São Domingos Sávio. Os lugares da infância

São Domingos Sávio, o “pequeno grande santo”, viveu sua breve mas intensa infância entre as colinas do Piemonte, em lugares hoje repletos de memória e espiritualidade. Por ocasião de sua beatificação em 1950, a figura deste jovem discípulo de Dom Bosco foi celebrada como símbolo de pureza, fé e dedicação evangélica. Percorremos os principais lugares de sua infância — Riva presso Chieri, Morialdo e Mondonio — através de testemunhos históricos e relatos vívidos, revelando o ambiente familiar, escolar e espiritual que forjou seu caminho rumo à santidade.

            O Ano Santo de 1950 foi também o da beatificação de Domingos Sávio, que ocorreu em 5 de março. O discípulo de Dom Bosco, de 15 anos de idade, foi o primeiro santo leigo “confessor” a subir aos altares em uma idade tão jovem.
            Naquele dia, a Basílica de São Pedro estava repleta de jovens que deram testemunho, com sua presença em Roma, de uma juventude cristã totalmente aberta aos ideais mais sublimes do Evangelho. Segundo a Rádio Vaticana, a Basílica se transformou em um imenso e barulhento oratório salesiano. Quando o véu que cobria a figura do novo Beato caiu dos raios de Bernini, um aplauso frenético se elevou de toda a basílica e o eco chegou até a praça, onde a tapeçaria que representava o Beato foi descoberta na “Loggia” [balcão] das Bênçãos.
            Naquele dia, o sistema educativo de Dom Bosco recebeu seu maior reconhecimento. Quisemos revisitar os lugares da infância de Domingos, depois de reler as informações detalhadas do P. Miguel Molineris naquela Nova Vida de Domingos Sávio, na qual ele descreve com a sua conhecida seriedade de documentação o que as biografias de São Domingos Sávio não dizem.

Em Riva perto de Chieri
            Em primeiro lugar, estamos em São João de Riva perto de Chieri, o vilarejo onde nosso “pequeno grande santo” nasceu em 2 de abril de 1842, filho de Carlos Sávio e Brígida Gaiato, o segundo de dez filhos, herdando do primeiro, que sobreviveu apenas 15 dias após seu nascimento, seu nome e seu direito de primogenitura.
            Seu pai, como sabemos, veio de Ranello, um vilarejo de Castelnuovo d’Asti, e quando jovem foi morar com seu tio Carlos, um ferreiro em Mondonio, em uma casa na atual Rua Junípero, no número 1, ainda chamada de “ca dèlfré” ou casa do ferreiro. Lá, com o “Barba Carlòto” [Tio Carlòto”], ele aprendeu o ofício. Algum tempo depois de seu casamento, contraído em 2 de março de 1840, ele se tornou independente, mudando-se para a casa dos Gastaldi em São João de Riva. Ele alugou uma acomodação com cômodos no andar térreo adequados para uma cozinha, depósito e oficina, e quartos no primeiro andar, acessíveis por uma escada externa que agora desapareceu.
            Os herdeiros de Gastaldi venderam a casinha e o rancho adjacente para os salesianos em 1978. E hoje um moderno centro de acolhida juvenil, administrado por ex-alunos e cooperadores salesianos, dá memória e nova vida à pequena casa onde Domingos nasceu.

Em Morialdo
            Em novembro de 1843, ou seja, quando Domingos ainda não tinha completado dois anos de idade, a família Sávio, por motivos de trabalho, mudou-se para Morialdo, o vilarejo de Castelnuovo ligado ao nome de São João Bosco, que nasceu na propriedade Biglione, um vilarejo no distrito de Becchi.
            Em Morialdo, os Sávio alugaram alguns quartos pequenos perto da varanda de entrada da propriedade de Joana Viale, que havia se casado com Estêvão Persoglio. Mais tarde, todo o campo foi vendido por seu filho, Alberto Persoglio, para José Pianta e família.
            Atualmente, esse terreno também é, em sua maior parte, propriedade dos salesianos que, depois de restaurá-la, a utilizam para encontros de crianças e adolescentes e para visitas de peregrinos. A menos de 2 km do Colle Don Bosco, ela está situada em um ambiente campestre, em meio a parreirais, campos férteis e prados ondulantes, com um ar de alegria na primavera e nostalgia no outono, quando as folhas amareladas são douradas pelos raios do sol, com um panorama encantador em dias bonitos, quando a cadeia dos Alpes se estende no horizonte desde o pico do Monte Rosa, perto de Albugnano, até o Gran Paradiso, Rocciamelone e Monviso, é realmente um lugar para se visitar e usar em dias de intensa vida espiritual, uma escola de santidade no estilo de Dom Bosco.
            A família Sávio permaneceu em Morialdo até fevereiro de 1853, ou seja, por nove anos e três meses. Domingos, que viveu apenas 14 anos e 11 meses, passou quase dois terços de sua curta existência lá. Portanto, ele pode ser considerado não apenas o aluno e filho espiritual de Dom Bosco, mas também seu conterrâneo.

Em Mondonio
            O P. Molineris sugere a razão de a família Sávio ter deixado Morialdo. Seu tio, o ferreiro, havia morrido e o pai de Domingos poderia herdar não apenas as ferramentas do ofício, mas também a clientela em Mondonio. Esse foi provavelmente o motivo da mudança, que ocorreu, no entanto, não para a casa na Rua Junípero, mas para a parte baixa da vila, onde alugaram dos irmãos Bertello a primeira casa à esquerda da rua principal da vila. A pequena casa consistia, e é assim ainda hoje, em um andar térreo com dois cômodos, adaptados como cozinha e sala de trabalho, e um andar superior, acima da cozinha, com dois quartos e espaço suficiente para uma oficina com uma porta na rampa da rua.
            Sabemos que o Sr. e a Sra. Sávio tiveram dez filhos, três dos quais morreram muito jovens e outros três, incluindo o nosso, não chegaram a completar 15 anos de idade. A mãe morreu em 1871, aos 51 anos de idade. O pai, ficando sozinho em casa com o filho João, depois de ter acolhido as três filhas sobreviventes, pediu hospitalidade a Dom Bosco em 1879 e morreu em Valdocco em 16 de dezembro de 1891.
            Domingos havia entrado em Valdocco aos 29 de outubro de 1854, permanecendo lá, exceto por curtos períodos de férias, até 1º de março de 1857. Ele morreu oito dias depois em Mondonio, no pequeno quarto ao lado da cozinha, em 9 de março daquele ano. Sua permanência em Mondonio foi, portanto, de cerca de 20 meses no total, e em Valdocco, de 2 anos e 4 meses.

Lembranças de Morialdo
            A partir dessa breve análise das três casas da família Sávio, fica claro que a de Morialdo deve ser a mais rica em lembranças. São João de Riva lembra o nascimento de Domingos, e Mondonio um ano na escola e de sua santa morte; mas Morialdo lembra sua vida na família, na igreja e na escola. Quantas coisas “Minòt”, como era chamado lá, deve ter ouvido, visto e aprendido com seu pai e sua mãe, quanta fé e amor ele demonstrou na pequena igreja de São Pedro, quanta inteligência e bondade na escola do P. João Zucca, e quanta diversão e vivacidade no parquinho com seus companheiros da vila.
            Foi em Morialdo que Domingos Sávio se preparou para a Primeira Comunhão, que ele fez na igreja paroquial de Castelnuovo em 8 de abril de 1849. Foi lá, quando tinha apenas 7 anos de idade, que ele escreveu as “Lembranças”, ou seja, os propósitos de sua Primeira Comunhão:
            1. Irei me confessar com muita frequência e comungarei sempre que o confessor me der permissão;
            2. Quero santificar os dias de festa;
            3. Meus amigos serão Jesus e Maria;
            4. A morte, mas não os pecados.
            Lembranças que foram o guia de suas ações até o fim de sua vida.
            O comportamento, a maneira de pensar e de agir de um menino refletem o ambiente em que ele viveu e, especialmente, a família em que passou a infância. Portanto, para entender algo sobre Domingos, é sempre bom refletir sobre sua vida naquela propriedade de Morialdo.

A família
            Sua família não era de agricultores. Seu pai era ferreiro e sua mãe costureira. Seus pais não eram de constituição robusta. Os sinais de cansaço podiam ser vistos no rosto de seu pai, enquanto a delicadeza das linhas distinguia o rosto de sua mãe. O pai de Domingos era um homem de iniciativa e coragem. Sua mãe veio da não muito distante Cerreto d’Asti, onde mantinha uma oficina de costura “e, com sua habilidade, livrava aqueles habitantes da chateação de descer ao vale para comprar tecidos”. E ela ainda era costureira em Morialdo também. Será que Dom Bosco sabia disso? Curioso, porém, o seu diálogo com o pequeno Domingos, que tinha ido procurá-lo nos Becchi:
– Bem, o que você acha?
            – Eh, parece-me que seja um bom tecido
(em piem.: Eh, m’a smia ch’a-j’sia bon-a stòfa!).
– Para que pode servir esse tecido?
            – Para fazer uma linda roupa para oferecer ao Senhor.
            – Então, eu sou o tecido: o senhor seja o alfaiate; leve-me consigo
(em piem.: ch’èmpija ansema a chiel) e fará uma bela roupa para o Senhor” (OE XI, 185).
            Um diálogo inestimável entre dois conterrâneos que se entenderam à primeira vista. E a linguagem deles era perfeita para o filho da costureira.
            Quando sua mãe morreu, em 14 de julho de 1871, o pároco de Mondonio, P. João Pastrone, dizia às filhas chorosas para consolá-las: “Não chorem, porque a mãe de vocês era uma mulher santa; e agora ela já está no Paraíso”.
            Seu filho Domingos, que a precedeu no céu por vários anos, também disse a ela e a seu pai, antes de falecer: “Não chorem, já vejo o Senhor e Nossa Senhora de braços abertos esperando por mim”. Essas suas últimas palavras, testemunhadas por sua vizinha Anastácia Molino, que estava presente no momento de sua morte, foram o selo de uma vida alegre, o sinal manifesto daquela santidade que a Igreja reconheceu solenemente em 5 de março de 1950, dando-lhe mais tarde a confirmação definitiva em 12 de junho de 1954 com sua canonização.

Foto na página de rosto. A casa onde Domingos morreu em 1857. É uma construção de tipo rural, datada provavelmente do final de 1600. Reconstruída sobre outra casa ainda mais antiga, é um dos monumentos mais queridos pelos Mondonienses.




Don Bosco International

Don Bosco International (DBI) é uma organização não governamental sediada em Bruxelas, que representa os Salesianos de Dom Bosco junto às instituições da União Europeia, com foco na defesa dos direitos das crianças, no desenvolvimento dos jovens e no ensino. Fundada em 2014, a DBI colabora com vários parceiros europeus para promover políticas sociais e educacionais inclusivas, prestando atenção aos sujeitos vulneráveis. A organização promove a participação juvenil na definição das políticas, valorizando a importância da educação informal. Através de atividades de networking e advocacy, a DBI visa criar sinergia com as instituições europeias, as organizações da sociedade civil e as redes salesianas em âmbito global. Seus valores são a solidariedade, a formação integral dos jovens e o diálogo intercultural. A DBI organiza seminários, conferências e projetos europeus voltados a garantir uma maior presença dos jovens nos processos de decisão, favorecendo um contexto inclusivo que os apoie no percurso de crescimento, autonomia e desenvolvimento espiritual, através de intercâmbios culturais e formativos. A secretária executiva, Sara Sechi, explica a atividade desta instituição.

A advocacy como ato de responsabilidade para e com os nossos jovens
            O Don Bosco International (DBI) é a organização que cuida da representação institucional dos Salesianos de Dom Bosco junto às instituições europeias e às organizações da sociedade civil que giram em torno delas. A missão da DBI é centrada na advocacy, que pode ser traduzida como “incidência política”, ou seja, todas aquelas ações que visam influenciar um processo decisiório-legislativo, no nosso caso, o europeu. O escritório da DBI está sediado em Bruxelas e fica junto da comunidade salesiana de Woluwe-Saint-Lambert (Inspetoria FRB). O trabalho na capital europeia é dinâmico e estimulante, mas é a proximidade da comunidade que nos permite manter vivo o carisma salesiano em nossa missão, evitando de ficarmos presos na chamada “bolha europeia”, aquele mundo de relações e dinâmicas ‘privilegiadas’ geralmente distantes das nossas realidades.
            A ação da DBI segue duas direções: por um lado, aproximar a missão educativo-pastoral salesiana das instituições através da partilha de boas práticas, demandas dos jovens, projetos e respetivos resultados, criando espaços de diálogo e participação para aqueles que tradicionalmente não os teriam; por outro lado, trazer a dimensão europeia para dentro da Congregação através do monitoramento e da informação sobre os processos em curso e as novas iniciativas, a facilitação de novos contatos com representantes institucionais, ONGs e organizações confessionais que possam dar vida a novas colaborações.
            Uma pergunta muito frequente é como a DBI consegue haver, concretamente, uma incidência política. Nas ações de advocacy é fundamental o trabalho em rede com outras organizações ou entidades que compartilham os mesmos princípios, valores e objetivos. A tal propósito, a DBI garante uma presença ativa em alianças, formais e informais, de ONGs ou entidades confessionais que trabalham juntos em temáticas caras à missão de Dom Bosco: a luta contra a pobreza e a inclusão social, a defesa dos direitos dos jovens, sobretudo aqueles em situação de vulnerabilidade, e o desenvolvimento humano integral. Todas as vezes que uma delegação salesiana visita Bruxelas, facilitamos para ela os encontros com os Membros do Parlamento Europeu, os funcionários da Comissão, os corpos diplomáticos, incluindo a Nunciatura Apostólica junto à União Europeia, e outras entidades de interesse. Muitas vezes conseguimos nos encontrar com os grupos de jovens e de estudantes das escolas salesianas que visitam a cidade, organizando para eles um momento de diálogo com outras organizações juvenis.
            A DBI é um serviço que a Congregação oferece para dar visibilidade às suas próprias obras e para levar aos fóruns institucionais a voz de quem, de outra forma, não seria ouvido. A Congregação Salesiana tem um potencial de advocacy não plenamente explorado. Sua presença em 137 países cuidando dos jovens em risco de pobreza e exclusão social representa uma rede educativa e social com a qual poucas organizações podem contar; no entanto, ainda se tem dificuldade em apresentar estrategicamente os bons resultados às instâncias de decisão, onde se delineiam políticas e investimentos, sobretudo em âmbito internacional. Por esta razão, garantir um diálogo constante com as instituições representa, ao mesmo tempo, uma oportunidade e um ato de responsabilidade. Uma oportunidade porque, a longo prazo, a visibilidade facilita contatos, novas parcerias, financiamentos para os projetos e a sustentabilidade das obras. Uma responsabilidade porque, não podendo ficar em silêncio diante das dificuldades enfrentadas pelos nossos e pelas nossas jovens no mundo de hoje, a incidência política é o testemunho ativo daquele compromisso cívico que muitas vezes procuramos gerar nos jovens.
            Garantindo direitos e dignidade para os jovens, Dom Bosco foi o primeiro ator de incidência política da Congregação, por exemplo através da assinatura do primeiro contrato italiano de aprendizagem. A advocacy representa um elemento intrínseco da missão salesiana. Aos Salesianos não faltam a experiência, nem as histórias de sucesso, nem as alternativas concretas e inovadoras para enfrentar os desafios atuais, mas muitas vezes falta uma coesão que permita um trabalho em rede coordenado e uma comunicação clara e compartilhada. Dando voz aos testemunhos autênticos dos jovens podemos transformar os desafios em oportunidades, criando um impacto duradouro na sociedade que dê esperança para o futuro.

Sara Sechi
Don Bosco International – DBI, Bruxelas

Sara Sechi, Secretária Executiva da DBI, está em Bruxelas há dois anos e meio. É filha da geração Erasmus+ que, juntamente com outros programas europeus, lhe garantiu experiências de vida e de formação que de outra forma lhe seriam negadas. É muito grata a Dom Bosco e à Congregação Salesiana, onde encontrou meritocracia, crescimento e uma segunda família. E nós lhe desejamos um bom e profícuo trabalho pela causa dos jovens.




A inclusão social de acordo com Dom Bosco

A proposta clarividente de Dom Bosco para os “menores desacompanhados” de Roma.

A história da igreja do Sagrado Coração em Roma, agora uma basílica, é bastante conhecida e é muito frequentada por pessoas que passam apressadas pela estação Termini adjacente. Uma história repleta de problemas e dificuldades de todos os tipos para Dom Bosco, enquanto a igreja estava em construção (1880-1887), mas também uma fonte de alegria e satisfação quando foi concluída (1887). Menos conhecida, porém, é a história da origem da “casa de caridade e benefício capaz de acomodar pelo menos 500 jovens” que Dom Bosco queria construir ao lado da igreja. Uma obra, uma reflexão extremamente atual… de 140 anos atrás! O próprio Dom Bosco no-la apresentou no número de janeiro de 1884 do Boletim Salesiano: “Hoje há centenas e milhares de meninos pobres que vagueiam pelas ruas e praças de Roma, pondo em perigo a fé e a moral. Como já lhes tinha assinalado em outras ocasiões, muitos jovens, sozinhos ou com suas famílias, vêm para esta cidade não só de várias partes da Itália, mas também de outras nações, na esperança de encontrar trabalho e dinheiro; mas, decepcionados em suas expectativas, logo caem na miséria e no risco de praticarem o mal e, consequentemente, de serem levados para as prisões”.
Analisar a condição dos jovens na “cidade eterna” não era difícil: a situação preocupante dos “meninos de rua”, fossem eles italianos ou não, estava à vista de todos, das autoridades civis e eclesiásticas, dos cidadãos romanos e da multidão de “piemonteses ignorantes” e estrangeiros que haviam chegado à cidade depois que ela foi declarada capital do Reino da Itália (1871). A dificuldade estava na solução a ser proposta e na capacidade de implementá-la, uma vez identificada.
Dom Bosco, nem sempre muito bem visto na cidade por causa de sua origem piemontesa, propôs sua solução aos Cooperadores: “O objetivo do Internato do Sagrado Coração de Jesus seria o de acolher jovens pobres e abandonados de qualquer cidade da Itália ou de qualquer outro país do mundo, educá-los na ciência e na religião, instruí-los em alguma arte ou ofício e, assim, afastá-los das portas das prisões, devolvê-los às suas famílias e à sociedade civil como bons cristãos, cidadãos honestos, capazes de ganhar um sustento honroso com seu próprio trabalho”.

À frente dos tempos
Acolhimento, educação, formação para o trabalho, integração e inclusão social: mas não é esse o objetivo prioritário de todas as políticas juvenis em favor dos imigrantes hoje? Dom Bosco tinha a seu favor a experiência nesse sentido: durante 30 anos, em Valdocco, acolhiam jovens de várias partes da Itália; durante alguns anos, nas casas salesianas da França, havia filhos de imigrantes italianos e de outros imigrantes; desde 1875, em Buenos Aires, os salesianos cuidavam espiritualmente de imigrantes italianos de várias regiões da Itália (décadas depois, interessar-se-iam também por Jorge Mário Bergoglio, futuro Papa Francisco, filho de imigrantes piemonteses).

A dimensão religiosa
Naturalmente, Dom Bosco estava interessado acima de tudo na salvação da alma dos jovens, o que exigia a profissão da fé católica: “Extra ecclesia nulla salus” [fora da Igreja não há salvação], como se costumava dizer. E, de fato, ele escreveu: “Os outros, então, da cidade e os estrangeiros, por causa de sua pobreza, estão expostos diariamente ao perigo de cair nas mãos dos protestantes, que, por assim dizer, invadiram a cidade de São Pedro e, especialmente, fazem suas emboscadas aos jovens pobres e necessitados e, sob o pretexto de fornecer-lhes comida e roupas para o corpo, espalham o veneno do erro e da descrença em suas almas”.
Isso explica como Dom Bosco, em seu projeto educativo de Roma, gostaríamos de dizer, em seu “pacto global pela educação”, não descuida da fé. Um caminho de verdadeira integração em uma “nova” sociedade civil não pode excluir a dimensão religiosa da população. O apoio papal vem a calhar: um estímulo a mais “para as pessoas que amam a religião e a sociedade”: “Este internato é muito caro ao coração do Santo Padre Leão XIII, que, enquanto com zelo apostólico se empenha em difundir a fé e a moral em todas as partes do mundo, não descuida de nenhuma tentativa em favor das crianças mais expostas ao perigo. Este internato deve, portanto, ser querido ao coração de todas as pessoas que amam a religião e a sociedade; deve ser especialmente querido ao coração de nossos Cooperadores e das nossas Cooperadoras, a quem, de modo especial, o Vigário de Jesus Cristo confiou a nobre tarefa do próprio internato e da Igreja anexa”.
Por fim, em seu apelo à generosidade dos benfeitores para a construção do internato, Dom Bosco não podia deixar de fazer uma referência explícita ao Sagrado Coração de Jesus, a quem a igreja anexa foi dedicada: “Podemos também acreditar com certeza que este internato será bem agradável ao Coração de Jesus… Na Igreja vizinha, o Coração Divino será o refúgio dos adultos, e no Internato anexo ele se mostrará o amigo amoroso, o pai terno das crianças. Ele terá em Roma, todos os dias, um grupo de 500 crianças, que estarão devotamente a seu lado, para rezar, para cantar os seus louvores, para pedir sua santa bênção”.

Novos tempos, novas periferias
O internato salesiano, construído como uma escola de artes e ofícios e um oratório na periferia da cidade – que na época começava na Praça da República – mais tarde foi absorvido pela expansão da construção da própria cidade. A escola primitiva para meninos pobres e órfãos foi transferida para um novo subúrbio em 1930 e foi substituída em etapas sucessivas por vários tipos de escolas (ensino fundamental, médio e superior). Durante algum tempo, também hospedou estudantes salesianos que frequentavam a Universidade Gregoriana e algumas faculdades do Ateneu Salesiano. Permaneceu sempre uma paróquia e um oratório, bem como a sede da Inspetoria Romana. Por muito tempo abrigou vários escritórios nacionais e agora é a sede da Congregação Salesiana: estruturas que animaram e animam as casas salesianas que, em sua maioria, nasceram e cresceram nas periferias de centenas de cidades, ou nas “periferias geográficas e existenciais” do mundo, como disse o Papa Francisco. Como o Sagrado Coração de Roma, que ainda preserva um pequeno sinal do grande “sonho” de Dom Bosco: oferece os primeiros socorros aos imigrantes extracomunitários e, com o “Banco de Talentos” do Centro Juvenil, fornece alimentos, roupas e artigos de primeira necessidade aos sem-teto da estação Termini.




O sonho das 22 luas (1854)

Em março de 1854, num dia de festa, depois das vésperas, Dom Bosco reuniu todos os alunos na sacristia dos fundos, dizendo que queria contar-lhes um sonho. Estavam presentes, entre outros, os jovens Cagliero, Turchi, Anfossi, o Clérigo Reviglio e o Clérigo Buzzetti, dos quais colhemos a nossa narração. Todos estavam convencidos de que, sob o nome de sonho, Dom Bosco estava escondendo as manifestações que tinha do céu. O sonho era o seguinte:

            – Eu me encontrava com vocês no pátio e estava feliz vendo-os animados, alegres e contentes. Quem pulava, quem gritava, quem corria. De repente vejo que um de vocês sai de uma porta da casa e se põe a passear no meio dos colegas, com uma espécie de cilindro, como um turbante, na cabeça. Ele era transparente, todo iluminado por dentro e com a figura de uma grande lua, no meio da qual estava escrito o número 22. Eu fiquei surpreso e procurei logo aproximar-me para dizer que deixasse aquela coisa carnavalesca. Mas, enquanto escurecia, como se fosse dado um toque de sineta, o pátio se esvazia e vejo todos os jovens debaixo do pórtico da casa, dispostos em fila. O aspecto deles manifestava um grande medo, e dez ou doze deles tinham o rosto coberto por uma estranha palidez. Eu passei adiante de todos para observá-los. E vejo entre eles aquele que tinha a lua sobre a cabeça mais pálido que todos. Dos seus ombros pendia um manto fúnebre. Encaminho-me para ele para perguntar o que significasse aquele estranho espetáculo. Mas uma mão me detém, e vejo um desconhecido de aspecto sério e postura nobre, que me diz:
             – Escute-me, antes de aproximar-se dele. Ele tem ainda 22 luas de tempo, e antes que passem, morrerá. Esteja de olho nele e prepare-o!
            Eu queria pedir-lhe explicação da sua fala e do seu aparecimento de improviso, mas não o vi mais.
            – O jovem, meus queridos filhos, eu o conheço e está entre vocês!
            Um vivo terror se apoderou de todos os jovens, tanto mais que sendo a primeira vez que Dom Bosco anunciava em público e com uma certa solenidade a morte de um da casa. O bom pai não podia deixar de notar isso e prosseguiu:
            – Eu o conheço e está entre vocês aquele das luas. Mas não quero que se espantem. É um sonho como lhes disse, e sabem que nem sempre se deve acreditar nos sonhos. De qualquer modo, conforme for a coisa, o que é certo é que devemos estar sempre preparados como nos recomenda o divino Salvador no santo Evangelho e não cometer pecados. E, então, a morte não nos fará mais medo. Sejam todos bons, não ofendam o Senhor, e eu, então, estarei atento e estarei de olho no número vinte e dois, o que quer dizer 22 luas, ou seja 22 meses. Espero que tenha uma boa morte.
            Este anúncio espantou os jovens no início. Fez, porém, um bem enorme, porque estavam todos atentos em manter-se na graça de Deus, com o pensamento da morte, e a contar, então as luas que transcorriam. Dom Bosco, de quando em quando, lhes perguntava:
            – Quantas luas ainda? –
            E lhe respondiam:
            – Vinte, dezoito, quinze etc.
            Às vezes, os jovens que vigiavam todas as suas palavras se aproximavam dele para lembrar-lhe as luas passadas, e procuravam fazer prognósticos e adivinhar. Mas Dom Bosco ficava em silêncio. O jovem Piano, que entrou como estudante no Oratório no mês de novembro de 1854, ouviu falar da nona lua, dos colegas, dos superiores, e veio saber o que Dom Bosco tinha predito. E ele, então, como todos os outros, ficou em observação.
            Terminou o ano de 1854, passaram muitos meses de 1855 e chegou outubro, isto é, a vigésima lua. Cagliero, já clérigo, era encarregado de assistir a três quartinhos perto da antiga casa Pinardi, que serviam de dormitório para um grupo de jovens. Entre eles havia um certo Segundo Gurgo, bielense de Pettinengo, com seus 17 anos, de físico belo e robusto, tipo de uma saúde de ferro, que dava todas as esperanças de longa vida, até a velhice. Seu pai o tinha recomendado a Dom Bosco para mantê-lo em pensão. Um pianista e organista talentoso que estudava música desde manhã até noite e ganhava um bom dinheiro dando aulas em Turim. Dom Bosco, ao longo do ano, de quando em quando, perguntava ao Clérigo Cagliero sobre a conduta de seus assistidos, com especial atenção. Em outubro chamou-o e lhe disse:
            – Onde você dorme?
            Respondeu o Clérigo Cagliero:
            – No último quartinho, e de lá assisto os outros dois.
            – E não seria melhor que mudasse a sua cama para aquele do meio?
            – Como quiser. Mas, lhe faço notar que os outros dois quartos são secos, enquanto no segundo uma parede faz parte do muro do campanário da igreja, recém-construído. Há, então, um pouco de umidade, o inverno se aproxima e poderia pegar uma doença. Contudo, de onde me encontro agora, posso muito bem assistir a todos os jovens do meu dormitório.
            – Quanto a assisti-los, sei que pode. Mas é melhor que vá para aquele do meio.
            O Clérigo Cagliero obedeceu, mas depois de algum tempo pediu licença a Dom Bosco para mudar sua cama para o primeiro quarto. Dom Bosco não consentiu, mas lhe disse:
            – Fique onde está e repouse tranquilo que a sua saúde nada sofrerá.
            O Clérigo Cagliero aquietou-se e alguns dias depois de novo foi chamado por Dom Bosco:
            – Em quantos vocês são no seu novo quarto?
            – Somos três. Eu, o jovem Segundo Gurgo, o Garovaglia. E com o piano somos quatro.
            – Bem, está bem. São três tocadores, o Gurgo poderá dar-lhe lições de piano. Você cuide de assisti-lo bem.
            E nada mais acrescentou. O clérigo, tocado pela curiosidade e suspeitando, começou a fazer-lhe perguntas, mas Dom Bosco o interrompeu dizendo-lhe:
            – O porquê saberá a seu tempo.
            O segredo era que naquele quarto estava o jovem das 22 luas.
            No começo de dezembro não havia doentes no Oratório, e Dom Bosco, tendo subido no estrado à noite depois das orações, anunciou que um dos jovens morreria antes do santo Natal. Por essa nova predição e porque as 22 luas já se cumpriam, reinou em casa uma grande trepidação, lembrando-se frequentemente das palavras de Dom Bosco e se temia o cumprimento.
            Dom Bosco, naqueles dias, chamara ainda uma vez o Clérigo Cagliero, e lhe perguntou se Gurgo se comportasse bem e se, depois das lições de música na cidade, voltasse para casa a tempo. Cagliero lhe respondeu que tudo ia bem e que não havia novidade com seus colegas. Disse-lhe Dom Bosco apenas isso e nada mais: – Ótimo. Estou contente. Vigie para que sejam todos bons, e avise-me se acontecer algum inconveniente.
            E eis que pela metade de dezembro o Gurgo foi acometido por uma cólica violenta e tão preocupante que, chamando depressa o médico, a seu conselho lhe administraram os santos sacramentos. Por oito dias, e muito sofrida, durou a doença e veio para melhor, graças aos cuidados do doutor Debernardi. E Gurgo pôde levantar-se da cama convalescente. O mal tinha desaparecido e o médico repetia que o jovem escapara por pouco. No entanto, seu pai foi avisado, porque, não tendo ainda morrido alguém no Oratório, Dom Bosco queria evitar aos alunos um espetáculo fúnebre.
            A novena do Santo Natal começara e Gurgo já curado pensava em ir à sua cidade nas festas natalinas. Todavia, quando se davam as boas novas dele a Dom Bosco, ele fez uma cara de quem não queria acreditar. Veio o pai, e encontrando o filho já em bom estado, pedindo e obtendo licença, foi reservar um lugar na carruagem para conduzi-lo no dia seguinte a Novara, e depois a Pettinengo, para que se restabelecesse plenamente da saúde. Era domingo, 23 de dezembro. Gurgo, porém, naquela mesma noite, manifestou o desejo de comer um pouco de carne, alimento proibido pelo médico. O pai, para fortalecê-lo, correu para comprá-la e a fez cozinhar numa maquininha de café. O jovem tomou a sopa e comeu a carne, que certamente devia estar meio crua e meio cozida e até mais do que o necessário. O pai se retirou. No quarto ficou o enfermeiro e Cagliero. E eis que a uma certa hora da noite o enfermo começa a lamentar-se de dores na barriga. A cólica voltava a incomodá-lo com mais força. Gurgo chamou o assistente pelo nome:
            – Cagliero, Cagliero! Adeus suas aulas de piano!
            Respondeu Cagliero:
            – Tenha paciência. Coragem!
            – Eu não vou mais para casa: não viajo mais. Reze por mim; se soubesse como me sinto mal. Recomende-me a Nossa Senhora.
            – Sim, rezarei. Invoque também você Maria Santíssima.
            Cagliero começou a rezar, mas, vencido pelo sono, adormeceu. E eis que improvisamente o enfermeiro o sacode e mostrando-lhe Gurgo, corre logo para chamar P. Alasonatti, que dormia no quarto vizinho. Este veio, e depois de alguns instantes Gurgo expirava. Foi uma desolação em toda a casa. Cagliero, de manhã, encontrou Dom Bosco que descia as escadas para ir rezar a Santa Missa e estava muito triste, porque já lhe tinham comunicado a dolorosa notícia.
            No entanto, na casa havia um grande falatório desta morte. Era a vigésima segunda lua e ainda não completa. E Gurgo, morrendo no dia 24 de dezembro, antes da aurora, cumpriu também a segunda predição, isto é, que ele não veria a festa do santo Natal.
            Depois do almoço, os jovens e os clérigos rodearam Dom Bosco silenciosos. De repente o Clérigo João Turchi o interrogou se Gurgo era o das luas. Respondeu Dom Bosco:
            – Sim, era justamente ele. É ele mesmo que vi no sonho!
            Depois acrescentou ainda:
            – Vocês observaram que há um tempo, coloquei-o para dormir com um grupo especial, recomendando a um dos melhores assistentes que para lá transportasse sua cama para que pudesse continuamente vigiá-lo. E o assistente foi o Clérigo João Cagliero. E improvisamente voltou-se para o clérigo e lhe disse: – Uma outra vez não deve fazer tantas observações ao que Dom Bosco lhe disser. Agora compreende o motivo pelo qual eu não queria que deixasse o quarto onde estava aquele pobrezinho? Você me pediu, mas eu não quis contentá-lo, justamente para que Gurgo tivesse um guarda. Se ele estivesse ainda vivo, poderia dizer quantas vezes lhe vinha falando abertamente da morte e os cuidados que lhe dediquei para dispô-lo a uma feliz passagem.
            Escreveu Dom Cagliero: – “Eu entendi, então, o motivo das recomendações especiais que Dom Bosco me deu, e aprendi a conhecer e a valorizar melhor a importância de suas palavras e de seus conselhos paternos”.
            Narra Pedro Enria: – Na noite da vigília de Natal, lembro-me ainda Dom Bosco que subiu no estrado, percorrendo com os olhos ao redor como se procurasse alguém. E disse: É o primeiro jovem que morre no Oratório. Ele fez bem suas coisas e esperamos que esteja no paraíso. Recomendo-lhes que estejam sempre preparados… E não pôde mais continuar porque seu coração estava triste. A morte tinha-lhe roubado um filho.
(MBp V, 322-327)




Os Meninos do Cemitério

O drama dos jovens abandonados continua a causar impacto no mundo contemporâneo. As estatísticas falam de cerca de 150 milhões de jovens forçados a viver nas ruas, uma realidade que se manifesta de forma dramática também em Monróvia, capital da Libéria. Por ocasião da festa de São João Bosco, em Viena, foi realizada uma campanha de conscientização promovida pela Jugend Eine Welt [Juventude de um só mundo], uma iniciativa que destacou não só a situação local, mas também as dificuldades encontradas em países distantes, como a Libéria, onde o salesiano Lothar Wagner dedica a sua vida a dar esperança a estes jovens.

Lothar Wagner: um salesiano que dedica a sua vida aos meninos de rua na Libéria
Lothar Wagner, salesiano coadjutor alemão, dedicou mais de vinte anos de sua vida ao apoio dos meninos na África Ocidental. Depois de ter amadurecido experiências significativas em Gana e Serra Leoa, nos últimos quatro anos concentrou-se com paixão na Libéria, um país marcado por conflitos prolongados, crises sanitárias e devastações como a epidemia de Ebola. Lothar tornou-se porta-voz de uma realidade muitas vezes ignorada, onde as cicatrizes sociais e econômicas comprometem as oportunidades de crescimento para os jovens.

A Libéria, com uma população de 5,4 milhões de habitantes, é um país onde a pobreza extrema é acompanhada de instituições frágeis e de uma corrupção generalizada. As consequências de décadas de conflitos armados e crises sanitárias deixaram o sistema educativo entre os piores do mundo, enquanto o tecido social se desgastou sob o peso de dificuldades econômicas e falta de serviços essenciais. Muitas famílias não conseguem garantir aos seus filhos as necessidades primárias, levando assim um grande número de jovens a procurar refúgio na rua.

Em particular, em Monróvia, alguns jovens encontram refúgio nos lugares mais inesperados: os cemitérios da cidade. Conhecidos como “meninos do cemitério”, estes jovens, sem uma habitação segura, refugiam-se entre os túmulos, lugar que se torna símbolo de um abandono total. Dormir ao ar livre, nos parques, nos aterros sanitários, até mesmo nos esgotos ou dentro de túmulos, tornou-se o trágico refúgio quotidiano para quem não tem outra escolha.

“É realmente muito comovente quando se caminha pelo cemitério e se veem meninos que saem dos túmulos. Deitam-se com os mortos porque não têm mais um lugar na sociedade. Uma situação deste tipo é escandalosa.”

Uma abordagem múltipla: do cemitério às celas de detenção
Não só os meninos dos cemitérios estão no centro da atenção de Lothar. O salesiano dedica-se também a outra realidade dramática: a dos detidos menores nas prisões liberianas. A prisão de Monróvia, construída para 325 detidos, acolhe hoje mais de 1.500 prisioneiros, entre os quais muitos jovens encarcerados sem uma acusação formal. As celas, extremamente superlotadas, são um claro exemplo de como a dignidade humana é muitas vezes sacrificada.

“Falta comida, água limpa, padrões higiênicos, assistência médica e psicológica. A fome constante e a dramática situação espacial devido à superlotação enfraquecem enormemente a saúde dos meninos. Numa pequena cela, projetada para dois detidos, estão trancados oito a dez jovens. Dorme-se por turnos, porque esta dimensão da cela oferece espaço só em pé aos seus numerosos habitantes”.

Para fazer face a esta situação, organiza visitas diárias na prisão, levando água potável, refeições quentes e um suporte psicossocial que se torna uma âncora de salvação. A sua presença constante é fundamental para procurar restabelecer um diálogo com as autoridades e as famílias, sensibilizando também sobre a importância de tutelar os direitos dos menores, muitas vezes esquecidos e abandonados a um destino infausto. “Não os deixamos sozinhos na sua solidão, mas procuramos dar-lhes uma esperança”, sublinha Lothar com a firmeza de quem conhece a dor quotidiana destas jovens vidas.

Um dia de conscientização em Viena
O apoio a estas iniciativas passa também pela atenção internacional. No dia 31 de janeiro, em Viena, a Jugend Eine Welt organizou um dia dedicado a evidenciar a precária situação dos meninos de rua, não só na Libéria, mas em todo o mundo. Durante o evento, Lothar Wagner compartilhou as suas experiências com estudantes e participantes, envolvendo-os em atividades práticas – como o uso de uma fita de sinalização para simular as condições de uma cela superlotada – para fazer compreender em primeira pessoa as dificuldades e a angústia dos jovens que vivem quotidianamente em espaços mínimos e em condições degradantes.

Além das emergências quotidianas, o trabalho de Lothar e dos seus colaboradores concentra-se também em intervenções a longo prazo. Os missionários salesianos, de fato, estão empenhados em programas de reabilitação que vão do suporte educativo à formação profissional para os jovens detidos, até à assistência legal e espiritual. Estas intervenções visam reintegrar os meninos na sociedade uma vez libertados, ajudando-os a construir um futuro digno e cheio de possibilidades. O objetivo é claro: oferecer não só uma ajuda imediata, mas criar um percurso que consinta aos jovens desenvolver as suas potencialidades e contribuir ativamente para o renascimento do país.

As iniciativas estendem-se também à construção de centros de formação profissional, escolas e estruturas de acolhimento, com a esperança de ampliar o número de jovens beneficiários e garantir um suporte constante, dia e noite. O testemunho de sucesso de muitos ex-“meninos do cemitério” – alguns dos quais tornaram-se professores, médicos, advogados e empresários – é a confirmação tangível de que, com o devido suporte, a transformação é possível.

Apesar do empenho e da dedicação, o percurso é repleto de obstáculos: a burocracia, a corrupção, a desconfiança dos meninos e a falta de recursos representam desafios quotidianos. Muitos jovens, marcados por abusos e exploração, têm dificuldade em confiar nos adultos, tornando ainda mais árdua a tarefa de instaurar uma relação de confiança e de oferta de um suporte real e duradouro. Contudo, cada pequeno sucesso – cada jovem que reencontra a esperança e começa a construir um futuro – confirma a importância deste trabalho humanitário.

O percurso empreendido por Lothar e pelos seus colaboradores testemunha que, apesar das dificuldades, é possível fazer a diferença na vida dos meninos abandonados. A visão de uma Libéria em que cada jovem possa realizar o próprio potencial traduz-se em ações concretas, da sensibilização internacional à reabilitação dos detidos, passando por programas educativos e projetos de acolhimento. O trabalho, assente em amor, solidariedade e uma presença constante, representa um farol de esperança num contexto em que o desespero parece prevalecer.

Num mundo marcado pelo abandono e pela pobreza, as histórias de renascimento dos meninos de rua e dos jovens detidos são um convite a acreditar que, com o devido suporte, cada vida pode ressurgir. Lothar Wagner continua a lutar para garantir a estes jovens não só um abrigo, mas também a possibilidade de reescrever o próprio destino, demonstrando que a solidariedade pode realmente mudar o mundo.




Uma roda misteriosa e profética (1861)

“O coração do sábio conhece o tempo (de agir) e julgamento (para dar sentido a suas ações). De fato, para todas as coisas, há tempo e julgamento… Ele não sabe o que vai acontecer. Quem pode anunciar-lhe como há de ser”? (cf. Ecl 8,5b-7). Desta percepção de Dom Bosco, o fato dele conhecer as coisas passadas e prever futuras que eram do seu interesse, nos dá nova prova à persuasão, que inspirou as Crônicas dos padres Domingos Ruffino e João Bonetti e também as memórias do P. João Cagliero, do P. César Chiala e de outros, todos eles testemunhas auriculares das palavras do servo de Deus.
Com singular concordância nos expõem um outro sonho, contado por Dom Bosco, no qual ele vê o Oratório de Valdocco, os frutos que produzia, a condição dos alunos perante Deus; aqueles que eram chamados ao estado eclesiástico ou ao estado religioso na Pia Sociedade, ou a viver no estado civil; e o futuro da nascente Pia Sociedade.

            Dom Bosco, portanto, sonhou, na noite anterior ao dia 2 de maio. Esse sonho durou seis horas, mais ou menos. Logo que o dia raiou, ele pulou da cama para tomar nota dos itens principais e dos nomes de alguns personagens que tinha visto passarem-lhe à sua frente enquanto dormia. Para contá-lo ele demorou três noites consecutivas, estando num estrado sob os pórticos depois das orações.
            No dia 2 de maio, falou cerca de três quartos de hora. O exórdio, como de costume nestas narrativas, apareceu um tanto confuso e estranho por motivos que já expusemos em outras ocasiões e devido àquelas que deixaremos ao juízo dos leitores. Assim ele começou falando aos jovens depois de ter anunciado assunto:
            Este sonho diz respeito somente aos estudantes. Muitíssimas coisas vistas por mim não podem ser descritas por falta de memória ou insuficiência de palavras. Parecia-me estar saindo de minha casa lá dos Becchi. Estava andando por um caminho que conduzia a um lugarejo vizinho a Castelnuovo chamado Capriglio. Queria chegar a um campo arenoso, de nossa propriedade, numa valada atrás do casario chamado Valcappone, cuja colheita dava apenas para pagar os impostos. Ali, na minha infância, eu tinha ido muitas vezes trabalhar. Já tinha percorrido um bom trecho de caminho, quando encontrei perto do campo um homem de uns quarenta anos, de estatura normal, de barba comprida bem ajeitada e de tez morena. Vestia um traje que descia até os joelhos e cingido na cintura. Trazia na cabeça uma espécie de boné branco. Estava numa postura de quem esperava alguém. Cumprimentou-me familiarmente como se eu fosse velho conhecido e me perguntou:
            – Aonde vai?
            Detendo o passo, respondi:
            – Eh! Vou ver um campo que temos por estas bandas. E o senhor, o que faz por aqui?
            – Não seja curioso! Não precisa saber!
            – Muito bem! Faça ao menos o favor de dizer-me seu nome, quem é, porque me parece que me conhece. De minha parte eu não o conheço.
            – Não é preciso que eu lhe diga meu nome e minhas qualidades. Vem. Façamo-nos companhia.
             Pus-me a caminho com ele e depois de alguns passos me vi diante de um campo coberto de pés de figo. Aí o meu companheiro me disse:
            – Olhe que belos figos. Se quer, pode colher e comer.
            Eu respondi maravilhado:
            – Nunca houve figos neste campo!
            E ele:
            – Mas agora existem. Olhe lá.
            – Mas estes estão verdes. Ainda não é a estação dos figos.
            – Mas pode ver. Há belos figos e bem maduros. Se quer… Vai logo porque já é tarde. 
            Eu não me decidia, e o amigo continuava insistindo: 
            – Ande logo! Não perca tempo! A noite vem caindo! 
            – Por qual motivo me apura tanto? Não vou comer! Não quero! Agrada-me vê-los, dá-los de presente, mas não me agradam muito ao meu paladar.
            – Bem, se é assim, vamos. Lembre-se, porém, o que o Evangelho de São Mateus, onde ele fala dos grandes acontecimentos que estavam para cair sobre Jerusalém. Jesus Cristo falava para seus discípulos: Ab arbore fici discite parabolam. Cum iam ramus ejus tener fuerit et folia nata, scitis quia prope est aestas (Da parábola da figueira, aprendei a lição: quando seus ramos vicejam e as folhas começam a brotar, sabeis que o verão está perto – Mt 24,32). E agora já está mais próximo o verão porque os frutos estão a amadurecer.
            Pusemo-nos de novo a caminho e eis que apareceu um outro campo coberto de videiras. E o desconhecido:
            – Quer uvas? Se não lhe agradam os figos, olhe lá aqueles cachos! Pegue e coma!
            – Oh! Pegaremos uvas a seu tempo lá na vinha.
            – Mas aqui também há!
            – A seu tempo!
            – Mas não está vendo toda aquela uva madura?
            – Mas será possível!? Nesta época!?
            – Ande logo! Vá! A noite vem chegando! Não tem tempo a perder!
            – E por que tanto afã para fazer depressa? Contanto que ao anoitecer me encontre em casa.        – Ande logo! Estou falando: ande logo. Logo chega a noite.
            – Bem, se cai a noite, voltará o dia.
            – Não é verdade! O dia não voltará mais.
            – Mas como!? O que quer dizer com isso?
           
– Que a noite se aproxima.
            – Mas de que noite está a me falar? Quer então dizer que devo preparar a mala e partir? Que eu devo partir já para minha eternidade?
            – A noite se aproxima: tem bem pouco tempo.
            – Diga-me pelo menos se será logo. Quando será?
            – Não seja tão curioso.  Non plus sapere quam oportet sapere (Não saber mais do que convém).
            – Assim dizia minha mãe a respeito dos enxeridos. – Pensei comigo e respondi em alta voz: – Por enquanto não tenho nenhum desejo de uvas!
            Enquanto isso íamos caminhando lentamente por um curto trecho de estrada e chegamos ao campo que era de nossa propriedade. Encontramos meu irmão José que carregava sua carroça. Ele se aproximou e me cumprimentou. Depois saudou meu companheiro, mas vendo que o amigo não respondia ao cumprimento e não lhe dava bola, perguntou-me se, por acaso, ele não tivesse sido colega de escola e respondi:
            – Não, nunca o vi.
            Então José voltou-se para o amigo e dirigiu-lhe a palavra:
            – Por gentileza, diga-me seu nome. Brinde-me com uma resposta para que eu saiba com quem estou a falar. – Mas o outro permaneceu mudo. Meu irmão ficou admirado e voltou-se para mim e perguntou:
            – Mas quem é essa pessoa?
            – Não sei! Ele não quis dizer!
            Nós insistimos ainda um pouco para saber donde vinha, mas o outro respondia apenas:
            – Non plus sapere quam oportet sapere.
            Neste momento meu irmão já se tinha afastado e não mais o vi. O desconhecido virou-se para mim e me disse:
            – Quer ver alguma coisa diferente?
            – De bom grado!
            – Quer ver seus meninos, como eles estão agora no presente? O que serão no futuro? Quer contá-los?
            – Oh! Sim! Sim!
            – Então venha comigo.

I

            Então ele tirou, não se de onde, uma engenhoca enorme que eu não saberia descrever. Tinha dentro uma grande roda. Fincou-a no chão.
            – O que quer dizer esta roda?
            – A eternidade nas mãos de Deus. E pegou a manivela da roda e a fez rodar e falou:
            – Pegue a manivela e dê uma volta.
            Assim o fiz. E me acrescentou:
            – Agora olhe lá dentro.
            – Olhei. Lá dentro havia um vidro em forma de lente com a largura um metro, mais ou menos, que se encontrava fixa no meio da máquina. Ao redor desta lente estava escrito: Hic est oculus qui humilia respicit in coelo et in terra (Este é o olho que vê as coisas humildes tanto céu quanto na terra). Logo coloquei os olhos sobre aquela lente. Olhei. Oh, que espetáculo! Vi lá dentro todos os jovens do Oratório. Eu pensava comigo: – Mas como é possível isso? Até o momento eu não vi ninguém nesta região e agora vejo todos os meus filhos! Mas eles não estão todos em Turim?
            Olhei por cima e pelos lados da engenhoca, mas por fora da lente não via nada. Levantei a cabeça para partilhar minha admiração com o amigo. Depois de alguns instantes ele me disse para dar mais um giro na manivela. Então eu vi estranha e singular separação dos jovens. Os bons separados dos maus. Os primeiros estavam radiantes de alegria; os outros, que por sinal não eram muitos, causavam compaixão. Eu os reconheci a todos, mas como eram diferentes do conceito que os colegas faziam deles. Uns tinham a língua furada, outros tinham os olhos piedosamente esbugalhados, outros oprimidos por dor de cabeça, feridas repugnantes, e havia jovens com o coração roído pelos vermes. Mais eu os olhava, mais me sentia oprimido e dizia: – Mas será possível que estes sejam os meus filhos? Não consigo compreender o que significam estas doenças!
            Ouvindo minhas palavras, o amigo que me tinha levado para a roda, me disse:
            – Ouça-me! Língua furada significa as más conversas. Os olhos esbugalhados representam os que interpretam e valoram erradamente as graças de Deus, preferindo a terra ao céu. A cabeça doída é a não preocupação com os seus conselhos, a satisfação com os caprichos próprios. Os vermes significam as paixões maldosas que corroem os corações. Também há surdos que não querem ouvir suas palavras para não ter que colocá-las em prática.
            Então fez-me um gesto para eu dar mais uma manivelada na roda. Aproximei o olho à lente do aparelho. Vi quatro jovens amarrados com pesadas correntes. Olhei bem e reconheci os quatro. Pedi explicações ao desconhecido, e ele respondeu:
            – Pode descobrir facilmente. São os que não ouvem os seus conselhos e não trocam de atitudes, estão na iminência de serem postos na prisão e aí apodrecerem por causa de seus delitos ou desobediências graves.
            – Quero tomar nota dos nomes deles para não esquecer. Mas o amigo respondeu:
            – Não é preciso. Estão todos anotados! Ei-los todos escritos neste caderno.
            Então lembrei-me de um livrinho que ele tinha na mão. Deu-me ordem para eu dar mais um giro na roda. Obedeci e enfiei os olhos naquela tela. Vi outros sete jovens que estavam bem altivos, em atitude desconfiada, com um cadeado na boa, que lhes trancava os lábios. Três deles também tapavam os ouvidos com as mãos. Afastei-me da imagem, quis pegar um caderno e lápis para anotar seus nomes. Aí o homem me disse:
            – Não é preciso. Estão anotados aqui no caderno que trago sempre comigo.
            Não quis de jeito nenhum que eu escrevesse. Eu estava espantado e condoído com aquela cena estranha. Perguntei o porquê de o cadeado trancar a boca daqueles tais, e ele explicou:
            – Mas não entende? São os que calam!
            – Mas calam o quê?
            – Calam!
            Então entendi que calavam na confissão. São os que, mesmo perguntados pelo confessor, não respondem ou respondem evasivamente ou contra a verdade. Respondem “não” quando é “sim”. E o amigo continuou:
            – Está vendo aqueles três outros que, além do cadeado na boca, tapam as orelhas com as mãos? A condição deles é deplorável. São os que não apenas omitem na confissão e de maneira alguma querem ouvir os avisos, os conselhos, as ordens do confessor. São os que ouviram suas palavras, mas não as colocaram em prática, não deram atenção. Poderiam baixar as mãos, mas não querem. Os outros quatro ouviram as exortações, as recomendações, mas não aproveitaram.
            – E como fazer para tirar o cadeado?
            – Ejiciatur superbia e cordibus eorum (Tire-se a soberba dos seus corações).
            – Eu darei o aviso a todos, mas para os que conservam as mãos nas orelhas existe pouca esperança.
            Aquele homem deu-me um conselho:
            – Ao dizer duas palavras no púlpito, uma seja sobre fazer bem a confissão.
            Prometi obedecer. Não quero dizer que vou me orientar exatamente assim, porque tornar-me-ia enjoado, mas vou fazer o possível para repetir muitas vezes esta máxima necessária. De fato, é bem maior o número dos que se condenam confessando-se, do que os que se condenam por não se confessarem, porque os depravados se confessam alguma vez, mas muitíssimas vezes não se confessam bem.
            Daí o personagem me mandou dar mais uma manivelada.
            Dito e feito. Olhei e vi três outros jovens com atitudes apavorantes. Cada um deles tinha um imenso gorila nas costas. Olhei atentamente. Vi que os animais tinham chifres. Cada um daqueles horrendos monstros com as patas dianteiras apertava o pescoço do infeliz com tal veemência que o fazia ficar vermelho e de rosto inflamado, e com os olhos ameaçando explodir das órbitas afora e cheios de sangue. Com as patas traseiras apertava as coxas que a custo conseguiam mover-se e com o rabo, chegava até o chão, enrodilhava-lhes as pernas de modo que era difícil e quase impossível caminhar.
            Isto significava que aqueles jovens, depois dos exercícios (espirituais), estavam em pecado mortal, especialmente da impureza e da imodéstia, réus de matéria grave contra o sexto mandamento. O demônio lhes apertava o pescoço, não lhes permitindo falar quando deviam. Fazia-os ficar de rosto vermelho e perdiam a intelecção, não sabendo mais o que fazer. Ficavam atados pela vergonha fatal que, em vez de levá-los à salvação, os leva à perdição. Com seus apertos fazia-lhes empurrar os olhos para fora das órbitas e aí não conseguiam divisar as próprias misérias e os meios para sair desta horrível situação, porque, dominados por uma amedrontadora preocupação, sentiam repugnância pelos sacramentos. Mantêm-nos presos pelas pernas para que não possam caminhar e nem dar passo para se colocarem no caminho do bem: é o predomínio da paixão por causa do hábito que lhes tira a possibilidade de emendarem-se.
            Asseguro-lhes, meus caros jovens, que, ao presenciar tal espetáculo, eu chorei. Teria querido pular para frente para libertar aqueles desgraçados, mas logo que me afastava da tela a imagem sumia. Quis então anotar os nomes daqueles três, mas o amigo disse:
            – Coisa inútil, porque eu já os tenho escrito no livro que tenho em mãos.
            Eu estava com o coração perturbado, lágrimas nos olhos e disse ao amigo:
            – Mas como é que estes pobres jovens estão neste estado! Eu lhes disse tantas palavras, servi-me de todos os cuidados na confissão e fora da confissão! – Perguntei-lhe o que deviam fazer para tirar das costas aquele monstro horrível. Ele respondeu ligeiro e entredentes:
            – Labor; sudor; fervor (trabalho, suor, fervor).
            – Não entendo. Fale mais claro. – De novo ele repetiu, mas sempre entredentes:
            – Labor; sudor; fervor.
            – É inútil. Se fala assim eu não o compreendo!
            – Oh! Quer debochar de mim.
            – Ora! Seja lá como quiser! Mas repito: não entendo!
            – Pois é! Está acostumado ao uso da gramática e às sintaxes das salas de aula. Pois então, observe: Labor, ponto e vírgula; Sudor, ponto e vírgula. Fervor, ponto. Entendeu?
            – Materialmente entendi as palavras. Porém, convém que me dê a explicação.
            – Labor in singulis operibus. Sudor in paenitentiis continuis. Fervor in orationibus ferventibus e perseverantibus (Trabalho nas obras assíduas, suor nas penitências contínuas, fervor nas orações fervorosas e perseverantes). Com eles muito se sacrificará. Não conseguirá conquistá-los, porque não querem sacudir o jugo de satanás, de quem são escravos.
            Eu continuava olhando e me atormentava pensando:
            –  Mas como!? Então todos estes estão perdidos? Possível!? Mesmo depois dos exercícios espirituais… aqueles tais… depois que eu fiz tanto por eles… depois de ter trabalhado tanto… depois de tantas pregações… depois de lhes ter dado tantos conselhos… feito tantas promessas… dado tantos avisos. Eu nunca teria imaginado tamanho desengano. – Eu não conseguia sossegar.
            Então meu intérprete começou a recriminar-me: – Oh, o soberbo! Vejam o soberbo! E quem é você para pretender converter porque trabalha? Porque ama os seus jovens, pretende vê-los todos corresponderem aos seus desejos? Pretende ser melhor do que nosso Divino Salvador em amar as almas, em trabalhar e sofrer por elas? Pensa que sua palavra seja mais eficaz do que a palavra de Jesus Cristo? Por acaso prega melhor do que Ele? Acha que usou mais caridade, maior cuidado com os seus jovens do que usou o Salvador para com seus Apóstolos? Você sabe que eles viviam continuamente com Ele, a todos os momentos, a cada instante ficavam repletos de todo tipo de benefícios, ouviam dia e noite Suas advertências e os preceitos de Sua doutrina, viam Suas obras que deviam ser um estímulo para a santificação de seus costumes. Quanto não terá feito e dito a respeito de Judas! Contudo Judas o traiu e morreu impenitente. Por acaso é melhor do que os Apóstolos? Pois bem! Os Apóstolos escolheram sete Diáconos. Eram apenas sete, escolhidos com todo cuidado e, todavia, um prevaricou! E você, entre quinhentos, se assusta com esse pequeno número que não corresponde aos seus cuidados? Pretende conseguir que não haja um desviado, que não haja um perverso sequer? Oh, o soberbo! – Quando ouvi isso, fiquei quieto. Mas sentia a alma deprimida pela dor. O homem continuou e percebeu que eu estava abatido. Fez-me dar mais um giro na roda, retomando:
            – Sossegue! Veja como o Senhor é generoso. Olhe quantas almas Deus quer lhe dar. Vê lá no fundo aquele grande número de jovens?
            Continuei a observar naquela tela imensa massa de jovens que nunca tinha conhecido em vida.
            – Sim! Estou vendo! Mas não conheço ninguém.
            – Pois bem! Estes são os que o Senhor lhe dará em compensação dos quatorze que não correspondem aos seus cuidados. Saiba que para compensar cada um dos quatorze o Senhor lhe dará cem.
            – Ah! Pobre e mim! Já estou com a casa cheia. Onde vou alojá-los?
            – Não se apoquente. Por enquanto lugar há suficiente. Mais tarde Aquele que os manda para você, Ele sabe onde você poderá colocá-los. Ele mesmo achará lugar.
            – Mas não é tanto o lugar que causa preocupação. O que mais me preocupa é o refeitório.
            – Por ora deixe de lado estas preocupações. O Senhor providenciará.
            – Bem, se é assim, fico muito contente. Até que me consolei. Olhei para todos aqueles jovens por muito tempo e ainda conservo na mente algumas fisionomias e poderei reconhecê-los se um dia os encontrar.
            Neste ponto Dom Bosco encerrou a Boa-noite. Era o dia 2 de maio.

II

            Na noite do dia 3, ele retomava a narrativa. Naquela tela ele tinha visto também o espetáculo das vocações, que dizia respeito a cada de seus alunos. Foi conciso e categórico em sua fala. Não proferiu nome algum e passou para outra ocasião a explicação das respostas ouvidas do guia a respeito de certos símbolos ou às alegorias que lhe passaram perante os olhos. Porém, o clérigo Ruffino tomou nota de diversos nomes recolhidos das suas confidências com os mesmos jovens, para quem Dom Bosco tinha segredado em particular o que ele tinha visto. Ruffino os escreveu em 1861 e no-los repassou.
            Para maior clareza de exposição e para não sermos obrigados a fazer muitas repetições, colocaremos tudo num bloco só, incluindo na narrativa os nomes omitidos e as explicações já dadas; estas, porém, não em forma de diálogo. Contudo, seremos exatos em referir ao pé da letra o que escreveu o cronista. Dom Bosco então começou a falar:

            O desconhecido estava perto da engenhoca da roda e da tela, e eu estava contente por ter visto tantos jovens que um dia viriam morar conosco. Então ele me disse:
            – Não quereria ver ainda uma cena espetacular?
            – Mas é claro que quero!
            – Rode a roda!
            Girei, olhei e vi. Todos os jovens estavam divididos em dois grupos, um grupo longe do outro, numa vasta região bem espraiada. De um dos lados aparecia um terreno coberto de legumes, hortaliças, relva e campo, em cuja orla havia umas fileiras de vinhas selvagens. Ali os jovens de um dos grupos, com pás, enxadas, as picaretas, os ancinhos, revolviam o terreno. Estavam distribuídos em quadras que tinham supervisores. Fiscal geral era o Cavaleiro Oréglia, de Santo Estêvão, que distribuía ferramentas agrícolas de todo tipo aos que cavavam e fazia trabalhar quem tinha pouca vontade. Ao longe divisei jovens que semeavam.
             O segundo grupo estava do outro lado, num extenso campo de trigo coberto de espigas douradas. Um valo comprido servia de limite entre este e outros campos cultivados que de ambas as partes se perdiam no horizonte. Os jovens trabalhavam recolhendo a messe, mas nem todos faziam o mesmo serviço. Alguns colhiam e faziam enormes feixes, uns amontoavam, outros respigavam, alguém dirigia a carroça, outro esbagoava, uns afiavam as foices e as aguçavam, um as distribuía, outro mais longe tocava violão. Era uma cena fabulosa de variantes surpreendentes.
            Naquele campo, à sombra de vetustas árvores, viam-se mesas cobertas de alimento necessário para toda aquela gente. Um pouco além um vasto e magnífico jardim cercado e sombreado, risonho de todas as espécies de canteiros de flores.
            A separação entre os trabalhadores da terra e os ceifeiros indicava os que abraçavam o estado eclesiástico e os que não o abraçavam. Eu não entendia o mistério e dirigi-me ao guia:
            – O que significa isto? Quem são aqueles que estão a cavar a terra?
            – Ainda não entende estas coisas? Os que cavam a terra são os que trabalham só para si mesmos, isto é, que não são chamados para o estado eclesiástico, mas são chamados ao estado laico.
            Logo entendi que os cavadores eram os aprendizes. Estes, em seu estado, basta que pensem em salvar a própria alma sem que tenham a obrigação especial de ocupar-se com a salvação dos outros. Repliquei:
            – E aqueles que estão a fazer a colheita, que estão do outro lado do campo?
            Sem dificuldade reconheci serem os que são chamados ao estado eclesiástico. Agora eu sei quem deve ser padre e quem deve seguir outro caminho. E eu contemplava com viva curiosidade o campo de trigo. Provera distribuía as foices aos ceifadores, e isto indicava que ele poderia tornar-se Reitor do Seminário ou diretor de comunidade religiosa ou de uma casa de estudos e, talvez algo mais importante. Deve-se notar que nem todos os que trabalhavam recebiam dele a foice, porque aqueles que a solicitavam eram os que fariam parte da nossa Congregação. Os outros recebiam a foice de outros distribuidores que não pertenciam aos nossos e, com isso, queria-se significar que se tornariam padres, mas exerceriam o sagrado ministério fora do Oratório. A foice é símbolo da Palavra de Deus.
            Nem a todos que solicitavam a foice Provera a entregava logo. Ele mandava alguns se alimentarem. Um comia um bocado, outros dois, isto é, o bocado da piedade e do estudo. O Tiago Rossi foi mandado a comer um bocado. Outros iam até o arvoredo onde estava o clérigo Durando que fazia muitas coisas e, entre elas, preparava a mesa para os ceifadores e lhe distribuía a comida. Este serviço mostrava os que são indicados de modo especial a promover a devoção para com o Santíssimo Sacramento. Ao mesmo tempo Mateus Galiano atarefava-se em levar água para os ceifadores.
            Costamagna foi pegar uma foice, mas Provera o mandou ao jardim a fim de colher duas flores. O mesmo aconteceu com Quattrocollo. Ao Rebuffo foi ordenado que recolhesse três flores, com a promessa de que lhe seria posta nas mãos uma foice. Olivero também estava nessa.
            Os jovens continuavam esparsos cá e acolá em meio às espigas. Muitos estavam dispostos em linha. Alguns tinham diante de si um canteiro grande, outros tinham um canteiro menor. O P. Ciattino, pároco de Maretto, colhia com uma foice entregue por Provera. P. Francésia e Vibert cortavam o trigo. Também colhiam Jacinto Perucatti, Merlone, Momo, Giarino, Jarach, os quais salvariam almas com a evangelização, se correspondessem à própria vocação. Quem colhia mais, quem colhia menos. Bondioni ceifava como um desesperado, mas nada de violento dura muito. Alguns lançavam a foice com muita força contra o trigo, mas ceifavam nada. Vaschetti pegou uma foice e se pôs a cortar, a cortar, e saiu do campo e foi trabalhar noutro lugar. A ouros aconteceu o mesmo. Entre aqueles que ceifavam, muitos não tinham uma foice bem afiada. De outras foices faltavam a pontas. Alguns a tinham muito gasta e quando queriam ceifar despedaçavam e estragavam tudo.
            Domingos Ruffino colhia e tinha recebido um canteiro muito grande. Sua foice cortava bem. Só tinha um defeito: a foice dele não tinha ponta, símbolo da humildade. Era o desejo de atingir um grau mais elevado entre os iguais. Ele foi até Francisco Cerruti para martelá-la. De fato, eu vi que Cerruti martelava as foices para afiá-las, indício de que devia colocar nos corações ciência e piedade, dando a ideia de que devia tornar-se um professor. O fato de martelar era o serviço de quem se entrega à formação do clero. Provera entregava a ele as foices desgastadas. Ao P. Rocchietti e a outros ele entregava as que precisavam ser afiadas. Essa era a ocupação deles.
            O serviço de afiar era próprio de quem dirige o clero na piedade. Viale se apresentou e foi pegar uma foice que não estava afiada, mas Provera quis dar-lhe uma cortante que tinha sido passada no esmeril. Vi também um serralheiro que devia preparar ferramentas agrícolas e este era o Constâncio.
            Enquanto fervilhava todo este complicado trabalho, Fusero preparava os feixes e isto significava o fato de conservar as consciências na graça de Deus. Mas descendo mais para os detalhes e tomando os feixes não como imagens dos meros fiéis, mas como dos que estão destinados ao estado eclesiástico, dava para entender que ele teria ocupado um lugar de formador dos clérigos.
            Havia quem o ajudava a amarrar os feixes. Lembro de ter visto entre outros o P. Turchi e Guivarello. Isto significa os que são destinados a harmonizar as consciências, como, por exemplo, confessando, especialmente os voluntários ou aspirantes ao estado eclesiástico. Outros transportavam os feixes sobre uma carroça, que representa a graça de Deus. Os pecadores convertidos devem embarcar nesta carroça para se encaminharem pela senda da salvação, que tem como ponto final o céu. A carroça se movimentou quando esteve cheia de feixes. Era puxada não por jovens, mas por bois, símbolo da força perseverante. Havia quem os conduzia. P. Rua estava na frende do carro e o guiava e isto significa que a ele caberia guiar as almas para o céu. P. Ângelo Sávio vinha andando atrás com a vassoura recolhendo as espigas e os feixes que caíam.
            Espalhados pelo campo, viam-se os que respigavam, entre eles João Bonetti e José Bongiovanni, isto é, os que recolhem os pecadores obstinados. Bonetti é especialmente chamado pelo Senhor para procurar de modo particular os infelizes afastados da foice dos ceifeiros. Fusero e Anfossi amontoavam no campo os feixes de trigo cortado para que fosse debulhado em tempo hábil: isso talvez fosse símbolo de alguma cátedra. Outros como o P. Alasonatti formavam os montes e os que administram o dinheiro, zelam pelo cumprimento das normas, ensinam as orações e o canto dos louvores sagrado e, afinal de contas, colaboram material e moralmente para repor as almas no caminho do paraíso.
            Aparecia um espaço plano de terra apropriado para bater as espigas. O P. João Cagliero, que antes tinha ido ao jardim colher flores e as tinha distribuído aos companheiros com um ramilhete nas mãos, foi até aquela área para debulhar o trigo. Debulhar o trigo refere-se aos destinados por Deus a se ocuparem da instrução do povo simples. À distância viam-se diversos focos de fumaça negra que subiam às nuvens. Era o trabalho dos que recolhiam o joio e, tendo saído fora dos limites da seara, o amontoavam e queimavam. Significava de modo especial os que são destinados a separar os maus dos bons. Indica os diretores das nossas futuras casas. Entre estes estava o P. Francisco Cerutti, João Tomietti, Domingos Belmonte, Paulo Álbera e outros que ainda estão estudando nas classes ginasiais e inferiores.
            Todas as cenas descritas acima desenvolviam-se ao mesmo tempo. Vi no meio daquela multidão de jovens alguns que carregavam uma lamparina para iluminar mesmo em pleno meio-dia. Seriam os que teriam sido de bom exemplo para outros operários do Evangelho e com isso devem iluminar o clero. Entre eles está Paulo Álbera que, além de carregar a lamparina, também tocava violão. Isto significa que mostrará o caminho para os sacerdotes e lhes incutirá coragem para seguirem adiante na própria missão: alude-se a um outro alto cargo que desempenhará na Igreja.
            Em meio a tanta movimentação, nem todos os jovens que eu via estavam ocupados em algum serviço. Um deles segurava uma pistola, isto é, tinha vocação para militar, mas ainda não se tinha decidido. Havia quem estava com a mão na cintura olhando para os que ceifavam e ao mesmo tempo não estavam nem um pouco decididos a imitar seu exemplo. Alguém estava indeciso, mas pesava-lhe o cansaço e não sabia se devia também meter-se a ceifar. Outro apressava-se em pegar a foice. Um grupinho, porém, reunido, permanecia sem fazer nada. Outros manejavam a foice segurando-a voltada de costas entre eles estava o Molino, e são os que fazem o contrário do que devem fazer. Existiam aqueles, e eram muitos, que se afastavam para ir recolher uvas silvestres e representam os que perdem tempo em coisas alheias ao ministério.
            Enquanto eu ia observando o que se passava no campo de trigo, vi um outro grupo de jovens que capinava, e também este grupo apresentava um espetáculo interessante: a maior parte deles era forte e trabalhava com afinco, mas também entre eles não faltavam os acomodados; havia quem manuseasse a enxada do lado errado, outros davam a enxadada sobre a terra, mas ela não rasgava o solo. Para alguns, a cada enxadada, a lâmina se soltava do cabo. O dito cabo significa a reta intenção.
            Percebi que alguns, que atualmente são aprendizes, antes estavam no campo a ceifar, e outros, que agora estão a estudar, anteriormente estavam capinando. Novamente tentei tomar nota de todas as situações, mas meu intérprete sempre me mostrava seu caderno e me impedia de escrever. Ao mesmo tempo percebi que havia muitíssimos jovens que lá estavam sem nada fazer, que não se decidiam se deviam ceifar ou carpir. Os dois Dalmazzo, o Primo Gariglio e Monasterolo com muitos outros olhavam, mas estavam resolvidos a assumir uma posição.
            E continuei a olhar. Notei que alguns dos que saíam do meio dos capinadores queriam meter-se a ceifar. Um deles correu distraidamente para o campo de trigo, mas sem antes pegar uma foice. Envergonhou-se daquela estulta precipitação, voltou atrás para pedi-la. Quem distribuía foices não queria ceder, mas ele queria. E o distribuidor lhe disse:
            – Ainda não é tempo.
            – Sim! É tempo sim! Eu quero.
            – Não! Vai ainda pegar duas flores naquele canteiro!
            Exclamou, levantando os ombros, o presunçoso:
            – Ah! Vou pegar quantas flores você quiser.
            – Não! Só duas!
            E aquele presunçoso correu logo. Mas lembrou-se de que não tinha perguntado que tipo de flores devia pegar. Voltou rápido. E recebeu esta resposta:
            – Pegará a flor da caridade e a flor da humildade.
            – Eu já as tenho!
            – Você as tem na presunção. Na realidade não tem nada.
            E o jovem discutiu, esperneou, enfureceu-se, agitou-se. E o distribuidor lhe disse:
            – Agora não é mais tempo de ficar bravo. – E negou-lhe resolutamente a foice. O pretendente roía os punhos de raiva.
            Tendo assistido a este último espetáculo, desgrudei os olhos da tela onde tinha visto coisas tão impressionantes. Estava comovido com as aplicações morais que se me tinham sugerido por aquele amigo. Eu ainda quis pedir algumas explicações, e ele me repetiu:
            – O campo de trigo significa a Igreja. A messe é o fruto recolhido. A foice é o símbolo dos meios para colher fruto, especialmente a palavra de Deus, foice sem corte é a falta de piedade, sem ponta é a falta de humildade. Sair do campo ceifando quer dizer sair do Oratório e abandonar a Pia Sociedade.

III

            Na noite do dia 4 de maio, Dom Bosco fez a conclusão do sonho em que no primeiro quadro lhe tinha sido mostrado o Oratório, seus alunos e, de modo especial, os estudantes. No segundo quadro os que eram chamados ao estado eclesiástico. Agora entramos no terceiro quadro do seriado, em que aparecem em cenas sucessivas os jovens do ano de 1861 inscritos na Pia Sociedade de São Francisco de Sales, com seu prodigioso crescimento e com o desaparecimento gradativo do mundo dos primeiros salesianos a quem iam se sucedendo os continuadores de sua obra. E aí Dom Bosco falou:

            Depois que eu tinha agradavelmente assistido à cena da colheita, rica de tanta variedade, o gentil desconhecido me ordenou:
            – Agora, dê dez rodadas com a manivela, conta e, depois, olha.
            Pus-me a girar a roda e, após dez giros, enfiei os olhos na lente. Vi todos os meus jovens que, havia uns poucos dias, eu os tinha acariciado como meninos. Agora estavam adultos, de aspecto viril, alguns de barba comprida, outros de cabelos grisalhos. Então eu perguntei:
            – Mas como é isso? Faz poucos dias aquele aí era um menino, quase de podia carregá-lo no colo! Como é que está assim crescido?
            – É natural. Quantas maniveladas deu na roda?
            – Dez.
            – Pois é! 61 a 71. Neste ano todos somam dez anos a mais.
            – Ah! Entendi. Olhei no fundo da lente. Panoramas desconhecidos. Novas casas que nos pertenciam. Muitos jovens alunos sob a direção dos meus caros filhos do Oratório, agora já padres, professores e diretores, que os instruíam e os divertiam. O personagem continuou a dizer:
            – Dê mais dez giros na manivela. Avançamos até 1881.
            Peguei a manivela e a roda rodou por mais dez vezes. Parei. Encostei o olho, olhei e vi. Só a metade dos jovens vistos antes, quase todos grisalhos e alguns já encurvados. Perguntei:
            – Onde estão os outros?
            – Já passaram, foram para a outra vida.
            A assombrosa diminuição dos meus jovens ocasionou-me viva preocupação. Mas retomei fôlego ao poder visualizar também como, num quadro imenso, lugares novos, e regiões desconhecidas, e uma multidão de jovens sob o cuidado e a direção de professores novos, ainda dependentes dos meus antigos jovens, alguns deles em idade bem madura. Depois dei mais dez giros na roda e aí só vi uma quarta parte dos meus jovens visualizados na rodada anterior, mais velhos, de barba e cabelos brancos…
            – E os outros todos?
            – Já foram para a outra vida. Estamos em 1891.
            Eis o que aconteceu debaixo de meus olhos: outra cena comovente. Meus filhos padres, cansados das fadigas, rodeados de jovens que eu nunca tinha visto. Muitos de pele de outra cor, bem diversos dos nossos lugares. E mais dez vezes rodei a roda. Só vi um terço dos meus jovens, já decrépitos, velhos, corcundas, desfigurados, macilentos, em seus últimos anos. Entre eles lembro de ter visto o P. Rua tão velho, magro, quase não dava para reconhecê-lo mais, tanto tinha mudado. Perguntei:
            – E os outros todos?
            – Já foram para a outra vida. Estamos em 1901.
            Em muitas casas eu não reconheci mais nenhum dos nossos antigos. Havia diretores e mestres nunca dantes vistos por mim, uma multidão de jovens cada vez maior, casas aumentadas, pessoal dirigente admiravelmente acrescido. O gentil intérprete continuou a falar:
            – Agora dê mais dez giros na roda neste controle e verá coisas que o consolam e outras que causarão profunda preocupação.
            Girei dez vezes mais a manivela. Ele exclamou:
            – Eis o ano de 1911!
            – Ah! Meus caros jovens! Vi casas novas, novos jovens; diretores e professores com trajes diferentes, novas atitudes.
            E dos meus do Oratório de Turim? Procurei e busquei com insistência no meio daquela multidão de jovens. Achei um só dentre vocês, todo encanecido e decrépito pelos muito anos, cercado de uma bela coroa de jovens. Contava o início do nosso Oratório. Recordava-lhes as coisas aprendidas de Dom Bosco e mostrava os retratos de Dom Bosco dependurados na parede da portaria, de outros velhos alunos, de superiores das casas que ele já tinha conhecido como anciãos…
            Depois de um novo comando na manivela, mais giros. Não vi senão um imenso ermo povoado de solidão, sem alma viva. Gritei estarrecido:
            – Oh! Não vejo mais ninguém! Não vejo mais ninguém dos meus! Onde estão todos aqueles jovens acolhidos por mim, tão alegres, espertos, vigorosos e que atualmente estão junto comigo no Oratório?
            – Estão na outra vida. Saiba que já se passaram dez anos a cada dezena da manivelada.
            Então contei quantas voltas de dez giros tinha dado com o manípulo e resultou que tinham transcorrido cinquenta anos e que lá pelo ano de 1911 os atuais jovens do Oratório tinham falecido todos. E o benévolo guia:
            – Quer ver algo surpreendente?
            – Sim! Sim! Quero sim.
            – Então preste atenção, se é que lhe agrada ver e saber mais. Gire a manivela em sentido contrário, contando outros tantos giros quantos deu antes.
            E a roda girou. Ele me disse:
            – Olhe agora!
            Olhei e vi. Apareceu diante de mim uma quantidade imensa de jovens, todos diferentes, de infinita variedade de trajes, países, feições e línguas. Embora eu me esforçasse o mais que podia, não consegui distinguir a não ser uma mínima parte junto com seus superiores, diretores, mestres e assistentes. Eu falei em voz alta:
            – Todos estes realmente são desconhecidos. E obtive a seguinte resposta:
            – Todavia, todos eles são seus filhos. Ouça-os, pois estão falando de você, de seus antigos filhos e que foram superiores deles mesmos e que agora não mais estão há tempo. Relembram os ensinamentos recebidos de vocês e deles.
            Olhei ainda com muita atenção. Mas quando tirei os olhos da tela, a roda começou a girar sozinha com extrema velocidade e muito estrépito. Aí eu acordei, morto de cansaço.
            Agora que lhes contei estas coisas, vocês poderão pensar: Quiçá! Dom Bosco é um homem fora do comum, algum grande personagem, seguramente um santo! Meus queridos jovens! Para dirimir falsos conceitos a meu respeito, deixo a todos a completa liberdade de acreditar ou não nestas coisas, dar ou não dar importância. Recomendo-lhes, porém, não levem isso em mofa, quer com companheiros, quer com pessoas estranhas. Acho por bem asseverar-lhes que o Senhor tem infinitos meios para manifestar aos homens sua vontade. Às vezes ele se serve de instrumentos ineptos e indignos, como se serviu da burra de Balaão, fazendo-a falar. Serviu-se do mesmo Balaão, falso profeta, que predisse muitas coisas relativas ao Messias. Isso pode acontecer também comigo. Peço, porém, que não comparem suas obras com as minhas.
            O que vocês devem fazer é apenas ouvir o que eu digo porque isto, é o que espero, mostrará sempre a vontade de Deus e redundará no bem das almas. Com relação àquilo que eu faço, nunca digam: Dom Bosco fez assim, então, está certo. Não! Primeiro observem o que eu faço. Se virem que é bom, imitem. Se, por acaso, perceberem que aquilo que eu faço não é conveniente, guardem-se de imitar. Considerem-no mal feito.
(MB IT VI, 898-916 / MB PT VI, 839-949)




Nós somos Dom Bosco, hoje

«Tu levarás a cabo o trabalho que estou começando; eu farei os esboços, tu desenharás as cores» (Dom Bosco)

Queridos amigos e leitores, membros da Família Salesiana, na saudação deste mês no Boletim Salesiano, vou me concentrar num evento muito importante que a Congregação Salesiana está vivendo: o 29º Capítulo Geral. No caminho da Congregação Salesiana, a cada seis anos ocorre esta assembleia, a mais importante na vida da Congregação.
Muitas coisas fazem parte da nossa vida, e este ano jubilar nos está proporcionando muitos eventos importantes; no entanto, desejo me concentrar neste porque, mesmo que aparentemente esteja longe de nós, diz respeito a todos nós.
Dom Bosco, nosso Fundador, estava ciente de que nem tudo terminaria com ele, mas que o seu seria, sem dúvida, apenas o início de um longo caminho a percorrer. Aos sessenta anos, num dia de 1875, disse ao P. Júlio Barberis, um de seus colaboradores mais próximos: “Tu levarás a cabo o trabalho que estou começando; eu farei os esboços, tu desenharás as cores […] Farei uma cópia aproximada da Congregação e deixarei para aqueles que vierem depois de mim a tarefa de torná-la bela”.
Com esta feliz e profética expressão, Dom Bosco desenhava o caminho que todos somos chamados a percorrer; e de forma máxima está se realizando o Capítulo Geral dos Salesianos de Dom Bosco nestes tempos em Valdocco.

A profecia dos doces
O mundo de hoje não é o de Dom Bosco, mas há uma característica comum: é um tempo de profundas mutações. A humanização completa, equilibrada e responsável em seus componentes materiais e espirituais era o verdadeiro objetivo de Dom Bosco. Ele se preocupava em preencher o “espaço interior” dos jovens, formar “cabeças bem feitas”, “cidadãos honestos”. Neste aspecto, é totalmente atual. O mundo hoje precisa de Dom Bosco.
No início, para todos há uma pergunta muito simples: «Você quer uma vida qualquer ou quer mudar o mundo?» Mas ainda se pode falar de metas e ideais, hoje? Quando o rio para de correr, ele se torna um pântano. O mesmo acontece com o ser humano.
Dom Bosco não parou de caminhar. Hoje ele o faz com nossos pés.
Ele tinha uma convicção sobre os jovens: «Esta porção, a mais delicada e a mais preciosa da sociedade humana, sobre a qual se fundamentam as esperanças de um futuro feliz, não é por si mesma de índole perversa… porque se acontece às vezes que já estejam corrompidos nessa idade, isso se deve mais à imprudência do que à malícia consumada. Esses jovens realmente precisam de uma mão benéfica, que cuide deles, os cultive, os guie…»
Em 1882, numa conferência, disse aos Cooperadores em Gênova: «Ao retirar, instruir, educar os jovens em perigo, faz-se um bem a toda a sociedade civil. Se a juventude for bem educada, teremos com o tempo uma geração melhor». É como dizer: apenas a educação pode mudar o mundo.
Dom Bosco tinha uma capacidade de visão quase assustadora. Ele nunca diz “até agora”. Mas sempre “de agora em diante.
Guy Avanzini, eminente professor universitário, continua a repetir: «A pedagogia do século XXI será salesiana, ou não será pedagogia».
Numa noite de 1851, de uma janela do primeiro andar, Dom Bosco jogou entre os jovens um punhado de doces. Uma grande alegria se acendeu, e um garoto, vendo-o sorrir na janela, gritou: «Ó Dom Bosco, se pudesse ver todas as partes do mundo, e em cada uma delas tantos oratórios!».
Dom Bosco fixou seu olhar sereno no ar e respondeu: «Quem sabe se não deve vir o dia em que os filhos do oratório estejam realmente espalhados por todo o mundo».

Olhar distante
Mas o que é um Capítulo Geral? Por que ocupar estas linhas sobre um tema que é especificamente da Congregação Salesiana? 
As constituições de vida dos Salesianos de Dom Bosco, no artigo 146, definem assim o Capítulo Geral: 
“O Capítulo Geral é o sinal principal da unidade na diversidade da Congregação. É o encontro fraterno no qual os salesianos realizam uma reflexão comunitária, para se manterem fiéis ao Evangelho e ao carisma do Fundador, e sensíveis às necessidades dos tempos e lugares. 
Mediante o Capítulo Geral, toda a Sociedade, deixando-se guiar pelo Espírito do Senhor, procura conhecer, em determinado momento da história, a vontade de Deus para melhor servir à Igreja”
.
O Capítulo Geral não é, portanto, um fato privado dos salesianos consagrados, mas uma assembleia importantíssima que diz respeito a todos nós, que toca toda a Família Salesiana e aqueles que têm Dom Bosco dentro de si, porque no centro estão as pessoas, a missão, o Carisma de Dom Bosco, a Igreja e cada um de nós, de vocês. 
No centro está a fidelidade a Deus e a Dom Bosco, na capacidade de ver os sinais dos tempos e dos diferentes lugares. Fidelidade que é um movimento contínuo, renovação, capacidade de olhar longe e, ao mesmo tempo, manter os pés bem plantados no chão.

Por isso, cerca de 250 coirmãos salesianos se reuniram de todas as partes do mundo para rezar, refletir, dialogar e olhar para o futuro… em fidelidade a Dom Bosco.
E, a partir da construção dessa visão, eleger o novo Reitor-Mor, o sucessor de Dom Bosco e seu Conselho Geral.
Não é algo fora da sua vida, caro amigo(a) que lê, mas dentro da sua existência e no seu “afeto” a Dom Bosco. Por que lhe digo isso? Porque você acompanha tudo isso com sua oração. A oração ao Espírito Santo que ajude todos os capitulares a conhecer a vontade de Deus para um melhor serviço à Igreja.
Acredito que o CG29, tenho certeza, será tudo isso. Uma experiência de Deus para purificar outras partes do esboço que Dom Bosco nos deixou, como sempre foi feito em todos os Capítulos Gerais da história da Congregação, sempre fiéis ao seu projeto.
Certos de que hoje também podemos continuar a ser iluminados para sermos fiéis ao Senhor Jesus na fidelidade ao carisma original, com os rostos, a música e as cores de hoje.
Não estamos sozinhos nesta missão e sabemos e sentimos que Maria, a Mãe Auxiliadora dos cristãos, a Auxiliadora da Igreja, modelo de fidelidade, sustentará os passos de todos nós.




O lenço da pureza (1861)

            No dia 16 de junho, Dom Bosco apresentou como estreia para os jovens o compromisso de fazer uma oração especial, a fim de que Deus fizesse cair em si aqueles do grande macaco que disse apenas ser um número no plural. Na noite do dia 18, contou a seguinte historieta, ou espécie de sonho, como a definiu em outra ocasião. A maneira, porém, que mantinha em contar era sempre tal, que dele pôde repetir o P. Rufino, que conservou escrita a lembrança, o que Baruc falava das visões de Jeremias: “Ele ia ditando para mim todas estas palavras (como se as lesse), e eu as escrevia no rolo com tinta” (Jr 36,18).
            E Dom Bosco falou assim:

            Era a noite de 14 para 15 do mês. Logo que me deitei, apenas tive um pouco de sonolência, senti um grande golpe na cabeceira da cama como se alguém batesse com um pedaço de pau. Sentei-me na cama. Logo me lembrei do raio. Olhei de um lado para outro. Não vi nada. Convenci-me de que estava a sonhar e que nada houvera de real. Voltei a deitar-me. Apenas comecei a querer pegar no sono, houve uma segunda pancada que me fere as orelhas e me abala. Então me levantei nos travesseiros, desci da cama, procurei, examinei debaixo da cama, debaixo da mesa e nos cantos do quarto, mas não vi nada. Então coloquei-me nas mãos do Senhor, persignei-me com água benta e deitei. Foi aí que minha mente voou de cá para lá e vi o que estou para contar.
            Pareceu-me estar no púlpito de nossa igreja iniciando a pregação. Os jovens todos estavam sentados em seus lugares com o olhar fixo em mim. Atentos aguardavam que eu falasse. Mas eu não sabia de qual assunto devia tratar e de que maneira começar a falar. Mesmo forçando a memória, minha mente permaneceu estéril e vazia. Fiquei assim por um pouco de tempo, confuso e angustiado e nunca me tinha sucedido semelhante trapalhada depois de tantos anos de pregação. Mas eis que logo vi aquela nossa igreja transformando-se em um grande vale. Procurei as paredes da igreja e não as vi mais e nem vi mais jovem algum. Estava fora de mim, maravilhado, e não conseguia convencer-me daquela mudança de cenário.
            Pensei com meus botões: – Mas o que será isso? Havia pouco eu estava na igreja, no púlpito, e agora encontro-me num vale! Seria um sonho? Mas o que preciso fazer? – Decidi descer pelo vale afora. Andei um pouco e procurei alguém para manifestar-lhe minha admiração e pedir explicações. Vi um belo palácio com grandes sacadas e amplos terraços, como se queira denominá-los, e que constituíam um conjunto admirável. Diante do palácio estendia-se uma praça. Num dos cantos da praça, à direita, vi um grande grupo de jovens reunidos que estavam ao redor de uma senhora, a qual entregava um lenço a cada um. Após receber o lenço saíam e dispunham-se em fila um atrás do outro no terraço com balaustrada.
            Eu também cheguei perto daquela senhora e ouvi que, no ato de entregar os lenços, ela dizia a cada um estas palavras:
            – Não o abra nunca quando sopra o vento. Mas se o vento o pegar de surpresa quando o tiver aberto, vire-se logo para a direita e nunca para a esquerda.
            Eu observava todos aqueles jovens, mas no momento não cheguei a reconhecer nenhum. Terminada a distribuição dos lenços, quando todos estavam no terraço, formavam uma longa fila única e ficaram lá de pé sem dizer palavra. E eu continuava a olhar. Vi um jovem que começou a tirar o seu lenço e abri-lo. Depois os outros também começaram, pouco a pouco, a abrir cada um o seu e aí todos com o lenço desfraldado. Era um lenço enorme, bordado a ouro com desenhos de grande estilo e nele podiam-se ler estas palavras também douradas e que o ocupavam todo:  Regina Virtutum (Rainha das virtudes).
            E eis que vindo do norte, isto é, da esquerda, começou a soprar uma leve brisa. Depois ficou mais forte. Por fim levantou-se o vento. Logo que começou este vento, vi alguns dos jovens dobrarem logo o lenço e escondê-lo. Outros viraram-se para a direita.
            Outros, porém, ficaram imóveis com seu lenço aberto. Logo que o vento soprou forte, formou-se rapidamente uma nuvem escura que cobriu todo o céu e formou-se um ciclone, desabou grande temporal e rugiu pavorosamente o trovão. Caiu granizo, desceu a chuva e, por fim, a neve.
            No entanto, muitos jovens continuaram com o lenço estendido e o granizo furava-o de lado a lado: parecia que as gotas d’água também tivessem ponta. Outrossim os flocos de neve esburacavam os lenços. Em poucos instantes aqueles lenços se estragaram e viraram uma peneira, ao ponto de perderem a beleza.
            Esta cena causou em mim tamanho assombro que não conseguia dar-lhe explicação. O pior é que, aproximando-me daqueles jovens que antes não conhecera, agora, ao olhá-los com mais atenção, consegui reconhecê-los bem distintamente, um por um. Eram os meus jovens do Oratório. Cheguei mais perto ainda e perguntei:
            – O que está fazendo aqui? Você não é o fulano de tal? – Sim! Estou aqui, sim! Veja, aqui também estão Sicrano e Beltrano… este e aquele…
            Então fui até aquela senhora que distribuíra lenços. Estavam ali junto também uns homens e perguntei-lhes: – O que significa tudo isso?
            A senhora voltou-se para mim e disse: – Por acaso não leu o que estava escrito nos lenços?
            – Sim! Regina Virtutum!
            – Não sabe por quê?
            – Claro que sei!
            – Pois bem! Aqueles jovens expuseram a virtude da pureza ao vento das tentações. Logo que os primeiros perceberam, fugiram e são aqueles que recolheram o lenço. Outros foram pegos de surpresa e não tiveram tempo para dobrá-lo e viraram para a direita e são os que, na hora do perigo, recorrem ao Senhor, virando as costas para o inimigo. Outros, porém, ficaram com o lenço aberto virado para o ímpeto das tentações, que os fizeram cair em pecado.
            Fiquei admirado com o espetáculo e estava prestes a desesperar ao ver quão poucos fossem os que tinham preservado a bela virtude. Comecei a chorar e a soluçar um pranto lastimoso. Logo que me acalmei, perguntei:
            – Como é que os lenços ficaram perfurados não só pelo granizo, mas também pelas gotas d’água e pelos flocos de neve? As gotas, os flocos de neve não seriam os pecados veniais?
            – E não sabe que neste campo non datur parvitas materiae (Não existe matéria leve)? Todavia, não se inquiete, venha e veja.
            Um daqueles homens aproximou-se da sacada, fez aos jovens um aceno de mão e gritou: – Para a direita!
            Quase todos os jovens viraram-se para o lado direito. Alguns não se moveram do lugar, e seus lenços acabaram por ficar inteiramente despedaçados. Vi o lenço dos que se tinham voltado para a direita ficar bem pequeno, todo remendado e cerzido de tal modo que não se via mais buraco algum. Estavam, porém, em estado tão lastimáveis que dava pena. Não tinham mais regularidade. Podia ver alguns lenços com três palmos de comprimento, outros com dois e até com um.
            Aquela senhora, no entanto, disse:
            – Eis os que perderam a bela virtude, mas remediaram-se com a confissão. Os que não se mexeram, são os que permaneceram no pecado e, talvez, muito provavelmente, entrarão no caminho da perdição.
            Por fim me disse:
            – Nemini dicito, sed tantum admone (Não digas nada a ninguém, apenas admoesta).
(MB IT VI, 972-975 / MBp VI, 899-903)




Passeio dos jovens pelo Paraíso (1861)

Agora vamos contar outro belo sonho que Dom Bosco teve nas noites de 3, 4 e 5 de abril de 1861. O P. Bonetti escreveu: “Diversas situações que são admiradas nele convencerão cabalmente o leitor ser um daqueles sonhos com que o Senhor, de quando em quando, se compraz em mandar aos seus servos fiéis”. P. Bonetti e P. Ruffino o relataram com detalhes. Assim nós o exporemos.

            Na noite de 7 de abril, depois das orações, Dom Bosco subiu ao estrado para dirigir algumas boas palavras a seus jovens e começou assim: – Tenho uma coisa muito curiosa para contar. Vou contar um sonho. É um sonho e, portanto, não é uma realidade. Aviso vocês sobre isso para que não deem maior importância do que merece. Antes de começar devo antecipar umas observações. Para vocês eu revelo tudo. O que é dito aqui não deve cair lá fora. Seja dito e fique só entre nós. Claro que quem comentar lá fora com pessoas estranhas não é réu de pecado, mas é melhor que não ultrapasse as soleiras desta casa.
            Podem comentar entre vocês e rir. Brinquem sobre o que estou para contar-lhes quanto lhes parecer e agradar, mas também só com as poucas pessoas que podem julgar de confiança e que possam tirar disto algum proveito e a quem acharem conveniente fazê-lo. O sonho está dividido em três partes. Foi feito em três noites consecutivas e, por isso, nesta noite, contarei apenas uma parte, e as outras duas, nas noites seguintes. O que mais me causou estupefação é que eu retornei ao sonho na segunda e na terceira noites, partindo do mesmo ponto em que tinha sido interrompido na noite anterior ao acordar.

PRIMEIRA PARTE

            Os sonhos se fazem dormindo. Por isso eu estava dormindo. Alguns dias antes eu tinha saído de Turim e passei por perto das colinas de Moncalieri. A paisagem das colinas verdejantes ficou-me impressa. Pode ser que nas noites seguintes, estando a dormir, a imagem daquele panorama maravilhoso de novo viesse a estampar-se-me na mente e movimentando a fantasia brotasse o prazer de fazer um passeio. O caso é que eu, estando a sonhar, decidi fazer o passeio. Parecei-me estar no meio dos meus jovens em uma planície. Diante dos meus olhos erguia-se uma alta e vasta colina. Estávamos todos parados. De repente fiz aos jovens uma proposta: – Vamos fazer um belo passeio?
            – Vamos!
            – Mas aonde!?
            – Olhamo-nos entre nós, pensamos, e, não sei por qual surpresa, alguém começou a dizer: – Vamos ao paraíso!?
            – Sim! Sim! Vamos ao paraíso! – gritaram alguns.
            – É isso mesmo! Vamos fazer um belo passeio ao paraíso, replicaram outros.
            – Bem! Ótimo! Vamos embora! Gritaram todos de acordo.
            Estávamos na planície e pusemo-nos a caminho. Depois de algum tempo encontramo-nos aos pés da colina. Começamos a trilhar suas veredas. Era um espetáculo maravilhoso, extenso quanto a vista podia abarcar; a ladeira daquela vasta colina estava coberta de plantas de todas as espécies, tenras e baixas, robustas e altaneiras e, estas, não mais grossas do que um braço.
            Havia pés de peras, de maçãs, de cerejas, de ameixas, de videiras etc., etc. Mas o que era estranho é que em cada árvore viam-se flores que começavam a desabrochar, flores já formadas e com cores variadas, frutos pequenos e verdes, frutos grandes e maduros, de tal sorte que sobre cada planta havia quanto existe de bonito na primavera, no verão e no outono. Havia tanta quantidade de frutas que parecia as árvores não poderem suportar o peso.
            Os jovens vinham a mim e me perguntavam curiosamente a explicação do fenômeno, porque não conseguiam dar-se conta de semelhante milagre. Lembro-me de que, para satisfazê-los de algum modo, eu lhes dava esta resposta:
            – Eis! O paraíso não é como a nossa terra onde as temperaturas mudam junto com as estações. Aqui não há mudanças. A temperatura é sempre a mesma, suavíssima, aclimatada à natureza de cada planta. Por isso ajunta em si mesma e ao mesmo tempo, tudo o que existe de belo e de bom nas diversas estações do ano.
            Estávamos estupefatos e estáticos admirando aquele jardim encantado. Bafejava uma aura suavemente doce. Reinava no ar muita calma, tepidez, suavidade de perfumes que nos inebriava a todos, fazendo-nos perceber que estávamos a saborear as delícias de todo tipo de frutas. Aqui os jovens apanhavam uma maçã, lá uma pera, ora uma cereja, ora um cacho de uva. E deste modo, todos juntos subíamos lentamente a colina. Quando chegamos ao topo achávamos ter chegado ao paraíso. Pelo contrário, estávamos muito longe ainda. Desde aquele patamar ao lado de lá de uma grande esplanada, no meio de um vasto altiplano, via-se uma altíssima montanha que tocava as nuvens.
            Para galgar esta montanha a gente se arrastava com dificuldade, mas com muito entusiasmo. Muita gente subia e lá no topo estava Alguém que convidava os que subiam e os encorajava. Víamos também outros que desciam do topo até embaixo e vinham ajudar os cansados por terem escalado íngremes encontras. Aqueles que, finalmente, atingiam a meta eram recebidos com grande festa e muito júbilo. Nós percebemos que lá era o paraíso e, dirigindo-nos em direção ao altiplano, rodeamos aquela montanha para ver e só também subirmos. Já tínhamos percorrido um longo caminho. Alguns jovens corriam para chegarem logo e estavam muito à frente do grosso da turma de companheiros.
            Mas vejam só! Antes de chegar ao sopé da montanha havia naquele altiplano um grande lago cheio de sangue, de um tamanho como o espaço entre o Oratório e a Praça do Castelo. Espalhados pelas margens havia pedaços de mãos, pés, braços, pernas, crânios esfacelados, corpos esquartejados e outros membros lacerados. Miserando espetáculo de horror. Parecia que neste lugar houvesse sido combatida uma sangrenta batalha. Os jovens, que corriam na frente e chegaram por primeiros, paralisaram-se apavorados. Eu ainda estava longe, não me tinha apercebido de nada e observei seus gestos de assombro, que não caminhavam mais, estavam atônitos. Então gritei: – O que significa esta tristeza? O que está acontecendo? Continuem!
            – Ah! Sim! Ir para a frente? Venha! Venha ver! Assim me responderam eles. Apurei os passos e vi! Os outros jovens também chegaram. Antes eles estavam muito alegres e agora ficaram mudos e tristonhos. Fiquei de pé às margens do lago misterioso, mas não dava para passar para o outro lado. De frente, nas margens opostas via-se escrito em grandes caracteres: Per sanguinem (pelo sangue).
            Os jovens comentavam entre si: – O que significa isso!? O que quer dizer este espetáculo?
            Então eu perguntei a “UM”, que agora não me lembro mais quem fosse, e ele me disse:
            – Pois este é o sangue derramado por aqueles, e são muitos e muitos, que já alcançaram o topo da montanha e chegaram ao paraíso. Este é o sangue dos mártires! Aqui está o sangue de Jesus Cristo com quem foram banhados os corpos daqueles que foram mortos por casa do testemunho da fé. Ninguém pode chegar ao paraíso sem antes passar por este sangue e sem ser aspergido. Este sangue defende a montanha sagrada. É figura da Igreja Católica. Qualquer um que tentar escalá-la, afogar-se-á. Por conseguintes, todas essas mãos e pés decepados, as caveiras esfaceladas, os membros em pedaços espalhados sobre estas margens são restos miseráveis de todos os inimigos que tentaram combater a Igreja. Todos foram feitos em pedaços! Todos se afogaram neste lago! Aquele jovem misterioso durante sua conversa tinha citados muito mártires, entre os quais estavam os soldados do Papa, caídos no campo de batalha para defender o domínio temporal do Pontífice.
            Depois de ter disto isto, mostrou-nos à nossa direita, na direção do oriente, ao fundo, uma imensa depressão, muito maior, umas quatro ou cinco vezes mais extensa do que o lago de sangue, e falou:
            – Estão vendo aquela depressão? Saibam que lá dentro será depositado o sangue daqueles que, por este caminho subirão para chegar ao cimo do monte, o sangue dos justos, daqueles que morrerem pela fé nos tempos vindouros.
            Eu encorajava os jovens estarrecidos com aquele espetáculo que contemplavam e o que lhes era anunciado e dizia: Se tivermos que morrer mártires, nosso sangue seria colocado naquela depressão, mas nossos membros jamais seriam atirados junto com aqueles que lá estavam espalhados pelas margens.
            Todavia apressamo-nos a retomar a caminhada costeando aquelas beiradas. Tínhamos à esquerda o cume da colina por onde tínhamos vindo e à direita o lago e a montanha. A certo ponto, onde terminava o lago de sangue, havia um terreno coberto de carvalhos, de loureiros, palmeiras e outras plantas. Embrenhamo-nos neste bosque para ver se era possível aproximar-nos da montanha. Mas eis apresentar-se outro espetáculo: um segundo lago bem grande, cheio de água e dentro dele mais membros decepados e corpos esquartejados. Na margem também havia uma inscrição com caracteres grandes: Per aquam (pela água).
            E de novo nós perguntamos:
            – O que é? O que não é? Quem nos daria a explicação para aquele outro mistério?
            Neste lago “ALGUÉM” nos disse: – Esta é a água vertida do lado de Cristo que, embora em pequena porção, todavia aumentou tanto, aumenta continuamente e continuará no futuro. Esta é a água do Santo Batismo na qual foram lavados e purificados aqueles que já subiram esta montanha e com a qual deverão ser batizados e purificados os que ainda deverão subir no futuro. Todos os que quiserem chegar ao paraíso devem ser purificados com esta água. Ou se chega lá pela inocência ou pela penitência. Ninguém pode salvar-se sem ser banhado por esta água.
            Apontando para os restos humanos, prosseguiu:
            – Aqueles membros de mortos são dos que no tempo presente atacaram a Igreja.
            No entanto, nós vimos muita gente e também alguns dos nossos jovens que caminhavam sobre as águas com rapidez extraordinária e com leveza tal que apenas tocavam a água com a ponta dos pés sem se molharem e chegavam à outra margem.
            Nós estávamos boquiabertos com aquele portento, mas nos foi dito: – Estes são os justos, as almas dos santos. É a alma dos santos logo que se livra da prisão do corpo e também o corpo, quando está glorificado, não só desliza suave e velozmente sobre a água, mas também voa livremente pelos ares.
            Então os jovens desejaram correr sobre as águas daquele lago como tinham feito os que tinham visto. Voltavam-se para mim como que perguntando com o olhar se devia arriscar. Ninguém se atrevia, e eu lhes dizia:
            – De minha parte eu não arrisco. É uma temeridade julgar-nos tão justos, de pretender andar sobre as águas sem afundar.
            Então eles disseram:
            – Se o senhor não vai, muito menos nós.
            Continuamos indo para frente sempre rodeando a montanha. Eis que chegamos a um terceiro lago, tão extenso quanto o primeiro, cheio de fogo e tendo no interior outros membros humanos mutilados e cortados. Na margem oposta podia-se ler um cartaz: Per ignem (pelo fogo) Enquanto nós observávamos aquela planície de labaredas aí, aquele tal disse:
            – Aqui está o fogo da caridade de Deus e dos santos. As chamas do amor e do desejo por onde devem passar todos os que não passaram pelo sangue e pela água. Este é também o fogo com que foram atormentados e consumados pelos tiranos os corpos de tantos mártires. Muitos foram os que tiveram que atravessar este caminho para dar a volta e subir esta montanha. Estas chamas servirão para queimar seus inimigos. – Pela terceira vez nós vimos triturados os inimigos do Senhor no campo de suas derrotas.
            Nos apressamos para ir mais à frente. No lado de lá deste lago, havia mais um lago semelhante a um anfiteatro que apresentava um espetáculo ainda mais horroroso. Estava cheio de animais ferozes, lobos, ursos, tigres, leões, panteras, serpentes, cães, gatos e muitos outros monstros que estavam com as fauces escancaradas para devorar quem quer que se aproximasse. Víamos pessoas andando por sobre as cabeças pavorosas dos animais sem medo algum e sem sofrer lesão nenhuma. Eu queria chamá-los de volta e gritava com todas as forças:
            – Não! Pelo amor de Deus! Fiquem longe! Não vão para frente! Não enxergam que essas feras estão esperando para despedaçar e devorar vocês!? – Porém, minha voz não era ouvida e eles continuavam a caminhar rente aos dentes e sobre as cabeças das feras, como se fosse a pista mais segura. O costumeiro intérprete então me falou: – Estas feras são os demônios, os perigos e as tramoias do mundo. Os que andam incólumes sobre as feras são as almas justas, os inocentes. Você não sabe que está escrito: Super aspidem et basiliscum ambulabunt et conculcabunt leonem et draconem? (Caminharão por sobre a víbora e o basilisco e pisarão sobre o leão e o dragão). Destas almas já falava o profeta/rei Davi. No Evangelho se lê: Ecce dedi vobis potestatem calcandi supra serpentes e scorpiones e super omnem virtutem inimici et nihil vobis nocebit (Eis que vos dei o poder de pisar sobre serpentes e escorpiões e sobre todo poder do inimigo e nada vos prejudicará – Lc 10,19).
            Nós nos perguntávamos:
            – Como faremos para passar para o outro lado? Teremos que passar também sobre aquelas cabeças horrendas?
            – Sim! Claro! Venha! Vamos! Me disse alguém.
            – Eu não tenho coragem – respondi. É ser muito presunçoso julgarmo-nos justos para poder atravessar ilesos sobre as cabeças destes monstros ferozes. Se vocês quiserem, podem ir. Eu não vou!
            E, mais uma vez os jovens repetiram:
            – Oh! Bem! Se o senhor não se atreve, muito menos nós.
            Afastamo-nos do lago das feras. Avistamos um enorme terreno cheio de gente. No meio dessa gente havia pessoas que pareciam estar sem nariz, sem orelhas, alguns sem cabeça. De algum faltava um braço, outro estava sem pernas, um não tinha os pés, outro as mãos. Havia quem não tinha língua. De outro tinham arrancado os olhos. Os jovens estavam espantados com aquela gente em tão mau estado, mas eis que “ALGUÉM” nos disse:
            – São os amigos de Deus. São os que para se salvarem mortificaram os sentidos, perderam os ouvidos, arrancaram os olhos, perderam a língua e, portanto, fizeram muitas obras meritórias. Muitos perderam aquelas partes do corpo por causa das grandes obras de penitência ou trabalhando pelo amor de Deus ou do próximo. Aqueles que estão sem cabeça são os que se consagraram inteiramente ao Senhor.
            Enquanto observávamos aquele cenário, víamos muitas pessoas, parte delas tinha atravessado os lagos e estava subindo a montanha e se ajuntaram com os lá de cima, os quais davam a mão e encorajavam os que se esforçavam para subir. Depois voltavam-se, batiam palmas e diziam:
            – Bravos! Muito bem! – Com o barulho destes aplausos e dos gritos acordei e percebi que estava em minha cama. Esta é a primeira parte do sonho, isto é, a primeira noite.

            Na noite do dia 8 de abril, Dom Bosco se apresentou aos jovens, ansiosos por ouvirem a continuação do sonho. De saída renovou a proibição dos jovens ficarem pondo as mãos sobre os companheiros e proibiu também de ficarem se movimentando pelo salão de estudo, de andar de cá para lá e disse ainda: – Quem precisa sair do estudo por qualquer motivo, sempre deve pedir licença ao chefe da mesa. Os jovens estavam impacientes e Dom Bosco sorridente, dada uma olhada no entorno, fez breve pausa e prosseguiu:

SEGUNDA PARTE

            Reavivem bem a memória. Lembrem que havia um grande lago que ainda devia se encher de sangue nos fundos de uma depressão vizinha ao primeiro lago. Depois de ter visto todos aqueles diversos espetáculos já descritos e tendo dado a volta ao redor daquele imenso altiplano, encontramos um lugar aberto que nos permitia passar além e avançarmos, e todos os meus jovens, por um vale que na extremidade dava para uma grande praça. Entramos. Era uma praça larga e espaçosa na entrada, mas ia se afunilando aos poucos, de modo que no fundo, perto da montanha, terminava numa estrada entre dois penhascos por onde podia passar uma pessoa por vez. A praça estava cheia de gente contente e feliz que se divertia. Todos iam na direção daquela estreitíssima passagem que dava para o monte. Nós nos perguntamos:
            – Será que é aquele o caminho do paraíso?
            – Aqueles que se tinham apinhado no lugar, um por vez, iam entrando naquele caminho e para entrarem deviam apertar bem as roupar e encolher os membros, diminuírem de tamanho e depor, se é que tinham, as trouxas ou qualquer outra coisa. Aquilo foi o suficiente para me assegurar que aquele era o caminho do paraíso e veio-me à memória que para entrar no céu não basta apenas despojar-se do pecado, mas também deixar para trás qualquer pensamento, todo apego terreno, segundo o que diz o Apóstolo: Nil coinquinatum intrabit in ea (Nada de contaminado entrará nela – Ap 21,27).
            Por um certo tempo nós ficamos lá a olhar. Mas como eu fui tolo! Em vez de nós tentarmos a passagem, voltamos para trás para ver o que havia do lado de trás da praça. Vimos muitas outras pessoas ao longe e nos deixamos levar pela curiosidade para ver o que estavam a fazer. Por isso nos embrenhamos num campo muito grande em que a vista humana não conseguia divisar o horizonte. Lá nos encontramos no meio de um espetáculo esquisito. Vimos homens e também muitos de nossos jovens encangados com vários tipos de animais. Eu pensei: – O que significa isto? – Então veio-me à mente que o boi é símbolo da preguiça e pensei que eram os jovens preguiçosos. Eu os conhecia e via alguns que realmente eram inertes, morosos no cumprimento dos deveres e pensava comigo mesmo: – Sim! Fica aí! Está bem para você: você nunca quer fazer nada. Então fica ali junto com este animal.
            Depois vi outros atrelados com asnos. Eram os cabeçudos e assim, formando dupla, carregavam pesos e pastavam com os burros. São os que não querem submeter-se aos conselhos e nem às ordens dos superiores. Vi outros formando parelhas com mulas ou cavalos e me lembrei do que diz o Senhor: Factus est sicut equus et mulus quibus non est intellectus (Tornou-se como cavalo e mula que não têm inteligência – Sl 31,9). São aqueles que nunca querem pensar nas coisas da alma. Infelizes desmiolados!
            Vi outros mais que pastavam com os porcos: grunhiam na imundície e fuçavam no barro como fazem aqueles animais imundos. Como os porcos eles rolavam na lama. São os que só se interessam pelas coisas terrenas, que vivem nas paixões torpes, que ficam longe do Pai Celeste. Que espetáculo triste! Então pensei no que diz o Evangelho a respeito do filho pródigo que ficou reduzido àquele estado: luxuriose vivendo (vivendo luxuriosamente).
            Por fim vi muitas pessoas e jovens com gatos, cães, galos, coelhos etc., etc., ou seja, os ladrões, os escandalosos, os soberbos, os cheios de respeito humano e assim por diante. Desta variedade de cenas percebemos que o extenso vale era o mundo. Olhei bem para cada um daqueles jovens, um por um. Avançamos mais um pouco naquele campo de imensa planura e fomo para outro lado também muito espaçoso. Era um declive quase imperceptível do terreno e íamos descendo sem notar a inclinação.
            Percebemos que a certa distância o terreno parecia tomar o aspecto de um jardim e dissemos:
            – Vamos ver o que há lá?
            – Vamos!
            Encontramos belíssimas rosas purpúreas e os jovens exclamavam:
            – Oh! Que rosas bonitas! Oh! Que belas rosas! – E correram para colhê-las. Logo que as tiveram nas mãos perceberam que exalavam nauseabundo fedor. Aquelas rosas vermelhas e tão especiais por fora, por dentro estavam apodrecidas. Os jovens ficaram decepcionados. Vimos também violetas fresquíssimas na aparência, que pareciam dever exalar agradável odor. Mas aproximando-nos para colher algumas para formar um ramalhete, percebemos que por baixo elas também estavam podres e fétidas.
            E continuávamos avançando em meio a pequenas copeiras encantadoras de árvores carregadas de frutas, que eram uma delícia admirá-las. Especialmente as macieiras, que aspecto encantador! Um jovem logo correu e apanhou uma pera bem grande que de mais bonita e mais madura parecia haver. Apenas lhe cravou os dentes jogou-a fora decepcionado. Estava cheia de terra e areia e com um gosto que fazia vomitar. E nos perguntamos:
            – Afinal, o que é isso?
            Um dos nossos jovens, de quem eu sei o nome, falou: – Não seria isto tudo aquilo que o mundo apresenta de bom e de belo? Tudo é aparência, tudo é insípido!
            Enquanto pensávamos para onde nos conduziria aquele nosso caminho, aí percebemos finalmente que ele estava em descida, embora o declive fosse apenas perceptível. Um jovem então observou:
            – Aqui a gente está descendo, está indo para baixo. Não estamos no caminho certo!
            Eu respondi: – Éh! Vamos ver!
            De repente apareceu uma multidão imensa que corria por aquela estrada onde estávamos nós. Alguns vinham de carruagem, outros a cavalo, muito a pé. Pulavam, brincavam, cantavam, dançavam ao som de música e outros marchavam ao ritmo de tambor. Era uma festa e um tripúdio indizível. Dissemos:
            – Vamos parar um pouco para observar, antes de nos metermos no meio dessa gente.
            Naquele momento um jovem percebeu no meio daquela multidão alguns que acompanhavam e pareciam orientar os diversos grupos. Eram pessoas de bela aparência, bem vestidas e de boas maneiras. Porém, notava-se que sob os chapéus tinham chifres. Aquela imensa planície era, portanto, o mundo perverso e maligno. Est via quae videtur homini recta, et novíssima ejus ducunt ad mortem (Este é o caminho que ao homem parece certo, mas que seus desmandos levam à morte – Pr 16,25). De repente “ALGUÉM” nos alertou:
            – Eis como os homens vão para o inferno quase sem se darem conta!
            – Tendo visto e ouvido aquilo, logo chamei os jovens que iam à frente, e eles se puseram a correr a meu encontro e bradavam:
            – Nós não queremos ir lá para baixo. – Todos continuaram a correr refazendo o caminho já trilhado e deixaram-me sozinho. E disse logo que os alcancei:
            – Sim! Vocês têm razão. Vamos fugir logo daqui. Voltemos para trás, caso contrário, sem que percebamos, desceremos também nós para o inferno.
            E queríamos voltar para a praça donde tínhamos partido e finalmente também posicionarmo-nos no caminho que levava para a montanha do paraíso. Mas, qual não foi a nossa surpresa quando, depois de longo caminhar, não mais vimos o vale por onde se ia ao paraíso, mas apenas um prado e nada mais. Andamos de um lado para outro, mas não conseguimos nos orientar.
            Alguém disse:
            – Erramos o caminho!
            – Outro falava:
            – Não! Não erramos. O caminho é este! – Enquanto os jovens altercavam entre si, e cada um sustentava a própria opinião, eu acordei.

            Esta é a segunda parte do sonho acontecido na segunda noite. Mas antes de irem para a cama, ouçam mais isto: Não quero que vocês atribuam importância ao meu sonho, mas lembrem-se que os prazeres que conduzem à perdição não são apenas aparentes, não têm apenas o aspecto de beleza. Lembrem-se de tomar cuidado daqueles vícios que nos tornam tais quais os bichos e nos fazem merecedores de sermos atrelados junto com eles. Guardem-se de modo especial de certos pecados que nos transformam semelhantes aos animais imundos. Oh! Quão contraditório é para uma criatura racional ser comparada com bois ou burros! Como é inadequado, para quem foi criado à imagem e semelhança de Deus e tornado herdeiro do paraíso, chafurdar-se na lama como porcos que a Sagrada Escritura define luxuriose vivendo (vivendo luxuriosamente).
            Eu não revelei a vocês senão as circunstâncias principais do meu sonho e de modo breve, porque, para contar tudo como foi, demoraria demais. Também ontem à noite só fiz um pequeno resumo de quanto eu vi. Amanhã de noite eu vou contar a terceira parte.

            Na noite de sábado, 9 de abril, Dom Bosco continuou suas descrições.

TERCEIRA PARTE

            Eu não gostaria de contar a vocês os meus sonhos. Anteontem, logo que comecei a contar, arrependi-me da promessa. Quereria não ter dado início à exposição daquilo que vocês querem saber. Mas preciso dizê-lo: se calar, se ficar com meu segredo só para mim, eu sofro imensamente e contando-o recebo deste desabafo um grande alívio. Então vou contar.
            Antes, porém, devo dizer que nas noites anteriores tive que cortar muitas coisas sobre as quais não ficava bem eu comentar. Deixei também outras que podem ser vistas com os olhos, mas podem ser expressas com palavras.
            Repassem na memória as cenas ditas. Depois de ter visto os diversos lugares e os caminhos pelos quais se vai ao inferno, nós queríamos a todo custo chegar ao paraíso. Mas, anda pra cá, anda pra lá, anda que anda, desviamo-nos sempre para ver coisas novas. Mas por fim descobrimos a vereda e atingimos a praça onde estava reunida tanta gente que lutava para chegar na montanha. A praça que parecia tão grande terminava numa passagem pequena e estreita entre dois penhascos. Quem se enfiava por esta passagem, apenas saído do outro lado, devia atravessar uma ponte muito comprida, muito estreita e sem corrimão. Debaixo dela havia um precipício abissal.
            Nós dissemos: – Oh! Lá está o lugar que conduz ao paraíso! Ei-lo. Vamos! – E nos dirigimos para lá.
            Alguns jovens se puseram a correr e deixaram os companheiros para trás. Eu queria que nos esperassem, mas eles estavam porfiando em chegar antes do que nós. Chegando na cabeceira estancaram espantados e não ousavam pôr o pé. Eu os incentivava para que atravessassem:
            – Vamos! Para a frente! O que estão esperando? – E eles me respondiam:
            – Ah! Sim! Venha o senhor experimentar! Dá medo ter que passar por um lugar tão estreito e atravessar a ponte. Se pisar em falso a gente cai naquelas águas profundas e encachoeiradas neste abismo, e ninguém mais nos vê.
            Finalmente um criou coragem e avançou por primeiro, depois um segundo o seguiu e, assim, todos os outros, um após outro, e chegamos do outro lado. Chegamos ao pé da montanha. Tentamos subir, mas não conseguimos encontrar uma trilha sequer. Rodeamos as faldas procurando, mas opunham-se-nos dificuldades e empecilhos mil. Num lugar havia penhascos espalhados em desordem. Noutro enorme pedra a transpor. Aqui um precipício, ali uma moita espinhenta impedia a escalada. A subida era escarpada por todos os lados. Era, portanto, escabroso o sacrifício a que íamos ao encontro. Em todo caso não desanimamos e começamos a avançar com denodo. Depois de uma hora de árdua subida, ajudando-nos com mão e pés e socorrendo-nos mutuamente, os obstáculos foram diminuindo e, a certo ponto, o caminho começou a se mostrar praticável e conseguimos subir mais comodamente.
            De repente chegamos a um lugar daquele morro onde vimos muita gente que sofria de maneira tão horrível, tão estranho que todos ficamos tomados de pavor e pena. Não posso contar a vocês o que vi porque lhes causaria muita compaixão e não suportariam minha narrativa. Então não digo nada, e vamos para frente.
            A seguir vimos grande número de outras pessoas que também subiam espalhadas pelos flancos da montanha e que, chegando ao topo, eram acolhidas por aqueles que as esperavam com grandes festas e aplausos prolongados. Ao mesmo tempo podíamos ouvir uma música verdadeiramente celestial, um coral de vozes muito doces e os mais suaves hinos perfeitamente modulados. Isto nos animava mais e mais a continuar a subida. Enquanto caminhava, eu ia pensando com meus botões e dizia aos jovens:
            – Mas nós que queremos chegar ao paraíso, será que estamos mortos? Mas eu sempre ouvi dizer e sei que antes é preciso passar pelo juízo! Será que nós já fomos julgados? – Eles respondiam:
            – Não! Nós ainda estamos vivos. Ainda não chegamos ao julgamento. – E ríamos. – Mas retruquei:
            – Vivos ou mortos, vamos para frente para ver o que há lá em cima: alguma coisa deve haver. – E aceleramos o passo.
            Depois de tanto caminhar, finalmente chegamos também nós quase ao cume da montanha. Os que estavam lá no alto já estavam preparados para nos receber com festa. Aí voltei-me para trás para ver se estavam comigo todos os jovens. Com muita dor encontrei-me quase sozinho. De tantos meus pequenos companheiros não me sobravam senão três ou quatro.
            Perguntei, parando de andar e não pouco ressentido: – E os outros? – Disseram-me:
            – Pararam aqui e acolá. Talvez venham.
            Olhei para baixo e os vi dispersos pela montanha, parados. Alguns procuravam caracóis entre as pedras, outros recolhiam flores sem odores, uns catavam flores silvestres, havia quem corresse atrás de borboletas, quem seguia grilos, além de outros a descansar sentados sobre terreno argiloso e sem vegetação, à sombra de alguma planta etc., etc. Pus-me a gritar com toda a força, bracejava fazendo sinais, chamava-os pelo nome um a um, para que viessem logo, pois não era tempo de parar. Alguns vieram, de maneira que eram mais ou menos oito junto comigo. Os outros não davam bola para meus apelos e nem pensavam em vir para cima, ocupados que estavam com aquelas bagatelas. Mas eu não queria ir para o paraíso com tão poucos jovens. Decidi ir buscar aqueles renitentes e falei para os que estavam comigo: – Eu desço e vou buscar aqueles desgarrados. Vocês fiquem aqui.
            E fui. A quantos eu encontrei descendo, empurrei-os para o alto. A um dava um conselho, a outro uma repreensão carinhosa, a um terceiro, uma solene reprimenda; um bofetão em um, a outro um empurrão. Esforçava-me para dizer:
            – Vão para cima, por caridade, não parem atrás destas ninharias. – E assim eu descendo, os tinha chamado quase todos e me achava já nas faldas da montanha que nós tínhamos subido com tanta fadiga. Havia alguns que estavam cansados pelo esforço da subida e assustados com a altura a atingir e voltavam para trás. Então voltei-me para recomeçar a subida e voltar para onde estavam os jovens. Que nada! Tropecei numa pedra e acordei.

            Eis o sonho que acabei de contar-lhes. Porém, eu quero duas coisas de vocês: peço-lhes que não o contem fora de casa a nenhuma pessoa estranha, porque se alguém deste mundo ouvisse estas coisas acharia graça delas. Eu conto os sonhos a vocês para diverti-los: comentem-no entre vocês quanto quiserem, mas entendo que não devem dar importância mais do que a um sonho convém. E mais uma coisa: ninguém venha me perguntar quem era, se estava ou não lá, o que fazia ou não, se vocês estavam entre os poucos ou os muitos, que lugar ocupavam… e assim por diante, porque seria repetir a música deste inverno. Para alguns poderia ser mais desvantajoso do que útil e não quero turvar as consciências.
            Só digo que se o sonho não tivesse sido um sonho apenas, mas uma realidade, e tivéssemos devido morrer de verdade, então, entre muitos jovens que aqui estão, se se encaminhassem na direção do paraíso, pouquíssimos chegariam lá. Entre 700 ou 800, talvez não haveria mais do que três ou quatro. Mas, esperem um pouco: não se preocupem. Entendamo-nos. Explico esta exorbitante desproporção temerária: digo que não haveria mais do que três ou quatro que fariam voo sem escala até o paraíso sem antes passar pelas chamas do purgatório. Talvez que algum ficaria lá apenas um minuto, outros talvez um dia, outros, diversos dias ou semanas. Mas quase todos devem passar um tempinho por lá. Querem saber como se evita o purgatório? Procurem conquistar indulgências quanto mais puderem. Se fizerem aquelas práticas a que estão vinculadas, com as devidas disposições, se conseguirem uma indulgência plenária, voarão sem escala para o paraíso.

            Sobre este sonho Dom Bosco não deu nenhuma explicação pessoal ou prática para nenhum dos alunos e bem poucas sobre os vários significados dos espetáculos vistos por ele. Não seria coisa fácil. Tratou-se, como mais tarde tentaremos provar, de ideias em quadros múltiplos que ora se sucediam e ora apareciam simultaneamente e que representavam o Oratório no seu momento atual e no futuro, todos os jovens que moravam na casa e aqueles que viriam depois, com seu retrato moral e seu destino no futuro, a Pia Sociedade Salesiana com seu crescimento, suas peripécias e sortes, a Igreja Católica e as odiosas perseguições preparadas pelos inimigos e os triunfos que não lhe faltariam e… assim por diante, com outros fatos gerais e particulares.
            Com tais proporções, tramas e confusão de paisagens, Dom Bosco não podia nem sabia expor por inteiro o que se desenrolava tão vivamente dentro de sua fantasia. Era conveniente, e também obrigação, que muitas situações fossem omitidas e comentadas só com pessoas prudentes, para que tal segredo pudesse servir de conforto ou de sobreaviso.
            Quando expunha aos jovens os vários sonhos, dos quais falaremos a seu tempo, escolhia o que podia ser de maior benefício para eles, pois era essa a intenção de quem inspirava estas misteriosas revelações. De vez em quando Dom Bosco, em razão da profunda impressão que tinha vivenciado e também pelo crivo da escolha, acenava confusamente e de passagem para outros fatos e coisas e por ideias, até diria, incoerentes e estranhas à narrativa, mas que revelavam omitir mais do que dizia.
            Assim ele tinha começado a fazer nestes dias ao descrever seu magnífico passeio, e nós procuramos explicar com brevidade, seja com as palavras de Dom Bosco, seja com nossas diversas reflexões, mas que nós repassamos aos leitores. Diremos:
            1º – A colina que Dom Bosco encontra no começo da caminhada parecer ser o Oratório. Sobre a colina sorri esplêndida exuberância de vegetação. Não existem plantas velhas de alto e grosso tronco. Em todas as estações podem-se recolher flores e frutos e assim é e deve ser o Oratório. O Oratório, bem como toda a obra de Dom Bosco, tem como suporte a beneficência de que fala o livro do Eclesiástico no capítulo 40: “Um horto bendito de Deus que dá frutos preciosos, frutos de imortalidade, semelhante ao Paraíso Terrestre onde entre outras havia a Árvore da Vida”.
            2º – Quem subia a montanha deve ser aquele homem bendito descrito pelo Salmo 83, cuja força está toda no Senhor. Ele mora na terra, neste vale de lágrimas ascensiones in corde suo disposuit (Em seu coração prepara as subidas – Sl 83,6), decidido a elevar-se continuamente para chegar ao tabernáculo do Altíssimo, ou seja, ao céu. Junto com ele muitos outros. O legislador Jesus Cristo os abençoará, cumulando-os de todas as graças celestes; passarão de virtude em virtude e chegarão a ver a Deus na bem-aventurada Sião e serão eternamente felizes.
            3º – Os diversos lagos parecem o compêndio da história da Igreja. Os milhares de membros despedaçados junto às barrancas pertencem aos perseguidores infiéis, aos hereges, aos cismáticos e aos cristãos rebeldes e maus. De certas palavras do sonho se deduz como Dom Bosco via os acontecimentos presentes e também os futuros. A Crônica narra que “ao falar para uns poucos e em particular, sobre aquela depressão vazia que ficava do lado de cá do lago de sangue, Dom Bosco tinha dito:
            – Aquela depressão deve ser preenchida especialmente com o sangue de sacerdotes e, talvez, muito em breve.
            A Crônica continua:
            “Nestes dias Dom Bosco foi visitar o Cardeal De Angelis, e Sua Eminência lhe falou:
            – Diga-me alguma coisa para me alegrar.
            – Contar-lhe-ei um sonho.
            – De bom grado, ouçamos!
            – Dom Bosco começou a contar o que descrevemos nas páginas anteriores, mas com mais detalhes e reflexões. Quando chegou ao lago de sangue o Cardeal se mostrou sério e melancólico. Então Dom Bosco truncou a narrativa.
            – Termino aqui!
            – Continue! – lhe disse o Cardeal.
            – Até aqui e basta! – concluiu Dom Bosco. E começou a falar coisas amenas”.
            4º – A cena que representa a passagem muito estreita entre dois penhascos, a ponte de madeira (que era a cruz de Jesus Cristo), a segurança para atravessar é o suporte da fé, o perigo de despencar durante a travessia se não houver reta intenção, os empecilhos de todo tipo para chegar onde o caminho é viável; tudo isto, se por ventura não estivermos enganados, indica-nos as vocações religiosas. Os que estavam na praça deviam ser os jovens chamados por Deus para servi-lo na Pia Sociedade. Percebe-se que as pessoas que esperavam para entrar na estrada, que em grande parte dava para o paraíso, estavam contentes, felizes e se divertiam. Isto caracteriza em boa parte uma multidão que não era de adultos. Notamos que no movimento de subir a montanha, uma parte tinha parado, alguns estavam voltando. Não seria o arrefecimento da vocação? Dom Bosco deu a esta parte do sonho um significado que indiretamente podia referir-se à vocação, mas ele achou por bem não comentar.
            5º – Na ladeira da montanha, apenas ultrapassados os obstáculos apinhados pelas faldas, Dom Bosco tinha visto gente que sofria. O P. Bonetti escreveu em sua Crônica que “Falando em particular para alguns que perguntaram, ele respondeu:
            – Este lugar significa o purgatório. Se eu tivesse que fazer uma pregação sobre este assunto, não falaria senão do que vi. São coisas que causam medo. Digo apenas que, entre os diversos gêneros de suplício, vi os que eram apertados por prensas que debaixo delas viam-se esborrachar as mãos, os pés, a cabeça, e os olhos das pessoas explodiam para fora das órbitas. Ficavam descadeirados, triturados e infundiam um terror indescritível no coração de quem olhava”.

            Acrescentamos esta última e importante observação que serve para este sonho e para muitos outros que descreveremos no futuro. Nestes sonhos ou visões, como gostaríamos de chamar, entra quase sempre em cena um personagem misterioso que faz o papel de guia e intérprete para Dom Bosco. Quem seria o tal?… Eis a parte mais surpreendente e bela desses sonhos e que Dom Bosco, ao contar, conservava no recôndito de seu íntimo.
(MB IT VI, 864-882 / MB PT VI, 804-819)




A fé, nosso escudo e nossa vitória (1876)

“Quando me dediquei a esta parte do sagrado ministério, tive a intenção de consagrar todo o meu esforço para a maior glória de Deus e para o benefício das almas; tive a intenção de trabalhar para formar bons cidadãos nesta terra, para que um dia fossem dignos habitantes do céu. Que Deus me ajude a continuar assim até o último suspiro da minha vida.” (Dom Bosco)

            Os jovens, e não somente eles, esperavam avidamente a narração do sonho; Dom Bosco manteve a promessa, mas com um dia de atraso, na “boa noite” do dia 30 de junho, solenidade de “Corpus Domini”. Começou desta maneira: – “Alegro-me em revê-los. Oh! Quantos rostos angélicos eu tenho na minha frente e todos voltados para mim (risada geral). Pensei que narrando-lhes este sonho lhes causaria medo! Se também eu tivesse um rosto angélico, poderia dizer-lhes: Olhem para mim! E então se dissiparia todo o medo de vocês. Mas infelizmente não sou mais que barro, como são vocês. Porém, somos obra de Deus e posso dizer com São Paulo que vocês são gaudium meum et corona mea; vocês são o meu consolo e a minha coroa. Porém, não é para se maravilhar se na coroa houver algum Gloria Patri um tanto rude. Mas vamos ao sonho. Eu não queria contá-lo por temor de amedrontá-los; mas depois pensei: Um pai nada deve manter oculto a seus filhos, tanto mais se esses, naquilo que ele sabe, têm interesse e devem saber o que o pai conhece e faz. Por isso decidi contá-lo com todos os seus particulares; mas peço-lhes não dar-lhe senão a importância que se dá a um sonho, e cada um o tome na parte que mais lhe agrada e que é mais salutar. Saibam, pois, que o sonho se faz dormindo (risada geral). Porém, saibam também que este sonho não o tive agora; foi há uns quinze dias atrás, exatamente quando vocês terminavam os seus exercícios. Há muito tempo que eu rezava pedindo ao Senhor que me fizesse conhecer o estado da alma dos meus jovens e o que se pudesse fazer para o seu maior progresso na virtude e para erradicar de seus corações certos vícios. Especialmente nestes exercícios espirituais eu estava pensativo por esse motivo. Agradecendo ao Senhor, estes exercícios correram verdadeiramente bem, seja por parte dos estudantes como dos aprendizes. Mas o Senhor não se deteve aqui nas suas misericórdias. Ele quis ajudar-me de modo que eu pudesse ler nas consciências dos jovens, exatamente como se lesse num livro; e o que é mais admirável, vi não somente o estado presente de cada um, mas as coisas que a cada um aconteceriam no futuro. E isto de modo preciso, também para mim extraordinário; porque jamais me acontecia que eu visse de modo semelhante, tão bem, tão claro, tão evidente nas coisas futuras e nas consciências dos jovens. Foi esta a primeira vez. Eu havia pedido muito a Maria Santíssima que quisesse me conceder a graça, que nenhum de vocês tivesse o demônio no coração, e espero que também isto me tenha sido concedido; pois tenho motivos para crer que todos vocês me tenham revelado a própria consciência. Estando eu com esses pensamentos e pedindo ao Senhor que me fizesse conhecer o que pudesse favorecer e prejudicar a saúde da alma dos meus queridos jovens, fui para a cama, e eis que tive um sonho que lhes narrarei”.
            O preâmbulo inicia com um sentimento habitual de profunda humildade; mas desta vez termina em uma afirmação de tal natureza, que exclui toda dúvida a respeito do caráter sobrenatural do fenômeno. O sonho poderia intitular-se: A fé, nosso escudo e nossa vitória.
            Pareceu-me estar no Oratório com os meus jovens, que formam a minha glória e a minha coroa. Estava anoitecendo. Enxergava-se ainda, mas não mais tão claramente. Eu, saindo aqui dos pórticos, estava me dirigindo à portaria; mas um imenso número de jovens me rodeava, como vocês costumam, porque somos amigos. Uns tinham vindo para cumprimentar-me, outros para dizer-me alguma coisa. Eu dirigia uma palavra a este e uma para aquele. Assim, lentamente chegara ao meio do pátio; quando eu ouço ai! ai! lamentosos e prolongados e um ruído imenso, misturado com altos gritos de jovens e berros ferozes que vinham da portaria. Os estudantes ao ouvir aquele insólito tumulto voam para ver; mas depressa, junto com os aprendizes apavorados, os vi fugir precipitadamente, gritando e correndo em nossa direção. Muitos aprendizes passaram pela porta do fundo do pátio.
            Mas crescendo ainda mais os gritos com acentos de dor e desespero, eu ansiosamente perguntava a todos o que tinha acontecido. E procurava adiantar-me para auxiliar onde fosse necessário. Mas os jovens aglomerados ao meu redor me detinham. Então eu:
            – Mas deixem-me ir ver o que causa tanto susto.
            – Não, não, pelo amor de Deus! – me diziam; não vá adiante; venha, venha, venha para trás; há um monstro que o devorará; fuja, fuja conosco; não vá lá embaixo.
            Quis, todavia, ver o que havia ali e, libertando-me dos jovens, andei um pouco no pátio dos aprendizes enquanto todos os jovens gritavam:
            – Veja, veja!
            – O que é?
            – Veja lá no fundo!
            Virei-me daquela parte e vi um monstro que de início pareceu-me um gigantesco leão, que não existe igual na terra. Fixei-o com atenção. Era repugnante, tinha o aspecto como de urso, porém mais feroz e horroroso. A parte de trás, ao invés, em proporção aos outros membros, era pequena, mas as espáduas anteriores eram muito largas, assim como o estômago. A sua cabeça era enorme e a sua boca tão imensa e aberta, que parecia feita para devorar a gente em um bocado. Dela saíam fora dois enormes dentes, pontudos e bem compridos como de espadas afiadas.
            Eu logo me afastei e voltei ao meio dos jovens que me pediam conselho muito ansiosos; mas nem mesmo eu estava livre do susto e me encontrava não pouco perturbado. Entretanto respondi:
            – Gostaria de poder dizer-lhes o que devem fazer; mas não o sei. Contudo reunamo-nos debaixo dos pórticos.
            Enquanto falava, o urso entrava no segundo pátio e avançava em nossa direção com passo pesado e lento como quem está seguro da presa que quer fazer. Nós recuamos aterrorizados até que nos encontramos aqui sob os pórticos. Os jovens se apertavam ao meu redor. Todos os olhos estavam fixos em mim.
            – Dom Bosco, o que devemos fazer? – diziam-me. E eu também olhava os jovens, mas silencioso, não sabendo que decisão tomar. Finalmente exclamei:
            – Voltemo-nos para lá, para o fundo dos pórticos, para a imagem de Nossa Senhora; coloquemo-nos de joelhos, peçamos a ela com a maior devoção possível, fervorosamente, para que ela nos diga o que devemos fazer nestes momentos, faça-nos conhecer quem seja este monstro; venha em nosso auxílio e nos livre. Se for um animal feroz, de qualquer maneira entre todos juntos procuraremos matá-lo; se é um demônio, Maria nos socorrerá. Não tenham medo! A Mãe celeste cuidará de nossa salvação.
            No momento o urso continuava a aproximar-se lentamente e quase se arrastava pelo chão em ato de tomar fôlego para agredir.
            Ajoelhamo-nos e começamos a rezar. Transcorreram poucos minutos de grande aflição. A fera havia chegado tão perto a ponto de poder com um arremesso cair-nos em cima. Eis que não sei como, nem quando, vimo-nos todos no refeitório dos clérigos.
            No meio destes via-se Nossa Senhora que tinha semelhança, não sei bem se com a estátua que está aqui sob os pórticos, ou com aquela do refeitório, ou com aquela que está colocada na cúpula, ou com aquela que está na igreja. Mas seja como for, o fato é que estava toda resplandecente de uma luz muito viva e iluminava todo o refeitório, ampliado cem vezes mais, tanto em amplidão como em altura, com um sol em pleno meio dia. Estava rodeada de bem-aventurados e de anjos, de modo que aquela sala parecia um paraíso. Os seus lábios moviam-se como se quisesse falar, para dizer alguma coisa.
            Nós aqui no refeitório éramos em número extraordinário. Nos nossos corações, junto com o susto penetrou o estupor. Os olhos de todos estavam fixos em Nossa Senhora que, com voz muito doce, nos assegurou:
            – Não tenham medo, disse; tenham fé; esta é apenas uma prova que lhes quer fazer o meu divino Filho.
            Observei então atentamente aqueles que, fulgurantes de glória, faziam coroa à Santa Virgem, e reconheci o P. Alasonatti, P. Rufino, um certo Miguel, irmão das Escolas Cristãs, que algum de vocês terá conhecido, e meu irmão José; e outros que foram antigamente do nosso Oratório, pertencentes à Congregação e agora estão no paraíso. Com estes vi alguns outros que estão ainda vivos.

***

            Quando eis que um deles, que faziam corte a Nossa Senhora, diz em alta voz: Surgamus! Levantemo-nos!
            Nós estávamos em pé e não sabíamos o que nos indicasse aquele aviso, e dizíamos: – Mas como, – Levantar-nos? Se já estamos todos de pé? – Levantemo-nos! – repetiu mais forte a mesma voz. Os jovens firmes e atônitos haviam se voltado para mim, esperando um aceno meu; e não sabiam o que fazer. Eu me voltei para lá, de onde havia partido aquele som e disse:
            – Mas como fazer? O que quer dizer levantemo-nos, se já estamos todos de pé?
            E aquela voz me respondeu com mais força: Levantemo-nos! Eu não sabia encontrar a razão desta ordem que não entendia.
            Então um daqueles que estavam com a Bem-aventurada Virgem dirigiu-se a mim, que estava em cima de uma mesa para dominar toda aquela multidão, e assim começou a dizer com voz admiravelmente forte, enquanto os jovens estavam atentos:
            – E você que é padre deveria entender este levantemo-nos. Quando celebra a Santa Missa não diz todos os dias “corações ao alto”? Entende-se talvez com isso levantar-se materialmente ou então elevar ao céu os afetos do coração a Deus?
            Eu logo gritei aos jovens:
            – Vamos, vamos, filhinhos, revivemos, fortifiquemos nossa fé, elevemos os nossos corações a Deus, façamos um ato de amor e de arrependimento; façamos um esforço de vontade para rezar com vivo fervor, confiemos em Deus. E fiz um sinal e todos nos ajoelhamos.
            Um momento após, enquanto nós rezávamos em voz baixa, com ardor cheio de confiança, uma voz se fez ouvir de novo: Surgite (Levantem-se)! Ficamos todos de pé e nos sentimos levantar sensivelmente do chão por uma força sobrenatural e subimos, eu não sei dizer quanto, mas sei bem que estávamos todos no alto. Não saberia nem mesmo dizer em cima de que pousassem os nossos pés. Recordo-me de que eu me encontrava comprimido entre a armação ou parapeito de uma janela. Todos os jovens depois escalavam as janelas e as portas. Quem se agarrava daqui, quem se agarrava de lá; alguns em barras de ferro, outros em pregos robustos, alguns na moldura da abóbada. Estávamos todos elevados no ar e eu estava pasmo que não caíssemos no chão.
            E eis que aquele monstro, que havíamos visto no pátio, entrou na sala seguido por uma inumerável quantidade de animais de várias espécies, mas todos ferozes. Vagavam aqui e acolá pelo refeitório, soltavam urros horríveis, pareciam ávidos de combate, parecia que a todo o momento estivessem prontos para lançar-se com um pulo em cima de nós. Mas eles ainda não estavam tentando atacar-nos. Olhavam-nos, porém, levantando o focinho com olhar sanguíneo. Nós, do alto, estávamos observando-os e eu, tendo-me comprimido àquela janela: – Se caísse, dizia comigo mesmo, que suplício horrível fariam comigo!

***

            Enquanto estávamos naquela estranha posição, saiu uma voz da Nossa Senhora que cantava as palavras de São Paulo: Sumite ergo scutum fidei enexpugnabile (Empunhai o escudo inexpugnável da fé – Ef 6,16). Era um canto tão harmonioso, tão unido, de melodia tão sublime, que nós estávamos como em êxtase. Ouviam-se todas as notas da mais baixa à mais alta e parecia que cem vozes cantavam em uma só.
            Nós estávamos ouvindo este canto de paraíso, quando vimos sair do lado de Nossa Senhora muitos jovens encantadores, com asas e descidos do céu. Aproximaram-se de nós trazendo escudos na mão e colocavam um no coração de cada um de nossos jovens. Todos aqueles escudos eram grandes, belos, resplandecentes. Refletia-se neles a luz que vinha de Nossa Senhora e parecia mesmo algo celeste. Cada escudo no meio parecia de ferro, depois um grande círculo de diamante e por último, na extremidade, um círculo de ouro puríssimo. Este escudo representava a fé. Quando todos estávamos assim armados, aqueles que estavam ao redor da Beata Virgem entoaram um dueto e cantavam com tão bela harmonia que não saberia quais palavras possam de alguma maneira exprimir tanta doçura. Era tudo o que se pode imaginar de mais belo, de mais suave, de mais melodioso.
            Enquanto eu contemplava aquela apresentação e estava absorto com aquela música, assustei-me com uma voz potente que gritava: Ad pugnam (À luta)! Todas aquelas feras começaram a agitar-se furiosamente.
            Num átimo nós todos caímos, ficando em pé no chão, e eis que cada um lutava com as feras, protegidos pelo escudo divino. Não sei dizer se travamos a batalha no refeitório ou no pátio. O coro celeste continuava as suas harmonias. Aqueles monstros lançavam-se contra nós com vapores que saíam de suas goelas, balas de chumbo, lanças, setas e outros projéteis de toda espécie: mas essas armas não chegavam a nós ou batiam em nossos escudos e ricocheteavam para trás. Mas os inimigos queriam de todos os modos ferir e matar e se precipitavam ao ataque; mas não podiam causar-nos nenhum ferimento. Todos os seus golpes batiam com ímpeto naqueles escudos, e se quebravam os dentes e fugiam. Como vagalhões um após o outro se sucediam em assaltar-nos aquelas massas de feras assustadoras, mas todas encontram o mesmo destino.
            Longa foi a batalha. Finalmente se fez ouvir a voz de Nossa Senhora: Haec est Victoria vestra, quae vincit mundum, fides vestra (esta é a vossa vitória que venceu o mundo: a vossa fé, 1Jo 5,4).
            A esta voz, aquela multidão de feras assustada se precipitou em fuga e desapareceu. Nós ficamos livres, salvos, vencedores naquela sala imensa do refeitório, sempre iluminada pela luz que se difundia de Nossa Senhora.
            Então eu olhei fixando-me atentamente nos que levavam aquele escudo. Eram muitos milhares. Entre outros, vi P. Alasonatti, P. Rufino, meu irmão José e o Irmão das Escolas Cristãs que haviam combatido conosco.
            Mas os olhos de todos os jovens não podiam desprender-se da Senhora Santíssima. Ela entoava um hino de agradecimento, que em nós avivava novos prazeres e novos êxtases indescritíveis. Não sei se se possa ouvir cântico mais belo no paraíso.

***

            Mas nossa alegria foi improvisamente perturbada por gritos e gemidos angustiantes misturados a urros ferozes. Parecia que os nossos jovens fossem despedaçados por aquelas feras, que tinham fugido daquele lugar poucos momentos antes. Eu quis logo sair para ver o que acontecia, e prestar socorro aos meus filhos; mas não podia sair, porque na porta estavam os jovens que me impediam e não queriam a todo custo que eu saísse. Eu fazia todos os esforços e dizia-lhes:
            – Deixem-me ir para ajudar aqueles que gritam. Quero ver os meus jovens e se lhes toca dano ou morte, quero morrer com eles. Quero ir, mesmo que tivesse que deixar a vida lá. – E arrancando-me de suas mãos, fui embaixo dos pórticos. E, oh, miserável espetáculo! O pátio estava coberto de mortos, de moribundos e de feridos.
            Os jovens, apavorados pelo susto, tentavam fugir de um lado para o outro e todos aqueles monstros os perseguiam, lançavam-se sobre eles, fincavam os dentes em seus membros e os dilaceravam. A cada instante eram jovens que caíam e expiravam dando os gritos mais dolorosos.
            Mas quem mais de todos fazia o maior massacre, era aquele urso que por primeiro aparecera no pátio dos aprendizes. Com aqueles dois dentes semelhantes a espadas, transpassava o peito dos jovens da direita à esquerda, e da esquerda à direita e aqueles com dupla ferida no coração caíam miseravelmente mortos.
            Eu resolutamente me pus a gritar:
            – Coragem, meus queridos jovens!
            Muitos jovens se refugiavam perto de mim; mas o urso, quando apareci, correu ao meu encontro. Eu, enchendo-me de coragem, dei alguns passos em sua direção. No momento, alguns jovens daqueles que estavam no refeitório e que já haviam vencido os animais, vieram até a soleira e uniram-se a mim. Aquele príncipe dos demônios se lançou contra mim e contra eles, mas não nos pôde ferir porque os escudos nos defendiam. Antes, nem mesmo nos tocou, porque à vista deles, assustado e quase reverente, ia para trás. Foi então que fixando os olhos naqueles seus longos dentes em forma de espada, aí pude ler escritas duas palavras com letras maiúsculas. Sobre um estava escrito: Otium (Ócio); sobre o outro Gula (Gula).
            Fiquei pasmo e dizia comigo mesmo:
            – É possível que na nossa casa, onde todos se encontram tão ocupados, onde há tanto que fazer, que não se sabe por onde começar para desobrigar-se de novas ocupações, haja quem peque por ócio? E com respeito aos jovens, me parece que trabalhem e que estudem a tempo e lugar e que no receio não perdem tempo. – E não conseguia encontrar razão da coisa.
            Mas foi-me respondido:
            – Contudo bem meias horas se perdem!
            – E de gula depois? – eu continuava: entre nós parece que, mesmo querendo, não se pode ir atrás de muitas gulodices. Não temos nem mais ocasiões para ser intemperantes. Os alimentos não são finos assim como as bebidas. Dá-se apenas o necessário. Como, pois, podem ocorrer intemperanças que levem ao inferno?
            De novo foi-me respondido:
            – Ó sacerdote! Você acredita ser profundo na doutrina moral e ter já muita experiência, mas nisto não sabe nada; é completamente ingênuo. E não sabe que se pode cometer um ato de gula, uma intemperança, mesmo bebendo água?
            Não contente eu quis ter uma explicação mais clara e, estando ainda o refeitório iluminado pela Virgem, fui muito triste até o irmão Miguel porque queria esclarecer a minha dúvida. Miguel respondeu-me:
            – Eh, meu caro, neste assunto você é ainda inexperiente. Explicar-lhe-ei o que me pergunta.
            – Quanto à gula, precisa saber que se pode pecar por intemperança, quando mesmo à mesa se come ou se bebe mais que o necessário; comete-se intemperança no dormir ou quando se faz para o corpo algo que vá além da necessidade. Quanto ao ócio saiba que com esta palavra não se entende apenas o não trabalhar e o ocupar ou não o tempo de recreio em divertir-se, mas também quando neste tempo se deixa livre a imaginação para pensar em coisas que são perigosas. O ócio também acontece no estudo, quando alguém se diverte com outras distrações, quando certos retalhos de hora são desperdiçados em leituras frívolas, ou estando inertes a olhar os outros, deixando-se vencer por aquele momento de indolência e especialmente quando na igreja não se reza e se sente tédio no que se refere à piedade. O ócio é o pai, a fonte, a causa de tantas tentações nocivas e de todos os males. Você, portanto, que é diretor destes jovens, deve mantê-los longe desses dois pecados, procurando reavivar neles a fé. Se você puder conseguir de seus jovens que sejam moderados naquelas pequenas coisas que eu disse, eles vencerão sempre o demônio e com a temperança virão a eles a humildade, a castidade e outras virtudes. E se ocuparem o tempo no cumprimento de seus deveres, não cairão jamais nas tentações do inimigo infernal e viverão e morrerão como santos cristãos.

***

            Após ouvir essas coisas eu lhe agradeci por tão bela instrução e, depois, para certificar-me de que isso que eu via era realidade ou simples sonho, tentei tocar sua mão; mas nada apertei. Procurei tocá-la pela segunda vez e pela terceira e inutilmente, pois não apertei senão ar. No entanto, eu via todas aquelas pessoas, falavam, pareciam vivas. Aproximei-me do P. Alasonatti, do P. Rufino, de meu irmão; porém, não me foi possível apalpar a mão de nenhum deles.
            Eu estava fora de mim e exclamei:
            – Mas é verdade ou não tudo isso que eu vejo? Mas estas não parecem pessoas? Não as ouvi falar?
            O irmão Miguel respondeu-me:
            – Deveria saber e estudou isso, que enquanto a alma não estiver unida ao corpo, é inútil tentar tocar-me. Você não pode tocar os puros espíritos. Só para fazer-nos ver pelos mortais devemos tomar a nossa forma. Mas quando todos ressuscitarmos no Juízo, então retomaremos os nossos corpos espiritualizados.
            Então quis aproximar-me de Nossa Senhora que parecia tivesse alguma coisa a dizer-me. Estava quase perto dela, quando ouvi um novo rumor e novos e altos gritos vindo de fora. Imediatamente quis sair pela segunda vez do refeitório; mas ao sair, acordei.
            Assim que terminou de contar, acrescentou estas observações e recomendações: “O que quer que seja deste sonho, tão variadamente entrelaçado, o fato é que nele se repetem e se explicam os ditos de São Paulo. Mas tamanha era a prostração de forças e o abatimento causado por este sonho que pedi ao Senhor que não permitisse que outra vez se apresentasse à minha mente um sonho semelhante: porém, eis que na noite seguinte repetiu-se de novo o mesmo sonho e deste tive que ver também o fim, que não havia visto na noite anterior. E eu me pus a gritar tanto que P. Berto ouviu o rumor e de manhã veio perguntar-me por que eu havia gritado e se eu tinha passado a noite sem dormir. Esses sonhos me cansaram muito mais do que se houvesse passado a noite inteira sem dormir e escrevendo. Como veem, este é um sonho, e eu não quero dar-lhe nenhuma autoridade, mas apenas considerá-lo como um sonho sem ir adiante. Não gostaria depois que se falasse disso em casa, ou aqui, ou ali, para que os de fora, que nada conhecem das coisas do Oratório, tenham que dizer, como já disseram, que Dom Bosco faz os seus jovens viverem de sonhos. Porém, isso pouco importa; digam o que quiserem. Cada um tire do sonho o que importa para ele. No momento, não lhes dou explicações disso porque é tão fácil de ser compreendido por todos. O que muito lhes recomendo é que reavivem a própria fé, a qual se conserva especialmente com a temperança e com a fuga do ócio. Deste, sejam inimigos; daquela, amigos. Em outras noites, voltarei a tratar desse assunto. No momento lhes dou a boa noite”.
(MBp XII, 291-299)