da Eslovênia




Com Dom Bosco. Sempre

Não é indiferente celebrar um Capítulo Geral em um lugar ou em outro. Certamente, em Valdocco, no “berço do carisma”, temos a oportunidade de redescobrir a gênese da nossa história e reencontrar a originalidade que constitui o coração da nossa identidade de consagrados e apóstolos dos jovens.

Na moldura antiga de Valdocco, em que tudo fala das nossas origens, sou quase obrigado a fazer memória daquele dezembro de 1859, em que Dom Bosco havia tomado uma decisão incrível, única na história: fundar uma congregação religiosa com alguns jovens.
Ele os havia preparado, mas eram ainda muito jovens. «Há muito tempo pensava em fundar uma Congregação. Eis que chegou disso se tornar realidade.» explicou Dom Bosco com simplicidade. «Na verdade, esta Congregação não está nascendo só agora: ela já existia naquele conjunto de Regras que, por costume, vocês sempre observaram… Trata-se agora de andar avante, de constituir normalmente a Congregação e de aceitar as suas Regras. Saibam, porém, que nela serão inscritos somente aqueles que, depois de terem refletido seriamente, quiserem fazer, a seu tempo, os votos de pobreza, castidade e obediência… Deixo-lhes uma semana de tempo para pensarem nisso».
À saída da reunião houve um silêncio insólito. Bem depressa, quando começaram a falar, pode-se constatar que Dom Bosco tinha razão em proceder com lentidão e prudência. Alguns murmuravam consigo mesmos que Dom Bosco queria fazer deles frades. Cagliero caminhava pelo pátio, envolvido em sentimentos contraditórios.
Mas o desejo de «permanecer com Dom Bosco» prevaleceu na maioria. Cagliero disse então a frase que se tornaria histórica: «Frade ou não frade, eu fico com Dom Bosco».
Na «conferência de adesão», que se realizou na noite de 18 de dezembro, eram em 17. Dom Bosco convocou o primeiro Capítulo Geral em 5 de setembro de 1877, em Lanzo Torinese. Os participantes eram vinte e três e o Capítulo durou três dias inteiros. Hoje, para o Capítulo de número 29, os capitulares são 227. Chegaram de todas as partes do mundo, representando todos os salesianos.
Na abertura do primeiro Capítulo Geral, Dom Bosco disse aos nossos irmãos: «O Divino Salvador diz no santo Evangelho que onde estão dois ou três reunidos em seu nome, Ele mesmo está entre deles. Nós não temos outro fim nestes encontros senão a maior glória de Deus e a salvação das almas redimidas pelo precioso Sangue de Jesus Cristo». Podemos estar certos, portanto, de que o Senhor estará em nosso meio e que conduzirá Ele mesmo as coisas de tal modo que todos se sintam à vontade.

Uma mudança de época
A expressão evangélica: «Designou doze dentre eles para ficar em sua companhia. Ele os enviaria a pregar» (Mc 3,14-15), diz que Jesus escolhe e chama aqueles que quer. Entre estes estamos também nós. O Reino de Deus se torna realidade e aqueles primeiros Doze são um exemplo e um modelo para nós e para as nossas comunidades. Os Doze são pessoas comuns, com qualidades e defeitos, não formam uma comunidade de puros e nem sequer um simples grupo de amigos.
Sabem, como disse o Papa Francisco, que “Vivemos uma mudança de época mais que uma época de mudanças”. Em Valdocco, nestes dias, se percebe grandemente esta consciência. Todos os irmãos sentem que este é um momento de grande responsabilidade.
Na vida da maioria dos irmãos, das inspetorias e da Congregação há muitas coisas positivas, mas isto não basta e não pode servir de “consolo”, porque o grito do mundo, as grandes e novas pobrezas, a luta quotidiana de tantas pessoas – não somente pobres, mas também simples e trabalhadoras – se levanta forte como pedido de ajuda. São todas perguntas que nos devem provocar e sacudir e não nos deixar tranquilos.
Com a ajuda das inspetorias através da consulta, acreditamos ter individuado, por um lado, os principais motivos de preocupação e, por outro, os sinais de vitalidade da nossa Congregação, adaptados sempre com aos traços culturais específicos de cada contexto.
Durante o Capítulo propomos concentrar-nos sobre o que significa para nós sermos verdadeiramente salesianos apaixonados por Jesus Cristo, porque sem isto ofereceremos bons serviços, faremos o bem às pessoas, ajudaremos, mas não deixaremos uma marca profunda.
A missão de Jesus continua e se torna visível hoje no mundo também através de nós, seus enviados. Somos consagrados para construir amplos espaços de luz para o mundo de hoje, para sermos profetas. Fomos consagrados por Deus e chamados ao seguimento do seu amado Filho Jesus para vivermos verdadeiramente como conquistados por Deus. É por isso que o essencial continua a ser a fidelidade da Congregação ao Espírito Santo, vivendo, com o espírito de Dom Bosco, uma vida consagrada salesiana centrada em Jesus Cristo.
A vitalidade apostólica, como vitalidade espiritual, é compromisso a favor dos adolescentes e jovens nas mais variadas pobrezas e, por isso, não se pode somente oferecer serviços educativos. O Senhor nos chama a educar evangelizando, levando a Sua presença e acompanhando a vida com oportunidades de futuro.
Somos chamados a procurar, em nome de Deus, novos modelos de presença, novas expressões do carisma salesiano. E que isto seja feito, em comunhão com os jovens e com o mundo, através de “uma ecologia integral” e da formação de uma cultura digital nos mundos habitados pelos jovens e pelos adultos.
E é forte o desejo e a expectativa de que este seja um Capítulo Geral corajoso, em que se digam as coisas, sem se preocupar com frases corretas e bem ditas, mas que não tocam a vida.
Nesta missão não estamos sozinhos. Sabemos e sentimos que a Virgem Maria é um modelo de fidelidade.
É belo voltar com a mente e com o coração ao dia da solenidade da Imaculada Conceição de 1887, quando, dois meses antes da sua morte, Dom Bosco disse a alguns Salesianos que o acompanhavam e escutavam com comoção: «Até agora caminhamos no certo. Não podemos errar; é Maria quem nos guia».
Maria Auxiliadora, a Nossa Senhora de Dom Bosco, nos guia. Ela é a Mãe de todos nós e é Ela que diz ao CG29, como o fez em Caná da Galileia: «Fazei o que ele vos disser».
A nossa Mãe Auxiliadora nos ilumine e nos guie, como fez com Dom Bosco, a sermos fiéis ao Senhor e a jamais desiludir os jovens, sobretudo aqueles mais necessitados.