Loterias: autênticos empreendimentos

Dom Bosco não foi apenas um incansável educador e pastor de almas, mas também um homem de extraordinária iniciativa, capaz de inventar soluções novas e corajosas para sustentar suas obras. As necessidades econômicas do Oratório de Valdocco, em constante expansão, o levaram a buscar meios cada vez mais eficazes para garantir alimentação, alojamento, escola e trabalho a milhares de jovens. Entre esses, as loterias representaram uma das ideias mais engenhosas: verdadeiras empreitadas coletivas, que envolviam nobres, sacerdotes, benfeitores e cidadãos comuns. Não era simples, pois a legislação piemontesa regulava rigorosamente as loterias, permitindo sua organização por particulares apenas em casos bem definidos. E não se tratava apenas de arrecadar fundos, mas de criar uma rede de solidariedade que unia a sociedade turinesa em torno do projeto educativo e espiritual do Oratório. A primeira, em 1851, foi uma aventura memorável, cheia de imprevistos e sucessos.

Todo o dinheiro que chegava às mãos de Dom Bosco permanecia ali por pouco tempo, porque era imediatamente usado para fornecer alimentação, alojamento, escola e trabalho para dezenas de milhares de meninos ou para construir colégios, orfanatos e igrejas ou para apoiar as missões sul-americanas. Suas contas, como sabemos, estavam sempre no vermelho; as dívidas o acompanharam durante toda a sua vida.
Ora, entre os meios inteligentemente adotados por Dom Bosco para financiar suas obras, podemos certamente colocar as loterias: cerca de quinze foram organizadas por ele, tanto pequenas quanto grandes. A primeira, modesta, foi a de Turim, em 1851, em favor da igreja de São Francisco de Sales, em Valdocco, e a última, grandiosa, em meados da década de 1880, foi a que se destinava a cobrir as imensas despesas da igreja e do Internato do Sagrado Coração, na estação Términi, em Roma.
Ainda não foi escrita uma verdadeira história dessas loterias, embora não faltem fontes a esse respeito. Somente com relação à primeira, a de 1851, nós mesmos recuperamos uma dúzia de documentos inéditos. Com eles, reconstruímos sua história atormentada em dois tópicos.

Pedido de autorização
De acordo com a lei de 24 de fevereiro de 1820 – modificada pelas Patentes Reais de janeiro de 1835 e pelas Instruções da Companhia Geral das Finanças Reais de 24 de agosto de 1835 e, mais tarde, pelas Patentes Reais de 17 de julho de 1845 – era necessária uma autorização governamental prévia para qualquer loteria nacional (Reino da Sardenha).
Para Dom Bosco, tratava-se, antes de tudo, de ter a certeza moral de ser bem-sucedido no projeto. Ele a tinha graças ao apoio econômico e moral dos primeiros benfeitores: as nobres famílias Callori e Fassati e o Cônego Anglesio do Cottolengo. Assim, ele se lançou no que viria a ser um autêntico empreendimento. Em pouco tempo, ele conseguiu criar uma comissão organizadora, inicialmente composta por dezesseis personalidades conhecidas, que depois aumentou para vinte. Entre elas, havia numerosas autoridades civis oficialmente reconhecidas, como um senador (nomeado tesoureiro), dois vice-prefeitos, três conselheiros municipais; depois, sacerdotes de prestígio, como os teólogos Pedro Baricco, vice-prefeito e secretário da Comissão, João Borel, capelão da corte, José Ortalda, diretor da Pia Obra da Propagação da Fé, Roberto Murialdo, cofundador do Colégio dos Pequenos Artesãos e da Associação de Caridade; e, por fim, homens experientes, como um engenheiro, um ourives avaliador, um comerciante atacadista etc. Todos eles, em sua maioria, proprietários, conhecidos de Dom Bosco e “próximos” da obra de Valdocco.
Uma vez concluída a Comissão, no início de dezembro de 1851, Dom Bosco encaminhou o pedido formal ao Intendente Geral de Finanças, Cavalheiro Alexandre Pernati di Momo (futuro Senador e Ministro do Interior do Reino), bem como “amigo” da obra de Valdocco.

O pedido de doações
Ao pedido de autorização, ele anexou uma circular muito interessante, na qual, depois de traçar uma história comovente do Oratório – prestigiada pela família real, pelas autoridades governamentais e municipais – salientava que a necessidade constante de ampliar a Obra de Valdocco para acolher cada vez mais jovens estava consumindo os recursos econômicos da caridade privada. Portanto, para pagar as despesas de conclusão da nova capela em construção, decidiu-se apelar para a caridade pública por meio de uma loteria de doações a serem oferecidas espontaneamente: “Esse meio consiste em uma loteria de objetos, que o abaixo-assinado teve a ideia de empreender para cobrir as despesas de conclusão da nova capela, e à qual Vossa Senhoria sem dúvida desejará dar seu apoio, refletindo sobre a excelência da obra à qual se destina. Seja qual for o objeto que Vossa Senhoria queira oferecer, seja de seda, lã, metal ou madeira, ou o trabalho de um artista de renome, ou de um trabalhador modesto, ou de um artesão esforçado, ou de uma senhora caridosa, todos serão aceitos com gratidão, porque, em matéria de caridade, toda pequena ajuda é uma grande coisa, e porque as ofertas, mesmo pequenas, de muitos podem, em conjunto, ser suficientes para completar a obra desejada”.
A circular também indicava os nomes dos promotores, a quem as doações poderiam ser entregues, e as pessoas de confiança que os recolheriam e guardariam. Os 46 promotores incluíam várias categorias de pessoas: profissionais, professores, empresários, estudantes, clérigos, lojistas, comerciantes, padres; por outro lado, entre os cerca de 90 promotores, pareciam prevalecer as mulheres nobres (baronesa, marquesa, condessa e suas damas de honra).
Não deixou de anexar ao requerimento o “plano da loteria” em todos os seus muitos aspectos formais: coleta dos objetos, recibo de entrega dos objetos, sua avaliação, bilhetes autenticados a serem vendidos em número proporcional ao número e ao valor dos objetos, sua exibição ao público, sorteio dos ganhadores, publicação dos números sorteados, tempo para receber os prêmios etc. Uma série de tarefas exigentes das quais Dom Bosco não se esquivou. A capela Pinardi já não era suficiente para seus jovens: eles precisavam de uma igreja maior, aquela projetada de São Francisco de Sales (doze anos depois, precisariam de outra ainda maior, a de Maria Auxiliadora!)

Resposta positiva
Dada a seriedade da iniciativa e a alta “qualidade” dos membros da Comissão proponente, a resposta da Intendência só poderia ser positiva e imediata. No dia 17 de dezembro, o referido vice-prefeito Pedro Baricco transmitiu a Dom Bosco o respectivo decreto, com o convite para transmitir cópias dos futuros atos formais da loteria à administração municipal, responsável pela regularidade de todos os requisitos legais. Nesse ponto, antes do Natal, Dom Bosco enviou a circular acima para a gráfica, fez com que ela circulasse e começou a coletar doações.
Ele tinha dois meses para fazer isso, pois outras loterias também estavam ocorrendo durante o ano. No entanto, as doações chegavam lentamente, de modo que, em meados de janeiro, Dom Bosco foi obrigado a reimprimir a circular acima e pediu a colaboração de todos os jovens de Valdocco e amigos para escrever endereços, visitar benfeitores conhecidos, divulgar a iniciativa e coletar as doações.
Mas “o melhor” ainda estava por vir.

A sala de exposições
Valdocco não tinha espaço para expor as doações; então Dom Bosco pediu ao vice-prefeito Baricco, tesoureiro da comissão da loteria, que solicitasse ao Ministério da Guerra três salas na parte do Convento de São Domingos que estavam à disposição do exército. Os padres dominicanos concordaram. O ministro Afonso Lamarmora concedeu-as em 16 de janeiro. Mas logo Dom Bosco percebeu que não seriam suficientes; então pediu ao rei, por meio do esmoler, o abade Estanislau Gazzelli, uma sala maior. O superintendente real Pamparà disse-lhe que o rei não tinha instalações adequadas e propôs alugar as instalações para o jogo de “Trincotto” (ou “pallacorda”: uma antiga espécie de tênis de mão) às suas próprias custas. Essa sala, porém, só estaria disponível para o mês de março e sob certas condições. Dom Bosco recusou a proposta, mas aceitou as 200 liras oferecidas pelo rei para o aluguel do local. Em seguida, procurou outro salão e encontrou um adequado por recomendação da prefeitura, atrás da igreja de São Domingos, a algumas centenas de metros de Valdocco.

Chegada das doações
Nesse meio tempo, Dom Bosco havia pedido ao Ministro das Finanças, o famoso Conde Camilo Cavour, uma redução ou isenção no custo da postagem de cartas circulares, bilhetes e das próprias doações. Por meio do irmão do conde, o muito religioso marquês Gustavo di Cavour, ele recebeu a aprovação de várias reduções postais.
Agora era uma questão de encontrar um especialista para avaliação do conjunto das doações e o consequente número de bilhetes a serem vendidos. Dom Bosco pediu ao Intendente e também sugeriu seu nome: um ourives que era membro da Comissão. O Intendente, porém, respondeu por meio do prefeito, pedindo-lhe uma cópia dupla das doações recebidas para poder nomear seu próprio perito. Dom Bosco realizou imediatamente o pedido e, assim, em 19 de fevereiro, o perito avaliou os 700 objetos coletados em 4124,20 liras. Depois de três meses chegaram a 1.000 doações, depois de quatro meses a 2.000, até a conclusão de 3.251 doações, graças às contínuas “buscas” de Dom Bosco junto a pessoas, sacerdotes e bispos e aos repetidos pedidos formais à Comuna para que prorrogasse o prazo para a extração. Dom Bosco também não deixou de criticar a estimativa feita pelo avaliador municipal das ofertas que chegavam continuamente, que ele dizia ser inferior ao seu valor real; e, de fato, foram acrescentados outros avaliadores, especialmente um pintor para as obras de arte.
O valor final foi tal que Dom Bosco foi autorizado a emitir 99.999 bilhetes ao preço de 50 centavos cada. Ao catálogo já impresso com as doações numeradas com o nome do doador e dos promotores, foi acrescentado um suplemento com as últimas ofertas recebidas. Entre elas estavam as do Papa, do Rei, da Rainha Mãe, da Rainha Consorte, de deputados, senadores, autoridades municipais, mas também de muitas pessoas humildes, especialmente mulheres, que ofereceram objetos e móveis domésticos, mesmo os de pouco valor (copo, tinteiro, vela, garrafa, saca-rolhas, tampa, dedal, tesoura, lâmpada, fita métrica, cachimbo, chaveiro, sabonete, apontador, açucareiro). As doações mais oferecidas foram livros, 629 deles, e fotos, 265. Até mesmo os meninos de Valdocco competiram para oferecer seu próprio pequeno presente, talvez um livreto dado a eles pelo próprio Dom Bosco.

Um trabalho imenso até o sorteio dos números
Nesse momento, era necessário imprimir os bilhetes em uma série progressiva em duas formas (canhoto e bilhete), fazer com que ambos fossem assinados por dois membros da comissão, enviar o bilhete com uma nota, documentar o dinheiro arrecadado… Muitos benfeitores receberam dezenas de bilhetes, com um convite para adquiri-los ou repassá-los a amigos e conhecidos.
A data do sorteio, inicialmente marcada para 30 de abril, foi adiada para 31 de maio e depois para 30 de junho, para ser realizada em meados de julho. Esse último adiamento foi devido à explosão do depósito de pólvora de Bairro Dora, que devastou a área de Valdocco.
Durante duas tardes, de 12 a 13 de julho de 1852, os bilhetes foram sorteados na sacada da prefeitura. Quatro urnas com rodas de cores diferentes continham 10 balas (de 0 a 9) idênticas e da mesma cor da roda. Inseridas uma a uma pelo vice-prefeito nas urnas e giradas, oito jovens do Oratório realizaram a operação e o número sorteado foi proclamado em voz alta e depois publicado na imprensa. Muitas doações foram deixadas no Oratório, onde mais tarde foram reutilizados.

Valia a pena?
Com os cerca de 74.000 bilhetes vendidos e deduzidas as despesas, Dom Bosco ficou com cerca de 26.000 liras, que depois dividiu igualmente com a vizinha obra do Cottolengo. Um pequeno capital, é claro (metade do preço de compra da casa Pinardi no ano anterior); mas o maior resultado do trabalho árduo que ele teve para realizar a loteria – documentado por dezenas de cartas, muitas vezes inéditas – foi o envolvimento direto e sincero de milhares de pessoas de todas as classes sociais em seu “incipiente projeto Valdocco”: torná-lo conhecido, apreciado e depois apoiado econômica, social e politicamente.
Dom Bosco recorreu muitas vezes a loterias, sempre com um duplo objetivo: angariar fundos para suas obras em favor dos meninos pobres, para as missões, e oferecer meios para que os crentes (e os não crentes) praticassem a caridade, o meio mais eficaz, como ele repetia continuamente, para “obter o perdão dos pecados e assegurar a vida eterna”.

“Eu sempre precisei de todos” (Dom Bosco)

Ao senador José Cotta

José Cotta, banqueiro, foi um grande benfeitor de Dom Bosco. A seguinte declaração em papel selado, datada de 5 de fevereiro de 1849, está preservada nos arquivos: “Os padres abaixo-assinados T. João Borrelli de Turim e P. João Bosco de Castelnuovo d’Asti declaram ser devedores de três mil francos ao Ilustríssimo Cavalheiro Cotta, que os emprestou para uma obra piedosa. Essa soma deve ser reembolsada pelos abaixo-assinados em um ano, com juros legais”. Assinado: Padre João Borel, P. João Bosco.

Na parte inferior da mesma página e na mesma data, o P. José Cafasso escreve: “O abaixo-assinado agradece sinceramente ao Ilustríssimo Sr. Cav. Cotta pelo acima exposto e, ao mesmo tempo, se torna fiador do mesmo pela soma mencionada”. Na parte inferior da página, Cotta assina que recebeu 2.000 liras em 10 de abril de 1849, outras 500 liras em 21 de julho de 1849 e o saldo em 4 de janeiro de 1851.




Tornar-se um sinal de esperança em Essuatíni – Lesoto – África do Sul após 130 anos

No coração da África Austral, entre as belezas naturais e os desafios sociais de Essuatíni, Lesoto e África do Sul, os Salesianos celebram 130 anos de presença missionária. Neste tempo de Jubileu, de Capítulo Geral e de aniversários históricos, a Inspetoria África Meridional compartilha seus sinais de esperança: a fidelidade ao carisma de Dom Bosco, o compromisso educativo e pastoral entre os jovens e a força de uma comunidade internacional que testemunha fraternidade e resiliência. Apesar das dificuldades, o entusiasmo dos jovens, a riqueza das culturas locais e a espiritualidade do Ubuntu continuam a indicar caminhos de futuro e comunhão.

Saudações fraternas dos Salesianos da menor Visitadoria e da mais antiga presença na Região África-Madagascar (desde 1896, quando os primeiros 5 coirmãos foram enviados pelo P. Rua). Este ano agradecemos aos 130 SDB que trabalharam em nossos 3 países e que agora intercedem por nós do céu. “Pequeno é belo”!

No território da AFM vivem 65 milhões de pessoas que se comunicam em 12 línguas oficiais, entre tantas maravilhas da natureza e grandes recursos do subsolo. Estamos entre os poucos países da África subsaariana onde os católicos são uma pequena minoria em relação às outras Igrejas cristãs, com apenas 5 milhões de fiéis.

Quais são os sinais de esperança que nossos jovens e a sociedade estão buscando?
Em primeiro lugar, estamos tentando superar os famigerados recordes mundiais da crescente disparidade entre ricos e pobres (100.000 milionários contra 15 milhões de jovens desempregados), da falta de segurança e do aumento da violência no cotidiano, do colapso do sistema educacional, que produziu uma nova geração de milhões de analfabetos, lidando com várias dependências (álcool, drogas…). Além disso, 30 anos após o fim do regime do apartheid em 1994, a sociedade e a Igreja ainda estão divididas entre as várias comunidades em termos de economia, oportunidades e muitas feridas ainda não cicatrizadas. De fato, a comunidade do “País do Arco-Íris” está lutando com muitas “lacunas” que só podem ser “preenchidas” com os valores do Evangelho.

Quais são os sinais de esperança que a Igreja Católica na África do Sul está buscando?
Participando do encontro trienal “Joint Witness” [Testemunha Conjunta] dos superiores religiosos e bispos em 2024, percebemos muitos sinais de declínio: menos fiéis, falta de vocações sacerdotais e religiosas, envelhecimento e diminuição do número de religiosos, algumas dioceses em falência, perda contínua/diminuição de instituições católicas (assistência médica, educação, obras sociais ou mídia) devido à forte queda no número de religiosos e leigos comprometidos. A Conferência Episcopal Católica (SACBC – que inclui Botswana, Essuatíni e África do Sul) indica como prioridade o atendimento aos jovens dependentes de álcool e outras substâncias.

Quais são os sinais de esperança que os salesianos da África Meridional estão buscando?
Rezamos todos os dias por novas vocações salesianas, para poder acolher novos missionários. De fato, terminou a época da Inspetoria Anglo-Irlandesa (até 1988) e o Projeto África não incluía a ponta sul do continente. Após 70 anos em Essuatíni (ex-Suazilândia) e 45 anos no Lesoto, temos apenas 4 vocações locais de cada Reino. Hoje temos apenas 5 jovens coirmãos e 4 noviços em formação inicial. No entanto, a menor Visitadoria da África-Madagascar, através de suas 7 comunidades locais, é responsável pela educação e cuidado pastoral em 6 grandes paróquias, 18 escolas primárias e secundárias, 3 centros de formação profissional (TVET) e vários programas de assistência social. Nossa comunidade inspetorial, com 18 nacionalidades diferentes entre os 35 SDB que vivem nas 7 comunidades, é um grande dom e um desafio a ser acolhido.

Como comunidade católica minoritária e frágil da África Austral
Acreditamos que o único caminho para o futuro é construir mais pontes e comunhão entre os religiosos e as dioceses: quanto mais fracos somos, mais nos esforçamos para trabalhar juntos. Como toda a Igreja Católica busca focar nos jovens, Dom Bosco foi escolhido pelos bispos como Padroeiro da Pastoral Juvenil e sua Novena é celebrada com fervor na maioria das dioceses e paróquias no início do ano pastoral.

Como Salesianos e Família Salesiana, nos encorajamos constantemente uns aos outros: “work in progress” (um trabalho constante)
Nos últimos dois anos, após o convite do Reitor-Mor, temos buscado relançar nosso carisma salesiano, com a sabedoria de uma visão e direção comum (a partir da assembleia anual inspetorial), com uma série de pequenos e simples passos diários na direção certa e com a sabedoria da conversão pessoal e comunitária.

Somos gratos pelo encorajamento do P. Pascual Chávez para nosso recente Capítulo Inspetorial de 2024: «Vocês sabem bem que é mais difícil, mas não impossível, “refundar” do que fundar [o carisma], porque existem hábitos, atitudes ou comportamentos que não correspondem ao espírito do nosso Santo Fundador, Dom Bosco, e ao seu Projeto de Vida, e que têm “direito de cidadania” [na Inspetoria]. Há realmente necessidade de uma verdadeira conversão de cada coirmão a Deus, tendo o Evangelho como suprema regra de vida, e de toda a Inspetoria a Dom Bosco, assumindo as Constituições como verdadeiro projeto de vida».

Foi aprovado o conselho do P. Pascual e o compromisso: “Tornar-se mais apaixonados por Jesus e dedicados aos jovens”, investindo na conversão pessoal (criando um espaço sagrado em nossa vida, para deixar que Jesus a transforme), na conversão comunitária (investindo na formação permanente sistemática mensal segundo um tema) e na conversão inspetorial (promovendo a mentalidade inspetorial através do “One Heart One Soul” [Um só coração e uma só alma] – fruto da nossa assembleia inspetorial) e com encontros mensais online dos diretores.

Na foto de lembrança da nossa Visitadoria do Beato Miguel Rua, ao lado dos rostos de todos os 46 coirmãos e 4 noviços (35 vivem em nossas 7 comunidades, 7 estão em formação no exterior e 5 SDB aguardam visto; um está nas catacumbas de São Calisto e um missionário faz quimioterapia na Polônia). Também somos abençoados por um número crescente de coirmãos missionários enviados pelo Reitor-Mor ou por um período específico por outras Inspetorias africanas para nos ajudar (AFC, ACC, ANN, ATE, MDG e ZMB). Somos muito gratos a cada um desses jovens coirmãos. Acreditamos que, com a ajuda deles, nossa esperança de relançamento carismático está se tornando tangível. Nossa Visitadoria – a menor da África-Madagascar, após quase 40 anos da fundação, ainda não tem uma verdadeira casa inspetorial. A construção começou, com a ajuda do Reitor-Mor, apenas no ano passado. Também aqui dizemos: “trabalhos em andamento”…

Queremos compartilhar também nossos humildes sinais de esperança com todas as outras 92 Inspetorias neste precioso período do Capítulo Geral. A AFM tem uma experiência única de 31 anos de voluntários missionários locais (envolvidos na Pastoral Juvenil do Centro Juvenil Bosco de Joanesburgo desde 1994), o programa “Love Matters” [O amor é o que importa] para um crescimento sexual saudável dos adolescentes desde 2001. Nossos voluntários, de fato, envolvidos por um ano inteiro na vida da nossa comunidade, são os membros mais preciosos da nossa Missão e dos novos grupos da Família Salesiana que estão crescendo lentamente (VDB, Salesianos Cooperadores e Ex-alunos de Dom Bosco).

Nossa casa-mãe na Cidade do Cabo celebrará já no próximo ano seu centésimo trigésimo (130º) aniversário e, graças ao centésimo quinquagésimo (150º) aniversário das Missões Salesianas, realizamos, com a ajuda da Inspetoria da China, uma especial “Sala da Memória de São Luís Versiglia”, onde nosso Protomártir passou um dia durante seu retorno da Itália para a China-Macau em maio de 1917.

Dom Bosco ‘Ubuntu’ – caminho sinodal
“Estamos aqui graças a vocês!” – Ubuntu é uma das contribuições das culturas da África Meridional para a comunidade global. A palavra na língua Nguni significa “Eu sou porque vocês são” (“I’m because you are!”. Outras possíveis traduções: “Eu existo porque vocês existem”). No ano passado iniciamos o projeto “Eco Ubuntu” (projeto de conscientização ambiental com duração de 3 anos) que envolve cerca de 15.000 jovens das nossas 7 comunidades em Essuatíni, Lesoto e África do Sul. Além da linda celebração e da partilha do Sínodo dos Jovens 2024, nossos 300 jovens [que participaram] guardam principalmente o Ubuntu em suas memórias. O entusiasmo deles é uma fonte de inspiração. A AFM precisa de vocês: Estamos aqui graças a vocês!

Marco Fulgaro




A pastora, as ovelhas e os cordeiros (1867)

No trecho a seguir, Dom Bosco, fundador do Oratório de Valdocco, conta aos seus jovens um sonho que teve entre 29 e 30 de maio de 1867 e narrou na noite do Domingo da Santíssima Trindade. Numa planície sem fim, rebanhos e cordeiros tornam-se alegoria do mundo e dos jovens: prados exuberantes ou desertos áridos figuram a graça e o pecado; chifres e feridas denunciam escândalo e desonra; o número “3” prenuncia três fomes – espiritual, moral, material – que ameaçam quem se afasta de Deus. Do relato brota o apelo urgente do santo: guardar a inocência, voltar à graça com a penitência, para que cada jovem possa revestir-se das flores da pureza e participar da alegria prometida pelo bom Pastor.

No domingo da Santíssima Trindade, 16 de junho, em que Dom Bosco há vinte e seis anos atrás tinha celebrado sua primeira missa, os jovens estavam na expectativa do sonho, cuja narração havia sido anunciada no dia 13. Seu ardente desejo era o bem espiritual da grei, e sua norma, as admoestações e as promessas do livro dos Provérbios, 27, 23-25: Diligentes agnosce vultum pecoris tui, tuosque greges considera: non enim habebis iugiter potestatem: sed corona tribuetur in generationem et generationem. Aperta sunt prata, et apparuerunt herbae virentes, et collecta sunt foena de montibus (Com diligência reconhece o aspecto das tuas ovelhas e dá atenção aos teus rebanhos, pois nem sempre poderás fazê-lo e a coroa não passa de geração a geração! Roçaram-se os prados, apareceu a erva verde e foi recolhido o feno dos montes)… Nas suas orações pedia para conhecer bem as ovelhas, para ter a graça de vigiar com atenção, e garantir-lhes a guarda também após sua morte, vê-las providas de fácil e conveniente alimento espiritual e material. Então, depois das orações da noite, Dom Bosco falou assim:

Numa das últimas noites do mês de Maria, estando na cama e não conseguindo dormir, pensando nos meus queridos jovens, dizia para mim mesmo:
– Que bom se pudesse sonhar algo que fosse para o bem deles! Fiquei algum tempo refletindo e resolvi:
– Sim, agora eu quero sonhar em favor de meus jovens.
E eis que adormeci. Mal peguei no sono, me vi numa imensa planície cheia de infinita quantidade de grandes ovelhas, as quais, divididas em rebanhos, pastavam em prados extensos a perder de vista. Quis me aproximar delas e pus-me a procurar o pastor, cheio de espanto em imaginar que pudesse existir alguém no mundo dono de tantas ovelhas. Procurei por pouco tempo e me vi diante de um pastor apoiado em seu cajado.
Apressei-me a interrogá-lo, perguntando-lhe:
– A quem pertence este rebanho tão numeroso?
O pastor não respondeu. Repeti a pergunta; então me falou:
– Que interesse tem o senhor em saber?
– E por que – acrescentei – me responde desta maneira?
– Está bem, este rebanho é de seu dono.
– De seu dono? Isso eu já sabia – falei para mim mesmo. Porém continuei em voz alta:
– Quem é esse dono?
– Não se incomode – respondeu-me o pastor – sabê-lo-á.
Então, andando com ele por aquele vale, pus-me a examinar o rebanho, por todos os lugares por onde vagava. Em certos locais, o vale estava coberto por rica vegetação, com árvores que estendiam grandes copas com agradáveis sombras e gramados novíssimos nos quais belas e vigorosas ovelhas pastavam. Em outras partes a planície era estéril, arenosa, cheia de pedras com espinheiros sem folhas, gramíneas amareladas, não existindo sequer um fio de capim verde. Apesar disso, também aqui outras ovelhas pastavam, mas com miserável aparência.
Eu pedia que meu guia me explicasse várias coisas a respeito de seu rebanho. Sem nada me responder às minhas perguntas, me disse:
– Você não é destinado para elas. Não pense nestas. Vou conduzi-lo ao rebanho do qual você deve cuidar.
– Mas você, quem é?
– Sou o dono. Venha comigo para observar lá, daquele lado.
Conduziu-me a outro lugar da planície onde havia milhares e milhares somente de cordeirinhos. Eram tão numerosos que não dava para contá-los. Eram tão magros que mal e mal podiam andar. O campo estava seco, árido e arenoso; não se via um fiapo de capim verde, um regato. Somente algum raminho ressequido e moitas secas. Toda pastagem havia sido destruída pelos próprios cordeirinhos.
Notava-se à primeira vista que esses coitados cordeirinhos, cobertos de feridas, tinham sofrido muito, continuavam sofrendo. Coisa estranha! Cada um tinha dois chifres compridos e grossos na testa, como se fossem carneiros velhos. Na ponta dos chifres havia um apêndice em forma de “S”. Maravilhado, fiquei perplexo com este estranho apêndice. Não entendia porque esses cordeirinhos já tinham chifres tão compridos e grossos e tivessem destruído tão rapidamente toda a pastagem.
– Como se explica isto? – Falei ao pastor. – Esses cordeirinhos são tão pequenos e já com chifres assim?
– Olhe – respondeu-me; – observe.
Observando com mais atenção, vi que esses cordeirinhos carregavam enigmaticamente muitos números “3” estampados em todas as partes do corpo: no lombo, na cabeça, no focinho, nas orelhas, no nariz, nas pernas, nos cascos.
– Mas, o que isto significa? – Exclamei. – Não entendo nada.
– Como não entende? – Disse-me o pastor. – Então ouça e compreenderá tudo. Esta enorme planície é o mundo. Os locais revestidos de ervas, a palavra de Deus e sua graça. Os locais estéreis e áridos são onde não se ouve a palavra de Deus, procurando-se somente os prazeres do mundo. As ovelhas são os adultos; os cordeirinhos são os jovens; para estes Deus enviou Dom Bosco. Este ângulo da planície que você vê é o Oratório; os cordeirinhos aí reunidos são os seus meninos. Este lugar árido significa o estado de pecado. Os chifres significam a desonra. A letra “S” quer dizer scandalo (escândalo). Com o mau exemplo se dirigem para a ruína. No meio desses cordeirinhos há alguns com os chifres quebrados; foram escandalosos, e agora pararam de dar escândalo. O número “3” significa que carregam o castigo da culpa. Quer dizer que sofrerão três grandes carências: carência espiritual, moral, material. 1º A carência de auxílios espirituais; pedirão esta ajuda, e não a terão. 2º Carência da palavra de Deus. 3º Carência de pão material. O fato de os cordeirinhos terem comido tudo, quer dizer que nada mais lhes resta senão a desonra. O número “3” são as três ausências. Esse espetáculo mostra também os sofrimentos de muitos jovens no meio do mundo. No Oratório não falta pão material, também para os que seriam indignos.
Enquanto eu ouvia e observava tudo como que esquecido, nova maravilha
aparece. Todos os cordeirinhos mudam de aparência.
Ergueram-se sobre as patas traseiras ficando altos e tomando a forma de outros tantos jovens do Oratório. Aproximei-me para ver se conhecia algum. Todos eram alunos do Oratório. Muitos deles nunca os tinha visto, porém, todos afirmavam serem filhos do nosso Oratório. Entre os que eu não conhecia havia alguns poucos que presentemente estão no Oratório. São os que nunca se apresentam a Dom Bosco, que nunca vão buscar conselho com ele, os que fogem dele. Numa palavra, aqueles que Dom Bosco não conhece ainda! Entretanto, a maioria dos desconhecidos era dos que não foram nem estão ainda no Oratório.
Enquanto, com pena, observava essa multidão, quem me acompanhava tomou-me pela mão e me disse: – Venha comigo e verá outras coisas. – Conduziu-
-me a um canto remoto do vale, circundado por pequenas colinas, cercado por uma sebe de plantas viçosas, onde havia um grande prado verdejante, o mais agradável que se pode imaginar, cheio de toda espécie de ervas aromáticas, disseminado de flores campestres, com viçosas moitas e correntes de águas límpidas. Aqui encontrei outro imenso número de filhos, todos alegres, os quais com flores tinham-se feito ou estavam fazendo linda roupagem.
– Você tem ao menos esses que lhe dão grande satisfação.
– Quem são? – Perguntei.
– São os que estão na graça de Deus.
Ah, posso dizer que nunca vi coisas e pessoas tão bonitas e esplêndidas. Nem podia imaginar tais resplendores. É inútil que eu queira descrevê-los, pois seria impossível falar sem estar vendo. Porém, estava reservado um espetáculo mais surpreendente. Enquanto observava com grande alegria esses jovens, e entre eles via muitos que não conhecia ainda, meu guia acrescentou:
– Venha, venha comigo, e lhe mostrarei algo que lhe fará grande alegria e consolação maior. – Conduziu-me a outro campo completamente tomado das mais raras e perfumadas flores nunca vistas. Seu aspecto era como um jardim principesco. Aqui se via uma quantidade não tão grande de jovens, entretanto de extraordinária formosura e esplendor de maneira a fazer desaparecer os que há pouco eu tinha admirado. Alguns desses já estão aqui no Oratório, outros virão mais tarde.
O pastor me falou:
– Esses são os que conservam o lindo lírio da pureza. Estão ainda vestidos com a estola da inocência.
Olhava extático. Quase todos tinham na cabeça um coroa de flores indescritivelmente lindas. Estas flores eram formadas de outras minúsculas flores de surpreendente delicadeza. As cores eram de encantadora vivacidade e variedade, mais de mil cores numa única flor. Numa só flor se viam mil flores. Uma veste de deslumbrante brancura lhes descia até aos pés, também toda tecida de guirlandas de flores, semelhantes às da coroa. A luz que saía dessas flores revestia toda a pessoa e espelhava nela toda a alegria. As flores se refletiam umas nas outras, aqueles das coroas naquelas das guirlandas, reverberando cada uma os raios emitidos pelas outras. Um raio de uma cor, quebrando-se com raio de outra cor, formava outros novos raios, diferentes, brilhantes. Assim, de cada raio eram reproduzidos outros novos raios, de forma que eu nunca teria podido imaginar que no céu houvesse tantos variados encantos. Isto não é tudo. Os raios e as flores da coroa de uns se refletiam nas flores e nos raios da coroa de todos os outros: igualmente as guirlandas e o esplendor da veste de um refletiam-se nas guirlandas e vestes dos outros. E depois, os esplendores do rosto de um jovem, ricocheteando, se fundiam com os do rosto dos companheiros, de modo que, reverberando sobre todos aqueles rostinhos inocentes e redondos, produziam luz tão forte que ofuscava a visão e impedia de fixar o olhar.
Desta forma, em um só se concentravam as belezas de todos os outros companheiros com inefável harmonia de luz! Era a afortunada glória dos santos. Não há imagem humana para descrever, nem que seja fracamente, como estava belo cada um dos jovens no meio do oceano de esplendores. Entre estes observei alguns em particular, que hoje estão no Oratório. Tenho certeza que se pudessem contemplar ao menos um décimo de sua beleza atual, estariam prontos a sofrer o fogo, a se deixar cortar em pedaços, enfim, a ir ao encontro do mais atroz martírio para não perdê-la.
Assim que pude me recuperar deste espetáculo celeste, voltei-me para o pastor e disse:
– Então, entre tantos, meus jovens, são tão poucos os inocentes? São tão poucos os que nunca perderam a graça de Deus?
O pastor respondeu:
– Como? Não lhe parece bastante este elevado número? De mais, os que tiveram a desgraça de perder o lindo lírio da pureza, e com este a inocência, podem ainda seguir seus companheiros na penitência. O senhor vê lá? Naquele campo se encontram ainda muitas flores. Pois bem, eles podem fazer-se uma coroa e uma veste belíssima e acompanhar ainda os inocentes na glória.
– Sugira-me ainda alguma coisa para eu falar aos meus jovens – disse eu.
– Repita a seus jovens, que se soubessem como são belas a inocência e a pureza aos olhos de Deus, estariam prontos a fazer qualquer sacrifício para conservá-la. Diga-lhes que criem coragem para praticar esta virtude cândida, que supera as outras em beleza e esplendor. Pois os castos são os que crescunt tanquam lilia in conspectu Domini (Crescem como lírios na presença do Senhor).
Então quis me dirigir para o meio daqueles meus caríssimos, tão singularmente coroados, mas tropecei no terreno e, acordando, estava na cama.
Meus filhos, vocês são todos inocentes? Talvez alguns de vocês sejam. A estes dirijo minhas palavras. Não percam, por caridade, esta virtude de valor inestimável! É uma riqueza que tem o mesmo valor do Paraíso, o mesmo valor de Deus! Se vocês tivessem visto como eram belos esses jovens com suas flores. O conjunto desse espetáculo era tal que eu daria qualquer coisa do mundo para usufruir ainda dessa vista; mais, se fosse pintor, consideraria uma grande graça conseguir pintar de alguma maneira o que vi. Se soubessem como é a beleza de um inocente, se sujeitariam a qualquer grande esforço, até à morte, para conservar o tesouro da inocência.
O número dos que tinham voltado à graça, apesar de me terem dado contentamento, contudo eu esperava que fosse mais alto. Fiquei maravilhado ao ver que alguns que aqui na aparência parecem bons jovens, lá tinham os chifres compridos e grossos…

Dom Bosco encerrou com calorosa exortação para aqueles que tinham perdido a inocência, a fim de que se esforçassem com toda a vontade a recuperar a graça por meio da penitência.
Dois dias depois, em 18 de junho, subia à cátedra e explicava um pouco o sonho.

Não haveria necessidade de explicar o sonho, porém repetirei o que já falei. A grande planície é o mundo e também os lugares e a região de onde foram chamados para cá todos os nossos jovens. O lugar onde estavam os cordeirinhos é o Oratório. Os cordeirinhos são todos os jovens que estiveram, presentemente estão e estarão no Oratório. Os três prados nesse lugar, o árido, o verdejante, o florido, significam a situação de pecado, o estado de graça e o estado de inocência. Os chifres dos cordeirinhos são os escândalos dados no passado. Havia os que tinham os chifres quebrados; estes foram escandalosos, agora, porém, pararam de dar escândalo. Os enigmas “3”, estampados em cima de cada cordeirinho, são como aprendi do pastor, três castigos que o Senhor enviará para os jovens: 1 º Carência de auxílios espirituais. 2º Carência moral, isto é, falta de instrução religiosa e da palavra de Deus. 3º Carência material, quer dizer, falta de alimento. Os jovens reluzentes são os que estão na graça de Deus, sobretudo os que ainda conservam a inocência batismal e a bela virtude da pureza. Que glória os aguarda!
Disponhamo-nos, então, caros jovens, corajosamente a praticar a virtude.
Quem não está na graça de Deus coloque-se de boa vontade e, depois, com todas as suas forças e a ajuda de Deus, persevere até a morte. Se nem todos pudermos estar na companhia dos inocentes fazendo coroa ao Cordeiro Imaculado, Jesus, ao menos possamos segui-lo depois deles.
Um me perguntou se ele estava entre os inocentes, e eu lhe disse que não; que tinha os chifres, mas quebrados. Perguntou-me ainda se estava com feridas; respondi-lhe que sim.
– E o que significam essas feridas? – Acrescentou.
Respondi: – Não tenha medo. Estão tratadas, desaparecerão. Essas feridas agora não são mais de desonra, como as cicatrizes não trazem desonra a quem esteve no combate. Este, apesar de tantas feridas, perseguição e esforços do inimigo, soube vencer e conseguir a vitória. São, portanto, cicatrizes de honra!… Mas, tem mais honra quem, lutando no meio dos inimigos, fica sem nenhuma ferida. Sua incolumidade provoca a maravilha em todos.

Ao explicar este sonho, Dom Bosco afirmou que não levará muito tempo até que esses três males se façam sentir: – Peste, fome e falta de meios para trazer-nos o bem.
Acrescentou que não passarão três meses sem que aconteça algo de particular.
Este sonho produziu impressão nos jovens, com os frutos obtidos como tantas outras exposições similares.
(MB IT VIII 839-845 / MB PT VIII 903-909)




Os cordeirinhos e a tempestade de verão (1878)

O relato onírico que se segue, narrado por Dom Bosco na noite de 24 de outubro de 1878, é muito mais do que um simples entretenimento noturno para os jovens do Oratório. Através da delicada imagem dos cordeirinhos surpreendidos por uma violenta tempestade de verão, o santo educador traça uma alegoria vívida das férias escolares: um tempo aparentemente despreocupado, mas carregado de perigos espirituais. O prado convidativo representa o mundo exterior, o granizo simboliza as tentações, enquanto o jardim protegido alude à segurança oferecida pela vida de graça, pelos sacramentos e pela comunidade educativa. Neste sonho, que se torna catequese, Dom Bosco lembra aos seus meninos — e a nós — a urgência de vigiar, recorrer à ajuda divina e apoiar-se mutuamente para voltar íntegros à vida cotidiana.

            Da partida para as férias e do retorno, nenhuma novidade neste ano, se não fosse um sonho em torno dos efeitos que as férias costumam produzir. Dom Bosco narrou-o na noite de 24 de outubro. Assim que fez seu anúncio, viram-se manifestações gerais de júbilo.
            Estou feliz em ver meu exército armado contra diabolum (contra o demônio). Essa expressão, embora latina, também é entendida por Cottino [ajudante no refeitório, que se gabava de ser poeta]. Tantas coisas gostaria de dizer-lhes, sendo a primeira vez que lhes falo depois das férias; mas por enquanto quero contar-lhes um sonho. Sabem que os sonhos são feitos dormindo e que não se deve acreditar neles; mas se não há mal em não acreditar, às vezes não há mal em acreditar e pode até servir como instrução, como, por exemplo, este.
            Eu estava em Lanzo no primeiro turno de exercícios espirituais e dormia quando, como eu disse, tive um sonho. Encontrei-me num lugar onde não sabia qual região fosse, mas era perto de uma cidade onde se estendia um jardim, e próximo a este jardim um vasto prado. Estava na companhia de alguns amigos que me convidaram para entrar no jardim. Entro e vejo muito cordeiros que pulavam, corriam, davam cambalhotas, segundo seu costume. Quando eis que uma porta se abre no gramado e os cordeiros saem para pastar.
            Muitos, no entanto, não se importam em sair, mas param no jardim; e iam aqui e ali cortando um pouco de grama, e assim pastavam, embora não houvesse capim em abundância como fora no prado, aonde chegara o maior número. – Quero ver o que esses cordeirinhos fazem lá fora, – eu disse. Fomos ao prado e vimo-los pastando em paz. E eis que o céu se escurece rapidamente, raios e trovões seguem e uma tempestade se aproxima.
            – O que será desses cordeirinhos, se pegam a tempestade? – eu ia falando. Vamos nos retirar em lugar seguro. – E comecei a chamá-los. Então eu de um lado e os meus companheiros espalhados em lugares diferentes, tentamos empurrá-los para a porta do jardim. Mas eles não queriam saber de entrar; corre aqui, foge de lá, eh, sim! Os cordeirinhos tinham pernas melhores que as nossas. Enquanto isso, gotas grossas começaram a cair, então veio a chuva e eu não conseguia reunir aquele rebanho. Uma ou duas ovelhinhas entraram no jardim, mas todas as outras, e estavam em grande quantidade, permaneceram no prado. – Bem, eu disse, se elas não querem vir, pior para elas! No entanto, nós nos retiramos. – E fomos para o jardim.
            Lá havia uma fonte sobre a qual estava escrito em grandes letras: Fons signatus, fonte selada. Estava coberta e eis que se abre; a água se eleva e se divide em forma de arco-íris, mas parecido a uma abóbada como esse pórtico.
            Enquanto isso, os raios se tornaram mais frequentes, o trovão mais ruidoso e o granizo começou a cair. Nós, com todos os cordeiros que estavam no jardim, nos abrigamos e nos reunimos embaixo daquela abóbada maravilhosa e a água e o granizo não penetravam ali.
            – Mas o que é isso? – eu perguntava aos amigos. O que acontecerá com os pobrezinhos do lado de fora?
            – Verá! – responderam-me. Olhe na testa desses cordeiros; o que vê? – Observei e vi que na testa de cada um desses animais estava escrito o nome de um jovem do Oratório.
            – O que é isso? – perguntei.
            – Verá, verá!
            Enquanto isso, eu não conseguia mais me conter e queria sair para ver o que faziam aqueles pobres cordeiros que tinham ficado de fora. – Vou recolher os que morreram e enviá-los para o Oratório, pensava eu. – Saindo fora daquele arco, eu também peguei a chuva; e vi aquelas pobres criaturinhas caídas no chão que, enquanto se moviam, tentavam se levantar e ir em direção ao jardim; mas não podiam andar. Eu abri a porta, levantei minha voz; mas seus esforços foram inúteis. A chuva e o granizo os machucavam tanto e continuavam a maltratá-los, que dava pena: um ficara ferido na cabeça, outro na mandíbula, outro num olho, ou numa perna, outros em outras partes do corpo.
            Depois de algum tempo a tempestade cessou. – Olhe, me disse aquele que estava ao meu lado; olhe na testa desses cordeiros. – Observei e li em cada fronte o nome de um jovem do Oratório. – Mah! – eu disse; conheço o jovem que tem esse nome e não acho que é um cordeiro.
            Verá, verá, foi-me respondido. – Em seguida, um vaso de ouro com uma tampa de prata foi-me apresentado, e me foi dito: – Toque nas feridas dessas criaturas depois de molhar a mão nesse unguento e imediatamente as feridas sararão.
            Eu me coloco a chamá-las:
             – Brr, brr! – e elas não se mexem. Repito a chamada; nada: tento aproximar-me de uma e ela se afasta. – Não quer? Pior para você, exclamei. Vou para outra. – E vou, mas mesmo essa me escapa. A quantas me aproximava para ungi-las e curá-las, muitas fugiam de mim. Eu as seguia, mas repetia esse jogo inutilmente. Por fim, cheguei a uma que, coitadinha, tinha os olhos fora das órbitas e tão surrada que dava pena. Toquei-a com a mão e ela sarou e pulou para o jardim.
            Então muitas outras ovelhas, tendo visto isto, não mais tiveram repugnância e permitiram ser tocadas, curadas e entraram no jardim. Mas muitas e geralmente as mais feridas ficaram de fora, nem foi possível abordá-las.
            – Se não querem curar-se, pior para elas! Mas não sei como posso levá-las de volta para o jardim.
            – Deixe isso, disse-me um dos amigos que estavam comigo; elas virão, elas virão.
            – Vamos ver! – eu disse, e recoloquei o vaso de ouro lá onde estava antes e voltei ao jardim. Este tinha-se mudado e li sobre a entrada: Oratório. Assim que entrei, eis que aqueles cordeiros que não queriam vir, se aproximam, entram furtivamente e correm para se esconder aqui e ali; e nem mesmo então consegui abordar algum. Havia também vários que, não tendo recebido de bom grado o unguento, esse convertera-se em veneno e, em vez de curá-los, exacerbava suas feridas.
            – Olhe! Vê aquele estandarte? – disse-me um amigo.
            – Virei e vi uma grande bandeira abanar, e podia-se ler nela uma palavra em grandes letras: Férias. – Sim, estou vendo, respondi.
            – Eis o efeito das férias, explicou quem estava me acompanhando, estando eu fora de mim pela dor daquele espetáculo. Os meus jovens deixam o Oratório para ir de férias, com boa vontade para alimentar-se da palavra de Deus e para se manterem bons: mas depois vem a tempestade, que são as tentações; então a chuva, que são os assaltos do diabo; enfim, o granizo cai e é quando os coitados caem em culpa. Alguns ainda se recuperam com a confissão, mas outros não usam bem este sacramento, ou não o frequentam. Tenha isso em mente e nunca se canse de dizer aos seus jovens que as férias são uma grande tempestade para suas almas.
            Observava eu esses cordeiros e via em alguns feridas mortais; e estava tentando encontrar uma maneira de curá-los, quando P. Scappini, que fizera barulho, levantando-se no quarto ao lado, me acordou.
            Este é o sonho, e embora seja um sonho, tem um significado que não prejudicará aqueles que nele prestarão atenção. Também posso dizer que notei alguns nomes entre os muitos cordeiros do sonho e, comparando-os com os jovens, vi que estes se comportavam exatamente como aconteceu no sonho. Seja qual for o caso, devemos nesta novena dos Santos corresponder à bondade de Deus que quer usar de misericórdia e com uma boa confissão purgar as feridas de nossa consciência. Devemos, então, todos concordar em lutar conta o demônio e com a ajuda de Deus sairemos vitoriosos desta batalha e iremos receber o prêmio da vitória no Paraíso.
            Este sonho deve ter tido uma grande influência no início do novo ano escolar; de fato, na novena da Imaculada, as coisas estavam progredindo tão bem, que Dom Bosco expressou sua satisfação dizendo: – Os jovens estão agora no ponto em que, nos últimos anos, mal chegavam em fevereiro. – Na festa da Imaculada Conceição esses viram renovar-se a bela função de despedida da quarta expedição de missionários.
(MB XIII 761-764 / MB PT XIII, 661-665)




Visitar Roma com Dom Bosco. Crônica de sua primeira viagem a Roma

A primeira vez que Dom Bosco esteve em Roma foi entre 18 de fevereiro e 16 de abril de 1858, acompanhado pelo seminarista de vinte e um anos, Miguel Rua. Quatro anos antes, a Igreja havia celebrado um Jubileu extraordinário de seis meses, convocado em ocasião da proclamação do dogma da Imaculada Conceição (8 de dezembro de 1854). Dom Bosco aproveitou a oportunidade dessa grande festa espiritual para publicar o volume “O Jubileu e Práticas devotas para a visita das igrejas”.
Durante aquela que seria sua primeira de outras vinte visitas à Cidade Eterna, Dom Bosco se comportou como um verdadeiro peregrino jubilar, dedicando-se fervorosamente às visitas e devoções previstas, inclusive participando dos solenes ritos pascais oficiados pelo Papa. Foi uma experiência intensa, que ele não guardou para si mesmo, mas a compartilhou com seus jovens com seus característicos entusiasmo e a paixão educativa.
Ao descrever minuciosamente a viagem, as etapas e os lugares sagrados, Dom Bosco tinha um claro objetivo apostólico e educativo: fazer reviver em quem o ouvia ou o lia a mesma profunda experiência de fé, transmitindo-lhes o amor pela Igreja e pela tradição cristã.
Convidamos agora também vocês, leitores, a se unirem espiritualmente a Dom Bosco, repercorrendo na imaginação as ruas da Roma cristã, e se deixando fascinar por seu entusiasmo e seu fervor, com ele renovar a sua fé.

De trem até Gênova
A partida para Roma estava marcada para 18 de fevereiro de 1858. Durante a noite caíra quase um palmo de neve, sobre os dois palmos que já cobriam a terra. Às oito e meia da manhã, enquanto ainda nevava, com a comoção que
experimenta um pai que deixa os seus filhos, despedi-me dos jovens para iniciar a viagem a Roma. Embora tivéssemos certa pressa para chegar a tempo ao trem, ainda nos detivemos um pouco para fazer o testamento: não queria deixar complicações para o Oratório, caso a Providência me quisesse chamar à Eternidade, dando-me em comida aos peixes do Mediterrâneo. […].  Então, correndo, fomos à estação ferroviária e, junto com o P. Mentasti […] partimos com o trem das dez da manhã.
Aqui aconteceu uma coisa desagradável: os vagões estavam quase cheios, então tive que deixar Rua e o P. Mentasti em um vagão e encontrar lugar em outro […].

O menino judeu
Por acaso estava perto de um garotinho de dez anos. Notando seu aspecto simples e seu rosto bondoso, comecei a conversar com ele e […] percebi que ele era judeu. Seu pai, que estava ao seu lado, me assegurou que o filho estava na quarta série, mas a mim parecia que sua escolaridade não era de quem estava nem mesmo na segunda série. No entanto, ele era de inteligência rápida. O pai ficou contente que eu fizesse perguntas ao menino, e nos sugeriu que falássemos sobre a Bíblia. Comecei, então, a questioná-lo sobre a criação do mundo e do ser humano, sobre o Paraíso terrestre, sobre a queda dos progenitores. Ele respondia razoavelmente bem, mas fiquei surpreso quando percebi que não tinha ideia do pecado original e da promessa de um Redentor.
– Não tem na sua Bíblia o que Deus prometeu a Adão quando o expulsou
do paraíso terrestre?
– Não tem, 
lhe respondeu o menino. Diga-me, por favor.
– Sim. Deus disse à serpente: Porque você enganou a mulher, será
maldita entre todos os animais, e Alguém que nascer da mulher esmagará
sua cabeça.
– Quem é este Alguém do qual se fala?
– Este alguém é o Salvador que devia libertar o gênero humano da escravidão do demônio.
– Quando virá o Salvador?
– Ele já veio, e é aquele que nós chamamos… 
Aqui o pai o interrompeu e disse:
– Essas coisas nós não as estudamos, porque não se referem à nossa lei.
– Vocês, porém, fariam bem estudá-las, porque estão contidas nos livros de Moisés e dos Profetas nos quais acreditam.
– Está bem, vamos pensar. Mas, pergunte-lhe alguma coisa de aritmética.
 Vendo que ele não desejava que eu falasse de religião ao seu filho, mudou de assunto e lhe fez várias perguntas sobre coisas indiferentes, de maneira que o pai, seu filho e outros que estavam juntos naquele compartimento se divertiram e riram um pouco. Na estação de Asti, o menino devia descer, e não sabia como separar-se de mim. Tendo lágrimas nos olhos, segurava minha mão e, emocionado, conseguiu apenas me dizer:
– Eu me chamo Sacerdote Leão de Moncalvo. Lembre-se de mim. Indo a Turim, espero fazer-lhe uma visita. O pai, para aliviar a emoção, disse que havia procurado em Turim a “História da Itália” [escrita por mim]. Não tendo encontrado, me pedia para enviar-lhe uma cópia. Prometi enviar a impressa especialmente para a juventude, então desci também para procurar meus companheiros de viagem para ver se havia lugar em seu vagão. Encontrei Rua, que estava com as mandíbulas cansadas de tanto bocejar, pois de Turim a Asti ele havia se entediado muito, não sabendo com quem conversar: seus companheiros de viagem só falavam de danças, teatro e outras coisas de pouco gosto […].

Rumo a Gênova
Chegamos aos Apeninos. Eles se erguiam diante de nós altíssimos e íngremes. Como o trem viajava a grande velocidade, tínhamos a impressão de que iríamos colidir com as rochas quando, de repente, tudo ficou escuro. Havíamos entrado nos túneis. Estes são “furos” que, passando sob as montanhas, economizam várias dezenas de milhas. […]. Sem túneis, seria impossível atravessar as montanhas e, visto que são muitas, existem muitos túneis. Um deles é tão longo quanto a distância entre Turim e Moncalieri; tanto que o comboio ficou no escuro por oito minutos, tempo necessário para percorrer o trecho do túnel.

Ficamos surpresos ao constatar que a neve diminuía à medida que o trem se aproximava da costa de Gênova. Mas qual não foi nossa maravilha quando avistamos os campos sem um fio de branco, as margens verdejantes, os jardins cheios de cores, as plantas de amendoeira floridas e as árvores de pêssego com os botões prestes a se abrir ao sol! Fazendo, então, uma comparação entre Turim e Gênova, dissemos que em Gênova é já primavera e que em Turim ainda é um rigoroso inverno.

Os dois montanheses
Já ia me esquecendo de falar de dois montanheses que subiram em nosso vagão na estação de Busalla. Um deles estava pálido e enfermo e movia-se de dar pena. O outro tinha um ar vivo e, se bem chegasse aos 70 anos, mostrava o vigor de um jovem de vinte e cinco anos. Ele vestia calças curtas e as polainas quase desatadas, de modo que se viam as pernas, os joelhos nus e flagelados pelo frio. Estavam em mangas de camisa com apenas uma malha e um casaco grosso que trazia sobre os ombros. Depois de tê-lo feito falar de várias coisas, eu disse:
– Por que não ajeita sua roupa para defender-se do frio? Ele respondeu:
– Veja, senhor, nós somos montanheses e estamos acostumados com o vento,
a chuva, a neve e o gelo. Quase não percebemos nem o inverno. Nossos meninos caminham também hoje com os pés nus no meio da neve e vão até para divertir-se sem olhar para o frio ou o calor.
 Então entendi que o ser humano vive de hábitos, e o corpo é capaz de suportar, conforme o caso, o frio ou o calor, e aqueles que desejam se proteger de cada pequeno desconforto correm o risco de enfraquecer sua condição em vez de fortalecê-la.

A parada em Gênova
Eis Gênova, eis o mar! Rua se apressa para vê-lo, estica o pescoço: num lado vê um navio, no outro alguns barcos, mais abaixo o farol, que é bem alto. Chegamos à estação e descemos do trem. O cunhado do abade Montebruno nos aguardava com alguns jovens e, assim que saímos do trem, nos acolheram com alegria, e carregando nossas bagagens, nos levaram à obra dos artigianelli (pequenos artesãos, n.d.r.), que é uma casa semelhante ao nosso Oratório. Os cumprimentos foram breves, pois todos estávamos com muita fome: eram três e meia da tarde e eu havia tomado apenas uma xícara de café. À mesa parecia que nada poderia nos saciar, no entanto, depois de comer bastante, estávamos satisfeitos.
Logo depois visitamos a casa: escolas, dormitórios, oficinas: parecia que eu estava vendo o Oratório de dez anos atrás. Os internos eram vinte; outros vinte, embora comessem e trabalhassem aqui, dormiam em outro lugar. Qual é a alimentação deles? No almoço, um bom prato de sopa e… nada mais. No jantar, um pãozinho, que se come em pé, e depois, se vai para a cama!
Ao final, saímos para um passeio pela cidade que, para dizer a verdade, é pouco atraente, embora tenha magníficos palácios e grandes lojas. As ruas são estreitas, tortuosas e íngremes. Mas a coisa mais irritante era um vento incômodo que, soprando quase sem interrupção, tirava o prazer de admirar qualquer coisa, mesmo a mais bela […].

Sendo assim, em Gênova nossas expectativas foram decepcionadas. Como se não bastasse, o vento contrário impediu a atracação do navio no qual deveríamos embarcar, portanto, contra nossa vontade, tivemos que esperar até o dia seguinte. […]. De manhã, celebrei missa na igreja dos Padres Pregadores (Dominicanos) no altar do Beato Sebastião Maggi, um frade que viveu há cerca de trezentos anos. Seu corpo é um prodígio contínuo, pois se conserva inteiro, flexível e com uma cor que você diria que está morto há poucos dias. […]. Depois fomos carimbar, ou seja, assinar o passaporte. O Cônsul Pontifício nos recebeu com muita cortesia. […]. Ele também tentou nos conseguir algum desconto no barco, mas não foi possível.

A Civitavecchia, pelo mar. O embarque
Às seis e meia da tarde, antes de nos dirigirmos ao barco a vapor chamado Aventino, nos despedimos de vários eclesiásticos que vieram dos Artigianelli para nos desejar boa viagem. Também os rapazes, atraídos pelas boas palavras, mas principalmente por alguma coisa a mais no almoço daquele dia, tornaram-se nossos amigos e pareciam estar tristes ao nos ver partir. Vários deles nos acompanharam até o mar e, e saltando com destreza num pequeno barco, quiseram nos escoltar até o barco. O vento estava bastante forte: não acostumados a viajar pelo mar, a cada movimento do barco temíamos virar de cabeça para baixo e afundar, e nossos acompanhantes riam muito. Depois de vinte minutos, finalmente chegamos ao navio.

À primeira vista, parecia um edifício cercado pelas ondas. Subimos a bordo, e levando nossa bagagem para um alojamento bastante espaçoso, nos sentamos para descansar e pensar: cada um de nós experimentava particulares sensações que não sabia como expressar. Rua observava tudo e todos em silêncio. E eis o primeiro contratempo: tendo chegado na hora do almoço, não fomos imediatamente comer; quando pedimos, já tinha acabado tudo. Rua jantou uma maçã, um pãozinho e um copo de vinho Bordô, eu me contentei com um pedaço de pão e um pouco daquele excelente vinho. Vale lembrar que, quando se viaja de navio, as refeições estão incluídas na passagem e, assim, comendo ou não, paga-se da mesma forma.

Depois subimos ao convés para conhecer melhor esse navio “Aventino”. Assim, soubemos que os navios recebem nomes dos lugares mais famosos das regiões para onde estão indo. Um se chama Vaticano, outro Quirinale, outro Aventino (como o nosso), para lembrar as sete famosas colinas de Roma. Este nosso navio partiu de Marselha, passa por Gênova, Livorno, Civitavecchia, depois segue para Nápoles, Messina e Malta. No retorno, repete o mesmo percurso até Marselha. Também é chamado de barco postal porque transporta cartas, pacotes, etc. Independentemente de fazer sol ou chuva, parte sempre.

O enjoo
Nos foi designada um beliche, que é uma espécie de armário com prateleiras onde os passageiros se deitam sobre um colchão em cada prateleira. Às dez, as âncoras foram levantadas e o barco, impulsionado pelo vapor e por um vento favorável, começou a correr em alta velocidade em direção a Livorno. Quando estávamos em alto-mar fiquei enjoado, coisa que me atormentou por dois dias. Esse desconforto causa vômitos frequentes, e quando não se tem mais nada para regurgitar, os espasmos ficam mais violentos, de modo que a pessoa fica tão exausta que recusa comer. A única coisa que pode trazer algum alívio é deitar-se e ficar, quando o vômito permite, com o corpo totalmente estendido.

Livorno
Aquela noite de 20 de fevereiro foi uma noite ruim. Não estávamos em perigo por causa do mar agitado, mas o enjoo me havia prostrado tanto que não conseguia ficar nem deitado, nem em pé. Sai da cama e fui ver se Rua estava vivo ou morto. No entanto, ele não tinha mais do que um pouco de cansaço, nada mais. Ele se levantou imediatamente, colocando-se à minha disposição para aliviar os desconfortos da travessia. Quando Deus quis, chegamos ao porto de Livorno. Por porto entende-se uma enseada do mar protegida da fúria dos ventos por barreiras naturais ou por barreiras construídas pelo ser humano. Aqui os navios estão a salvo de qualquer perigo, aqui descarregam suas mercadorias e carregam outras para outros destinos, aqui se fazem os abastecimentos. Os passageiros que desejam também podem descer à terra para dar uma volta pela cidade, desde que voltem a tempo. […].

Embora eu desejasse descer para visitar a cidade, celebrar a missa e cumprimentar alguns amigos, não pude fazê-lo, na verdade fui forçado a voltar para minha cama e ficar lá quieto e em jejum. Um garçom chamado Charles me olhava com um olhar de compaixão e de vez em quando se aproximava oferecendo seus serviços. Vendo-o tão gentil e cortês, comecei a conversar com ele, e entre outras coisas perguntei se ele não temia ser ridicularizado por ajudar um padre sob o olhar de tantas pessoas.
– Não, ele me disse em francês, veja que ninguém fica maravilhado. Aliás, todos
o admiram com bondade, mostrando desejo de poder de algum modo ajudá-lo. Por outro lado, minha boa mãe recomendou-me muitas vezes de ter grande respeito aos padres e que isso era um meio para obter a bênção do Senhor
. Charles, então, foi chamar um médico: cada navio tem seu médico e os principais remédios para qualquer necessidade. O médico veio e suas maneiras afáveis me animaram um pouco.
– Compreende o francês? Ele me disse. Respondi:
– Compreendo todas as linguagens do mundo, também aquelas não escritas, e até mesmo a linguagem dos surdos-mudos. Eu estava brincando para me despertar da sonolência que me havia tomado. O outro entendeu e começou a rir.
– Peut être, pode ser! Ele dizia enquanto me examinava. No final, me anunciou que ao enjoo havia se juntado a febre e que uma bebida de chá me faria bem. Agradeci e perguntei seu nome.
– Meu nome, disse, é Jobert de Marselha, doutor em medicina e cirurgia. Charles, atento às ordens do doutor, em poucos instantes preparou a Dom Bosco uma ótima xícara de chá, daí há pouco uma outra e depois uma outra. E me fez bem, tanto que consegui dormir.
Às cinco [da tarde] o barco levantou âncoras. Quando estávamos em alto-mar novamente, tive ânsias de vômito ainda mais violentas, ficando mal por cerca de quatro horas e depois, pelo esgotamento (não tinha mais nada no estômago) e ajudado pelo balanço do navio, adormeci e descansei em um sono tranquilo até chegar em Civitavecchia.

Pagar, pagar, pagar
O descanso da noite me fez recuperar as forças. Embora exausto pelo longo jejum, levantei-me e preparei as malas. Estávamos prestes a descer quando nos avisaram de uma dívida que não sabíamos ter contraído. O café não estava incluído na alimentação, mas deveria ser pago à parte e nós, que tomamos quatro xícaras, pagamos um suplemento de dois francos, ou seja, cinquenta centavos por xícara. O capitão, após fazer carimbar os passaportes, nos autorizou o desembarque; e aqui começaram as gorjetas: um franco de cada um para os barqueiros, meio franco para a bagagem (que nós tínhamos que carregar), meio franco para a alfândega, meio franco para quem nos convidava a entrar no carro, meio para o carregador que arrumava as malas, dois francos para o visto no passaporte, um franco e meio para o Cônsul Pontifício. Não dava nem tempo de abrir a boca que já tinha que pagar alguma coisa. Com a adição de que, variando as moedas de nome e valor, tínhamos que confiar em quem nos fazia a troca. […]. Na Alfândega respeitaram um pacote endereçado ao Cardeal Antonelli com o selo pontifício, dentro do qual colocamos as coisas mais importantes. […].

Terminadas as operações, fui ao barbeiro para fazer a barba de dez dias. Tudo correu bem, mas na loja não consegui desviar o olhar de dois chifres em uma mesinha. Eram longos cerca de um metro e adornados com anéis brilhantes e fitas. Pensava que eram destinados a algum uso especial, mas me disseram que eram de novilha, que nós chamamos de boi, colocados lá apenas para ornamentação. […].

Rumo a Roma de carruagem
Enquanto isso, o P. Mentasti estava furioso porque não nos via chegar, enquanto a carruagem já nos aguardava. Tivemos de correr para chegar a tempo. Subimos na carruagem e partimos para Roma. A distância a percorrer era de 47 milhas italianas, que correspondem a 36 milhas piemontesas; a estrada era muito bonita.
Como nossos lugares eram na parte alta podíamos contemplar os prados verdejantes e as cercas vivas floridas. Uma curiosidade nos divertiu bastante. Percebemos que tudo ia em grupos de três: os cavalos da nossa carruagem estavam atrelados em grupos de três; encontramos patrulhas de soldados que iam em grupos de três; até mesmo alguns camponeses caminhavam em grupos de três, assim como algumas vacas e alguns burros pastavam em grupos de três. Nós ríamos sobre essas estranhas coincidências. […].

Uma parada para os cavalos
Em Palo o cocheiro concedeu aos viajantes uma hora de liberdade para dar descanso aos cavalos. Nós aproveitamos para correr até uma estalagem próxima e saciar a fome. As ocupações quase nos fizeram esquecer de comer; desde o meio-dia de sexta-feira, eu não havia tomado mais do que uma xícara de café com leite. Nos reunimos em torno dos pãezinhos e comemos, ou melhor, devoramos tudo. Ao ver o garçom muito exausto e pálido, perguntei o que ele tinha.
– Tenho uma febre que me aflige há muitos meses, respondeu. Então eu fiz o bom médico:
– Deixe comigo, vou prescrever uma receita que eliminará a febre para sempre. Tenha apenas fé em Deus e em São Luís. Pegando então um pedaço de papel com o lápis, escrevi minha receita, recomendando-lhe que a levasse a algum farmacêutico. Ele não cabia em si de tanta alegria e, não sabendo o modo melhor de demonstrar sua gratidão, beijava minha mão e repetia o gesto, e queria beijar também a de Rua, que por modéstia não permitiu.

Foi também simpática a encontro com um policial pontifício. Ele achava que me conhecia, e eu acreditava conhecê-lo, assim nos cumprimentamos ambos com grande festa. E quando percebemos o equívoco, a amizade e as expressões de benevolência e respeito continuaram: para agradá-lo, tive que permitir que ele pagasse uma xícara de café, e da minha parte ofereci-lhe uma dose de rum. E como me pediu uma lembrança, dei-lhe a medalha de São Luís Gonzaga. O nome daquele bom policial era Pedrocchi.

Na cidade dos papas
Subimos novamente na carruagem e voando mais rápido com o desejo do que com as patas dos cavalos, parecia a cada momento que já estávamos em Roma. Com a noite caindo, toda vez que avistávamos ao longe um arbusto ou uma planta, Rua imediatamente exclamava:
– Eis a cúpula de São Pedro. Mas tivemos que continuar a viagem até às dez e meia da noite e, já sendo bastante escuro, não conseguíamos mais discernir nenhum detalhe. Sentimos um arrepio, no entanto, ao saber que estávamos entrando na cidade santa. […]. Finalmente chegando no ponto de parada e não tendo nenhum conhecimento do lugar, procuramos um guia que, por doze tostões nos acompanhou até a casa De Maistre, na via del Quirinale 49, nas Quattro Fontane. Já eram onze horas. Fomos recebidos com bondade pelo conde e pela condessa; os outros já dormiam. Após fazermos um lanche, nos despedimos e fomos dormir.

San Carlino
A parte do Quirinale onde estamos é chamada Quattro Fontane porque jorram quatro fontes perenes de quatro cantos de quatro bairros que aqui se unem. Em frente à casa onde nos hospedamos estava a igreja dos carmelitas. Estes, todos espanhóis, pertenciam à ordem conhecida como da Redenção dos Escravos. A igreja foi construída em 1640 e dedicada a São Carlos; mas para distingui-la de outras dedicadas ao mesmo santo, foi chamada de São Carlinhos[S. Carlino]. Fomos à sacristia, mostramos o Celebret (o documento para celebrar, n.d.r.) e assim pudemos celebrar a missa. […]. Passamos o dia quase inteiramente organizando nossos papéis, entregando recados e encomendas, levando cartas. […].

Pantheon
Aproveitando que ainda tínhamos ainda uma hora antes que escurecesse, fomos ao Pantheon, que é um dos monumentos mais antigos e célebres de Roma. Foi mandado construir por Marco Agripa, genro de César Augusto, vinte e cinco anos antes da era comum (do nascimento de Cristo, n.d.r.). Acredita-se que este edifício tenha sido chamado de Pantheon, que significa todos os deuses, porque de fato era dedicado a todas as divindades. A fachada é realmente estupenda. Oito grossas colunas compõem uma elegante moldura. Logo depois, há um pórtico formado por dezesseis colunas feitas de um único bloco de granito, depois o pronaos, ou ante-templo, constituído por quatro pilares canelados, dentro dos quais estão escavados nichos antigamente ocupados pelas estátuas de Augusto e Agripa.
No interior, apresenta uma alta cúpula aberta no meio, pela qual penetra a luz, mas também o vento, a chuva e a neve, quando cai por estas bandas. Aqui, os mais preciosos mármores foram usados como piso ou como decoração de tudo ao redor. O diâmetro é de cento e trinta e três pés, correspondendo a dezoito trabucos (cerca de 55 m). Este templo serviu ao culto dos deuses até 608 depois de Cristo, quando o Papa Bonifácio IV, para impedir as desordens que aconteciam durante os sacrifícios, o dedicou ao culto do verdadeiro Deus e a todos os santos.

Esta igreja passou por muitas modificações. Quando Bonifácio IV obteve este lugar do imperador Foca e o dedicou ao culto de Deus e de Nossa Senhora, fez transportar de vários cemitérios vinte e oito carros de relíquias que colocou sob o altar-mor. Desde então, começou a ser chamada de Santa Maria ad Martyres. Gostamos muito de ter visitado o túmulo do grande Rafaello. […]. Agora esta igreja também é chamada de Rotonda, pela forma arredondada de sua construção. À frente dela há uma praça cujo centro é ocupado por uma grande fonte de mármore, encimada por quatro golfinhos que jorram água continuamente.

San Pietro in Vincoli
No dia 23 de fevereiro […] ficamos muito contentes com a visita a S. Pietro in Vincoli, igreja ao sul de Roma, quase no fim da cidade. Foi um dia memorável porque coincidia com uma das raras vezes em que eram exibidas as correntes de São Pedro [catene di san Pietro], cujas chaves são guardadas pelo próprio Santo Padre.
Diz a tradição que foi o próprio Pedro quem ergueu aqui a primeira igreja, dedicando-a ao Salvador. Destruída pelo incêndio de Nero, foi reconstruída por São Leão Magno em 442 e dedicada ao primeiro Papa. Foi chamada de San Pietro in Vincoli porque o Pontífice deixou nela a corrente com a qual o Príncipe dos Apóstolos foi, por ordem de Herodes, acorrentado em Jerusalém. O patriarca Giovenale a havia presenteado à imperatriz Eudóxia, que por sua vez a enviou a Roma para sua filha Eudóxia Júnior, esposa de Valentiniano III. Em Roma também se conservava a corrente à qual São Pedro foi acorrentado no cárcere Mamertino. Quando São Leão quis fazer a comparação desta com a de Jerusalém, de maneira prodigiosa as duas correntes se uniram, de modo que hoje formam uma só, que é conservada em um altar específico ao lado da sacristia. Tivemos a consolação de tocar essas correntes com nossas mãos, beijá-las, colocá-las em nosso pescoço e aproximá-las da fronte. Também olhamos com bastante atenção para tentar ver onde as duas se uniam, mas não conseguimos. Apenas pudemos constatar que a corrente de Roma é menor que a de Jerusalém.

Em San Pedro in Vincoli encontra-se a magnífica sepultura de Júlio II. […]. É uma das obras-primas do célebre Michelangelo Buonarroti, que é considerado um dos maiores artistas do mármore, especialmente pela estátua de Moisés [statua del Mosè], colocada perto da urna. O patriarca é representado com as tábuas da lei dobradas sob o braço direito, em ato de falar ao povo que ele observa com atenção, pois se havia rebelado. A igreja tem três naves, separadas por vinte colunas de mármore pario e duas de granito, bem conservado.

San Luigi dei Francesi
Por volta das nove, fomos a Santa Maria sopra Minerva, onde fomos recebidos em audiência privada pelo Cardeal Gaude por cerca de uma hora e meia. Ele falou conosco em dialeto piemontês, interessando-se por nossos oratórios. […]. Depois do meio-dia fomos visitar o marquês Giovanni Patrizi. […]. Em frente ao seu palácio está a igreja de São Luís dos Franceses [chiesa di S. Luigi dei Francesi], que dá nome à praça e à vizinhança. É uma igreja bem cuidada e enriquecida com muitos mármores preciosos. Sua singularidade consiste nos sepulcros de ilustres personagens franceses que morreram em Roma. De fato, o piso e as paredes estão cobertos de epígrafes e lápides. […].
Santa Maria Maggiore all’Esquilino
Do Quirinale se abre uma via que leva ao Esquilino, assim chamado pelos muitos alces que o adornavam. Na parte mais elevada ergue-se Santa Maria Maggiore [S. Maria Maggiore], cuja origem assim é narrada por todos os que se ocupam da história sagrada. Um certo Giovanni, patrício romano, não tendo filhos, desejava empregar seus bens em alguma obra de piedade. […]. Na noite de 4 de agosto de 352, Nossa Senhora lhe apareceu em sonho e ordenou que lhe erguesse um templo no lugar onde, na manhã seguinte, encontraria neve fresca. A mesma visão teve o papa da época, Libério. No dia seguinte, espalhou-se a notícia de que havia caído abundante neve no monte Esquilino; Libério e Giovanni foram até lá e, constatando o prodígio, se colocaram de acordo para concretizar o que lhes foi ordenado no sonho. O papa fez o traçado do novo templo, que foi construído com os recursos de Giovanni: poucos anos depois, Libério o consagrou […]

Em frente à igreja se estende uma vasta praça, no centro da qual está a antiga coluna de mármore branco, retirada do templo da paz. No ano de 1614 o Papa Paulo V dotou-a de uma base e de um capitel, sobre o qual colocou a estátua de Nossa Senhora com o Menino Jesus [la statua della Madonna col Bambino]. A arquitetura da fachada é majestosa e é sustentada por grossas colunas de mármore que formam um espaçoso vestíbulo. No fundo deste foi colocada a estátua de Filipe IV, rei da Espanha, que fez muitas doações em favor desta igreja e quis ele mesmo ser inscrito entre os canônicos dela. O piso é de mosaico precioso trabalhado com mármores de vários tipos, todos de valor incalculável.

A capela à direita do altar-mor conserva a tumba de São Jerônimo, a manjedoura do Salvador [culla del Salvatore] e o altar do Papa Libério. O altar papal é coberto por preciosos mármores de porfírio e sustentado por quatro anjos de bronze dourado. Abaixo dele se abre a Confissão, que é uma capela dedicada a São Matias. Fomos visitá-la no dia da estação quaresmal, assim tivemos a sorte de encontrar exposto sobre um rico altar a cabeça de São Matias. Observando-a atentamente notamos a pele ainda presa à cabeça e que, também, ainda aparecem alguns cabelos presos ao venerado crânio.

A Virgem e a peste
Na capela à esquerda do altar pode-se observar uma pintura da Virgem atribuída a São Lucas [un dipinto della Vergine attribuito a san Luca], muito venerada pelo povo. A imagem sempre foi muito apreciada pelos papas. São Gregório Magno, na terrível peste de 590, a levou em procissão até o Vaticano. Era 25 de abril. Quando o cortejo chegou perto da Mole Adriana (torre Adriana, n.d.r.), foi visto um anjo que guardava a espada na bainha, indicando assim o término da peste. Em memória deste prodígio, a Mole Adriana foi chamada de Castel Sant’Angelo, e desde então a procissão se repete todo ano no dia de São Marcos Evangelista. Em Santa Maria Maggiore tudo é majestoso e grandioso; mas falar ou escrever sobre isso é insuficiente para descrevê-la com precisão. Quem a vê com seus próprios olhos fica maravilhado com tudo o que vê lá.

Hoje, Quarta-feira de Quaresma, aqui em Roma se jejua e isso significa que são proibidos não apenas os alimentos de carne, mas também qualquer sopa ou prato à base de ovos, manteiga ou leite. Óleo, água e sal são os temperos usados nestas Quartas-feiras. A prática é rigorosamente observada por todas as pessoas, de modo que nos mercados e nas lojas não se encontra carne, ovos ou manteiga naquele dia.

A lenda de São Galgano
À noite, a senhora De Maistre nos contou uma história digna de ser lembrada. Ela disse:
No ano passado veio aqui o Vigário Geral de Siena. Entre outras coisas que ele costumava contar havia uma sobre São Galgano, soldado. Esse santo morreu há séculos, e o seu corpo se conserva intacto. Mas a maravilha é que todo ano lhe cortam os cabelos, que crescem sensivelmente e voltam ao mesmo comprimento no ano seguinte. Um protestante, ouvindo sobre tal prodígio, começou a rir dizendo: – Deixa-me lacrar o caixão, e se os cabelos crescerem, eu reconheço o dedo de Deus no prodígio e me torno católico. A coisa chegou ao bispo, que disse: – Sim, logo! Colocarei os lacres episcopais para a autenticidade da relíquia. Que ele coloque os seus para assegurar-se do fato. Assim foi. Mas o protestante, impaciente para ver se o prodígio acontecia, depois de alguns meses pediu para abrir o caixão do santo. Mas, qual não foi sua surpresa quando viu os cabelos de São Galgano crescidos já em um considerável tamanho com a mesma proporção como se fosse vivo ainda?! Então exclamou: – Agora sou católico! De fato, no ano seguinte, no dia da festa do santo, ele, com sua família abjurou os erros de Calvino e de Lutero, e abraçou a religião católica, que agora professa exemplarmente.

Santa Pudenziana al Viminale
Das Quattro Fontane sobe-se ao Viminale, chamado assim pelos muitos vimes, ou seja, os juncos, que outrora o cobriam. Aos pés desta colina, na casa de Pudente, senador romano, hospedou-se São Pedro quando veio a Roma. O santo apóstolo converteu à fé seu anfitrião e transformou sua casa em igreja. São Pio I, por volta de 160, a pedido das virgens Pudenziana e Prassede, filhas do sobrinho do Senador Pudente, consagrou esta igreja, que […] posteriormente foi dedicada a Santa Pudenziana [dedicata a S. Pudenziana] porque ela ali havia habitado e foi ali que morreu. Muitos papas trabalharam na reestruturação deste lugar, que contém preciosos testemunhos da fé cristã. Merece especial atenção o poço de Santa Pudenziana. Acredita-se que ela tenha sepultado os corpos dos mártires neste poço. No fundo, pode-se notar uma grande quantidade de relíquias: a história diz que contém as relíquias de três mil mártires.

Ao lado do altar-mor há uma capela de forma alongada em cujo altar estão estátuas em mármore em que Jesus entrega as chaves a São Pedro. Acredita-se que o altar seja o mesmo sobre o qual São Pedro celebrou a missa, e sobre o qual, com grande consolação, eu também pude fazê-lo. Conservam-se vários pedaços de esponja, os mesmos que Pudenziana usava para recolher o sangue das chagas dos mártires ou da terra que estava impregnada dele.
Continuando à esquerda chega-se a uma capela onde se conserva o testemunho de um grande milagre. Enquanto celebrava a missa, um sacerdote caiu em dúvida sobre a possibilidade da presença real de Jesus na hóstia santa. Após a consagração, a hóstia lhe escapuliu das suas mãos e, caindo no chão, quicou primeiro em um degrau e depois em outro. Onde tocou pela primeira vez, o mármore ficou quase furado; também no segundo degrau formou-se uma cavidade muito profunda em forma de hóstia. Esses dois degraus de mármore são conservados naquele mesmo lugar, de modo bem seguro.

Santa Prassede
De Santa Pudenziana, subindo em direção ao Esquilino, a pouca distância de Santa Maria Maggiore, encontra-se a igreja de Santa Prassede [chiesa di S. Prassede]. Por volta do ano 162 d.C., sobre o local onde estavam as termas, ou seja, as casas de banho de Novato, São Pio I ergueu uma igreja em honra desta virgem, irmã de Novato, Pudenziana e Teotilo. O local serviu de refúgio para os antigos cristãos em tempos de perseguição. A Santa, que se esforçava para fornecer o que era necessário aos cristãos perseguidos, também se encarregava de recolher os corpos dos mártires, que depois sepultava, vertendo seu sangue no poço que está no meio da igreja. Ela é riquíssima em ornamentos e mármores preciosos, como quase todas as igrejas de Roma.

Há também a capela dos mártires Zenone e Valentino, cujos corpos, trazidos por São Pascoal I no ano 899, repousam sob o altar. Aqui se conserva também uma coluna de jaspe, alta cerca de três palmos, que um Cardeal chamado Colonna fez transportar da Terra Santa no ano 1223. Acredita-se que seja aquela à qual o Salvador foi atado durante a flagelação.

Celio
Do Esquilino, olhando para o oeste, vê-se a colina Celio. Antigamente, era chamada de Querchetulano pelas árvores de carvalho que a cobriam. Mais tarde, foi denominada Celio em homenagem a Cele Vilenna, capitão dos etruscos que vieram em socorro de Roma, e que Tarquínio Prisco acolheu nesta colina. A primeira coisa que se nota é o maior obelisco que se conhece. Ramsés, faraó do Egito, fez erguê-lo em Tebas, dedicando-o ao sol. Constantino, o Grande, mandou transportá-lo pelo Nilo até Alexandria, mas, tendo morrido, coube ao filho, Constâncio, levá-lo a Roma. Para a viagem, usou-se um navio de trezentos remos, e pelo rio Tibre foi conduzido à Urbe e colocado em um lugar chamado Circo Massimo. Aqui caiu, quebrando-se em três partes. O Papa Sisto V mandou restaurá-lo e erguê-lo na praça do Laterano no ano de 1588. O obelisco chega à altura de 153 pés romanos. É todo ornamentado com hieróglifos e coroado por uma alta cruz.

À direita da praça está o batistério de Constantino com a igreja de San Giovanni in Fonte [chiesa di S. Giovanni in Fonte]. Diz-se que foi construída por Constantino em ocasião do batismo que recebeu do pontífice São Silvestre no ano 324. Das duas capelas anexas, uma dedicada a São João Batista e a outra a São João Evangelista, recebeu o nome de igreja de San Giovanni in Fonte. O batistério, que é uma bacia de grande largura revestida de mármores preciosos, está no meio. A capelinha anexa, dedicada a São João Batista, acredita-se que fosse um cômodo de Constantino, transformada em oratório e dedicada ao santo Precursor pelo papa São Hilário.

San Giovanni in Laterano
Saindo do batistério e atravessando a vasta praça, encontra-se a basílica de San Giovanni in Laterano [basilica di S. Giovanni in Laterano]. Esta célebre construção é a primeira e principal igreja do mundo católico. Na fachada está escrito: Ecclesiarum Urbis et Orbis Mater et Caput (Mãe e Cabeça de todas as Igrejas de Roma e do Mundo). É a sede do Sumo Pontífice como bispo de Roma; após sua coroação, ele vem até aqui para, solenemente, tomar posse. Foi chamada também de Basílica Costantiniana, porque foi fundada por Constantino, o Grande. Depois foi chamada de Basílica Lateranense porque erguida onde estava o palácio de um certo Pláucio Laterano, assassinado por Nero; e também Basílica do Salvador, em decorrência de uma aparição do Salvador ocorrida durante a sua construção. Chamam-na ainda de Basílica Áurea pelos preciosos dons com que foi enriquecida, e Basílica de São João porque dedicada aos santos João Batista e Evangelista.

Foi Constantino, o Grande, quem a mandou construir perto de seu palácio, por volta do ano 324. Ampliada depois com novos edifícios, foi cedida ao santo Pontífice. Aqui habitaram os papas até a época de Gregório XI. Quando este trouxe a Santa Sé de Avinhão para Roma, transferiu sua residência para o Vaticano.
No ano de 1308 um terrível incêndio a destruiu, mas Clemente V, que então estava em Avinhão, imediatamente enviou seus agentes com grandes somas de dinheiro, e logo breve foi reconstruída. O pórtico é sustentado por vinte e quatro grossos pilares; ao fundo, está a estátua de Constantino encontrada em suas termas no Quirinale. A grande porta de bronze é de extraordinária altura. Ela foi retirada da igreja de Sant’Adriano in Campo Vaccino e trazida para cá. Constitui um raro exemplo de portas antigas chamadas Quadrifores, ou seja, construídas de modo que pudessem ser abertas em quatro partes, uma de cada vez, sem que nenhuma colocasse em perigo a estabilidade da outra. À direita, há uma porta murada que se abre apenas no ano do jubileu e, por isso, é chamada de Porta Santa.

Seu interior tem cinco naves. O comprimento, a altura, a preciosidade dos pavimentos, das esculturas e das pinturas são coisas que chamam a atenção. Deveria-se escrever grossos volumes para falar dignamente sobre isso. As relíquias mais insignes desta igreja são a cabeça dos dois príncipes dos Apóstolos, Pedro e Paulo. Elas estão sob o altar-mor e ficam dentro de uma outra cabeça de ouro. Há também uma relíquia insigne de São Pancrazio, mártir, e guarda-se uma mesa que se acredita ser a mesma sobre a qual Jesus celebrou a sagrada ceia com seus Apóstolos.

Saindo da igreja pela porta principal e atravessando a praça, encontra-se a Escada Santa [Scala Santa], um edifício que o Papa Sisto V mandou erguer para guardar a escada, que antes estava em pedaços no antigo palácio papal do Laterano. Ela é formada por vinte e oito degraus de mármore branco que eram do pretório de Pilatos, em Jerusalém, que Jesus subiu e desceu várias vezes durante sua paixão. Santa Helena, mãe de Constantino, os enviou a Roma junto com muitas outras coisas santificadas pelo sangue de Jesus Cristo. Esta célebre escadaria é mantida em grande veneração e, por isso, sobe-se de joelhos; e desce-se por uma das quatro escadas laterais. Esses degraus se afundaram pelo grande afluxo de cristãos que os subiram, por isso foram cobertos com tábuas de madeira. O próprio Sisto V fez colocar no alto da escada a célebre capela doméstica dos Papas, que está repleta das mais insignes relíquias, e que, por isso, é chamada de Sancta Sanctorum.

Cidade do Vaticano. A construção
A colina do Vaticano [colle Vaticano] contém o que existe de mais excelente nas artes e de memorável na religião; por isso, faremos um relato um pouco mais preciso. Foi chamada Vaticano, de Vagitanus, uma divindade que acreditavam que acompanhava o choro dos recém-nascidos. De fato, a primeira sílaba Uà (“va”, n.d.r.) da qual é composta a palavra é também o primeiro grito das crianças. A colina ficou conhecida quando Calígula construiu nela um circo, que depois ficou conhecido como circo de Nero. Calígula, para passar da margem esquerda para a direita do Tibre, construiu a ponte do Vaticano, também chamada de Triunfal, que agora, porém, não existe mais. O circo de Nero começava onde hoje está a igreja de Santa Marta e se estendia até as escadas da antiga basílica vaticana. Neste circo foi enterrado o corpo do Príncipe dos Apóstolos [corpo del Principe degli Apostoli] .[…].

Ali também foram enterrados os ossos de outros Papas, incluindo Lino, Cleto, Anacleto, Evaristo e outros mais. A Memória de São Pedro, ou seja, a capela construída sobre o túmulo dele, durou até os tempos de Constantino que, por desejo de São Silvestre, por volta de 319, começou a construção de uma igreja em honra do Apóstolo. Ela foi erguida exatamente em torno daquela capela, utilizando material retirado de edifícios públicos. A construção foi chamada de Basílica Constantiniana, e naqueles tempos era considerada uma das mais célebres da cristandade. No meio daquela igreja, feita em forma de cruz latina, havia o altar dedicado a São Pedro, sob o qual estava sepultado seu corpo, protegido por grades; desde então aquele lugar era chamado de Confissão de São Pedro. Terminada a construção e dotada de ricos adornos, o Papa Silvestre a consagrou em 18 de novembro de 324. […]. Os pontífices que vieram depois a embelezaram e a ampliaram. Por onze séculos foi objeto de devoção e admiração dos cristãos que se dirigiam a Roma.

No século XV, começou a ruir, por isso Nicolau V pensou em renová-la, mas teve apenas o mérito de iniciar os trabalhos, pois com a sua morte se suspendeu tudo. Júlio II retomou a construção, mudando o nome dela de Basílica Constantiniana para São Pedro no Vaticano, e colocou a primeira pedra em 18 de abril de 1506. Os arquitetos foram Bramante, depois Fra Giocondo Domenico e Raffaello Sanzio. E além deles, também trabalharam os mais célebres arquitetos e os mais sublimes gênios da época.

A grande praça
 […] Diante da basílica se abre uma vasta praça cuja extensão supera meio quilômetro. Ela é formada por 284 colunas e 64 pilares que, dispostos em semicírculo de ambos os lados em quatro fileiras, formam três corredores, dos quais o mais amplo, o central, pode permitir a passagem de duas carruagens. Sobre a colunata sobressaem 96 estátuas de santos, em mármore, com cerca de 10 pés de altura. No centro, ergue-se o obelisco egípcio. Ele é formado por um só bloco e é o único que permaneceu inteiro. Mede 126 pés de altura, incluindo a cruz e o pedestal. Não possui hieróglifos. Nuccoreo, rei do Egito, o havia erguido em Heliópolis, de onde foi retirado e trazido a Roma por Calígula no 3º ano de seu império. Foi colocado no circo construído ao pé da colina do Vaticano, como demonstram os dizeres que podem ser lidos. Este circo foi chamado de Nero porque foi muito frequentado por ele; aqui, aquele cruel imperador fez um massacre de cristãos, acusando-os de serem os autores do incêndio de Roma, que ele mesmo havia provocado.

Em 1818 foi construída uma meridiana na praça. Foram desenhados no chão os doze signos do zodíaco. O obelisco servia como ponteiro e com sua sombra indicava as estações do sol. Ao redor, foram escritos os nomes dos ventos na direção em que sopra cada um deles. Dos lados, duas fontes iguais jorram perpetuamente água de um grupo de jatos que se elevam até sessenta pés. A rainha da Escócia, recebida com pompa neste lugar, olhou com espanto para as duas fontes, pensando que haviam sido feitas especialmente para sua recepção. Não, disse um senhor que estava ao seu lado, esses jatos são perenes.

Visita a São Pedro
Caminhando em direção à fachada da basílica, chega-se a uma magnífica escadaria ladeada por duas estátuas, uma de São Pedro e a outra de São Paulo, colocadas ali pelo Papa Pio IX. Subindo as escadas, está-se diante da fachada que tem esta inscrição: Em honra do Príncipe dos Apóstolos, Paulo V, Pontífice Máximo, no ano de 1612, 7º de seu pontificado. Acima do pórtico se estende o grande Balcão das bênçãos. A fachada é majestosa e imponente. O pórtico é todo adornado com mármores, pinturas em mosaico e outros trabalhos elegantes. No fundo do vestíbulo, à direita, pode-se observar a belíssima estátua equestre de Constantino em ato de contemplar a prodigiosa cruz que lhe apareceu no céu antes da batalha final com Massenzio.

Do pórtico entra-se na basílica através de quatro portas, das quais a última à direita só se abre no ano santo. A porta maior é de bronze, muito alta, e são necessárias muitas e fortes mãos para abri-la. O interior apresenta-se em cinco naves além da cruz que termina com a tribuna. A curiosidade e a surpresa nos levaram ao meio da nave maior. Aqui paramos para admirar e refletir, sem pronunciar palavra. Pareceu-nos ver a Jerusalém celeste. O comprimento da basílica é de 837 palmos, sua largura de 607. É o maior templo de toda a cristandade. Depois de São Pedro, o maior é o de São Paulo em Londres. Se à igreja de São Paulo acrescentarmos a do nosso Oratório, forma-se o comprimento exato da de São Pedro.

Depois de estarmos por algum tempo imóveis, procuramos a pia de água benta. Avistamos dois anjos no primeiro pilar da basílica, à primeira vista muito pequenos, que seguravam uma espécie de concha. Ficamos maravilhados que uma igreja tão vasta tivesse uma pia de água benta tão pequena. Mas nossa maravilha se transformou em surpresa quando vimos os anjos se tornavam cada vez maiores à medida que nos aproximávamos deles. A concha tornou-se um recipiente de cerca de seis pés de circunferência, e os anjos ao lado nos mostravam suas mãos com dedos do tamanho de nosso braço. Isso demonstra que as proporções deste maravilhoso edifício são tão bem reguladas que tornam menos perceptível a amplitude, a qual, no entanto, se nota cada vez melhor ao examinar cada detalhe. Ao redor dos pilares da nave maior estão as estátuas dos fundadores das ordens religiosas, esculpidas em mármore.

No último pilar, à direita, está colocada a estátua de São Pedro, em bronze, venerada com grande reverência. Foi feita fundir por São Leão Magno com o bronze da estátua de Júpiter Capitolino. Ela recorda a paz que aquele Pontífice obteve de Átila, que estava enfurecido contra a Itália. O pé direito que se projeta para fora do pedestal está consumido pelos lábios dos fiéis que nunca passam diante dele sem beijá-lo com respeito. Enquanto estávamos admirando a estátua, passou o embaixador austríaco em Roma, que se curvou diante do príncipe dos Apóstolos e beijou seu pé.

Naves e capelas
Passamos agora a dizer alguma coisa sobre as naves menores e as capelas que lá se encontram. Na nave da direita encontramos, primeiro, a capela da Pietà. Além de magníficos mosaicos e das estátuas que a adornam, admira-se sobre o altar a célebre estátua esculpida por Michelangelo Buonarroti, em mármore branco, quando ele tinha apenas vinte e quatro anos de idade. Talvez seja a escultura mais bela do mundo. O mesmo Buonarroti se agradou tanto dela deixou a sua assinatura na faixa sobre o peito de Maria.

À esquerda da capela da Pietà está a capela interna dedicada ao Crucifixo e a São Nicolau. Daqui se entra na chamada Capelinha da Coluna Santa, onde se conserva, protegida por uma grade de ferro, uma das colunas em espiral que estavam antigamente diante do altar da Confissão de São Pedro. Esta é a coluna à qual Jesus Cristo se apoiou quando pregou no templo de Salomão. Admira-se com maravilha que a parte tocada pelos sagrados ombros do Salvador nunca está suja de poeira, e por isso não é necessário que seja limpa como o resto.

Após a capela da Pietà está o monumento fúnebre de Leão XII, feito por Gregório XVI. O Pontífice é retratado enquanto abençoa o povo do Balcão (Loggia, n.d.r.) acima do pórtico; ao redor vê-se as cabeças dos Cardeais que participavam da cerimônia. Em frente a este jazigo está o de Cristina Alessandra, rainha da Suécia, morta em Roma no dia 19 de abril de 1689. Esta, protestante, convencida da pouca consistência de sua religião, fez-se instruir no catolicismo e fez a solene abjuração em Ispruch em 3 de novembro de 1655. Vários baixos-relevos que adornam o túmulo representam o acontecimento.

Depois está a capela de São Sebastião, também essa rica em pinturas e mármores. Saindo à direita, encontra-se o túmulo de Inocêncio XII, dos Pignatelli de Nápoles. Em frente, está a sepultura da famosa condessa Matilde, ilustre benfeitora da Igreja e defensora da autoridade pontifícia. Urbano VIII transferir para cá as cinzas dela, retirando-as do mosteiro de São Bento em Mantova. Ela foi a primeira das ilustres mulheres que mereceram uma sepultura na basílica Vaticana. A condessa é representada em pé; a sepultura é ornada por um baixo-relevo que retrata a absolvição concedida por Gregório VII a Henrique IV, imperador da Alemanha, a pedido de Matilde e de outros personagens, em 25 de janeiro de 1077, na fortaleza de Canossa.

Chega-se assim à capela do Sacramento, rica em mármores e mosaicos. Ao lado do altar, uma escada leva ao palácio pontifício. Este altar é dedicado a São Maurício e companheiros mártires, patronos principais do Piemonte. As duas colunas em espiral de um só bloco que ornamentam o altar são duas das doze que se acredita terem sido trazidas a Roma do antigo templo de Salomão. No chão diante do altar, pode ser visto a sepultura em bronze de Sisto IV, Della Rovere. Ele foi executado por ordem de Júlio II, seu sobrinho, e representa as virtudes e a ciência próprias do falecido. Nele estão contidas as cinzas dos dois papas.

Ao sair da capela, à direita está a sepultura de Gregório XIII, Buoncompagni. O adornam duas estátuas: a Religião e a Fortaleza; ao centro, um grande baixo-relevo representa a reforma do calendário, por isso chamada Gregoriana. Aqui estão retratados uma grande quantidade de personagens ilustres que participaram daquela obra, todos em ato de reverenciar o Pontífice. Em frente, dentro de uma urna de estuque, repousam os ossos de Gregório XIV, da família Sfrondato. Aqui termina a nave menor e se entra na cruz grega segundo o desenho do Buonarroti.

Saindo da nave, à direita encontra-se a Capela Gregoriana. Acima do altar é venerada uma antiga imagem de Nossa Senhora dos tempos de Pascoal II. Abaixo repousa o corpo de São Gregório Nazianzeno, transferido por ordem de Gregório XIII da igreja das monjas de Campo Marzio. Prosseguindo o caminho chega-se ao monumento fúnebre de Bento XIV, Lambertini, erguido pelos cardeais que foram criados por ele. Nos dois lados da sepultura erguem-se duas magníficas estátuas que representam o Desinteresse e a Sabedoria, as duas virtudes mais luminosas deste papa. A estátua do Pontífice, em pé, abençoa o povo com gesto majestoso. Este trabalho é tão bem executado que basta olhar para o Papa para reconhecer a sua grandeza e a altivez de sua alma. Em frente está o altar de São Basílio Magno, e sobre ele um precioso quadro em mosaico do imperador Valente desmaiado na presença do Santo, enquanto o observava celebrar a missa.

Chega-se então à tribuna. O primeiro altar à direita é dedicado a São Venceslau, mártir, rei da Boêmia; o do meio é consagrado aos santos Processo e Martiniano, guardas do cárcere Mamertino, convertidos à fé por São Pedro, quando o Apóstolo estava preso. Desses santos toma nome o complexo; seus corpos repousam sob o altar. Três preciosos baixos-relevos representam São Pedro na prisão, libertado pelo Anjo (o do meio), São Paulo pregando no Areópago (o da direita), o terceiro os santos Paulo e Barnabé, considerados divindades pelos habitantes de Listra.
Encontra-se então a sepultura de Clemente XIII, Rezzonico, escultura de Antonio Canova. É uma obra-prima. O quadro do altar que fica em frente ao monumento retrata São Pedro em perigo de afundar, sustentado pelo Redentor. Mais adiante está o altar de São Miguel, depois o de Santa Petronila, filha de São Pedro. Esta santa é representada em um mosaico que narra a exumação de seu cadáver para mostrá-lo a Flaco, nobre romano, que a havia pedido em casamento. Na parte superior é retratada a alma dela que, através de suas orações conseguiu morrer virgem, e é acolhida por Jesus Cristo. Mais adiante, vê-se o sarcófago de Clemente X, Altieri: o baixo-relevo representa a abertura da porta santa no Jubileu de 1675. O altar é coroado pelo quadro de São Pedro que, às orações de uma multidão de pedintes, ressuscita a viúva Tabita.

Através de dois degraus de pórfiro, que faziam parte do altar-mor da antiga basílica, se sobre ao Altar da Cátedra. Um surpreendente grupo de quatro estátuas de metal sustenta a sede pontifical. As duas da frente representam dois padres latinos, Ambrósio e Agostinho; as duas de trás, os padres gregos, Atanásio e João Crisóstomo. O peso desses grupos totaliza 219.161 libras de metal. A cadeira em bronze reveste, como preciosa relíquia, a de madeira entalhada com vários baixos-relevos de marfim. Esta cadeira é a do senador Pudente que serviu o Apóstolo Pedro e muitos outros papas depois dele.

Acima do altar da Cátedra, como segundo plano está representado, em tela, o Espírito Santo entre vidros coloridos e radiantes, de modo que, a quem o olha, parece ver uma estrela de ouro resplandecente. Abaixo, à esquerda de quem olha, está o magnífico sepulcro de Paulo III, Farnese, monumento muito precioso por suas esculturas. A estátua do Pontífice sentado sobre a urna é de bronze, as outras duas estátuas, de mármore, e representam a Prudência e a Justiça. Em frente, está a sepultura do Papa Urbano VIII, cuja estátua é de bronze. A Justiça e a Caridade estão aos seus lados, esculpidas em mármore branco. Sobre a urna vê-se a imagem da morte em ato de escrever, em um livro, o nome do Pontífice. Aqui interrompemos a visita: estávamos cansados, a visita durou das onze da manhã às cinco da tarde.

Roma. Santa Maria della Vittoria
Do Quirinale, olhando para o sul, vê-se a via de Porta Pia, assim chamada pelo Papa Pio IV, que para embelezá-la executou não poucas obras. Ao longo desta estrada, perto da fonte Acqua Felice, ergue-se à esquerda a igreja de S. Maria della Vittoria, edificada por Paulo V em 1605 e assim chamada por causa de uma imagem milagrosa de Nossa Senhora levada para lá pelo P. Domenico, dos Carmelitas Descalços. A esta imagem, ou melhor, à proteção de Maria, Maximiliano, duque da Baviera, deve a grande vitória obtida em poucos dias contra os protestantes, que com um exército numerosíssimo haviam colocado o reino da Áustria de pernas para o ar. A prodigiosa imagem se conserva sobre o altar maior. Nas suas bordas estão penduradas as bandeiras tiradas dos inimigos: um glorioso monumento à proteção de Maria.

Em memória da libertação de Viena, foi instituída a festa do Nome de Maria, que é celebrada por toda a cristandade no domingo entre a oitava do nascimento de Maria. Aconteceu no dia 12 de setembro de 1683, sob o pontificado de Inocêncio XI. Nesta mesma igreja, celebra-se uma especial solenidade no segundo Domingo de novembro, recordando a famosa vitória obtida pelos cristãos contra os turcos, em Lepanto, no dia 7 de outubro de 1571, sob Pio V. Também algumas bandeiras tiradas dos turcos estão penduradas como troféus nos beirais desta igreja.
Diante de Santa Maria della Vittoria encontra-se a fontana di Termini, chamada fonte de Moisés, porque em um nicho está esculpida a estátua de Moisés que, com a vara na mão, faz jorrar água da pedra. É também chamada de Acqua Felice, em homenagem ao Frei Felice, que é o nome de Sisto V quando estava no convento.

A ilha Tiberina [L’isola Tiberina]À tarde, decidimos ir com o Conde De Maistre visitar a grande obra de São Miguel do outro lado do Tibre. Portanto, tivemos que atravessar o rio na altura de uma ilhota chamada Tiberina ou também Licaonia, em homenagem a um templo dedicado a Júpiter Licão. Esta ilha teve origem assim. Quando Tarquínio foi expulso de Roma, o Tibre estava quase sem água, deixando expostos alguns bancos de areia. Os romanos, movidos por ódio contra este rei, foram aos seus campos, cortaram o trigo e outros cereais que estavam próximos da maturação, e jogaram tudo no Tibre. A palha dos cereais se misturou com aquela areia e, uma vez se misturando com a lama do rio, se consolidou a tal ponto que pôde ser cultivada e habitada. Nesta ilha, os pagãos ergueram um templo em honra de Esculápio; mas, em 973, o corpo de São Bartolomeu foi transferido para o templo, e hoje repousa na urna sob o altar-mor.

Passado o Tibre e continuando em direção a São Miguel, encontra-se à direita a igreja de Santa Cecília [chiesa di S. Cecilia], edificada no local onde era sua casa. Urbano I, por volta da metade do terceiro século, a consagrou, e São Gregório Magno a enriqueceu com muitos objetos preciosos. Ao entrar, à direita, está a capela onde era o banheiro de Santa Cecília, no qual se diz que ela recebeu o golpe mortal. O altar-mor, protegido por uma grade de ferro, guarda o corpo da santa. Acima da urna foi esculpida uma comovente estátua em mármore, que a representa deitada e vestida como foi encontrada na sua sepultura.

Chegando ao Refúgio São Miguel, tivemos uma audiência com o Cardeal Tosti, que nos contou vários episódios que lhe aconteceram na época da república. Ele também foi forçado a viver por um tempo longe do refúgio para não ser vitimado por algum atentado. Entre as várias coisas roubadas deste pio purpurado, naquela triste circunstância, estão três caixas de tabaco muito preciosas, seja pela antiguidade seja pela procedência. Levadas aos membros do triunvirato, Mazzini pensou em ficar com uma para si e presentear as outras duas a seus companheiros. Mas eles não se atreveram a ficar com elas. Mazzini resolveu tudo e graciosamente colocou as três no bolso!

Campidoglio
Ao longo do trajeto de volta, a meio caminho se ergue a colina mais alta de Roma, o Campidoglio, assim chamado de caput Toli, cabeça de Tolo, que foi encontrado enquanto Tarquínio, o Soberbo, fazia aplainar o cume para construir nele uma fortaleza. Subimos uma longa escadaria, cuja extremidade se elevam duas estátuas colossais representando Castor e Pólux. O plano que forma a praça era antigamente chamado inter duos lucos, porque ficava entre os bosques que cobriam os dois picos. Aqui Rômulo havia criado um abrigo para os povos vizinhos que quisessem refugiar-se. O Campidoglio de hoje não tem mais a imponência bélica, mas é uma praça majestosa contornada por palácios que abrigam museus, e onde se tratam os assuntos municipais. Em uma parte desta praça existia o templo de Júpiter Ferétrio, assim chamado pelas armas dos vencidos que os vencedores iam pendurar no altar daquele templo.

No meio da praça se ergue a famosa estátua equestre de Marco Aurélio num gesto de pacificador. Ela é a mais bela entre as mais antigas estátuas de bronze que se conservaram intactas. Uma parte dos grandes edifícios que cercam a praça constitui o palácio senatorial, fundado por Bonifácio IX em 1390 sobre o mesmo terreno onde estava o antigo senado dos romanos. Ao lado encontra-se a fonte Acqua Felice, que é adornada por duas estátuas deitadas do Nilo e do Tibre. Daqui, através de uma pequena escada, chega-se à torre do Campidoglio, erguida em forma de campanário no mesmo lugar onde, antigamente, se montavam os observadores para admirar Roma e controlar os inimigos que tentassem se aproximar da cidade. […].
Na parte mais elevada, em direção ao oriente, havia o templo de Júpiter Capitolino, que era chamado de Júpiter ÓtimoMáximo, e havia sido erguido por Tarquínio, o Soberbo, sobre as fundações preparadas por Tarquínio Prisco, que havia feito voto durante a guerra contra os sabinos. Justamente enquanto se fazia a escavação foi encontrado o caput Toli.

Santa Maria in Aracoeli
Onde era o templo de Júpiter Capitolino agora está a majestosa igreja de Santa Maria in Aracoeli [maestosa chiesa di Santa Maria in Aracoeli], edificada no século VI da era cristã. Por algum tempo foi chamada de Santa Maria in Campidoglio, pelo lugar onde se erguia. Foi então chamada Aracoeli pelo seguinte fato. Tendo um raio atingido o Campidoglio, Otaviano Augusto, temendo alguma desgraça, mandou interrogar o oráculo de Delfos. […]. Por este fato, e por algumas ditas das Sibilas, que diziam respeito ao nascimento do Salvador, Augusto fez erguer um altar intitulado: Ara primogeniti Dei, altar do primogênito de Deus. Daí derivou o nome de Santa Maria in Aracoeli, depois que no local foi erguida uma igreja em honra da Mãe de Deus. O interior tem três naves divididas por 22 colunas de mármore que já foram do templo de Júpiter Ferétrio. O altar-mor é digno de especial observação, porque sobre ele se venera uma imagem de Maria, que se pensa ser de São Lucas. Esta, nos tempos de São Gregório Magno, foi levada processionalmente por Roma para obter a libertação da peste. O fato é representado em uma pintura no pilar ao lado do altar. Na interseção da cruz está a capela de Santa Helena, onde foi erguida a Ara Primogeniti. A mesa do altar é uma grande urna de porfírio, dentro da qual foram depositados os corpos de Santa Helena, mãe de Constantino, e dos santos Abundância e Abundâncio.

Em uma sala próxima à sacristia se conserva uma efígie milagrosa do Menino Jesus. As faixas que o revestem são enriquecidas com pedras preciosas. Ela é exposta em veneração durante as festas de Natal, em um belo presépio que é feito em uma capela da igreja. Junto do Menino estão também as figuras de Augusto e da Sibila, lembrando a tradição que afirma que a Sibila Cumaea previu o nascimento do Salvador e, por isso, Augusto erigiu um altar.

Saindo de Aracoeli e indo em direção à parte ocidental do Campidoglio encontra-se a rocha Tarpeia que ocupava a parte voltada para o Tibre, e assim chamada por causa da Virgem Tarpeia, que foi morta traiçoeiramente na guerra dos sabinos. Os traidores da pátria eram jogados do alto desta rocha. Aqui foram martirizados muitos cristãos que, em ódio à fé, foram jogados para baixo. Ali perto estava a Cúria e a cabana de Rômulo, onde, diz-se, ele aguardou o responso dos abutres. […].

Descendo, um pouco mais abaixo está o templo da Concordia [tempio della Concordia], construído por Camilo no ano 387 de Roma. […]. Perto deste templo, na parte esquerda de quem desce, estava o de Júpiter Tonante, do qual restam três colunas de mármore. Foi erguido por Augusto no penhasco capitolino e dedicado a Júpiter, em agradecimento por ter escapado ao raio que matou o servo que o precedia.

Carcere Mamertino
Na manhã de 2 de março, junto com a família De Maistre, fomos visitar o carcere Mamertino, que está aos pés do Campidoglio, na sua parte ocidental. Esta prisão é assim chamada de Mamerto ou Anco Március, quarto rei de Roma, que a fez construir para espalhar terror na plebe, e assim impedir os furtos e os assassinatos. Sérvio Túlio, sexto rei de Roma, acrescentou sob este outro cárcere, que foi chamado Tulliano. Ele tem dois subterrâneos, que na abóbada tem uma abertura onde mal passava um homem. Através desta se desciam com uma corda os condenados. […].

Aqui brota uma fonte de água que se diz ter sido milagrosamente feita jorrar por São Pedro quando, junto com São Paulo, estava preso ali. O príncipe dos Apóstolos usou desta água para batizar os santos Processo e Martiniano, guardiões da prisão, junto com outros 47 companheiros, todos martirizados. Esta água tem aspectos milagrosos. Seu gosto é natural. Nunca aumenta e nunca diminui de volume, qualquer que seja a quantidade que se retire dela. Dois senhores ingleses, quase para zombar dos católicos, quiseram tentar esvaziar a pequena fonte da água, que se assemelha a um recipiente de pequenas dimensões. Eles se cansaram, assim como seus amigos, mas a água permaneceu sempre no mesmo nível. Contam-se muitas curas milagrosas obtidas pelo seu uso. Ao lado da fonte está colocada uma coluna de pedra à qual foram atados os dois príncipes dos Apóstolos. Ao lado da coluna está localizado um altar pequeno e baixo onde, com grande consolação, celebrei a missa, à qual participaram a família De Maistre e outras pessoas piedosas. Acima do altar, um baixo-relevo representa Paulo pregando e Pedro batizando os guardas. […].

Em um canto do primeiro andar da prisão nota-se na parede a impressão de um rosto humano. Diz-se que São Pedro recebeu um forte tapa de um bandido, de modo que batendo com o rosto na parede deixou impresso seu rosto, que milagrosamente se conservou. Acima desta figura está esculpida esta antiga inscrição: “Nesta pedra Pedro bateu a cabeça, golpeado por um bandido, e o prodígio permanece”. Acima desta prisão foi edificada uma igreja, e sobre esta ainda outra, dedicada a São José. Aqui é a sede da confraria dos carpinteiros. Os membros se reúnem nos dias festivos, assistem às funções sagradas e providenciam o que é necessário para a manutenção da igreja e para a limpeza do cárcere. Antigamente, para chegar à entrada da prisão, descia-se por uma escada da qual no seu final estava a abertura por onde eram precipitados os condenados. Aquelas escadas foram chamadas Gemonie por causa dos gemidos dos condenados. […].

Cidade do Vaticano. Devoções jubilares
O dia 3 de março estava reservado para visitar São Pedro. Partindo às seis e meia de casa, com um frescor que alegrava a vida e tornava céleres nossos passos, tomamos a direção da colina vaticana. Chegando à Ponte Elio ou Ponte Sant’Angelo, sobre a qual se passa atravessando o Tibre, recitamos o Credo. Os Pontífices concedem cinquenta dias de indulgência àqueles que recitam o Símbolo dos Apóstolos enquanto passam sobre esta ponte. É chamada Elio por causa de Elio Adriano, que a construiu. Mas também é chamado de ponte Sant’Angelo da Castel Sant’Angelo, que é o primeiro edifício que se encontra na margem oposta.

Diremos algo sobre este castelo. O imperador Adriano quis erguer uma grande sepultura na margem direita do Tibre. Por sua largura, comprimento e altura, chamaram-no de Mole Adriana. Quando o imperador Teodósio fez retirar as colunas do mausoléu de Adriano para dotar a basílica de São Paulo, esta construção ficou sem a metade superior e sem colunas. No ano 537, as tropas de Belisário atacaram os godos para afastá-los de Roma, e então quase todos os restos daquele mausoléu foram reduzidos a pedaços. No século X foi chamado Castro e Torre de Crescencio por um certo Cescenzo Nomentano, que se apoderou dele e o fortificou. Pouco depois, a história lhe deu o nome de Castel Sant’Angelo, derivando talvez de uma igreja dedicada ao anjo Miguel. […]. Mas a opinião mais provável permanece aquela que narra de uma procissão de São Gregório Magno para obter da Virgem a libertação da peste: naquela ocasião apareceu no alto da Mole um anjo que recolocava a espada na bainha, sinal de que o flagelo estava prestes a cessar. Então, Castel Sant’Angelo foi reduzido a uma fortaleza e é a única de Roma.

Continuando nosso caminho, chegamos à grande praça de São Pedro. Passando diante do obelisco, tiramos o chapéu, porque os Papas concederam cinquenta dias de indulgência a quem faz reverência ou descobre a cabeça ao passar perto daquele obelisco, sobre o qual foi colocada uma cruz que contém um pedaço da Santa Cruz de Jesus.
Eis-nos, então, de volta à Basílica Vaticana. Já havíamos visitado a metade e mais a tribuna, que forma como o coro do altar papal, localizado no meio da interseção da cruz, em frente à cátedra de Pedro. Este coro foi feito por Clemente VIII e foi por ele consagrado no ano de 1594: abriga o altar já edificado por São Silvestre. Sendo o altar papal, nele celebra apenas o Papa, e quando algum outro deseja usá-lo, é necessário um “Breve” apostólico. Nos quatro lados se erguem quatro grandes colunas em espiral que sustentam um baldaquino ornamentado com frisos, todo de bronze. A altura deste baldaquino do piso do chão iguala a dos mais altos prédios de Turim.

A tumba de Pedro: curiosidades de um santo
Diante do altar papal, através de uma escada dupla de mármore, desce-se ao nível da Confissão. Na extremidade das escadas estão colocadas duas colunas de alabastro de Orte, um material bastante raro, transparente como diamante. Cento e doze lâmpadas ardem continuamente ao redor do venerando lugar. No fundo, abre-se um nicho formado no antigo oratório erguido por São Silvestre, onde São Anacleto “ergueu uma memória a São Pedro”. Aqui repousa o corpo do Príncipe dos Apóstolos. Nas paredes laterais abrem-se duas portas munidas de um portão de ferro, de onde se passa para as sagradas grutas. Bem em frente ao nicho, no dia 28 de novembro de 1822, foi colocada a estátua em mármore de Pio VI, que, de joelhos, está em fervorosa oração. Esta é uma das mais belas obras de Antonio Canova. Pio VI costumava, durante o dia e às vezes até à noite, ir até o túmulo de São Pedro para rezar. Em vida, mostrou o vivo desejo de ser sepultado ali e, ao morrer, quis que seu desejo fosse atendido. Mas, após uma escavação de pouca profundidade, foi descoberta uma sepultura sobre a qual estava escrito: Linus episcopus. Imediatamente, tudo foi colocado em ordem, e o Pontífice foi sepultado em outro canto da igreja. No lugar escolhido, em vez do corpo, foi colocada a estátua da qual falamos. Nós vimos e tocamos com as mãos o que há aqui de precioso, mas não pudemos ver o corpo do primeiro papa, porque há séculos o sepulcro não foi mais aberto, por temor de que alguém tentasse quebrar alguma relíquia.

Acima deste túmulo foi erguido um rico altar: aqui tive a consolação de celebrar a santa missa. Este altar, com uma pequena capela anexa, recebe luz de algumas claraboias cobertos com grades de metal. Durante a construção da basílica, ocorreu um fato prodigioso, relatado por uma testemunha ocular. Antes que o teto fosse terminado, caíram chuvas tão impetuosas que as águas inundaram o piso da basílica até um palmo de altura. Apesar de tanta abundância, a água não ousou se aproximar do altar da Confissão, e nem desceu no oratório inferior através das três claraboias mencionadas, porque, chegando perto, parou, permanecendo suspensa, de modo que nem uma gota chegou a molhar aquele santuário. Depois de observar cada objeto, olhar cada canto, as paredes, os tetos, o piso, perguntamos se não havia mais nada para ver.
– Nada mais, nos responderam.
– Mas o túmulo do santo apóstolo, onde está?
– Aqui embaixo. Está situado no mesmo lugar que ocupava quando a antiga basílica estava de pé […].
– Mas gostaríamos de vê-lo.
– Não é possível […].
– Mas o papa disse que poderíamos ver tudo. Se ao estar com ele novamente e ele nos perguntar se vimos tudo, eu ficaria triste por não poder responder afirmativamente.
O monsenhor [que nos acompanhava] mandou buscar algumas chaves e abriu uma espécie de armário. Aqui se abria uma cavidade que descia ao subterrâneo. Estava tudo escuro.
– Está satisfeito? Disse-me o monsenhor.
– Ainda não, gostaria de ver.
– E como quer fazer?
– Mande buscar uma vara e uma tocha. Trouxeram a vara e a tocha, que se apagou imediatamente ao ser descida naquele ar sem oxigênio. E a tocha não chegava até o fundo. Então foi trazida uma outra vara, que tinha na extremidade um gancho de ferro. Com ela se conseguiu tocar a tampa do túmulo de São Pedro. Estava a sete/oito metros de profundidade. Batendo levemente, o som que chegava até nós indicava que o gancho estava tocando ora no ferro, ora no mármore. E isso confirmava o que haviam escrito os antigos historiadores.

Seria necessário um volume para descrever as coisas vistas. O que existia na basílica constantiniana se conserva em lápides laterais, ou nos pisos ou nos tetos dos subterrâneos. Destaco apenas uma coisa, a imagem de Santa Maria della Bocciata, muito antiga, colocada em um altar subterrâneo. O nome deriva do seguinte fato. Um jovem, por desprezo ou, talvez, inadvertidamente, atingiu um olho da figura de Maria com uma bola. Ocorreu um grande prodígio. Sangue brotou da fronte e do olho que, ainda vermelho, se vê sobre as bochechas da imagem. Duas gotas espirraram lateralmente sobre a pedra que é zelosamente protegida atrás de dois portões de ferro.

Altares, capelas, sepulturas
Acima do altar papal e do túmulo de São Pedro se ergue a imensa cúpula que encanta quem a observa. Quatro grandes pilares a sustentam: cada um deles tem cento e cinquenta passos, cerca de vinte e cinco trabucos (70,85 m, n.d.r.), de circuito. Em tudo ao redor daquela alta cúpula há elegantes trabalhos em mosaico executados pelos mais célebres autores. Nos pilares estão esculpidos quatro nichos chamados Galeria das Relíquias, que são a Sagrada Face da Verônica, um pedaço da Santa Cruz, a Lança Sagrada e o crânio de Santo André. Entre estas é célebre a relíquia da Sagrada Face, que se crê ser aquele pano do qual se serviu o Divino Salvador para enxugar o rosto pingando sangue. Ele deixou a sua face impressa nele, que o deu a Santa Verônica, enquanto em lágrimas o acompanhava Calvário. Pessoas dignas de fé contam que esta Sagrada Face, em 1849, suou sangue mais vezes, aliás, mudou de cor, a ponto de variar as primeiras feições. Esses fatos foram escritos, e os cônegos de São Pedro o testemunham.

Partindo do altar papal e prosseguindo em direção à parte meridional encontra-se o sepulcro de Alexandre VIII, dos Ottobuoni. Foi erguido pelo sobrinho, o Cardeal Pietro Ottobuoni. A estátua do Papa sentado no trono é de metal. Duas estátuas em mármore estão nos dois lados, representando a Religião e a Prudência. A urna é coberta pelo baixo-relevo da canonização de Lorenzo Giustiniani, Giovanni da Capistrano, Giovanni de San Facondo, Giovanni di Dio e Pasquale Bajlon, feita por Alexandre VIII em 1690. Ao lado se ergue o altar de São Leão Magno, sobre o qual se admira o surpreendente baixo-relevo do Pontífice que vai ao encontro do feroz Átila. Acima estão figurados Pedro e Paulo, ao lado do Papa Átila, apavorado pela aparição dos dois e em ato de se curvar ao Pontífice. Em uma urna sob o altar repousa o corpo do santo Papa e Doutor da Igreja. À frente está o túmulo de Leão XII, morto em 1829, que tinha tanta veneração por este seu glorioso antecessor, que quis ser sepultado ao lado dele. […]

O altar que se segue é dedicado à Vergine della Colonna, assim chamada porque se venera a imagem de Maria pintada sobre uma coluna da antiga basílica constantiniana. Foi colocada ali em 1607. O altar guarda os corpos de Leão II, III e IV. Continuando o giro pela linha meridional, encontramos à direita a sepultura de Alexandre VII, Ghigi, com quatro estátuas: JustiçaPrudênciaCaridade e Verdade. Como este pontífice tinha sempre presente o pensamento da morte, o escultor estendeu uma colcha em relevo, sob a qual a figura da morte mostra uma ampulheta, ou seja, um relógio de areia, que está prestes a terminar sua carga. O Papa está ajoelhado, rezando de mãos postas. O altar à esquerda é dedicado aos apóstolos Pedro e Paulo. Está representada a queda de Simão, o Mago. Em frente está o altar dos Santos Simão e Judas, que aqui repousam. O altar à direita, por sua vez, é dedicado a São Tomé e guarda o corpo de Bonifácio IV, enquanto o da esquerda conserva os restos de Leão IX. Em frente à porta da sacristia, o altar dos Santos Pedro e André apresenta, em precioso mosaico, a morte de Ananias e Safira.

Chega-se assim à capela Clementina, cujo altar, dedicado a São Gregório Magno, tem no alto um belo mosaico do santo no ato de convencer os incrédulos. Sob o altar se venera o seu corpo. Acima da porta, que conduz até o órgão, está o monumento fúnebre de Pio VII. O Pontífice, sentado sobre uma rica cadeira e vestido com as vestes pontifícias, está abençoando. As estátuas colocadas aos lados representam a Sabedoria e a Fortaleza. Antes de chegar à nave lateral está o altar da Transfiguração, cujo mosaico apresenta a transfiguração do Salvador no Monte Tabor.

A nave menor, do lado esquerdo
Entrando na nave menor, em ambos os lados estão duas sepulturas, à direita a de Leão XI, dos Médici. Um baixo-relevo mostra o Pontífice que absolve Henrique IV, rei da França. […]. Mais abaixo há rosas esculpidas com o lema: Sic floruit, para indicar a caducidade da vida e simbolizar a brevidade do pontificado de Leão XI, que foi de apenas 21 dias.
O sarcófago à esquerda é de Inocêncio XI, Odescalchi. O baixo-relevo sobreposto retrata a libertação de Viena dos turcos, ocorrida sob seu pontificado. Avançando pela nave, chega-se à capela do coro, enriquecida com mosaicos e pinturas. Sob o altar repousa o corpo de São João Crisóstomo. Esta capela tem um subterrâneo onde se conservam as cinzas de Clemente XI. É chamada Capela Sistina por causa de Sisto IV, que erigiu outra no mesmo local da antiga basílica. À direita, acessa-se o lugar do coro e à Capela Giulia, assim chamada por causa de Júlio II, que a construiu. Acima desta porta existe uma urna de estuque que abriga as cinzas de Gregório XVI, morto em 1846. Esta urna está reservada para acolher o cadáver do último pontífice até que lhe seja dada uma sepultura.

O sepulcro de Inocêncio VIII, da família Cibo, está em frente. Duas são as figuras daquele Papa: uma sentada com o ferro da lança na mão, em alusão àquela com a qual foi ferido Jesus, enviada a ele como presente por Bajasetto II, imperador dos turcos; a outra deitada, sob a primeira. […]. De frente à portinha que leva à escada da cúpula está o cenotáfio de Tiago III, rei da Inglaterra, da família Stuart, morto em Roma no dia 1º de janeiro de 1766, e de seus dois filhos Carlos III e Henrique IX, cardeal, duque de York. Os três bustos em baixo-relevo são de Antonio Canova.
A última capela é a do Batistério. A pia batismal é de porfírio e era a tampa da urna do imperador Otão II, que foi aqui transportada quando suas cinzas foram colocadas nas grutas vaticanas […].

Roma. Sant’Andrea al Quirinale
Já que o tempo de visita terminava ao meio-dia e meia e visto que estávamos com fome, combinamos com o senhor Carlo, que nos guiava, de adiar para uma outra ocasião a subida à cúpula e a visita ao Palácio Vaticano. Após o almoço e algumas horas de descanso, demos uma olhada no Quirinale e nas coisas mais importantes próximas à nossa moradia. O Quirinale é uma das sete colinas da antiga Roma, assim chamada pelo povo Quirite, que vivia aqui, e por um templo dedicado a Rômulo, venerado com o nome de Quirino. À nossa esquerda, ao prosseguir em direção à praça Monte Cavallo, está a igreja de Santo André[chiesa di Sant’Andrea], onde hoje está o noviciado dos Jesuítas. Ela conserva, em uma capela dedicada a São Estanislau Kostka, o corpo do santo dentro de uma urna de lápis-lazúli, adornada com mármores preciosos. Ao lado desta igreja está o mosteiro das Dominicanas. Acredita-se que essas duas construções tenham surgido sobre as ruínas do templo de Quirino. À direita da estrada se ergue o majestoso Palácio do Quirinale, iniciado por Paulo III há cerca de 300 anos, e concluído por seus sucessores. Sua bela arquitetura é adornada com esculturas, pinturas e mosaicos de grande valor. O Papa reside nele por uma parte do ano. O Palácio tem um espaçoso jardim de cerca de um milha de perímetro. Entre as outras maravilhas que podem ser admiradas está um órgão que toca alimentado pela força da água que corre aqui.

Diante do Quirinale está a praça de Monte Cavallo, assim chamada por causa de dois cavalos colossais em bronze que representam Castor e Pólux. Pio VI fez erguer um obelisco no meio desta praça. Ele é um trabalho executado por ordem de Smarre e Efre, príncipes do Egito, e transportado a Roma pelo imperador Cláudio. Não tem hieróglifos. Ao sul domina o magnífico Palácio Rospigliosi, erguido onde antigamente estavam as termas de Constantino. Os amantes das belas artes podem aqui visitar muitas obras-primas da pintura e da escultura.

Santa Croce in Gerusalemme
O dia 4 de março estava reservado à basílica de Santa Croce in Gerusalemme [basilica di S. Croce in Gerusalemme]. O tempo estava nublado e, após percorrermos um pouco de caminho, fomos surpreendidos pela chuva. Não tendo guarda-chuva, chegamos molhados como dois ratos; mas a consolação sentida na visita nos compensou tanto pela água quanto pelo desconforto sofrido. Esta é uma das sete basílicas que se visitam para ganhar indulgências. Fundada por Constantino, o Grande, onde se erguia o palácio chamado Sassorio, foi por isso chamada de Basílica Sassoriana, e foi erguida em memória da descoberta da Santa Cruz, feita por Santa Helena, mãe do imperador, em Jerusalém. Aquela princesa fez transportar muita terra do Calvário, retirada do local onde foi encontrada a Cruz de Cristo. O edifício recebeu o nome de Santa Cruz pela parte considerável da santa Madeira que ali se conserva, e foi acrescentado em Jerusalém porque esta santa relíquia, junto com muitas outras, foi transportada daquela cidade. A igreja foi consagrada pelo Papa São Silvestre. Sob o altar-mor repousam os corpos de São Cesário e Santo Anastácio, mártires […].

Em frente ao altar está a capela Gregoriana, privilegiada porque se pode lucrar a indulgência plenária aplicável às almas do purgatório, tanto para aqueles que presidem a missa quanto para aqueles que dela participam. Neste altar, com grande consolação, celebrei também eu. Ao lado da igreja ergue-se o convento dos Cistercienses. O Padre Abade é um certo Marchini, piemontês, que nos tratou com muita cortesia. Entre outras coisas, ele nos fez visitar a biblioteca, rica em pergaminhos antigos e outras obras […].

Um dia de chuva
Já que o dia 5 de março foi chuvoso, passamos quase todo o tempo escrevendo. Há algo singular em Roma, que chove e faz sol ao mesmo tempo, de modo que em certas épocas do ano é preciso estar continuamente munido de guarda-chuva para se proteger ou do sol ou da chuva. Às dez horas deste dia faleceu o P. Lolli, reitor do noviciado dos jesuítas, na igreja de Sant’Andrea a Monte Cavallo, um piemontês que residiu por muito tempo em Turim, onde se tornou célebre pela pregação e pela solicitude no apostolado do confessionário. A rainha da Sardenha, Maria Teresa, o havia escolhido como seu confessor […].

Neste dia, soubemos que as doenças em Roma se multiplicaram e que a mortalidade atual é quatro vezes superior à média. Somente nos meses de janeiro e fevereiro morreram cerca de 6.600 pessoas; um número bastante alto, considerando que a população é de cerca de 130 mil habitantes. Quase de noite saí para fazer a barba. Entrei em uma barbearia e fui atendido bastante bem; mas prometi a mim mesmo de não voltar mais lá visto que foram muitos os empurrões e sacudidas que o barbeiro me deu com suas mãos grandes que ele teria deslocado meus dentes e mandíbulas se não tivessem raízes bem firmes.

O Refúgio de São Miguel
De acordo com o convite que nos foi feito pelo Cardeal Tosti, no dia 6 de março fomos com a família De Maistre visitar o Refúgio de São Miguel. Além do que disse na última vez, posso acrescentar o seguinte. O primeiro gesto de cortesia que nos foi oferecido foi um suntuoso café da manhã, do qual, no entanto, não pudemos participar, pois já o havíamos feito antes de partir, e sendo dia de jejum, não podíamos mais comer até o almoço. Assim, nos limitamos a uma pequena xícara de chocolate, que Sua Eminência nos disse ser compatível com o jejum. Também nos foi oferecida uma bebida de excelente sabor de tangerina, uma espécie de vinho feito com frutas secas e misturadas com água e açúcar. Somente Rua, não estando obrigado ao jejum, comeu algo mais sólido.

Depois, começamos a visita àquele espaçoso internato que acolhe mais de oitocentas pessoas. O Cardeal Tosti nos acompanhou por toda parte. Paramos especialmente para ver o trabalho dos jovens. Aqui aprendem os mesmos ofícios que aprendem conosco: a maioria se ocupa com desenho, a pintura e a escultura; e muitos trabalham em uma tipografia interna. O Santo Padre, para ajudar o Refúgio, concedeu-lhe o privilégio da exclusividade de exclusivamente os livros escolares que são usados nos Estados Pontifícios. Acima do edifício, há um terraço com uma vista magnífica: olhando para o oeste, avista-se o acampamento dos franceses que vieram libertar Roma. […]. Às doze e trinta, quando os meninos já estavam almoçando e o Cardeal já demostrando estar cansado, nos despedimos […].

Santa Maria em Cosmedin e a Boca da Verdade
Como de costume, chovia bastante e, como eu e Rua havíamos apenas um guarda-chuva muito pequeno, nos molhamos muito. Atravessamos o Tibre por uma ponte chamada Ponte Rotto porque, havia se arruinado, e foi substituída por uma ponte de ferro muito semelhante àquela que temos sobre o Pó, em Turim. Antigamente, chamava-se ponte Coclite, porque é a mesma em que Horácio Coclite opôs uma histórica resistência ao exército de Porsenna, até que a ponte foi destruída e ele, então, se jogou no Tibre, atravessando a nado até a outra margem, entre as flechadas dos inimigos maravilhados.

Aqui encontramos uma rua chamada Boca da Verdade [Bocca della Verità], porque no final da mesma havia o lugar onde eram levados aqueles que deviam fazer um juramento. Agora há uma igreja chamada S. Maria in Cosmedin, palavra que significa ornamento, porque foi magnificamente adornada pelo papa Adriano I. Em seu interior conserva-se a cátedra que foi usada por Santo Agostinho quando ensinava Retórica. Aguardamos sob o vestíbulo até que parasse a chuva, que já estava inundando todas as ruas. Enquanto aguardávamos, vimos a praça que também se chama Bocca della Verità.

Os vaqueiros
Havia muitos bois atrelados que pastavam, expostos à chuva, ao barro e ao vento. Os vaqueiros se abrigaram sob o mesmo vestíbulo, sentando-se para almoçar com um apetite invejável. Em vez de sopa ou alguma iguaria, tinham um pedaço de bacalhau cru, do qual cada um tirava um pedaço. Algumas broas de milho e centeio eram o seu pão. Água era a bebida. Ao perceber neles um ar de simplicidade e bondade, me aproximei para conversar com eles.
– Estão com muito apetite?
– Muito, respondeu um deles.
– Basta para vocês essa comida para matar a fome e sustentá-los?
– Sim, basta. E graças a Deus podemos tê-la, já que por sermos pobres
não podemos pretender mais do que isso.
– Por que não levam aqueles bois ao estábulo?
– Porque não temos.
– Deixam sempre eles expostos ao vento, à chuva e ao granizo, dia e noite?
– Sim, sempre.
– Fazem a mesma coisa em seus povoados?
– Sim, fazemos o mesmo, porque temos poucos estábulos. Por isso, faça sol, vento, faça neve, seja dia, seja noite estão sempre ao relento.
– E as vacas e os bezerros pequenos, também eles ficam expostos às intempéries?
– Sim, também. Entre nós temos este costume: os animais de estábulo estão sempre no estábulo, e os que começam a ficar fora, estarão sempre fora.
– Moram muito longe daqui?
– Quarenta milhas.
– Nos dias festivos, podem assistir às funções sagradas?
– Oh! Sem dúvida! Temos a nossa Capela, temos o padre que celebra a missa, faz a pregação e a catequese, e todos, mesmo distantes, fazem questão de participar.
– Alguma vez vão também confessar?
– Oh! Sem dúvida. Há cristãos que talvez não cumpram esses santos deveres? Agora tem o Jubileu e nós todos teremos o cuidado de fazê-lo bem.
Dessa conversa se percebe a boa índole desses camponeses, que em sua simplicidade vivem contentes com sua pobreza e alegres com seu estado, contanto que pudessem cumprir os deveres de bom cristão e desempenhar o que cabe ao humilde trabalho deles.

Santa Maria del Popolo
O domingo, 7 de março, estava destinado à visita de S. Maria del Popolo. Algumas piedosas e nobres pessoas desejavam que fôssemos lá celebrar a missa para poderem comungar. Era uma piedosa devoção. Às nove horas o senhor Foccardi, uma pessoa prestativa e cheia de fé, veio nos buscar com sua carruagem, para nos levar ao local indicado. Esta igreja foi construída no local onde foram sepultados Nero e a família Domícia. A tradição diz que ali apareciam continuamente fantasmas que aterrorizavam os cidadãos, de modo que ninguém queria habitar nas proximidades. O papa Pascoal II, no ano de 1099, fez erguer uma igreja lá, e para afastar a infestação diabólica, a dedicou a Maria Santíssima. No ano de 1227, a antiga igreja ameaçava cair e o povo romano contribuiu generosamente com os custos da reconstrução. Por isso, foi chamada Santa Maria do Povo. Uma igreja grandiosa, rica em mármores e pinturas. No altar-mor venera-se uma imagem milagrosa de Nossa Senhora, trazida por ordem de Gregório IX da capela do Salvador, em Latrão. Perto, está o convento dos padres Agostinianos.

Porta del Popolo, antigamente se chamava Porta Flaminia porque estava no início da via Flaminia […]. Fora desta porta, virando à direita, encontra-se a Villa Borghese, um majestoso edifício digno de ser visitado pelos turistas devido aos muitos objetos de arte que ali são conservados. Porta del Popolo delimita uma grande praça chamada Piazza del Popolo, embelezada por copiosas fontes e obeliscos, que, como todos sabem, são monumentos de uma remota antiguidade, erguidos pelos reis do Egito para tornar imortal a memória de suas ações. O soberbo obelisco que se eleva no meio da praça foi construído em Heliopólis por ordem de Ramsés, rei do Egito, que reinou em 522 a.C. O imperador Augusto o fez transportar para Roma; mas, por infortúnio, ele tombou, quebrando-se, e foi coberto por terra. O papa Sisto V, em 1589, fez desenterrá-lo, erguendo-o na praça, após dotar seu cume de uma alta cruz de metal. Suas quatro faces estão cobertas de hieróglifos, ou seja, de símbolos misteriosos que os egípcios usavam para expressar as coisas sagradas e os mistérios de sua teologia.

No fundo da praça ergue-se a igreja de Santa Maria dei Miracoli [chiesa di S. Maria dei Miracoli], construída por Alexandre VII, e chamada assim devido a uma imagem milagrosa de Nossa Senhora cuja pintura, antes, estava sob um arco nas proximidades do Tibre. À esquerda, há outra igreja, S. Maria di Monte Santo, porque foi edificada sobre outra igreja que pertencia aos carmelitas da província de Monte Santo. Foi inaugurada em 1662. Satisfeita, assim, nossa devoção e curiosidade, subimos novamente na carruagem que nos levou à casa da Princesa Potosca, dos Condes e Príncipes Sobieski, antigos soberanos da Polônia. O café da manhã preparado para nós era suntuoso, mas muito requintado, portanto pouco adequado ao nosso apetite. Nos ajustamos da melhor maneira. No entanto, ficamos muito satisfeitos com a conversa verdadeiramente cristã que aquelas senhoras mantiveram durante o tempo que nos detivemos em sua casa.
Uma coisa chamou nossa atenção. Terminada a refeição, a dona da casa mandou trazer um maço de charutos e começou a fumar. Apesar de uma conversa bastante animada, ela continuou com grande avidez a fumar um charuto após o outro, e isso me deixou desconfortável, sendo obrigado a suportar o cheiro de fumaça que impregnava toda a casa. Isso me provocava náuseas, tornando-se insuportável […].

Cidade do Vaticano. A subida à Cúpula
Reservamos o dia 8 de março para visitar a famosa cúpula de São Pedro. O Cônego Lantieri nos havia providenciado o bilhete necessário para satisfazer essa curiosidade. O horário em que é permitida a subida vai das 7h às 11h30 da manhã. O tempo estava ensolarado e, portanto, propício. Depois de celebrar a eucaristia no altar de São Francisco Xavier da Igreja de Jesus [Chiesa del Gesù], onde estão os jesuítas, chegamos ao Vaticano às 9h, acompanhados do senhor Carlo De Maistre. Entregue o bilhete, uma portinha nos foi aberta e começamos a subir por uma escada bastante confortável, como uma subida inclinada. Ao subir, encontramos várias inscrições que lembram o nome e o ano de todos os Papas que abriram e fecharam os anos jubilares. Perto do patamar do terraço estão escritos os mais célebres personagens, reis ou príncipes, que subiram até a bola da cúpula. Lemos com prazer também o nome de vários de nossos soberanos e da família real.

Demos uma olhada no terraço da basílica. Ele se apresenta como uma vasta praça pavimentada onde se pode jogar bola, bocha e coisas semelhantes. Aqui habitam algumas pessoas a quem é confiada a manutenção da parte superior do templo: carpinteiros, ferreiros, trabalhadores do asfalto. Quase no meio do terraço há uma fonte sempre funcionante, onde Rua foi beber.
Da praça abaixo, observamos as estátuas dos doze apóstolos que adornam o frontispício da basílica. De lá pareciam pequenas, mas de perto percebemos que o único dedo polegar do pé tinha a grossura do corpo de uma pessoa. Daí se pode entender a que altura estávamos. Também visitamos o sino maior, que tem um diâmetro de mais de três metros, o que significa três trabucos de circunferência (cerca de 9 metros, n.d.r.).

Uma coisa muito curiosa foi a vista do jardim vaticano, onde o papa costuma passear a pé. Penso que ele tenha a extensão que vai da Porta Susa ao início da Via Po (lugares de Turim, n.d.r.). Ao sul, se viam vastas campinas. Nosso guia nos disse:
– Todo aquele plano estava coberto de soldados franceses quando vieram libertar nossa cidade dos rebeldes. E nos indicava a basilica di S. SebastianoS. Pietro in Montorio, Villa PanfiliVilla Corsini, todos edifícios que sofreram danos gravíssimos por terem sido campos de batalha.
Uma escadinha em caracol ao lado da cúpula nos levou até a primeira balaustrada. Deste patamar parecia que estávamos voando alto e nos afastando da terra. O guia nos abriu uma portinha que levava a uma balaustrada interna que circundava a cúpula. Eu quis medir, e caminhando como um bom viajante, contei 230 passos antes de completar a volta. Uma curiosidade: em qualquer ponto do parapeito em que você esteja, falando até em voz baixa, com o rosto voltado para a parede, o mínimo som se comunica nitidamente de uma parede à outra. Também notamos que os mosaicos da igreja, que de baixo pareciam muito pequenos, de lá tomavam uma forma gigantesca.
– Coragem, nos exortou o guia, se quisermos ver outras coisas. Assim, pegamos outra escada em caracol e chegamos à segunda balaustrada. Aqui parecia que tínhamos sido elevados em direção ao Paraíso, e quando chegamos ao balaústre interno e vimos o chão da basílica, percebemos a extraordinária altura que havíamos alcançado. As pessoas que trabalhavam ou caminhavam lá embaixo pareciam crianças. O altar papal, que é coberto por um baldaquino de bronze que em altura supera as casas mais altas de Turim, de lá parecia uma simples cadeira de bebê.

O último andar sobre o qual subimos é aquele que estava sobre a ponta da cúpula, de onde se desfruta, talvez, a vista mais majestosa do mundo. O olhar se perde em tudo ao redor, em um horizonte formado pelos limites da visão humana. Dizem que olhando para o leste pode-se ver o mar Adriático, a oeste o Mediterrâneo. Nós, porém, só conseguimos avistar a neblina que o tempo chuvoso dos dias anteriores havia espalhado um pouco por toda parte.

Havia ainda a bola, um globo que da terra parece uma das bolas que usamos para passar um tempo; de lá parecia enorme. Os mais corajosos, passando por uma escadinha perpendicular e caminhando como dentro de um saco, subiram como gatos a uma altura de dois trabucos, ou seja, seis metros. Alguns não tiveram coragem suficiente. Nós, que éramos um pouco mais temerários, conseguimos. Da bola tudo parece maravilhoso. Disseram-me que poderia conter dezesseis pessoas; para mim, parecia que poderiam caber confortavelmente trinta. Alguns buracos, quase pequenas janelas, permitem observar a cidade e as campinas. Mas a grande altura causa uma sensação estranha e faz com que a vista não seja totalmente agradável. Pensávamos que lá em cima fizesse frio. Tudo ao contrário: o sol batendo no bronze da bola a aquecia a tal ponto que parecia que estávamos em pleno verão. Acredito que essa seja uma das razões pelas quais, após o almoço, não é permitido subir até lá: pelo calor insuportável. Aqui, depois de falar sobre várias coisas sobre os jovens do oratório, satisfeitos com nossa empreitada, quase como se tivéssemos trazido uma grande vitória, começamos a descida com passos lentos e graves, para não quebrarmos o pescoço, e sem nenhuma parada voltamos ao térreo.

Para descansar um pouco, fomos ouvir o sermão que havia começado exatamente naquele momento na basílica. O pregador nos agradou. Boa língua, belo gesto, mas o tema não nos interessou muito porque tratava da observância das leis civis. O que, no entanto, não serviu para nutrir o espírito serviu muito bem para dar descanso ao corpo. Restando-nos ainda um pouco de tempo, o empregamos para visitar a sacristia, que é uma verdadeira magnificência digna de São Pedro.
Sendo já onze e meia, estando ainda em jejum e de ter caminhado tanto, estávamos com grande apetite; por isso, fomos fazer um lanche. Rua, não satisfeito, achou melhor ir almoçar; assim eu fiquei sozinho com o senhor Carlo De Maistre, companheiro inseparável daquele dia. Restaurados um pouco, fomos visitar Monsenhor Borromeo, mordomo de Sua Santidade, que nos recebeu muito bem e, depois de falar sobre o Piemonte e Milão, sua terra natal, anotou nossos nomes para nos inserir no catálogo das pessoas que desejam receber a palma do Santo Padre na função do Domingo de Ramos.

Nos famosos museus
Ao lado da varanda deste prelado, em torno do pátio do Palácio Pontifício, estão os Museus Vaticanos [Musei Vaticani]. Entramos e vimos coisas realmente excepcionais. Descrevo apenas algumas. Há uma sala de comprimento extraordinário, enriquecida com mármores e pinturas preciosíssimas. No meio da segunda arcada se destaca uma pia batismal de cerca de um metro e meio, feita de malaquita, um dos mármores mais preciosos do mundo. Foi um presente feito pelo imperador da Rússia ao Sumo Pontífice. Há vários outros objetos semelhantes. No fundo daquela grande sala, à esquerda, se abre uma espécie de longo corredor que abriga o museu cristão. […]. No mesmo se entra na Biblioteca Vaticana, onde se conservam os manuscritos mais célebres da antiguidade […].

Pelas ruas de Roma
Do Vaticano, indo em direção ao centro de Roma, chegamos à praça Scossacavalli, onde trabalham os escritores do célebre periódico La Civiltà Cattolica. Paramos para fazer-lhes uma visita e sentimos um verdadeiro prazer ao observar que os principais apoiadores desta publicação são piemonteses. Sentia já um vivo desejo de voltar para casa, superando toda hesitação, e estávamos quase chegando ao Quirinale, quando o senhor Foccardi nos viu passar em frente à sua loja e nos chamou para dentro. A força de convites e cortesia, ele nos reteve um pouco, e quando pedimos para partir, ele disse:
– Aqui está a carruagem, eu os acompanho até em casa. Mesmo subindo de contragosto na carruagem, no entanto, para agradá-lo, acedi. Mas o Foccardi, desejando se prolongar mais conosco, nos fez dar uma longa volta, tanto que chegamos em casa já tarde da noite.

Aqui me foi entregue uma carta. Abri e li. Notifica-se ao senhor Abade Bosco que Sua Santidade se dignou a admiti-lo à audiência amanhã, dia nove de março, das 11h45 a uma hora. Esta notícia, esperada e muito desejada, me causou uma revolução interior e durante toda a noite não consegui falar de outra coisa senão do Papa e da audiência.

A audiência papal. Santa Maria sopra Minerva
Chegou o dia 9 de março, o grande dia da audiência papal. Antes, porém, eu precisava falar com o Cardeal Gaude; por isso, fui celebrar a missa na igreja de S. Maria sopra Minerva, onde o Cardeal tinha sua residência. Antigamente era um templo que Pompeu, o Grande, havia mandado edificar à deusa Minerva; foi chamada de Santa Maria sopra Minerva porque foi construída precisamente sobre as ruínas deste templo. No ano 750, o Papa Zacarias a doou a um convento de freiras gregas. No ano 1370 passou aos padres pregadores (dominicanos, n.d.r.) que ainda a oficiam. Em frente a esta igreja está uma praça onde admiramos um obelisco egípcio com hieróglifos, cuja base repousa sobre o dorso de um elefante de mármore. Entramos e pudemos admirar um dos edifícios sagrados mais belos de Roma. Sob o altar-mor repousa o corpo de Santa Catarina de Sena. Celebrada a missa e indo com toda pressa ao encontro do Cardeal Gaude, conversei com ele, então partimos em direção ao Quirinale.

O pequeno mentiroso
Pelo caminho encontramos um garoto que, com simpatia, nos pediu esmola, e para nos fazer conhecer sua condição nos disse que seu pai havia morrido, sua mãe tinha cinco filhas e que ele sabia falar italiano, francês e latim. Surpreso, dirigi-lhe um discurso em francês, ao qual ele respondeu com um simples oui, sem entender o que eu dizia, nem articular outras expressões; então o convidei a falar latim, e ele, sem prestar atenção às minhas palavras, começou a recitar de memória as seguintes palavras: ego stabam bene, pater meus mortuus est l’annus passatus et ego sum rimastus poverus. Mater mea etc. Aqui não conseguimos mais conter as risadas. Porém, depois o avisamos para não contar mentiras e lhe presenteamos com um tostão.

A antecâmara
Enquanto isso, a hora da audiência se aproximava. […]. Chegando ao Vaticano, subimos as escadas mecanicamente. Por toda parte havia guardas nobres, vestidos de modo a parecerem príncipes. No andar nobre, abriram-nos a porta que introduzia nas salas pontifícias. Guardas e camareiros, vestidos com grande luxo, nos saudavam com profunda reverência. Entregue o bilhete para a audiência, fomos conduzidos de sala em sala até a antecâmara papal. Como havia várias outras pessoas aguardando, esperamos cerca de uma hora e meia antes de sermos recebidos.

Esse tempo o empregamos para observar as pessoas e o lugar onde estávamos. Os domésticos do Papa estavam vestidos quase como os bispos de nossos países. Um Monsenhor, a quem se dá o título de prelado doméstico, introduzia por turno as pessoas para a audiência à medida que terminava a anterior. Admiramos grandes salas bem tapeçadas, majestosas, mas sem luxo. Um simples tapete de pano verde cobria o chão. As tapeçarias eram de seda vermelha, mas sem ornamentos. As cadeiras eram de madeira dura. Uma cadeira colocada sobre um estrado um tanto elegante indicava que aquela era a sala pontifícia. Vimos tudo isso com prazer, lembrando as mordazes e injustas acusações que alguns fazem contra a pompa e o luxo da corte pontifícia. Enquanto estávamos imersos em vários pensamentos, soou o sino, e o prelado nos fez sinal para avançar e nos apresentar a Pio IX. Nesse momento, eu realmente fiquei confuso e tive que cometer uma espécie de autoviolência para não perder o equilíbrio.

Pio IX
Rua me acompanhou trazendo consigo uma cópia das Leituras Católicas. Entramos, fizemos a genuflexão no início, depois no meio da sala, finalmente, a terceira, aos pés do Papa. Cessou toda apreensão quando avistamos no Pontífice a aparência de um homem afável, venerando, e ao mesmo tempo o mais belo que um pintor poderia retratar. Não pudemos beijar seu pé, porque ele estava sentado à mesa; beijamos, porém, sua mão, e Rua, lembrando da promessa feita aos clérigos, a beijou uma vez por si e uma vez por seus companheiros. Então o Santo Padre fez sinal para nos levantarmos e nos colocarmos à sua frente. Eu, segundo a etiqueta, gostaria de falar permanecendo de joelhos.
– Não, ele disse, levantem-se. Convém notar aqui que ao nos apresentarmos ao Papa, nosso nome foi lido errado. De fato, em vez de escrever Bosco, foi escrito Bosser, por isso o Papa começou a me interrogar:
– O senhor é piemontês?
– Sim, Santidade, sou piemontês, e neste momento sinto a maior consolação da minha vida, encontrando-me aos pés do Vigário de Cristo.
– E de que o senhor se ocupa?
– Santidade, eu me ocupo da instrução da juventude e das Leituras Católicas.
– A instrução da juventude sempre foi coisa útil em todos os tempos. Mas hoje em dia é mais do nunca necessária. Há um outro em Turim que se ocupa dos jovens. Então percebi que o Papa tinha em mãos um nome errado, mas, sem saber como, ele também se deu conta de que eu não era Bosser, mas Bosco; assim, assumiu uma aparência muito mais festiva e perguntou muitas coisas sobre os jovens, os clérigos, os oratórios […]. Então, com um rosto sorridente, ele me disse:
– Lembro-me do presente que me enviou em Gaeta e dos ternos sentimentos daqueles meninos que o acompanharam. Aproveitei para expressar a ele o apego de nossos jovens à sua pessoa e pedi-lhe que aceitasse uma cópia das Leituras Católicas: – Santidade, disse-lhe, ofereço-lhe um exemplar daqueles livrinhos até agora
impressos e ofereço-o em nome da direção. A encadernação é trabalho dos
jovens de nossa casa.
– Quantos são esses jovens?
– Santidade, os jovens da casa são perto de duzentos. Os encadernadores são quinze.
– Bem, ele respondeu, eu quero mandar uma medalha a cada um. Então, indo a outro aposento, depois de breves instantes voltou, trazendo pequenas medalhas da Conceição:
– Estas serão para os jovens encadernadores, disse enquanto as entregava a mim. Voltando-se então para Rua, deu-lhe uma maior dizendo:
– Esta é para seu companheiro. Então, voltando-se novamente para mim, me entregou uma pequena caixa que estava dentro de outra maior:
– E esta é para o senhor. Estando de joelhos para receber os presentes, o Santo Padre pediu que nos levantássemos, e pensando que queríamos nos retirar, estava para se despedir, quando eu comecei a falar com ele assim:
– Santidade, tenho algo em particular para comunicar-lhe.
– Está bem, respondeu […]. O Santo Padre é muito rápido em entender as perguntas e prontíssimo em dar as respostas, por isso com ele se trata em cinco minutos o que com outros exigiria mais de uma hora. No entanto, a bondade do Papa e meu vivo desejo de me deter com ele prolongaram a audiência por mais de meia hora, tempo bastante considerável tanto em relação à sua pessoa quanto em relação à hora do almoço, que por nossa causa estava atrasado […].

Gianicolo
Às 13h30 do dia 10 de março, o P. Giacinto, dos Carmelitas Descalços, veio nos buscar com uma carruagem para nos levar à basilica di S. Pancrazio e de S. Pietro in Montorio. São duas igrejas situadas no Gianicolo, chamado assim por causa de Jano que dizem ter vivido ali. Do outro lado do Tibre, no topo desta colina está situada a basílica de São Pancrácio, construída pelo Papa Félix II em 485, cerca de 100 anos após o martírio de Pancrácio. O general Narsete, vencidos os godos, fez uma solene procissão junto com o Papa Pelágio de São Pancrácio até São Pedro. São Gregório Magno, que tinha grande veneração por esta igreja, celebrou nela várias vezes a missa e fez algumas homilias, e finalmente a doou aos monges beneditinos. Em 1673, foi confiada aos Carmelitas Descalços com o convento anexo e um seminário para as missões das Índias […].

Sob o altar-mor, há outro altar subterrâneo onde antigamente era conservado o corpo do Santo, protegido por uma grade de ferro. Havia o costume de levar aqueles que eram suspeitos de perjúrio diante dessa grade, porque se fossem culpados, eram tomados por um visível tremor ou outro sinal.

As Catacumbas
– Venham comigo, nos disse o P. Giacinto, iremos às catacumbas. Ele havia preparado uma luminária para cada um. Nós começamos a segui-lo. No meio da igreja, ele nos indicou uma abertura no chão. Levantando a tampa, apareceu uma cavidade escura e profunda: começavam as catacumbas. Na entrada estava escrito em latim: “Neste lugar foi decapitado o mártir de Cristo Pancrácio”. Aqui estamos nas catacumbas. Imaginem longos corredores ora mais estreitos e mais baixos, ora mais altos e espaçosos, ora cortados por outros corredores, ora em descida, ora em subida, e vocês terão a primeira ideia desses subterrâneos. À direita e à esquerda há pequenas sepulturas escavadas paralelamente no tufo. Aqui antigamente eram sepultados os cristãos, especialmente os mártires. Aqueles que deram a vida pela fé eram designados com emblemas particulares. A palma era sinal da vitória obtida contra os tiranos; a galheta indicava que havia derramado sangue pela fé; o “χ” significava que havia morrido na paz do Senhor ou que havia sofrido por Cristo. Em outros apareciam os instrumentos com os quais foram martirizados. Às vezes, esses emblemas estavam fechados na pequena sepultura do santo. Quando as perseguições não eram muito severas, escrevia-se nome e sobrenome do mártir e algumas linhas que destacavam alguma circunstância importante de sua vida. […].
– Este é o lugar, nos disse o guia, onde estava sepultado São Pancrácio, e ao lado dele São Dionísio, seu tio, e aqui perto outro parente. Depois visitamos algumas sepulturas reunidas em uma saleta cujas paredes apresentavam inscrições antigas que não conseguimos ler. No meio da abóbada estava pintado um jovem que nos pareceu representar São Pancrácio […].

Desta vez o guia nos indicou uma cripta. Cripta, palavra grega, significa profundidade. É um espaço maior que o normal onde os cristãos costumavam se reunir, em tempo de perseguição, para ouvir a Palavra, assistir à missa e às funções sagradas. De um lado ainda há um altar antigo onde é possível celebrar. Na maioria das vezes, a sepultura de algum mártir servia como altar. Depois de um pouco de caminhada, nos mostraram a capela onde São Félix, Papa, costumava descansar e celebrar a Eucaristia. Seu sepulcro está a pouca distância. Por toda parte viam-se esqueletos humanos reduzidos a pedaços pelo tempo. Nossa guia nos assegurou que em breve chegaríamos a um lugar onde se conservavam lápides com as inscrições intactas.

Mas estávamos muito cansados, também porque o ar subterrâneo e as dificuldades do caminho – cada um tinha que cuidar para não bater a cabeça, não esbarrar com os ombros e não escorregar com os pés – nos haviam fatigado bastante. O guia nos advertia que os subterrâneos são muitos e alguns chegam a ter quinze/vinte milhas de comprimento. Se tivéssemos ido sozinhos, poderíamos ter cantado o requiescant in pace, porque teria sido muito difícil encontrar o caminho de volta para fora. Nossa guia, porém, era muito prática e em breve nos reconduziu ao ponto de onde partimos […].

San Pietro in Montorio
Subimos novamente na carruagem com o P. Giacinto e descemos o Gianicolo para ir até San Pedro em Montorio. A palavra é uma corrupção de “monte de ouro”, porque aqui o solo e a areia assumem uma cor amarela, semelhante a do ouro. Também foi chamado Castro Aureo, fortaleza de ouro, pelos restos da fortaleza de Anco Marzio que ainda existem no cume. É uma das igrejas fundadas por Constantino, o Grande, rica em estátuas, pinturas e mármores. Entre a igreja e o convento anexo se destaca um edifício chamado Tempietto di Bramante, de forma redonda. Trata-se de uma das mais notáveis obras de Bramante. Ele foi edificado no local onde foi martirizado São Pedro. Nos fundos, uma escadinha leva a uma capela subterrânea circular, no meio da qual há um buraco onde arde continuamente uma luz. É o lugar onde foi encaixada a ponta da cruz na qual São Pedro foi pregado de cabeça para baixo. A igreja está situada onde termina o Gianicolo e começa o Vaticano.

Perto de San Pietro em Montorio está localizada a magnífica Fontana Paolina, de Paulo V, que a fez construir em 1612. A água jorra de três colunas que parecem um rio. Vem de Bramário, um lugar a 35 milhas de Roma. Essas águas, ao descer, servem para mover moinhos e outras máquinas e se ramificam com grande vantagem em vários pontos da cidade […].

Uma adversidade
No dia 11 de março estivemos ocupados escrevendo e despachar encomendar particulares. Merece uma lembrança ode quando me perdi em Roma. Fui fazer uma visita ao Monsenhor Pacca, prelado doméstico de Sua Santidade. No retorno, estava acompanhado pelo P. Bresciani, tendo enviado Rua para procurar o P. Botandi em Ponte Sisto. O bom Bresciani me conduziu até a academia da Sapienza e, então, me indicou onde passar para chegar ao Quirinale:
– Atravesse esta rua, depois mantenha-se sempre à direita. Eu, em vez de pegar à direita, peguei à esquerda, de modo que após uma hora de caminhada me encontrei na Piazza del Popolo, a quase uma milha de casa. Pobre de mim! Ao menos se eu tivesse Rua comigo, poderíamos nos consolar mutuamente, mas eu estava sozinho. O tempo estava nublado, soprava um vento forte e começava a chover. O que fazer? Dormir no meio daquela praça me desagradava, por isso, com toda a paciência, subi ao Pincio, chamado assim por causa do palácio de um senhor chamado Pincio […]. Este monte não é muito habitado e não é uma das sete colinas de Roma […].

Sant’Andrea della Vale
Na sexta-feira, dia 12, fui celebrar a missa em S. Andrea della Valle, para distingui-lo de outras igrejas dedicadas ao mesmo Apóstolo. Valle foi acrescentado tanto porque a basílica se encontra no ponto mais baixo de Roma quanto também devido a um palácio pertencente à família Valle. Antigamente, a igreja era dedicada a São Sebastião, que aqui sofreu o martírio. Perto dela foi construída outra dedicada a São Luís, rei da França. Mas no ano de 1591, um rico senhor, chamado Gesualdo, fez uma reforma, modificando completamente o projeto. É uma das primeiras igrejas de Roma. Sua cúpula mede 64 palmos de diâmetro, e por isso, depois de São Pedro no Vaticano, é a cúpula mais ampla de todas as outras da cidade. A primeira capela, ao entrar à esquerda, tem um portão de ferro que indica o ponto da cloaca onde se acredita que o corpo do mártir São Sebastião foi jogado. Quase em frente a esta igreja está o palácio Stoppani, que serviu de moradia ao imperador Carlos V quando veio a Roma, como aparece em uma inscrição na parede ao pé da escada.

San Gregorio Magno
Às 13h30, com o senhor Francesco De Maistre, nosso guia, partimos para visitar a igreja de São Gregório Magno [chiesa di S. Gregorio Magno]. Ela está edificada sobre uma parte do monte Celio, chamado antigamente clivus Scauri, ou seja, descida de Scauro, e era a casa habitada por São Gregório e seus pais. Foi ele quem a converteu em mosteiro, onde depois residiu até o ano 590, inicialmente como simples monge, depois como Abade. Quando foi eleito papa (em 590), dedicou aquele edifício ao apóstolo São André, transformando uma parte dos cômodos em igreja. Após sua morte, a igreja foi dedicada a ele mesmo.

É certamente uma das mais belas igrejas de Roma. A primeira capela ao entrar, à esquerda, é dedicada a Santa Silvia, mãe de São Gregório. A última, à direita, é a do Sacramento, sobre cujo altar celebrava o próprio São Gregório. […]. Este altar, venerável pelo título e patrocínio do santo Papa, foi tornado célebre em todo o mundo pelos privilégios concedidos por muitos Papas. Aconteceu que um monge do mosteiro, tendo por ordem do santo oferecido a missa por trinta dias consecutivos em sufrágio da alma de um irmão falecido, outro monge a viu liberada das penas do purgatório.

Ao lado desta capela existe outra menor, onde São Gregório se retirava para descansar. Mostra-se ainda com precisão o lugar onde estava sua cama. Ali ao lado está a cadeira de mármore sobre a qual ele se sentava tanto quando escrevia quanto quando anunciava a palavra de Deus ao povo.
Passado o altar-mor, encontra-se a capela que guarda uma imagem de Nossa Senhora muito antiga e prodigiosa. Acredita-se que seja aquela que o Santo mantinha em casa e sempre que passava diante dela a saudava dizendo “Ave, Maria”. Um dia, porém, o bom Pontífice, por causa da pressa que tinha devido a alguns assuntos urgentes, ao sair não dirigiu à Virgem a saudação habitual. E Ela lhe fez esta doce reprimenda: “Ave, Gregori”, com as quais palavras o convidava a não esquecer aquela saudação que a ela era tão grata.

Em outra capela se ergue a estátua de São Gregório, um trabalho projetado e dirigido por Michelangelo Buonarroti. O Santo está sentado no trono com uma pomba perto do ouvido, que lembra o que afirma Pedro Diácono, familiar do Santo, ou seja, que sempre que Gregório pregava ou escrevia, uma pomba sempre lhe falava ao ouvido. No centro da capela está colocada uma grande mesa de mármore sobre a qual o Pontífice todos os dias oferecia comida a doze pobres, servindo-os com a própria mão. Um dia, sentou-se à mesa com os outros um anjo sob a forma de um jovem, que então, de repente, desapareceu. Desde então, o Santo aumentou para treze o número dos pobres que ele alimentava. Assim teve origem o costume de colocar treze peregrinos à mesa que, na quinta-feira santa, o Papa serve todos os anos com a própria mão. Acima da mesa está gravado o dístico seguinte: “Aqui Gregório alimentava doze pobres; um anjo sentou-se à mesa e completou o número de treze”.

Santi Giovanni e Paolo
Saindo desta igreja e virando à direita, encontra-se a dos Santos João e Paulo [Santi Giovanni e Paolo]. O imperador Joviano permitiu ao monge São Pammáquio construí-la, no ano 400, em honra destes dois irmãos mártires. Ela foi edificada sobre a sua habitação, exatamente onde sofreram o martírio. Foi depois restaurada por São Símaco, Papa, por volta de 444 […]. Ao entrar, apresenta-se à vista um majestoso edifício. No meio, uma grade de ferro delimita o lugar onde os santos foram mortos. Seus corpos, fechados em uma urna preciosa, repousam sob o altar-mor. Na capela ao lado, sob o altar, é guardado o corpo do Beato Paulo da Cruz, fundador dos passionistas, aos quais a igreja é confiada. Este servo de Deus é um piemontês, nascido em Castellazzo, na diocese de Alexandria. Morreu em 1775, aos 82 anos. Os muitos milagres que em Roma e em outros lugares ocorrem por sua intercessão, fizeram crescer a congregação dos passionistas, assim chamados por causa do quarto voto que fazem, ou seja, promover a veneração pela paixão do Senhor.

Um desses religiosos, um genovês, Frei André, depois de nos acompanhar para ver as coisas mais importantes da igreja, nos levou ao convento, um belo edifício que abriga cerca de oitenta padres, em sua maioria piemonteses.
– Este, nos disse Frei André, é o quarto em que morreu nosso santo Fundador. Entramos e admiramos em devoto recolhimento o lugar de onde partiu sua alma para voar ao céu.
– Ali está a cadeira, as vestes, os livros e outros objetos que serviram ao Beato. Cada coisa está selada e são distribuídas como relíquias aos fiéis cristãos. Aquele quarto hoje é uma capela onde se celebra a missa.

Arcos de Constantino e Tito
Cumprimentando ao cortês frei André, nos dirigimos para S. Lorenzo in Lucina. Depois de um pouco de caminho, nos encontramos sob o Arco di Costantino. Ele se conservou quase intacto. Uma inscrição do senado e do povo romano indica que foi dedicado ao imperador Constantino em ocasião da vitória sobre o tirano Massenzio. Este imperador, tornando-se cristão, fez colocar sobre o arco uma estátua com uma cruz na mão em memória da cruz que lhe apareceu diante do exército, para lembrar a todo o mundo que ele professava a religião de Jesus crucificado.
Após mais um trecho de estrada, eis outro arco, o Arco di Tito. Existem três arcos em Roma e o de Tito é o mais antigo e elegante. É enriquecido por baixos-relevos que comemoram as várias vitórias obtidas por aquele valente guerreiro: em um deles está esculpido o candelabro do templo de Jerusalém em memória da queda daquela cidade e de seu templo. Sob este arco passava a célebre Via Sacra, uma das mais antigas de Roma, assim chamada porque através dela se levavam todos os meses as coisas sagradas para a Rocha, e era percorrida pelos áugures para ir buscar suas respostas.

Chegando a San Lorenzo in Lucina, não conseguimos entrar devido aos trabalhos que lá se realizavam […]. Esta igreja é uma das mais vastas paróquias de Roma, e foi erguida por Sisto III com o consentimento do imperador Valentiniano em honra de São Lourenço, mártir. Para distingui-la das outras igrejas erguidas a este levita, foi denominada in Lucina, ou pela santa mártir de tal nome ou talvez porque este fosse o nome do lugar. Anexo a esta igreja, em direção à rua principal, está o Palácio Ottobuoni [palazzo Ottobuoni], construído por volta do ano 1300 sobre as ruínas de um grande edifício antigo chamado Palácio de Domiciano. Estando já cansados e aproximando-se a hora do almoço, voltamos para casa […].

Santa Maria degli Angeli
[…] No dia 13 de março, a estação quaresmal era em S. Maria degli Angeli, onde fomos tanto para lucrar a indulgência plenária quanto também para rezar a Deus em favor de nossa casa. Esta igreja é distinta de outra do mesmo nome, com o acréscimo das Terme di Diocleziano, porque é construída no local onde antigamente se erguiam as famosas termas, ou seja, as casas de banho do imperador Diocleciano. O sumo pontífice Pio IV encarregou Michelangelo Buonarroti, que com seu vasto engenho soube transformar em igreja uma parte daqueles edifícios magníficos. Em um salão das termas já existia uma capelinha dedicada a São Cirilo, mártir. Esta ficou confinada dentro da nova igreja, que o Pontífice dedicou a Santa Maria dos Anjos, para agradar ao duque e rei da Sicília, devotíssimo dos Anjos, que cooperou muito na sua edificação.

No dia da estação quaresmal, a igreja é ornada com especial elegância, e são expostas à veneração pública as relíquias mais insignes. Em uma capela ao lado do altar-mor estava colocado o relicário com muitas relíquias, entre as quais vimos os corpos de São Próspero, São Fortunato e São Cirilo, além da cabeça de São Justino e de São Máximo, mártires, e de muitos outros. Satisfeita assim a nossa devoção, chegamos em casa por volta das seis da tarde, bastante cansados e com bom apetite.

Santa Maria della Quercia
No domingo, 14 de março, celebramos em casa, depois fomos visitar um oratório, segundo as indicações recebidas do Marquês Patrizi. A igreja onde se reúnem os jovens chama-se S. Maria della Quercia. Eis a origem, que remonta aos tempos de Júlio II. Uma imagem de Maria foi pintada em uma telha por um certo Battista Calvaro, que a pendurou em um carvalho dentro de sua vinha, em Viterbo. Esta imagem permaneceu escondida por sessenta anos, até que em 1467 começou a se manifestar com tantas graças e milagres que os fiéis que a visitavam, com suas ofertas, ergueram uma igreja e um mosteiro. O Papa Júlio II desejou que também em Roma houvesse um templo dedicado a Nossa Senhora do Carvalho, que é aquele de que falamos.
Entrando na igreja e chegando na espaçosa sacristia, nos alegrou a presença
de uns quarenta jovens. Pela vivacidade do comportamento pareciam muito com nossos moleques do nosso oratório. As suas funções sagradas se realizam todas pela manhã. Missa, confissão, catecismo e uma breve instrução é o que se faz para eles […].

Após o meio-dia, os jovens vão a S. Giovanni dei Fiorentini, outro oratório onde há apenas recreação, sem funções de igreja. Fomos lá e vimos cerca de cem jovens que se divertiam a valer. Seus jogos eram a tombola e a campana, conhecidas também por nós. Praticam também o jogo do buraco, que consiste em cinco buracos bastante grandes nos quais se colocam duas castanhas ou outra coisa. De uma distância de seis passos, faz-se rolar uma bola. Quem consegue fazê-la entrar em um dos buracos ganha o que está dentro. Lamentamos muito que eles não tivessem outra coisa além da recreação. Se houvesse algum padre entre eles, este poderia fazer o bem para suas almas, pois há grande necessidade. Tanto mais nos entristeceu, pois encontramos neles boas disposições. Vários demonstraram prazer em dialogar conosco, beijando várias vezes a mão tanto a mim quanto a Rua, que, contra sua vontade, era constrangido a consentir […].

Voltando para casa, recebemos a visita de Monsenhor Merode, mestre de câmara de Sua Santidade. Após algumas conveniências, ele me anunciou que o Santo Padre me convidava a pregar os exercícios espirituais às detidas nas prisões perto de Santa Maria degli Angeli alle terme di Diocleziano. Cada desejo do Papa é para mim um comando e, portanto, aceitei com muito prazer […].

Na prisão feminina
Às duas da tarde, fui à superiora da prisão para combinar o dia e a hora em que começaria a pregação. Ela me disse:
– Se está bem para o senhor, pode pregar daqui há pouco, já que as mulheres estão na Igreja e não temos pregador. Assim, comecei naquele momento os exercícios e quase a semana inteira foi empregada inteiramente nesse ministério. A casa correcional chama-se Alle Terme di Diocleziano porque está situada no mesmo local onde estavam as termas daquele famoso imperador. Havia 260 detidas culpadas de graves delitos e condenadas à prisão […]. Os exercícios foram realizados com satisfação. A pregação simples e popular que usamos entre nós foi frutífera nesta prisão. No sábado, depois da última pregação, a madre
superiora, com prazer, falou-me que nenhuma das prisioneiras tinha deixado de aproximar-se dos Sacramentos.

Dois episódios
Um episódio agradável aconteceu ao Santo Padre nesta semana. O Conde Spada foi visitá-lo e teve esta conversa:
– Santidade, eu gostaria de pedir uma lembrança desta visita.
– Peça o que quiser e tentarei agradá-lo.
– Eu gostaria de algo extraordinário.
– Bem, peça.
– Santidade, eu gostaria de ter como lembrança a vossa tabaqueira.
– Mas está cheio de um tabaco de qualidade ínfima.
– Não importa; eu a guardarei com muito carinho.
– Leve-a, faço-lhe este presente com prazer. O Conde Spada partiu mais contente com aquele tabaqueira do que se fosse um grande tesouro. Ela é simples, de chifre de búfalo, unido com dois anéis de latão e não vale quatro tostões, mas é preciosíssimo pela procedência. O bom conde o mostra a seus amigos como um objeto digno de veneração […].

Outra anedota me foi contado sobre este venerando Pontífice. No ano passado, enquanto o Santo Padre viajava por seus estados, estava nas proximidades de Viterbo. Uma garotinha com um feixe de lenha, vendo que a carruagem pontifícia havia parado, pensou que aqueles senhores quisessem comprar seu feixe. Correu em direção a eles:
– Senhores, disse ao Santo Padre, compre-o, a madeira está bem seca.
– Não precisamos, respondeu o Papa.
– Compre-o, vendo-o pelo preço de três tostões.
– Pegue o valor e fique com seu feixe. O Santo Padre deu-lhe três escudos, então se preparou para voltar à carruagem. Mas a garotinha queria que o Santo Padre pegasse seu feixe.
– Leve-o, o senhor ficará contente; na sua carruagem há espaço de sobra. Enquanto o Papa e sua corte riam de tal negócio, a mãe da menina, que trabalhava em um campo próximo, correu gritando:
– Santo Padre, Santo Padre, perdoe-a; esta pobre menina é minha filha. Ela não o conhece. Tenha piedade de nós, que estamos em grande miséria. O Papa acrescentou mais seis escudos e continuou o caminho […].

San Paulo fuori le Mura
No dia 22 de março, Domingo, Dom Bosco foi ao Cardeal vigário, o eminentíssimo Constantino Patrizi […]. Saindo do Vicariato, peregrinou até S. Paolo fuori le Mura para venerar o sepulcro do grande Apóstolo dos Gentios e admirar as maravilhas daquele templo imenso. Depois de um milha de estrada, chegou ao célebre lugar denominado Ad Aquas Salvias, onde São Paulo derramou seu sangue por Jesus Cristo. Exatamente neste ponto, onde há três fontes milagrosas de água que brotaram dos torrões onde a cabeça do santo Apóstolo fez três saltos, foi construída uma igreja. Dom Bosco também rezou na igreja vizinha de Sancta Maria Scala Coeli, de forma octogonal, edificada sobre o cemitério de São Zenão, um tribuno que foi martirizado sob Diocleciano, junto com 10.203 de seus companheiros soldados […].

Colosseo
No dia 23 de março, seu olhar atônito contemplou as gigantescas ruínas do anfiteatro Flaviano ou Colosseo, de forma oval com 527 metros de circunferência externa, e cinquenta metros de altura por um longo trecho. Nos tempos de seu esplendor era coberto de mármores, ornado por colunatas, centenas de estátuas, obeliscos, quadrigas de bronze; e em seu interior sustentava tudo ao redor imensas arquibancadas, que podiam abrigar 200 mil pessoas para assistir aos combates de feras e de gladiadores, e ao massacre de milhares e milhares de mártires. Dom Bosco entrou na arena dos espetáculos que mede 241 metros de circunferência […]

San Clemente
No dia 24 de março Dom Bosco foi à Basílica de São Clemente [basilica di S. Clemente] para venerar as relíquias do quarto Papa depois de São Pedro, as de Santo Inácio, mártir, Bispo de Antioquia; foi também para admirar a arquitetura da antiquíssima igreja com três naves. Na do meio, diante do Altar da Confissão, há um recinto de mármore branco que é o coro para o clero menor, com dois púlpitos: um para o canto do Evangelho, junto ao qual se eleva uma pequena coluna destinada ao círio pascal e outro para o subdiácono que deve ler a epístola; ao lado deste último uma estante para os clérigos cantores e leitores das profecias e dos outros livros das sagradas escrituras. Ao redor da abside há um assento destinado aos sacerdotes e, no fundo, no centro, surge, sobre três degraus, a cátedra do bispo […].

Deaqui Dom Bosco foi para a igreja dos Quatro Coroados [chiesa dei Quattro Coronati]para visitar os sepulcros dos santos mártires Severo, Severino, Carpóforo e Vitorino, mortos sob Diocleciano. Depois passou por S. Giovanni diante da Porta Latina, junto da qual está uma Capela construída no lugar onde São João Evangelista foi colocado na caldeira de óleo fervente; dali avançou até a igrejinha do Quo Vadis, assim chamada porque apareceu naquele lugar o Salvador a São Pedro, que saía de
Roma para fugir do furor da perseguição:
– Senhor, para onde vai? gritou o Apóstolo maravilhado. E Jesus lhe respondeu:
– Venho para ser crucificado de novo. São Pedro entendeu e voltou para Roma onde o esperava o martírio. Desse pequeno templo, Dom Bosco retomou a estrada, depois de ter dado uma olhada à via Apia, ao longo da qual se contam muitíssimos mausoléus dos tempos do paganismo, que recordam qual fim ameace toda a grandeza humana

Dom Bosco… salesiano!
Uma cena graciosa aconteceu na manhã do dia 25 de março. Dom Bosco, atravessando o Tibre, viu em uma pequena praça uns trinta meninos que se divertiam. Sem mais, se pôs no meio deles, que, parando as brincadeiras,olhavam-no maravilhados. Dom Bosco levantou então a mão, mantendo
entre os dedos uma medalha, e depois exclamou:
– Vocês são muitos e sinto não ter muitas medalhas para dar uma para
cada um. 
Aqueles meninos, tomando coragem, gritaram a plenos pulmões, levantando as mãos:
– Não importa, não importa… para mim, para mim! Dom Bosco acrescentou:
– Está bem. Não tendo para todos, esta medalha quero dá-la ao melhor. Quem de vocês é o melhor?
– Sou eu, sou eu! gritaram todos juntos. Ele continuou:
– Mas o que posso fazer se todos são bons igualmente? Está bem: quero dá-la ao mais malandro! Quem entre vocês é o mais malandro?
– Sou eu, sou eu! responderam com gritos atordoantes.
O Marquês Patrizi e os seus amigos, a uma certa distância, sorriam comovidos e maravilhados ao ver Dom Bosco tratar assim familiarmente com aqueles meninos que pela primeira vez tinha encontrado. E exclamavam:
– Eis um outro São Filipe Neri, amigo da juventude. Dom Bosco, de fato, como se fosse um amigo já conhecido daqueles meninos, continuou a interrogá-los, se já tinham ouvido a Santa Missa, em qual igreja costumavam ir, se conheciam os oratórios que estavam por aquelas bandas […]. O diálogo estava animado e finalmente Dom Bosco, depois de tê-los exortados a serem sempre bons cristãos, prometia que passaria outra vez por aquela praça e traria uma medalha, ou melhor, uma imagem para cada um deles; depois, saudando-os afetuosamente, saiu do meio daquela turba, e, voltando àqueles senhores que o esperavam, mostrou-lhes a única medalha que tinha ainda na mão. Nada tinha dado àqueles meninos, no entanto, tinha-os deixado contentes.

Santo Stefano Rotondo
No dia 26 de março, Dom Bosco retornou ao Celio na espaçosa igreja de Santo Estêvão Redondo [chiesa di S. Stefano Rotondo], chamada assim por sua forma. O seu beiral circular é sustentado por 56 colunas. Em todas as paredes ao redor estão pintadas as cenas dos suplícios atrozes com os quais foram massacrados os mártires. É ornada por mosaicos do século VII, que representam Jesus crucificado, com alguns santos, e conserva os corpos de dois confessores da fé, Santo Primo e Santo Feliciano. Dali Dom Bosco passou para S. Maria in Dominica ou della Navicella (por causa de uma barca de mármore que está na praça). Tem três naves separadas por 18 colunas e contém mosaicos do século IX. Entre esses se vê a Virgem no lugar de honra entre muitos anjos e, aos pés dela, ajoelhado, o Papa Pascal […].

O Santo Padre, no entanto, tinha manifestado o desejo que Dom Bosco assistisse no Vaticano ao devoto e magnífico espetáculo de todas as funções da Semana Santa. Por isso, encarregou Monsenhor Borromeu de convidá-lo em seu nome e de arrumar-lhe um lugar no qual pudesse à vontade ser espectador dos ritos sagrados. O Monsenhor o fez procurar por todo o dia, mas sem êxito. Finalmente, quando voltou à residência do Conde De Maistre tarde da noite, soube que Dom Bosco tinha se retirado para o seu quarto. Todavia, dizendo que vinha por ordem do Papa, foi acompanhado até o quarto e apresentou a Dom Bosco a carta-convite com a qual era admitido a receber a palma bendita das mãos de Sua Santidade. Dom Bosco a leu logo e exclamou que iria com grande prazer.

Páscoa Romana de Dom Bosco. O Domingo de Ramos
No domingo, 28 de março, Dom Bosco com o Clérigo Rua entraram na Basílica de São Pedro muito antes que começassem as funções. O Conde Carlos De Maistre o acompanhou até a tribuna dos diplomatas, onde lhe fora preparado o lugar. Dom Bosco estava de olho porque conhecia a importância das cerimônias da Igreja. Ao seu lado estava um milorde inglês protestante, maravilhado com aquela solenidade de ritos. A certo ponto um cantor soprano da Capela Sistina cantou uma parte solo, mas tão bem que Dom Bosco ficou comovido às lágrimas e aquele milorde voltou-se para ele e exclamou em latim, porque em outra língua não sabia como entender-se:
– Post hoc paradisus! (Depois disso, o paraíso!, n.d.r.). Aquele senhor depois de algum tempo converteu-se ao catolicismo e depois foi padre e bispo. Como o Papa abençoara as palmas, quando chegou sua vez, o corpo diplomático desfilou em direção ao trono do Pontífice, e cada embaixador e ministro recebeu a palma de suas mãos. Também Dom Bosco e o Clérigo Rua se ajoelharam aos pés do Pontífice e receberam a palma. Assim Pio IX quis: e não era Dom Bosco um embaixador do Altíssimo? O Clérigo Rua, voltando junto dos rosminianos, presenteou sua palma ao P. Pagani, que muito agradeceu a gentileza […].

Dom Bosco caudatário
O Cardeal Marini, que era um dos dois cardeais diáconos assistentes ao trono, para que Dom Bosco pudesse assistir a todas as funções da Semana Santa, tomou-o como caudatário. Assim, ele esteve, em veste violeta, quase o tempo todo do cerimonial ao lado do Papa e pôde saborear os cantos gregorianos e as músicas de Allegri e de Palestrina.
Na Quinta-feira Santa, viu pontificar a Missa do Cardeal Mario Mattei como o mais ancião dos bispos suburbicários, em vez do cardeal decano do sacro colégio que estava impedido. Dom Bosco seguiu o Pontífice que em procissão levava o Santíssimo Sacramento à Capela Paulina para repô-lo na urna aí preparada; acompanhou-o no balcão vaticano do qual abençoa Roma e o mundo; assistiu ao lava-pés feito pelo Papa a treze sacerdotes e participou da ceia comemorativa
deles, servida pelo mesmo Vigário de Jesus Cristo.

A bênção Urbi et Orbi
[…] No dia 4 de abril as salvas da artilharia do Castel Sant’Angelo anunciavam o dia de Páscoa. Pio IX desceu pelas dez horas à Basílica para o pontifical. Logo depois, precedido por um cortejo de bispos e cardeais, ele foi até a Loggia para a bênção Urbi et Orbi. Dom Bosco, com o Cardeal Marini e um bispo, ficou por um instante perto da sacada, coberta por um magnífico tecido sobre o qual foram depositadas três áureas tiaras. O cardeal disse a Dom Bosco:
– Observe que espetáculo! Dom Bosco olhava atônito para a praça. Uma multidão
de 200 mil pessoas se aglomerava com o rosto voltado para a Loggia. Os tetos, as janelas, os terraços de todas as casas estavam ocupados. O Exército francês ocupava uma parte do espaço entre o obelisco e a escadaria de São Pedro. Os batalhões da infantaria pontifícia estavam enfileirados à direita e à esquerda. Atrás, a cavalaria e a artilharia. Milhares de carruagens estavam paradas nas duas alas da praça, perto dos pórticos de Bernini, e ao fundo perto das casas. Especialmente sobre aquelas alugadas estavam em pé grupos de pessoas que pareciam dominar a praça. Era um vozear clamoroso, um pisoteio de cavalos, uma confusão incrível. Ninguém pode fazer ideia de tal espetáculo.

Encurralado  
Dom Bosco, que deixara o Papa na Basílica no ato da veneração das insignes relíquias expostas, pensava que ele demoraria a chegar. Absorto em contemplar tanta gente de todas as nações, não percebeu a chegada do papa sentado na cadeira gestatória. Encontrou-se, então, numa posição difícil; apertado entre a cadeira e a balaustrada, apenas podia mexer-se; tudo ao redor da cadeira estava ocupado por cardeais, bispos, cerimoniários e sediários, de tal maneira que não via espaço para sair dali. Voltar o olhar para o Papa era inconveniente; dar-lhe os ombros, falta de educação; permanecer no centro do balcão, uma coisa ridícula. Não podendo fazer melhor, voltou-se de lado; então, a ponta de um pé do Papa pousou sobre seu ombro.

Nesse interim, um silêncio solene reinou na praça de modo que se podia ouvir o zumbido de uma mosca voando. Os próprios cavalos estavam imóveis. Dom Bosco, por nada perturbado, atento ao mínimo incidente, observou que um só relincho e o som de um relógio que batia as horas fizeram se ouvir enquanto o Papa, sentado, recitava algumas orações de rito. Ele, no entanto, visto que o pavimento da Loggia estava ornado de folhagens e flores, curvou-se e recolheu algumas daquelas flores e as colocou entre as páginas do livro que tinha em mãos. Finalmente Pio IX levantou-se para abençoar: abriu os braços, elevou ao céu as mãos, estendeu-as sobre a multidão, que inclinou a cabeça, e a sua voz no cantar a fórmula da bênção, sonora, forte, solene, se ouvia além da praça Rusticucci e do sótão do palácio dos escritores da Civiltà Cattolica.

A multidão respondeu à bênção do Papa com uma imensa ovação. Então o Cardeal Ugolini leu em latim o Breve da indulgência plenária e logo em seguida o Cardeal Marini o repetiu, mas em língua italiana. Dom Bosco havia se ajoelhado, e quando se levantou, o cortejo papal já havia desaparecido. Todos os sinos ocavam em festa, o canhão de Castel Sant’Angelo ribombava, as bandas militares faziam soar suas trompetas. O cardeal Marini, acompanhado pelo caudatário, desceu e foi em direção à sua carruagem. Assim que esta se moveu, Dom Bosco sentiu-se tomado pelo mal causado por aquele movimento que revirava seu estômago; não podendo mais resistir, manifestou ao cardeal seu desconforto. Por seu conselho, subiu na caixa com o cocheiro, mas o mal-estar não diminuiu, então desceu para caminhar a pé. Estando vestido de roxo, teria sido objeto de admiração ou escárnio se tivesse atravessado Roma assim; por isso, o secretário gentilmente desceu da carruagem e o acompanhou ao palácio […].

A lembrança do Papa
Dom Bosco, no dia 6 de abril, voltou para uma audiência particular com Pio IX em companhia do Clérigo Rua e do Teólogo Murialdo, admitido no Vaticano por gentil mediação do próprio Dom Bosco. Entraram na antessala às 9 horas da noite e logo Dom Bosco foi chamado. O Papa apenas o viu à sua frente e lhe disse com jeito sério:
– Dom Bosco, aonde o senhor se meteu no dia de Páscoa na hora da bênção papal? Ali, na frente do Papa! E tendo o ombro sob o meu pé como se o Pontífice tivesse necessidade de ser escorado por Dom Bosco.
– Santo Padre, respondeu Dom Bosco, tranquilo e humilde, fui pego de surpresa e peço-lhe perdão se de qualquer modo o ofendi!
– E o senhor acrescenta ainda a afronta em perguntar-me se me ofendeu? Dom Bosco olhou para o Papa, parecendo-lhe fictício tal comportamento. E, de fato, um sorriso sinalizava aparecer naqueles lábios venerandos. E o Pontífice continuou: Mas o que lhe passou na cabeça de colher flores naquele momento? Precisou de toda a gravidade de Pio IX para não desatar a rir. […].
– Beatíssimo Padre, suplicou Dom Bosco, tenha a bondade de sugerir-me uma máxima que eu possa repetir aos meus jovens como lembrança saída dos lábios do Vigário de Jesus Cristo.
– A presença de Deus! Respondeu o Papa. Diga aos seus jovens em meu nome que se guiem sempre com esse pensamento!… E agora não tem mais nada para me pedir? O senhor deseja certamente ainda alguma coisa.
– Santo Padre, a Vossa Santidade se dignou conceder-me tudo quanto pedi e por agora não me resta mais nada senão agradecê-la do mais íntimo do meu coração.
– No entanto, no entanto, o senhor deseja ainda algo. A essa réplica, Dom Bosco estava lá como suspenso sem proferir palavra, quando o Pontífice acrescentou:
– E como? Não deseja deixar alegres seus meninos, quando voltar a eles?
– Santidade, isso sim.
– Então, espere. Poucos instantes antes tinham entrado naquela sala o Teólogo Murialdo, o Clérigo Rua e P. Cerutti de Varazze, chanceler na Cúria Arquiepiscopal de Gênova. Eles ficaram maravilhados com a familiaridade com que o Papa tratava Dom Bosco e do que viram naquele momento. O Papa abriu o cofre, tirou com as duas mãos um monte de moedas romanas de ouro e sem contá-las entregou a Dom Bosco, dizendo:
– Pegue e dê uma boa merenda aos seus filhinhos. Cada um pode imaginar a impressão que fez em Dom Bosco esse gesto de paterna bondade de Pio IX que com grande amor se dirigia também aos eclesiásticos sobrevindos, abençoava os terços, os crucifixos e outros objetos de devoção que lhe apresentaram, e dava a todos uma preciosa lembrança em medalhas.

O desafio educativo de Dom Bosco
Entre os cardeais que passou a homenagear está o Eminentíssimo Tosti, a convite do qual dirigiu novamente algumas palavras aos jovens do Refúgio de São Miguel. O cardeal, satisfeito pela cortesia de Dom Bosco, sendo a hora de seu passeio, manifestou o desejo de tê-lo por companhia, e ambos saíram com a carruagem. Começou-se a falar do sistema mais apto para a educação dos jovens. Dom Bosco estava persuadido que os alunos daquele Internato não tinham familiaridade com os superiores, aliás, tinham medo deles: coisa pouco agradável, sob a direção de padres. Por isso dizia:
– Veja, Eminência, é impossível poder educar bem os jovens se eles não têm confiança nos superiores.
– Mas como, replicou o cardeal, se pode ganhar essa confiança?
– Procurando que eles se aproximem de nós, evitando qualquer causa que se afastem de nós.
– E como se pode fazer para aproximá-los de nós?
– Aproximando-nos deles, buscando adaptar-nos aos seus gostos, fazendo-nos semelhantes a eles. Quer fazer uma prova? Diga-me: em que ponto de Roma se pode encontrar um bom número de meninos?
– Na ‘iazza Termini e na Piazza del Popolo.
– Pois bem, vamos então à Piazza del Popolo.

O cardeal deu ordem ao cocheiro e foram. Assim que chegaram, Dom Bosco desceu da carruagem, e o cardeal ficou observando-o. Vendo um grupo de meninos que brincavam, Dom Bosco aproximou-se, mas os garotos fugiram. Então, chamou-os com boas maneiras e eles, depois de alguma hesitação, retornaram. Dom Bosco lhes deu alguma coisinha, pediu notícias de suas famílias, perguntou do que brincavam, convidou-os a retomar a brincadeira, pôs-se a comandar o divertimento deles, e ele mesmo tomou parte. Então, outros jovens que estavam olhando de longe correram em grande número dos quatro cantos da praça e rodearam o padre, que os acolheu amorosamente e tinha para todos uma boa palavra e um presentinho. Perguntava se fossem bons, se rezassem as orações, se iam se confessar. Quando quis ir embora, eles o seguiram por um bom trecho e só o deixaram quando subiu na carruagem. O cardeal estava maravilhado.
– Viu?
– Tem razão! exclamou o cardeal […].

As últimas visitas
Suas últimas visitas foram reservadas à Confissão de São Pedro e às Catacumbas. Depois de ter rezado na Basílica de São Sebastião [basilica di S. Sebastiano], visto as duas das flechas que feriram o santo tribuno e a coluna na qual foi amarrado, desceu às galerias que guardam os ossos de milhares e milhares de mártires e onde São Filipe Neri tantas noites esteve em vigília rezando fervorosamente. Passou, depois, às Catacumbas de São Calisto [Catacombe di san Callisto]. Aí esperava-o o Cavaleiro G. B. De Rossi, quem descobrira aquelas catacumbas e ao qual Monsenhor de San Marzano o tinha apresentado. Quem entra naqueles lugares experimenta uma tal comoção que permanece inesquecível pelo resto da vida; e Dom Bosco estava absorto em santos e doces pensamentos percorrendo aqueles subterrâneos, onde os primeiros cristãos, com a missa, as orações em comum, o canto dos salmos e das profecias, a comunhão eucarística, o ouvir a palavra dos bispos e dos papas tinham encontrado a força necessária para o martírio que os esperava. É impossível olhar com olhos enxutos aqueles lóculos que tinham guardado os corpos ensanguentados ou queimados de tantos heróis da fé, as tumbas de quase catorze papas que tinham dado a vida para testemunhar o que ensinavam e a cripta de Santa Cecília.

Dom Bosco observava os muitos afrescos antiquíssimos que simbolizavam Jesus Cristo e a Eucaristia; e as imagens que representavam o matrimônio de Maria Santíssima com São José; a Assunção de Maria ao céu, a Mãe de Deus com o Menino nos braços ou sobre os joelhos. Ele ficou encantado pelo sentimento de simplicidade que resplandece nessas imagens, nas quais a arte cristã primitiva soubera reproduzir a beleza incomparável da alma e o ideal altíssimo da perfeição moral que se deve atribuir à Virgem. Não faltavam outras figuras de santos e de mártires. Dom Bosco saiu das catacumbas às 6h da tarde e tinha entrado nelas às 8h da manhã […].

Rumo a casa
Dom Bosco, no dia 14 de abril, partia de Roma com o Clérigo Rua, feliz pelo lançamento das bases da Sociedade de São Francisco de Sales […]. Alugou uma carruagem, fez uma breve parada no povoado de Palo e encontrou o dono perfeitamente livre das febres: a sua cura fora instantânea. Ele nunca esqueceu o benefício e, depois de muito tempo, por volta do ano de 1875 ou 1876, tendo ido a Gênova por razões comerciais, quis avançar sua viagem até Turim. Informando-se e sabendo por telégrafo que Dom Bosco estava no Oratório, foi até lá; mas Dom Bosco, naquele dia, estava almoçando com o Sr. Carlos Occelletti. Foi logo encontrá-lo, numa felicidade sem fim. O Sr. Occelletti lembrava sempre com grande satisfação a história que ouvira sobre aquela cura. Tendo chegado em Civitavecchia e feita uma visita ao Delegado Pontifício, Dom Bosco foi ao porto para embarcar.

As ondas dessa vez estavam calmas e o tempo bom, assim Dom Bosco pôde descer em Livorno, conversar com algum amigo e visitar algumas igrejas. Retomado o mar à noite, Rua se lembra como a barca chegasse ao porto de Gênova ao surgir de uma esplêndida aurora que iluminava o magnífico panorama da soberba cidade. Dom Bosco tinha acabado de pôr os pés em terra e logo se dirigiu ao Colégio dos Artigianelli, onde o esperava o P. Montebruno e o Sr. Giuseppe Canale. Depois do meio-dia subiu no trem. Atravessando a cidade, teve uma grata surpresa: tocando os sinos, o Angelus, muitas pessoas pelas ruas e pelas praças tiraram o chapéu, e os mesmos carregadores se levantaram de seus bancos para recitar a oração. Muitas vezes ele descrevera esse espetáculo para a edificação de seus alunos. Chegou em Turim no dia 16 de abril, sendo acolhido pelos jovens com tal exultação e afeto que nenhum pai poderia desejar-se melhor dos próprios filhos.




Dom Bosco e os títulos de Nossa Senhora

A devoção mariana de Dom Bosco nasce de uma relação filial e viva com a presença materna de Maria, experimentada em todas as fases de sua vida. Desde os pilares votivos erguidos durante a infância em Becchi, passando pelas imagens veneradas em Chieri e Turim, até as peregrinações realizadas com seus meninos aos santuários do Piemonte e da Ligúria, cada etapa revela um título diferente da Virgem — Consolata, Dolorosa, Imaculada, Nossa Senhora das Graças e muitos outros — que fala aos fiéis de proteção, conforto e esperança. O título que definiria para sempre sua veneração, no entanto, foi “Maria Auxiliadora”: foi a própria Nossa Senhora, segundo a tradição salesiana, quem o indicou. Em 8 de dezembro de 1862, Dom Bosco confidenciou ao clérigo Giovanni Cagliero: “Até agora”, acrescentou, “celebramos com solenidade e pompa a festa da Imaculada, e neste dia foram iniciadas as primeiras obras de nossos oratórios festivos. Mas Nossa Senhora quer que a honremos sob o título de Maria Auxiliadora: os tempos são tão tristes que realmente precisamos que a Santíssima Virgem nos ajude a conservar e defender a fé cristã.” (MB VII, 334)

Os títulos marianos
            Escrever hoje um artigo sobre os “títulos marianos” sob os quais Dom Bosco venerou a Santíssima Virgem durante a sua vida pode parecer fora de lugar. Alguém, de fato, poderia dizer: Nossa Senhora não é uma só? Para que servem tantos títulos se não para criar confusão? E então, afinal de contas, a Nossa Senhora de Dom Bosco não é Maria Auxiliadora?
Deixando para os especialistas as reflexões mais profundas que justificam esses títulos do ponto de vista histórico, teológico e devocional, vamos nos contentar com uma passagem da “Lumen Gentium”, o documento sobre a Igreja do Concílio Vaticano II, que nos tranquiliza, lembrando-nos de que Maria é nossa mãe e que “com a sua multiforme intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna. Cuida, com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre perigos e angústias, caminham ainda na terra, até chegarem à pátria bem-aventurada. Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos de Advogada, Auxiliadora, Socorro, Medianeira” (Lumen Gentium 62).
Esses quatro títulos admitidos pelo Concílio, bem considerados, englobam em síntese toda uma série de títulos e invocações com os quais o povo cristão chamou Maria, títulos que fizeram Alexandre Manzoni exclamar:
«O Vergine, o Signora, o Tuttasanta, che bei nomi ti serba ogni loquela: più d’un popol superbo esser si vanta in tua gentil tutela» (de Il nome di Maria”). [Ó Virgem, ó Senhora, ó Santíssima, toda oração te reserva grandes nomes. Muitos povos se gloriam orgulhosamente de serem guardados sob a tua proteção] (de “O Nome de Maria”).

A própria Liturgia da Igreja parece entender e justificar os louvores que o povo cristão eleva a Maria, quando pergunta: “Como cantaremos teus louvores, Santa Virgem Maria?”.
Portanto, deixemos as dúvidas de lado e vejamos quais títulos marianos eram caros a Dom Bosco, antes mesmo que ele difundisse o de Maria Auxiliadora em todo o mundo.

Em sua juventude
            As edículas ou ermidas sagradas espalhadas pelas ruas das cidades em muitas partes da Itália, as capelas e os pilares rurais encontrados nos cruzamentos de estradas ou na entrada de estradas particulares em nossas terras constituem um patrimônio de fé popular que até hoje o tempo não apagou.
Seria uma tarefa árdua calcular exatamente quantas podem ser encontradas nas estradas do Piemonte. Somente na área de “Becchi-Morialdo” há cerca de vinte, e nada menos que quinze na área de Capriglio.
Em sua maioria, são pilares votivos herdados dos antigos e restaurados várias vezes. Há também os mais recentes que documentam uma piedade que não desapareceu.
O pilar mais antigo da região de Becchi parece datar de 1700. Foi erguido no fundo da “planície” em direção ao Mainito, onde as famílias que viviam na antiga “Scaiota”, mais tarde uma propriedade rural salesiana, agora em reforma, costumavam se reunir.
Esse é o pilar da Consolata, com uma pequena estátua da Virgem Consoladora dos Aflitos, sempre homenageada com flores do campo trazidas pelos devotos.
Joãozinho Bosco deve ter passado por esse pilar muitas vezes, tirando o chapéu, talvez dobrando o joelho e murmurando uma Ave Maria, como sua mãe lhe ensinara.
Em 1958, os salesianos reformaram o velho pilar e, com um solene serviço religioso, o inauguraram para um renovado culto da comunidade e da população.
Aquela pequena estátua da Consolata poderia ter sido a primeira efígie de Maria que Dom Bosco venerou ao ar livre durante sua vida.

Na antiga casa
            Sem mencionar as igrejas de Morialdo e Capriglio, não sabemos exatamente quais imagens religiosas estavam penduradas nas paredes da propriedade Biglione ou da “Casetta” de Dom Bosco. Sabemos que mais tarde, na casa de José, quando Dom Bosco foi se hospedar lá, pôde ver dois quadros antigos nas paredes de seu quarto, um da Sagrada Família e outro de Nossa Senhora dos Anjos. Assim assegurou a Irmã Eulália Bosco. Onde José as conseguiu? Será que João as viu quando era menino? O da Sagrada Família ainda está em exibição hoje no quarto do meio, no primeiro andar da casa de José. Mostra São José sentado em sua mesa de trabalho, com o Menino nos braços, enquanto Nossa Senhora, de pé do outro lado, observa.
Sabemos também que na propriedade Moglia, perto de Moncucco, Joãozinho costumava fazer as orações e rezar o rosário com a família dos proprietários em frente de um pequeno quadro de Nossa Senhora das Dores, que ainda é mantido nos Becchi no primeiro andar da casa de José, no quarto de Dom Bosco, acima da cabeceira da cama. Ele está muito enegrecido, com uma moldura preta contornada em ouro na parte interna.
Em Castelnuovo, Joãozinho tinha ocasiões frequentes de ir à Igreja de Nossa Senhora do Castelo para rezar à Santíssima Virgem. Na Festa da Assunção, os habitantes do vilarejo levavam a estátua de Nossa Senhora em procissão. Nem todo mundo sabe que essa estátua, assim como o quadro do ícone no altar-mor, representam Nossa Senhora da Correia, a dos Agostinianos.
Em Chieri, o estudante e clérigo seminarista João Bosco rezou muitas vezes no altar de Nossa Senhora das Graças na Catedral de Santa Maria da Escada, no do Santo Rosário na Igreja de São Domingos e diante da Imaculada Conceição na capela do Seminário.
Assim, em sua juventude, Dom Bosco teve a oportunidade de venerar Maria Santíssima sob os títulos de Consolata, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora do Rosário e Imaculada.

Em Turim
            Em Turim, João Bosco já havia ido à Igreja de Nossa Senhora dos Anjos para fazer o exame de admissão à Ordem Franciscana em 1834. Voltou lá várias vezes para fazer os Exercícios Espirituais, em preparação para as Ordens Sagradas, na Igreja da Visitação, e recebeu as Ordens Sagradas na Igreja da Imaculada Conceição, na Cúria Arquiepiscopal.
Quando chegava ao Colégio Eclesiástico, certamente rezava com frequência diante da imagem da Anunciação, na primeira capela à direita, na Igreja de São Francisco de Assis. A caminho da Catedral entrando, como é costume ainda hoje, pelo portal da direita, quantas vezes ele parou por um momento em frente à antiga estátua de Nossa Senhora das Graças, conhecida pelos antigos turinenses como “La Madòna Granda”.
Se pensarmos, então, nas caminhadas de peregrinação que Dom Bosco costumava fazer com seus meninos de Valdocco aos santuários marianos de Turim nos dias do Oratório itinerante, podemos nos lembrar, em primeiro lugar, do Santuário da Consolata, o coração religioso de Turim, cheio de lembranças do primeiro Oratório. Dom Bosco levou muitas vezes os seus jovens à “Consolata”. Ele mesmo recorreu à “Consolata”, em lágrimas, quando da morte de sua mãe.
Mas não podemos nos esquecer dos passeios pela cidade a Nossa Senhora do Pilar, Nossa Senhora da Campanha, no Monte dos Capuchinhos, à Igreja da Natividade em Pozzo Strada, à Igreja das Graças em Crocetta.
A viagem de peregrinação mais espetacular daqueles primeiros anos do Oratório foi a Nossa Senhora de Superga. Essa monumental igreja dedicada à Natividade de Maria lembrou aos jovens de Dom Bosco que a Mãe de Deus é “como uma aurora que surge”, um prelúdio da vinda de Cristo.
Assim, Dom Bosco fez com que seus meninos vivenciassem os mistérios da vida de Maria por meio de seus mais belos títulos.

Nos passeios de outono
            Em 1850, Dom Bosco inaugurou os passeios “ao ar livre”, primeiro nos Becchi e arredores, depois nas colinas de Monferrato até Casale, de Alexandria até Tortona e na Ligúria até Gênova.
Nos primeiros anos, seu destino principal, se não exclusivo, era os Becchi e arredores, onde celebrava a festa do Rosário com solenidade na pequena capela erguida no andar térreo da casa de seu irmão José em 1848.
Os anos de 1857 a 1864 foram os anos dourados das caminhadas de outono, e os meninos participavam delas em grupos cada vez maiores, entrando nos vilarejos com a banda de música à frente, recebidos festivamente pelo povo e pelos párocos locais. Eles descansavam em celeiros, comiam refeições frugais de camponeses, realizavam cultos devotos nas igrejas e, à noite, faziam apresentações em um palco improvisado.
Em 1857, o destino da peregrinação foi Santa Maria di Vezzolano, um santuário e abadia muito queridos por Dom Bosco, localizados abaixo do vilarejo de Albugnano, a 5 km de Castelnuovo.
Em 1861, foi a vez do santuário de Crea, famoso em todo o Monferrato. Naquela mesma viagem, Dom Bosco levou novamente os meninos a Nossa Senhora do Poço, em São Salvador.
Em 14 de agosto de 1862, de Vignale, onde se encontravam os jovens, Dom Bosco conduziu o alegre grupo em uma peregrinação ao santuário de Nossa Senhora das Graças, em Casorzo. Poucos dias depois, em 18 de outubro, antes de deixarem Alexandria, foram novamente à catedral para rezar a Nossa Senhora da Salve (Rainha), venerada com tanta piedade pelos alexandrinos, para obter uma feliz conclusão de seu passeio.
Também na última caminhada de 1864 em Gênova, no caminho de volta, entre Serravalle e Mornese, um grupo liderado pelo P. Cagliero fez uma devota peregrinação ao santuário de Nossa Senhora da Guarda, em Gavi.
Esses passeios de peregrinação retomavam os vestígios de uma religiosidade popular característica de nosso povo; eram a expressão de uma devoção mariana, que João Bosco havia aprendido com sua mãe.

E mais ainda…
            Nos anos de 1860, o título de Maria Auxiliadora começou a dominar a mente e o coração de Dom Bosco, com a construção da igreja com a qual ele sonhava desde 1844 e que se tornou o centro espiritual de Valdocco, a igreja-mãe da Família Salesiana, o ponto de irradiação da devoção a Nossa Senhora, invocada sob esse título.
Mas as peregrinações marianas de Dom Bosco não cessaram por causa disso. Basta segui-lo em suas longas viagens pela Itália e pela França para ver com que frequência ele aproveitava a oportunidade para uma visita rápida ao santuário da Virgem do lugar.
De Nossa Senhora de Oropa, no Piemonte, a Nossa Senhora do Milagre, em Roma; de Nossa Senhora do Boschetto, em Camogli, a Nossa Senhora de Gennazzano; de Nossa Senhora do Fogo, em Forlì, a Nossa Senhora do Olmo, em Cuneo; de Nossa Senhora da Boa Esperança, em Bigione, a Nossa Senhora das Vitórias, em Paris.
Nossa Senhora das Vitórias, colocada em um nicho dourado, é uma rainha de pé, segurando seu Filho Divino com as duas mãos. Jesus tem seus pés apoiados na bola estrelada que representa o mundo.
Diante dessa Rainha das Vitórias em Paris, Dom Bosco fez um “sermão de caridade” em 1883, ou seja, uma dessas conferências para obter ajuda para suas obras de caridade para jovens pobres e abandonados. Foi sua primeira conferência na capital francesa, no santuário que é para os parisienses o que o santuário da Consolata é para o povo de Turim.
Esse foi o ponto culminante das andanças marianas de Dom Bosco, que começaram aos pés da coluna da Consolata, sob a “Scaiota” dos Becchi.




O P. Pedro Ricaldone renasce em Mirabello Monferrato

O P. Pedro Ricaldone (Mirabello Monferrato, 27 de abril de 1870 – Roma, 25 de novembro de 1951) foi o quarto sucessor de Dom Bosco à frente dos Salesianos, homem de vasta cultura, profunda espiritualidade e grande amor pelos jovens. Nascido e criado entre as colinas de Monferrato, sempre carregou consigo o espírito daquela terra, traduzindo-o em um compromisso pastoral e formativo que o tornaria uma figura de destaque internacional. Hoje, os habitantes de Mirabello Monferrato querem trazê-lo de volta às suas terras.

O Comitê P. Pedro Ricaldone: renascimento de uma herança (2019)
Em 2019, um grupo de ex-alunos e ex-alunas, historiadores e apaixonados por tradições locais deu vida ao Comitê P. Pedro Ricaldone em Mirabello Monferrato. O objetivo – simples e ambicioso ao mesmo tempo – foi desde o início trazer a figura do P. Pedro de volta ao coração da cidade e dos jovens, para que sua história e sua herança espiritual não se percam.

Para preparar o 150º aniversário de nascimento (1870-2020), o Comitê pesquisou o Arquivo Histórico Municipal de Mirabello e o Arquivo Histórico Salesiano, encontrando cartas, anotações e volumes antigos. Desse trabalho nasceu uma biografia ilustrada, pensada para leitores de todas as idades, na qual a personalidade de Ricaldone emerge de forma clara e cativante. Fundamental, nesta fase, foi a colaboração com o P. Egídio Deiana, estudioso da história salesiana.

Em 2020, estava prevista uma série de eventos – exposições fotográficas, concertos, espetáculos teatrais e circenses – todos centrados na memória do P. Pedro. Embora a pandemia tenha obrigado a reprogramar grande parte das celebrações, em julho do mesmo ano, realizou-se um evento comemorativo com uma exposição fotográfica sobre as etapas da vida de Ricaldone, uma animação infantil com oficinas criativas e uma celebração solene, com a presença de alguns Superiores Salesianos.
Aquele encontro marcou o início de uma nova fase de atenção ao território de Mirabello.

Além dos 150 anos: o concerto pelo 70º aniversário de morte
O entusiasmo pela recuperação da figura do P. Pedro Ricaldone levou o Comitê a prolongar suas atividades mesmo após o 150º aniversário.
Em vista do 70º aniversário de morte (25 de novembro de 1951), o Comitê organizou um concerto intitulado “Apressar a aurora radiosa do dia esperado”, frase extraída da circular do P. Pedro sobre o Canto Gregoriano de 1942.
Em plena Segunda Guerra Mundial, o P. Pedro – então Reitor-Mor – escreveu uma célebre circular sobre o Canto Gregoriano na qual destacava a importância da música como caminho privilegiado para reconduzir os corações dos homens à caridade, à mansidão e, sobretudo, a Deus: “A alguns poderá causar espanto que, em meio a tanto fragor de armas, eu vos convide a ocupar-vos de música. No entanto, penso, mesmo prescindindo de alusões mitológicas, que este tema responde plenamente às exigências da hora atual. Tudo o que possa exercer eficácia educativa e reconduzir os homens a sentimentos de caridade e mansidão e, sobretudo, a Deus, deve ser por nós praticado, diligentemente e sem demora, para apressar a aurora radiosa do dia esperado”.

Passeios e raízes salesianas: o “Passeio de Dom Bosco”
Embora tenha nascido como uma homenagem ao P. Ricaldone, o Comitê acabou por divulgar novamente também a figura de Dom Bosco e de toda a tradição salesiana, da qual o P. Pedro foi herdeiro e protagonista.
A partir de 2021, a cada segundo domingo de outubro, o Comitê promove o “Passeio de Dom Bosco”, repropondo a peregrinação que Dom Bosco realizou com os jovens de Mirabello a Lu Monferrato de 12 a 17 de outubro de 1861. Naqueles cinco dias, foram planejados os detalhes do primeiro colégio salesiano fora de Turim, confiado ao Beato Miguel Rua, com o P. Álbera entre os professores. Embora a iniciativa não diga respeito diretamente ao P. Pedro, ela destaca suas raízes e o vínculo com a tradição salesiana local que ele mesmo levou adiante.

Hospitalidade e intercâmbios culturais
O Comitê tem incentivado o acolhimento de grupos de jovens, escolas profissionais e clérigos salesianos de todo o mundo. Algumas famílias oferecem hospitalidade gratuita, renovando a fraternidade típica de Dom Bosco e do P. Pedro. Em 2023, um numeroso grupo da Crocetta passou por Mirabello, enquanto durante todo o verão chegam grupos internacionais acompanhados pelo P. Egídio Deiana. Cada visita é um diálogo entre memória histórica e a alegria dos jovens.

Em 30 de março de 2025, quase cem capitulares salesianos fizeram uma parada em Mirabello, nos locais onde Dom Bosco abriu seu primeiro colégio fora de Turim e onde o P. Pedro viveu seus anos de formação. O Comitê, junto com a Paróquia e a Pro Loco [escritório de promoção cultural e turística], organizou a acolhida e produziu um vídeo informativo sobre a história salesiana local, apreciado por todos os participantes.

As iniciativas continuam e hoje o Comitê, liderado por seu presidente, colabora na criação do Caminho Monferrino de Dom Bosco, um itinerário espiritual de aproximadamente 200 km pelas rotas outonais percorridas pelo Santo. O objetivo é obter o reconhecimento oficial em nível regional, mas também oferecer aos peregrinos uma experiência formativa e de evangelização. Os passeios juvenis de Dom Bosco, de fato, eram experiências de formação e evangelização: o mesmo espírito que o P. Pedro Ricaldone defenderia e promoveria depois durante todo o seu reitorado.

A missão do Comitê: manter viva a memória do P. Pedro
Por trás de cada iniciativa está a vontade de destacar a obra educativa, pastoral e cultural do P. Pedro Ricaldone. Os fundadores do Comitê guardam memórias pessoais da infância e desejam transmitir às novas gerações os valores de fé, cultura e solidariedade que animaram o sacerdote de Mirabello. Numa época em que tantos pontos de referência vacilam, redescobrir o caminho do P. Pedro significa oferecer um modelo de vida capaz de iluminar o presente: “Onde passam os Santos, Deus caminha com eles e nada mais é como antes” (São João Paulo II).
O Comitê P. Pedro Ricaldone se faz porta-voz dessa herança, confiando que a memória de um grande filho de Mirabello continue a iluminar o caminho para as gerações futuras, traçando uma senda sólida feita de fé, cultura e solidariedade.




Finalmente na Patagônia!

Entre 1877 e 1880, ocorre a virada missionária salesiana rumo à Patagônia. Após a oferta da paróquia de Carhué em 12 de maio de 1877, dom Bosco sonha com a evangelização das terras austrais, mas dom Cagliero o aconselha a ter cautela diante das dificuldades culturais. As tentativas iniciais sofrem atrasos, enquanto a “campanha do deserto” do general Roca (1879) redefine os equilíbrios com os índios. Em 15 de agosto de 1879, o arcebispo Aneiros confia aos salesianos a missão patagônica: «Finalmente chegou o momento em que posso oferecer a vocês a Missão da Patagônia, pela qual seu coração tanto suspirou». Em 15 de janeiro de 1880, parte o primeiro grupo liderado por dom Giuseppe Fagnano, inaugurando a epopeia salesiana no sul da Argentina.

            O que fez Dom Bosco e o P. Cagliero suspenderem, ao menos temporariamente, qualquer projeto missionário na Ásia foi a notícia de 12 de maio de 1877: o arcebispo de Buenos Aires havia oferecido aos salesianos a missão de Caruhé (sudeste da Província de Buenos Aires), lugar de guarnição e de fronteira entre numerosas tribos de indígenas do vasto deserto dos Pampas e a Província de Buenos Aires.
            Abriam-se assim aos salesianos, pela primeira vez, as portas da Patagônia: Dom Bosco ficou muito entusiasmado; mas o P. Cagliero imediatamente esfriou seu entusiasmo: “Repito-lhe, porém, que em relação à Patagônia não se deve correr com excesso de velocidade, nem ir para lá a vapor, porque os salesianos ainda não estão preparados para esse empreendimento […] muito foi publicado e pudemos fazer muito pouco em relação aos índios. Não se pode desconhecer esta empresa, que é fácil de idealizar, mas difícil de realizar. Faz muito pouco tempo que chegamos aqui. Devemos sim trabalhar com zelo e atividade para esse fim, mas sem fazer alarde, para não despertar a admiração dessa gente daqui, por querermos aspirar nós, que chegamos ontem, à conquista de um país que ainda não conhecemos e cuja língua nem sequer sabemos”.
            Como a opção de Carmen de Patagónes não estava mais disponível, com a paróquia confiada pelo arcebispo a um padre lazarista, os salesianos ficaram com a paróquia mais ao norte de Carhué e a paróquia mais ao sul de Santa Cruz, para a qual o P. Cagliero obteve uma passagem marítima na primavera, o que lhe teria atrasado em seis meses o seu planejado retorno à Itália.
            A decisão de quem deveria “entrar por primeiro na Patagônia” foi, portanto, deixada para Dom Bosco, que pretendia oferecer-lhe essa honra. Mas antes mesmo de saber, o P. Cagliero decidiu voltar: “A Patagônia está me esperando, os de Dolores, Carhué, Chaco estão nos pedindo, e eu vou agradar a todos eles fugindo!” (8 de julho de 1877). Retornou para participar do 1º Capítulo Geral da Sociedade Salesiana, a ser realizado em Lanzo Torinese, em setembro. Entre outras coisas, era sempre membro do Capítulo Superior da Congregação, onde ocupou o importante cargo de Catequista Geral (era o terceiro na Congregação, depois de Dom Bosco e do P. Rua).
            O ano de 1877 se encerrou com a terceira expedição de 26 missionários liderados pelo P. Tiago Costamagna e com o novo pedido de Dom Bosco à Santa Sé para uma Prefeitura em Carhué e um Vicariato em Santa Cruz. No entanto, para dizer a verdade, durante todo o ano, a evangelização direta dos salesianos fora da cidade havia se limitado à breve experiência do P. Cagliero e do clérigo Evásio Rabagliati na colônia italiana de Vila Liberdade em Entre Ríos (abril de 1877), nos limites da Diocese de Paraná, e a algumas excursões ao acampamento pampeano dos salesianos no Paraná, em San Nicolás de los Arroyos.

O sonho se realiza (1880)
            Em maio de 1878, a primeira tentativa de chegar a Carhué, feita pelo P. Costamagna e pelo clérigo Rabagliati, fracassou por causa de uma tempestade no oceano. Mas, nesse meio tempo, Dom Bosco já havia retornado à carga com o novo Prefeito da Propaganda Fide, Cardeal João Simeoni, propondo um Vicariato ou Prefeitura com sede em Carmen, como o próprio P. Fagnano havia sugerido, que ele via como um ponto estratégico para chegar aos nativos.
            No ano seguinte (1879), justamente quando o plano de entrada dos salesianos no Paraguai estava sendo abandonado, as portas da Patagônia finalmente se abriram para eles. De fato, em abril, o general Júlio A. Roca iniciou a famosa “campanha do deserto” com o objetivo de subjugar os índios e obter segurança interna, impelindo-os para além dos rios Negro e Neuquén. Foi o “golpe de misericórdia” para seu extermínio, após os inúmeros massacres do ano anterior.
            O vigário geral de Buenos Aires, Dom Espinosa, como capelão de um forte exército de seis mil homens, foi acompanhado pelo clérigo argentino Luís Botta e pelo P. Costamagna. O futuro bispo percebeu logo a ambiguidade da posição deles, escreveu imediatamente a Dom Bosco, mas não viu outra maneira de abrir o caminho para a Patagônia aos missionários salesianos. E, de fato, assim que o governo pediu ao arcebispo que estabelecesse algumas missões nas margens do Rio Negro e na Patagônia, pensou-se imediatamente nos salesianos.
            Os salesianos, por sua vez, tinham a intenção de pedir ao governo uma concessão de dez anos de um território administrado por eles para construir, com materiais pagos pelo governo e com a mão de obra dos índios, os edifícios necessários para uma espécie de redução naquele território: os indígenas teriam evitado a contaminação dos colonos cristãos “corruptos e perversos” e os missionários plantariam ali a cruz de Cristo e a bandeira argentina. Mas o inspetor salesiano, P. Francisco Bodrato, não se sentia em condições de decidir por conta própria, e o P. Lasagna o desaconselhou em maio, alegando que o governo de Avellaneda estava no fim de seu mandato e não estava interessado no problema religioso. Portanto, era melhor preservar a independência e a liberdade de ação dos salesianos.
            Em 15 de agosto de 1879, Dom Aneiros ofereceu formalmente a Dom Bosco a missão da Patagônia: “Chegou finalmente o momento em que posso oferecer-lhe a Missão da Patagônia, pela qual o seu coração tanto ansiava, bem como o cuidado das almas entre os patagônios, que pode servir de centro para a missão”.
            Dom Bosco aceitou-a de imediato e de bom grado, mesmo que ainda não fosse o tão desejado consentimento para a ereção de circunscrições eclesiásticas autônomas em relação à Arquidiocese de Buenos Aires, uma realidade constantemente recusada pelo Ordinário diocesano.

A partida
            O grupo de missionários partiu para a tão sonhada Patagônia no dia 15 de janeiro de 1880: era formado pelo P. José Fagnano, diretor da Missão e pároco em Carmen de Patagónes (o padre lazarista havia se retirado), dois sacerdotes, um dos quais era responsável pela paróquia de Viedma, na outra margem do Rio Negro, um leigo salesiano (coadjutor) e quatro religiosas. Em dezembro, o P. Domingos Milanesio chegou para ajudar e, alguns meses depois, o P. José Beauvoir chegou com outro noviço coadjutor. A epopeia missionária salesiana na Patagônia estava começando.




Presentes dos jovens a Maria (1865)

No sonho narrado por Dom Bosco na Crônica do Oratório, datado de 30 de maio, a devoção mariana converte-se num vívido juízo simbólico sobre os jovens do Oratório: um cortejo de jovens apresenta-se, cada qual com um dom, diante de um altar esplendidamente adornado para a Virgem. Um anjo, guardião da comunidade, acolhe ou rejeita as oferendas, desvendando-lhes o significado moral – flores perfumadas ou murchas, espinhos de desobediência, animais que personificam vícios graves como a impureza, o roubo e o escândalo. No âmago da visão, ecoa a mensagem educativa de Dom Bosco: humildade, obediência e castidade são os três pilares para se merecer a coroa de rosas de Maria.

            O Servo de Deus se consolava com a devoção a Maria Santíssima, honrada no mês de maio pela comunidade inteira de maneira especial. De suas pequenas falas à noite, a Crônica tem-nos conservado somente aquela do dia 30 do mês, que, entretanto, é de enorme preciosidade.

30 de maio

            Vi um grande altar dedicado a Maria, magnificamente decorado. Vi todos os jovens do Oratório, que em procissão se dirigiam para ele. Cantavam os louvores à Virgem Celeste, mas nem todos do mesmo modo, ainda que cantassem o mesmo hino. Muitos cantavam verdadeiramente bem e com precisão de ritmo, alguns mais forte outros mais suave. Outros cantavam com vozes péssimas e roucas. Uns destoavam. Havia os que avançavam silenciosos e saíam da fila. Uns bocejavam e pareciam enjoados; uns se empurravam e riam entre si. Todos também levavam seus presentes para oferecer a Maria. Todos tinham um ramalhete de flores, uns grandes e outros menores, diferentes um do outro. Quem tinha rosas, quem cravos, outro, violetas etc. Alguns levavam à Virgem presentes de fato estranhos: um a cabeça de um porco, outro um gato, quem um prato de sapos, quem um coelho, outro um cordeiro e outras ofertas.
            Um belo jovem estava na frente do altar, o qual, se observado com atenção se via que tinha asas nas costas. Talvez fosse o Anjo da Guarda do Oratório. À medida que os jovens chegavam, ele pegava as ofertas e as colocava sobre o altar.
            Os primeiros ofereceram magníficos buquês de flores; o anjo, sem nada dizer, os colocou no altar. Muitos outros trouxeram seus ramalhetes. O anjo os olhou, mandou desmanchar o ramalhete, fez tirar algumas flores que estavam estragadas, jogando-as fora e, refeito o ramalhete, o colocou sobre o altar. A outros que tinham flores bonitas, mas sem aroma, como seriam as dálias, as camélias etc., o anjo as fez jogar fora, pois Maria quer a realidade e não as aparências. E assim, refeito o ramalhete, o anjo o ofereceu à Virgem. Dentre as flores, muitas tinham espinhos, poucos ou muitos. Outras tinham pregos, e o anjo retirou estes e aqueles.
            Chegou, então, aquele trazia o porco, e o anjo lhe disse: – Tem coragem de oferecer a Maria este presente? Sabe o que significa o porco? Significa o vício feio da impureza. Maria que é toda pura não pode aceitar este dom. Retire-se, portanto, pois você não é digno de ficar na frente dela.
            Aproximaram-se os que tinham um gato. O anjo lhes disse: – Vocês também ousam trazer a Maria estes presentes? Sabem o que significa o gato? Simboliza o roubo, e vocês o oferecem à Virgem? São ladrões os que pegam dinheiro, coisas, livros dos companheiros; os que roubam comida do Oratório; que estragam as roupas por despeito, e desperdiçam o dinheiro dos pais porque não estudam. – E fez que estes também se retirassem à parte.
            Vieram os que tinham os pratos com sapos, e o anjo, indignado, disse: – Os sapos significam os vergonhosos pecados de escândalo, e vocês vêm para oferecê-los à Vigem? Voltem; retirem-se com os outros indignos. – Retiraram-se confusos.
            Alguns vinham com um punhal cravado no coração. Este punhal significava os sacrilégios. O anjo lhes disse: – Vocês não percebem que estão com a morte na alma? Que se estão com vida, é por misericórdia especial de Deus? De outra maneira estariam perdidos. Por favor, façam arrancar esse punhal! – E estes também foram rejeitados.
            Aos poucos todos os jovens se aproximaram. Há quem ofereceu cordeiros, coelhos, peixes, nozes, uva etc., etc. O anjo aceitou tudo e tudo colocou sobre o altar. E, após ter separados os jovens bons dos maus, mandou todos, dos quais foram aceitos os presentes a Maria, fazerem fila diante do altar. Os que tinham sido postos à parte, foram, para minha dor, muito mais numerosos do que acreditava.
            Apareceram, então, de um e de outro lado do altar, outros dois anjos. Seguravam duas riquíssimas cestas cheias de coroas feitas de rosas estupendas. Essas rosas não eram propriamente rosas da terra, mas sim, eram como que artificiais, símbolos da imortalidade.
            E o Anjo da Guarda pegou uma por uma daquelas coroas, e coroou todos os jovens que estavam enfileirados diante do altar. Entre as coroas havia umas maiores e outras menores, mas todas de admirável beleza. Notem que não estavam presentes somente os jovens atualmente da casa, mas também muitos outros que eu nunca vi. Pois bem, aconteceu uma coisa maravilhosa! Havia jovens de fisionomia tão feia que quase causavam nojo e repugnância. As estes couberam as coroas mais bonitas, significando que um exterior tão feio era suprido pelo presente, a virtude da castidade em grau eminente. Muitos se distinguiam por outras virtudes, como obediência, humildade, amor a Deus, e todos, de acordo com a grandeza destas virtudes, recebiam coroas correspondentes. E o anjo lhes disse:
            – Maria hoje quis que vocês fossem coroados com tão belas rosas. Recordem-se, contudo, de continuar de forma que não lhes sejam tiradas. Os meios para conservá-las são três. Pratiquem: 1º a humildade; 2º a obediência; 3º a castidade. Três virtudes que os farão sempre aceitos por Maria e, um dia, os tornarão dignos de receber uma coroa infinitamente mais linda do que estas.
            Então os jovens começaram a entoar diante do altar o Ave, Maris Stella (Ave, estrela do mar).
            E, tendo cantado a primeira estrofe, se movimentaram para retornar em procissão como tinham vindo, cantando o hino: Lodate Maria! Suas vozes eram tão fortes que eu fiquei espantado e maravilhado. Segui-os ainda por alguns instantes, voltando para ver os jovens separados pelo anjo. Porém não os vi mais.
            Meus caros! Sei quem foi coroado e quem o anjo expulsou. Di-lo-ei aos interessados, a fim de que procurem levar à Virgem presentes que ela se digne aceitar.
            Enquanto isso, algumas observações. – A primeira: Todos levavam flores à Virgem; havia flores de todos os tipos. Porém, observei que todos, quem mais quem menos, no meio das flores tinham espinhos. Pensei e pensei o que significariam aqueles espinhos, e descobri que realmente significavam a desobediência. Conservar dinheiro sem autorização e sem querer entregá-lo ao Prefeito [ecônomo]; solicitar permissão para ir a um lugar e depois ir num outro; ir para a aula quando os outros lá já se encontram há algum tempo; preparar saladas e outras comidas às escondidas; ir aos dormitórios dos outros quando é absolutamente proibido, qualquer que seja o motivo que possam ter; levantar-se tarde de manhã; deixar as práticas de piedade prescritas; conversar quando é tempo de fazer silêncio; comprar livros sem os mostrar; enviar sem licença cartas por meio de terceiros, para que não sejam vistas, e recebê-las usando o mesmo expediente; fazer contratos de compra e venda um com o outro. Eis o que significam os espinhos. Muitos de vocês perguntarão: é então pecado transgredir as regras da casa? Pensei seriamente nesta questão; respondo-lhes absolutamente, sim. Não lhes digo se grave ou leve: as circunstâncias dirão, mas é pecado. Alguém me dirá: mas na lei de Deus não está que devemos obedecer às regras da casa! Ouçam: está nos mandamentos: – honra pai e mãe! Sabem o que significam estas palavras pai e mãe? Referem-se também a quem lhes faz as vezes. Não está também escrito na sagrada escritura: oboedite praepositis vestris (Obedecei aos vossos dirigentes – Hb 13,17)? Se vocês têm de obedecer, é natural que eles têm de mandar. Eis a origem das regras de um Oratório, e eis se são obrigatórias ou não.
            Segunda observação: – Alguns tinham pregos no meio de suas flores, pregos que tinham servido para pregar o Senhor Jesus. E como? Sempre se começa pelas pequenas coisas e depois se chega às grandes. Aquele um queria ter dinheiro para satisfazer seus caprichos, portanto, para gastá-lo à sua maneira, não quis entregá-lo; depois começou a roubar livros de aula e terminou por furtar dinheiro e coisas dos colegas. Esse outro queria satisfazer a gula, e por isso garrafas etc., depois se permitiu licenças, em suma, caiu em pecado mortal. Eis como se acharam pregos naqueles ramalhetes; eis como o bom Jesus foi crucificado. O apóstolo diz que os pecados colocam de novo o Salvador na Cruz: Rursus crucifigentes filium Dei (Crucificam novamente o Filho e Deus – Hb 6,6).
            Terceira observação. – Muitos jovens tinham, entre as flores frescas e odoríferas, também flores murchas e podres, ou flores bonitas, mas sem aroma. Aquelas significavam as obras boas, mas feitas em pecado mortal, obras que não ajudam a aumentar seus merecimentos. As flores sem aroma são as obras realizadas por objetivos humanos, por ambição, somente para agradar aos professores e aos superiores. Então o anjo os censurava por ousarem levar semelhantes ofertas a Maria, e os mandava de volta para refazer o ramalhete. Eles se retiravam, o desfaziam, tiravam as flores estragadas e, depois, ajeitadas de novo as flores, as amarravam como antes, e as levavam ao anjo que, então, as aceitava e as colocava na mesa. Estes ao voltar não seguiam nenhuma ordem de fila, mas mal estavam prontos, quem antes, quem depois, cada um trazia de volta seu ramalhete e ia se colocar com aqueles que deviam receber a coroa.
            Neste sonho eu vi tudo o que foi e o que será de meus jovens. Para muitos já o disse. Aos outros, di-lo-ei. Por enquanto, procurem que esta Virgem Celeste sempre receba de vocês presentes que nunca tenham de ser recusados.
(MBp VIII, 157-161)

Foto de abertura: Carlo Acutis durante uma visita ao Santuário Mariano de Fátima.




A nova Sede Central dos Salesianos. Roma, Sagrado Coração

Hoje, a vocação original da casa do Sagrado Coração vê um novo início. Tradição e inovação continuam a caracterizar o passado, o presente e o futuro desta obra tão significativa.

Quantas vezes Dom Bosco desejou vir a Roma para abrir uma casa salesiana. Desde a primeira viagem, em 1858, o seu objetivo era estar presente na Cidade Eterna com uma presença educativa. Veio a Roma por vinte vezes e somente na última viagem, em 1887, conseguiu realizar seu sonho abrindo a casa do Sagrado Coração, no “Castro Pretorio”.
A Obra salesiana está localizada no bairro “Esquilino”, nascido em 1875, após a abertura da “brecha de Porta Pia” e a exigência dos Savoia de construir, na nova capital ,os ministérios do Reino da Itália. O bairro, também chamado “Umbertino”, é de arquitetura piemontesa, e todas as ruas tem o nome de batalhas ou eventos ligados ao estado sabaudo. Não podia faltar neste lugar, que remete a Turim, um Templo, que fosse também paróquia, construído por um piemontês, o P. João Bosco. O nome da igreja não foi escolhido por Dom Bosco, mas era o desejo do Papa Leão XIII para relançar a devoção, mais atual do que nunca, ao Coração de Jesus.
Hoje, a casa do Sagrado Coração está completamente renovada para responder às exigências da Sede Central dos Salesianos. Desde o momento de sua fundação até hoje a casa passou por diversas transformações. A Obra nasce como Paróquia e Templo Internacional para a difusão da devoção ao Sagrado Coração, e desde o seu início Dom Bosco tinha o claro objetivo de construir ao lado um Abrigo para hospedar até 500 jovens pobres. O P. Rua concluiu a Obra e abriu oficinas para artesãos (escola de artes e ofícios). Nos anos seguintes foram abertas a escola de Ensino Fundamental e o Ensino Médio clássico. Por alguns anos foi também a sede da Universidade do “Pontificio Ateneo Salesiano” e uma casa de formação para os salesianos que estudavam nas universidades romanas, mas que também se dedicavam à escola e ao oratório (entre estes estudantes está “Don Quadrio”). Foi também a sede da Inspetoria Romana e, a partir de 2008, da Circunscrição da Itália Central. Desde 2017, uma vez deixada a casa de “via della Pisana”, tornou-se a Sede Central dos Salesianos. Em 2022 se iniciou sua reforma para adequar os ambientes à função de casa do Reitor-Mor. Nesta casa viveram ou passaram: Dom Bosco, o P. Rua, o cardeal Cagliero (o seu apartamento era no primeiro andar de “via Marsala”), Zeferino Namuncurá, Dom Versiglia, Artêmides Zatti, todos os Reitores-Mores que sucederam Dom Bosco, São João Paulo II, Santa Teresa de Calcutá, o Papa Francisco. Entre os diretores da casa está D. Giuseppe Cognata: durante o seu reitorado, foi colocada em 1930 a estátua do Sagrado Coração no campanário.
Graças ao Sagrado Coração o carisma salesiano se difundiu em vários bairros de Roma; todas as outras presenças salesianas de Roma, de fato, eram uma ramificação desta casa: “Testaccio”, “Pio XI”, “Borgo Ragazzi Don Bosco”, “Don Bosco Cinecittà”, “Gerini”, “Università Pontificia Salesiana”.

Lugar de acolhida
Desde o seu início, os traços característicos da Casa do Sagrado Coração são dois:
1) a catolicidade, pois abrir uma casa em Roma sempre significou para os fundadores das ordens religiosas uma proximidade ao Papa e uma ampliação dos horizontes em nível universal. Na primeira conferência aos Salesianos Cooperadores, no mosteiro romano de “Tor De’ Specchi”, em 1874, Dom Bosco afirmou que os salesianos se espalhariam por todo o mundo e ajudar suas obras significava viver o mais autêntico espírito de catolicidade;
2) a atenção aos jovens pobres: a localização vizinha à estação, lugar de chegadas e partidas, onde sempre se reuniram os mais pobres, está presente na história do Sagrado Coração.
No início, o Abrigo hospedava os jovens pobres para lhes ensinar um ofício, sucessivamente o oratório acolhia os jovens do bairro; após a guerra, os engraxates (jovens que lustravam os sapatos das pessoas que saíam da estação) foram acolhidos e cuidados, primeiro nesta casa e depois foram transferidos para o “Borgo Ragazzi Don Bosco”; na metade dos anos 80, com a primeira imigração na Itália, jovens imigrantes foram hospedados em colaboração com a nascente Caritas; nos anos 90, um Centro Diurno acolhia jovens em alternativa à prisão e lhes ensinava os fundamentos da leitura e da escrita, e também um ofício; desde 2009 um projeto de integração entre jovens refugiados e jovens italianos viu florescer tantas iniciativas de acolhimento e de evangelização. A Casa do Sagrado Coração por cerca de 30 anos foi, também, sede do Centro Nacional das Obras Salesianas da Itália.

O novo início
Hoje, a vocação original da casa do Sagrado Coração vê um novo início. Tradição e inovação continuam a caracterizar o passado, o presente e o futuro desta obra tão significativa.
Em primeiro lugar, a presença do Reitor-Mor com seu conselho e dos salesianos que se ocupam da dimensão mundial da Congregação indica a continuidade da catolicidade. Uma vocação à acolhida de tantos salesianos provenientes de todo o mundo e que encontram no Sagrado Coração um lugar para se sentirem em casa, experimentarem a fraternidade, encontrarem-se com o sucessor de Dom Bosco. Ao mesmo tempo, é o lugar no qual o Reitor-Mor anima e governa a Congregação, traçando as linhas para ser fiéis a Dom Bosco hoje.
Em segundo lugar, a presença de um significativo lugar salesiano onde Dom Bosco escreveu a “Carta de Roma” e onde compreendeu o sonho dos nove anos. Dentro da casa haverá o “Museu Casa Dom Bosco de Roma”, que em três andares contará a presença de Dom Bosco na Cidade Eterna. A centralidade da educação como “coisa do coração” em seu Sistema Preventivo, a relação com os Papas que amaram Dom Bosco e que ele, em primeiro lugar, amou e serviu, o Sagrado Coração como lugar de expansão do carisma em todo o mundo, o fatigante percurso de aprovação das Constituições Salesianas, a compreensão do sonho dos nove anos e seu último suspiro educativo ao escrever a “Carta de Roma” são os elementos temáticos que, em formato multimídia imersivo, serão contados àqueles que visitarem o museu.
Em terceiro lugar, a devoção ao Sagrado Coração representa o centro do carisma. Dom Bosco, antes mesmo de receber o convite para construir a igreja do Sagrado Coração, havia orientado os jovens para esta devoção. No livro “O jovem instruído” existem orações e práticas de piedade dirigidas ao Coração de Cristo. Mas depois que aceitou a proposta de Leão XIII, Dom Bosco se torna um verdadeiro apóstolo do Sagrado Coração. Não poupa suas forças para procurar dinheiro para a construção da igreja. O cuidado dos mínimos detalhes infunde nas escolhas arquitetônicas e artísticas da Basílica o seu pensamento e a sua devoção ao Sagrado Coração. Para financiar a construção da igreja e da casa, ele funda a Pia Obra do Sagrado Coração de Jesus, a última das cinco fundações realizadas por Dom Bosco ao longo de sua vida, junto com os Salesianos, as Filhas de Maria Auxiliadora, os Salesianos Cooperadores e a Associação de Maria Auxiliadora. A Pia Obra foi criada para a celebração perpétua de seis missas diárias na igreja do Sagrado Coração de Roma. Dela fazem parte todas as pessoas inscritas, vivas e falecidas, através da oração e das boas obras feitas pelos Salesianos e pelos jovens em todas as suas casas.
A visão de Igreja que deriva da fundação da Pia Obra é a de um “corpo vivo” composto por fiéis vivos e falecidos em comunhão entre si através do Sacrifício de Jesus, renovado quotidianamente na celebração eucarística a serviço dos jovens mais pobres. O desejo do Coração de Jesus é que todos sejam uma coisa só (ut unum sint) como Ele e o Pai. A Pia Obra conecta, através da oração e das ofertas, os benfeitores vivos e falecidos, os Salesianos de todo o mundo e os jovens que vivem no Sagrado Coração. Somente através da comunhão, que tem sua fonte na Eucaristia, os benfeitores, os Salesianos e os jovens podem contribuir para construir a Igreja, para fazer resplandecer o seu rosto missionário. A Pia Obra tem, ainda, a tarefa de promover, difundir e aprofundar a devoção ao Sagrado Coração em todo o mundo, adaptando-a aos tempos e ao sentir da Igreja.

A estação central para evangelizar
Finalmente, a atenção aos jovens pobres se manifesta na vontade missionária de alcançar os jovens de toda Roma através do Centro Juvenil aberto na “via Marsala”, bem na saída da estação “Termini”, onde a cada dia passam cerca de 300.000 pessoas. Um lugar que seja casa para os tantos jovens italianos e estrangeiros que visitam ou vivem em Roma e têm sede, nem sempre se dando conta, de Deus. Além do mais, desde sempre ao redor da estação “Termini” se aglomera muita gente pobre, marcada pelo cansaço da vida. Uma outra porta também aberta na “via Marsala”, além daquelas do Centro Juvenil e da Basílica, expressa o desejo de responder às necessidades dessas pessoas com o Coração de Cristo: nelas também resplandece a glória de seu rosto.
A profecia de Dom Bosco sobre a Casa do Sagrado Coração, de 5 de abril de 1880, acompanha e guia a realização do que aqui foi dito:

Mas Dom Bosco mirava longe. Nosso Dom João Marenco lembrava uma misteriosa palavra dele que o tempo não deve deixar cair no esquecimento. No mesmo dia em que aceitou a pesadíssima oferta, o Beato perguntou-lhe:
– Sabe por que aceitamos a casa de Roma?
– Eu não, respondeu Marenco.
– Pois então, preste atenção. Nós a aceitamos porque, quando o Papa for aquele que agora não é, e como deve ser, colocaremos na nossa casa a estação central para evangelizar o campo romano. Será trabalho não menos importante do que esse de evangelizar a Patagonia. Então, os salesianos serão conhecidos e sua glória resplandecerá. (MB XIV, 480-481).

dom Francesco Marcoccio