A pastora, as ovelhas e os cordeiros (1867)

No trecho a seguir, Dom Bosco, fundador do Oratório de Valdocco, conta aos seus jovens um sonho que teve entre 29 e 30 de maio de 1867 e narrou na noite do Domingo da Santíssima Trindade. Numa planície sem fim, rebanhos e cordeiros tornam-se alegoria do mundo e dos jovens: prados exuberantes ou desertos áridos figuram a graça e o pecado; chifres e feridas denunciam escândalo e desonra; o número “3” prenuncia três fomes – espiritual, moral, material – que ameaçam quem se afasta de Deus. Do relato brota o apelo urgente do santo: guardar a inocência, voltar à graça com a penitência, para que cada jovem possa revestir-se das flores da pureza e participar da alegria prometida pelo bom Pastor.

No domingo da Santíssima Trindade, 16 de junho, em que Dom Bosco há vinte e seis anos atrás tinha celebrado sua primeira missa, os jovens estavam na expectativa do sonho, cuja narração havia sido anunciada no dia 13. Seu ardente desejo era o bem espiritual da grei, e sua norma, as admoestações e as promessas do livro dos Provérbios, 27, 23-25: Diligentes agnosce vultum pecoris tui, tuosque greges considera: non enim habebis iugiter potestatem: sed corona tribuetur in generationem et generationem. Aperta sunt prata, et apparuerunt herbae virentes, et collecta sunt foena de montibus (Com diligência reconhece o aspecto das tuas ovelhas e dá atenção aos teus rebanhos, pois nem sempre poderás fazê-lo e a coroa não passa de geração a geração! Roçaram-se os prados, apareceu a erva verde e foi recolhido o feno dos montes)… Nas suas orações pedia para conhecer bem as ovelhas, para ter a graça de vigiar com atenção, e garantir-lhes a guarda também após sua morte, vê-las providas de fácil e conveniente alimento espiritual e material. Então, depois das orações da noite, Dom Bosco falou assim:

Numa das últimas noites do mês de Maria, estando na cama e não conseguindo dormir, pensando nos meus queridos jovens, dizia para mim mesmo:
– Que bom se pudesse sonhar algo que fosse para o bem deles! Fiquei algum tempo refletindo e resolvi:
– Sim, agora eu quero sonhar em favor de meus jovens.
E eis que adormeci. Mal peguei no sono, me vi numa imensa planície cheia de infinita quantidade de grandes ovelhas, as quais, divididas em rebanhos, pastavam em prados extensos a perder de vista. Quis me aproximar delas e pus-me a procurar o pastor, cheio de espanto em imaginar que pudesse existir alguém no mundo dono de tantas ovelhas. Procurei por pouco tempo e me vi diante de um pastor apoiado em seu cajado.
Apressei-me a interrogá-lo, perguntando-lhe:
– A quem pertence este rebanho tão numeroso?
O pastor não respondeu. Repeti a pergunta; então me falou:
– Que interesse tem o senhor em saber?
– E por que – acrescentei – me responde desta maneira?
– Está bem, este rebanho é de seu dono.
– De seu dono? Isso eu já sabia – falei para mim mesmo. Porém continuei em voz alta:
– Quem é esse dono?
– Não se incomode – respondeu-me o pastor – sabê-lo-á.
Então, andando com ele por aquele vale, pus-me a examinar o rebanho, por todos os lugares por onde vagava. Em certos locais, o vale estava coberto por rica vegetação, com árvores que estendiam grandes copas com agradáveis sombras e gramados novíssimos nos quais belas e vigorosas ovelhas pastavam. Em outras partes a planície era estéril, arenosa, cheia de pedras com espinheiros sem folhas, gramíneas amareladas, não existindo sequer um fio de capim verde. Apesar disso, também aqui outras ovelhas pastavam, mas com miserável aparência.
Eu pedia que meu guia me explicasse várias coisas a respeito de seu rebanho. Sem nada me responder às minhas perguntas, me disse:
– Você não é destinado para elas. Não pense nestas. Vou conduzi-lo ao rebanho do qual você deve cuidar.
– Mas você, quem é?
– Sou o dono. Venha comigo para observar lá, daquele lado.
Conduziu-me a outro lugar da planície onde havia milhares e milhares somente de cordeirinhos. Eram tão numerosos que não dava para contá-los. Eram tão magros que mal e mal podiam andar. O campo estava seco, árido e arenoso; não se via um fiapo de capim verde, um regato. Somente algum raminho ressequido e moitas secas. Toda pastagem havia sido destruída pelos próprios cordeirinhos.
Notava-se à primeira vista que esses coitados cordeirinhos, cobertos de feridas, tinham sofrido muito, continuavam sofrendo. Coisa estranha! Cada um tinha dois chifres compridos e grossos na testa, como se fossem carneiros velhos. Na ponta dos chifres havia um apêndice em forma de “S”. Maravilhado, fiquei perplexo com este estranho apêndice. Não entendia porque esses cordeirinhos já tinham chifres tão compridos e grossos e tivessem destruído tão rapidamente toda a pastagem.
– Como se explica isto? – Falei ao pastor. – Esses cordeirinhos são tão pequenos e já com chifres assim?
– Olhe – respondeu-me; – observe.
Observando com mais atenção, vi que esses cordeirinhos carregavam enigmaticamente muitos números “3” estampados em todas as partes do corpo: no lombo, na cabeça, no focinho, nas orelhas, no nariz, nas pernas, nos cascos.
– Mas, o que isto significa? – Exclamei. – Não entendo nada.
– Como não entende? – Disse-me o pastor. – Então ouça e compreenderá tudo. Esta enorme planície é o mundo. Os locais revestidos de ervas, a palavra de Deus e sua graça. Os locais estéreis e áridos são onde não se ouve a palavra de Deus, procurando-se somente os prazeres do mundo. As ovelhas são os adultos; os cordeirinhos são os jovens; para estes Deus enviou Dom Bosco. Este ângulo da planície que você vê é o Oratório; os cordeirinhos aí reunidos são os seus meninos. Este lugar árido significa o estado de pecado. Os chifres significam a desonra. A letra “S” quer dizer scandalo (escândalo). Com o mau exemplo se dirigem para a ruína. No meio desses cordeirinhos há alguns com os chifres quebrados; foram escandalosos, e agora pararam de dar escândalo. O número “3” significa que carregam o castigo da culpa. Quer dizer que sofrerão três grandes carências: carência espiritual, moral, material. 1º A carência de auxílios espirituais; pedirão esta ajuda, e não a terão. 2º Carência da palavra de Deus. 3º Carência de pão material. O fato de os cordeirinhos terem comido tudo, quer dizer que nada mais lhes resta senão a desonra. O número “3” são as três ausências. Esse espetáculo mostra também os sofrimentos de muitos jovens no meio do mundo. No Oratório não falta pão material, também para os que seriam indignos.
Enquanto eu ouvia e observava tudo como que esquecido, nova maravilha
aparece. Todos os cordeirinhos mudam de aparência.
Ergueram-se sobre as patas traseiras ficando altos e tomando a forma de outros tantos jovens do Oratório. Aproximei-me para ver se conhecia algum. Todos eram alunos do Oratório. Muitos deles nunca os tinha visto, porém, todos afirmavam serem filhos do nosso Oratório. Entre os que eu não conhecia havia alguns poucos que presentemente estão no Oratório. São os que nunca se apresentam a Dom Bosco, que nunca vão buscar conselho com ele, os que fogem dele. Numa palavra, aqueles que Dom Bosco não conhece ainda! Entretanto, a maioria dos desconhecidos era dos que não foram nem estão ainda no Oratório.
Enquanto, com pena, observava essa multidão, quem me acompanhava tomou-me pela mão e me disse: – Venha comigo e verá outras coisas. – Conduziu-
-me a um canto remoto do vale, circundado por pequenas colinas, cercado por uma sebe de plantas viçosas, onde havia um grande prado verdejante, o mais agradável que se pode imaginar, cheio de toda espécie de ervas aromáticas, disseminado de flores campestres, com viçosas moitas e correntes de águas límpidas. Aqui encontrei outro imenso número de filhos, todos alegres, os quais com flores tinham-se feito ou estavam fazendo linda roupagem.
– Você tem ao menos esses que lhe dão grande satisfação.
– Quem são? – Perguntei.
– São os que estão na graça de Deus.
Ah, posso dizer que nunca vi coisas e pessoas tão bonitas e esplêndidas. Nem podia imaginar tais resplendores. É inútil que eu queira descrevê-los, pois seria impossível falar sem estar vendo. Porém, estava reservado um espetáculo mais surpreendente. Enquanto observava com grande alegria esses jovens, e entre eles via muitos que não conhecia ainda, meu guia acrescentou:
– Venha, venha comigo, e lhe mostrarei algo que lhe fará grande alegria e consolação maior. – Conduziu-me a outro campo completamente tomado das mais raras e perfumadas flores nunca vistas. Seu aspecto era como um jardim principesco. Aqui se via uma quantidade não tão grande de jovens, entretanto de extraordinária formosura e esplendor de maneira a fazer desaparecer os que há pouco eu tinha admirado. Alguns desses já estão aqui no Oratório, outros virão mais tarde.
O pastor me falou:
– Esses são os que conservam o lindo lírio da pureza. Estão ainda vestidos com a estola da inocência.
Olhava extático. Quase todos tinham na cabeça um coroa de flores indescritivelmente lindas. Estas flores eram formadas de outras minúsculas flores de surpreendente delicadeza. As cores eram de encantadora vivacidade e variedade, mais de mil cores numa única flor. Numa só flor se viam mil flores. Uma veste de deslumbrante brancura lhes descia até aos pés, também toda tecida de guirlandas de flores, semelhantes às da coroa. A luz que saía dessas flores revestia toda a pessoa e espelhava nela toda a alegria. As flores se refletiam umas nas outras, aqueles das coroas naquelas das guirlandas, reverberando cada uma os raios emitidos pelas outras. Um raio de uma cor, quebrando-se com raio de outra cor, formava outros novos raios, diferentes, brilhantes. Assim, de cada raio eram reproduzidos outros novos raios, de forma que eu nunca teria podido imaginar que no céu houvesse tantos variados encantos. Isto não é tudo. Os raios e as flores da coroa de uns se refletiam nas flores e nos raios da coroa de todos os outros: igualmente as guirlandas e o esplendor da veste de um refletiam-se nas guirlandas e vestes dos outros. E depois, os esplendores do rosto de um jovem, ricocheteando, se fundiam com os do rosto dos companheiros, de modo que, reverberando sobre todos aqueles rostinhos inocentes e redondos, produziam luz tão forte que ofuscava a visão e impedia de fixar o olhar.
Desta forma, em um só se concentravam as belezas de todos os outros companheiros com inefável harmonia de luz! Era a afortunada glória dos santos. Não há imagem humana para descrever, nem que seja fracamente, como estava belo cada um dos jovens no meio do oceano de esplendores. Entre estes observei alguns em particular, que hoje estão no Oratório. Tenho certeza que se pudessem contemplar ao menos um décimo de sua beleza atual, estariam prontos a sofrer o fogo, a se deixar cortar em pedaços, enfim, a ir ao encontro do mais atroz martírio para não perdê-la.
Assim que pude me recuperar deste espetáculo celeste, voltei-me para o pastor e disse:
– Então, entre tantos, meus jovens, são tão poucos os inocentes? São tão poucos os que nunca perderam a graça de Deus?
O pastor respondeu:
– Como? Não lhe parece bastante este elevado número? De mais, os que tiveram a desgraça de perder o lindo lírio da pureza, e com este a inocência, podem ainda seguir seus companheiros na penitência. O senhor vê lá? Naquele campo se encontram ainda muitas flores. Pois bem, eles podem fazer-se uma coroa e uma veste belíssima e acompanhar ainda os inocentes na glória.
– Sugira-me ainda alguma coisa para eu falar aos meus jovens – disse eu.
– Repita a seus jovens, que se soubessem como são belas a inocência e a pureza aos olhos de Deus, estariam prontos a fazer qualquer sacrifício para conservá-la. Diga-lhes que criem coragem para praticar esta virtude cândida, que supera as outras em beleza e esplendor. Pois os castos são os que crescunt tanquam lilia in conspectu Domini (Crescem como lírios na presença do Senhor).
Então quis me dirigir para o meio daqueles meus caríssimos, tão singularmente coroados, mas tropecei no terreno e, acordando, estava na cama.
Meus filhos, vocês são todos inocentes? Talvez alguns de vocês sejam. A estes dirijo minhas palavras. Não percam, por caridade, esta virtude de valor inestimável! É uma riqueza que tem o mesmo valor do Paraíso, o mesmo valor de Deus! Se vocês tivessem visto como eram belos esses jovens com suas flores. O conjunto desse espetáculo era tal que eu daria qualquer coisa do mundo para usufruir ainda dessa vista; mais, se fosse pintor, consideraria uma grande graça conseguir pintar de alguma maneira o que vi. Se soubessem como é a beleza de um inocente, se sujeitariam a qualquer grande esforço, até à morte, para conservar o tesouro da inocência.
O número dos que tinham voltado à graça, apesar de me terem dado contentamento, contudo eu esperava que fosse mais alto. Fiquei maravilhado ao ver que alguns que aqui na aparência parecem bons jovens, lá tinham os chifres compridos e grossos…

Dom Bosco encerrou com calorosa exortação para aqueles que tinham perdido a inocência, a fim de que se esforçassem com toda a vontade a recuperar a graça por meio da penitência.
Dois dias depois, em 18 de junho, subia à cátedra e explicava um pouco o sonho.

Não haveria necessidade de explicar o sonho, porém repetirei o que já falei. A grande planície é o mundo e também os lugares e a região de onde foram chamados para cá todos os nossos jovens. O lugar onde estavam os cordeirinhos é o Oratório. Os cordeirinhos são todos os jovens que estiveram, presentemente estão e estarão no Oratório. Os três prados nesse lugar, o árido, o verdejante, o florido, significam a situação de pecado, o estado de graça e o estado de inocência. Os chifres dos cordeirinhos são os escândalos dados no passado. Havia os que tinham os chifres quebrados; estes foram escandalosos, agora, porém, pararam de dar escândalo. Os enigmas “3”, estampados em cima de cada cordeirinho, são como aprendi do pastor, três castigos que o Senhor enviará para os jovens: 1 º Carência de auxílios espirituais. 2º Carência moral, isto é, falta de instrução religiosa e da palavra de Deus. 3º Carência material, quer dizer, falta de alimento. Os jovens reluzentes são os que estão na graça de Deus, sobretudo os que ainda conservam a inocência batismal e a bela virtude da pureza. Que glória os aguarda!
Disponhamo-nos, então, caros jovens, corajosamente a praticar a virtude.
Quem não está na graça de Deus coloque-se de boa vontade e, depois, com todas as suas forças e a ajuda de Deus, persevere até a morte. Se nem todos pudermos estar na companhia dos inocentes fazendo coroa ao Cordeiro Imaculado, Jesus, ao menos possamos segui-lo depois deles.
Um me perguntou se ele estava entre os inocentes, e eu lhe disse que não; que tinha os chifres, mas quebrados. Perguntou-me ainda se estava com feridas; respondi-lhe que sim.
– E o que significam essas feridas? – Acrescentou.
Respondi: – Não tenha medo. Estão tratadas, desaparecerão. Essas feridas agora não são mais de desonra, como as cicatrizes não trazem desonra a quem esteve no combate. Este, apesar de tantas feridas, perseguição e esforços do inimigo, soube vencer e conseguir a vitória. São, portanto, cicatrizes de honra!… Mas, tem mais honra quem, lutando no meio dos inimigos, fica sem nenhuma ferida. Sua incolumidade provoca a maravilha em todos.

Ao explicar este sonho, Dom Bosco afirmou que não levará muito tempo até que esses três males se façam sentir: – Peste, fome e falta de meios para trazer-nos o bem.
Acrescentou que não passarão três meses sem que aconteça algo de particular.
Este sonho produziu impressão nos jovens, com os frutos obtidos como tantas outras exposições similares.
(MB IT VIII 839-845 / MB PT VIII 903-909)




O P. Crespi e o Jubileu de 1925

Em 1925, em vista do Ano Santo, o P. Carlo Crespi promoveu uma exposição missionária internacional. Chamado do Colégio “Manfredini di Este”, foi encarregado de documentar as atividades missionárias no Equador, recolhendo materiais científicos, etnográficos e audiovisuais. Graças a viagens e projeções, sua obra conectou Roma e Turim, evidenciando o compromisso salesiano e fortalecendo os laços entre instituições eclesiásticas e civis. Sua coragem e a sua visão transformaram o desafio missionário em uma exposição de sucesso, deixando uma marca indelével na história da “Propaganda Fide” e da ação missionária salesiana.

            Quando Pio XI, em vista do Ano Santo de 1925, quis fazer em Roma uma documentada Exposição Missionária Internacional Vaticana, os Salesianos abraçaram a iniciativa com uma Mostra Missionária, a ser realizada em Turim em 1926, também em função do 50º aniversário das missões salesianas. Para tal, os Superiores logo pensaram no P. Carlo Crespi e o chamaram do Colégio “Manfredini di Este”, onde ensinava Ciências Naturais, Matemática e Música.
            Em Turim, o P. Carlo se reuniu com o Reitor-Mor, P. Filipe Rinaldi, com o superior responsável pelas missões, P. Pedro Ricaldone e, em particular, com Dom Domenico Comin, vigário apostólico de Méndez e Gualaquiza (Equador), que deveria apoiar sua obra. Naquele momento, viagens, explorações, pesquisas, estudos e tudo o mais que deveria nascer da obra de Carlo Crespi, tiveram o aval e o início oficial dos Superiores. Mesmo que ainda faltavam quatro anos para a planejada Exposição, pediram ao P. Carlo que se ocupasse dela em tempo integral, e assim se realizasse um trabalho cientificamente sério e credível.
            Tratava-se de:
            1. Criar um clima de interesse em favor dos Salesianos que atuavam na missão equatoriana de Méndez, valorizando seus feitos através de documentações escritas e orais, e providenciando uma adequada coleta de fundos.
            2. Recolher material para a montagem da Exposição Missionária Internacional de Roma e, transferi-lo posteriormente para Turim, para comemorar solenemente os primeiros cinquenta anos das missões salesianas.
            3. Efetuar um estudo científico do referido território, a fim de apresentar os resultados, não somente nas mostras de Roma e de Turim, mas sobretudo em um Museu permanente e em uma precisa obra “histórico-geo-etnográfica”.
            De 1921 em diante, os Superiores encarregaram o P. Carlo de conduzir em diversas cidades italianas atividades de propaganda em favor das missões. Para sensibilizar a opinião pública a respeito, o P. Carlo organizou a projeção de documentários sobre a Patagônia, a Terra do Fogo e os índios do Mato Grosso. Aos filmes gravados pelos missionários, uniu uma trilha sonora executada por ele ao piano.
            A propaganda com conferências rendeu cerca de 15 mil liras [reavaliados, correspondem a € 14.684], gastas com as viagens, o transporte e a aquisição dos seguintes materiais: uma máquina fotográfica, uma câmera cinematográfica, uma máquina de escrever, algumas bússolas, teodolitos, níveis, pluviômetros, uma caixa de remédios, utensílios de agricultura, barracas.
            Diversos industriais da região de Milão doaram grande quantidade de tecido no valor de 80 mil liras [€ 78.318], que foram distribuídos mais tarde entre os índios.
            Em 22 de março de 1923, o P. Crespi embarca no navio “Venezuela” rumo ao porto fluvial e marítimo mais importante do Equador, Guayaquil, a capital comercial e econômica do país, apelidada por sua beleza de “A Pérola do Pacífico”.
            Em um escrito posterior, relembrará com grande comoção sua partida para as Missões: “Recordo minha partida de Gênova em 22 de março de 1923 […]. Quando foram removidas as plataformas que ainda nos mantinham ligados à terra natal e o navio começou a se mover, minha alma foi invadida por uma alegria tão avassaladora, tão sobre-humana, tão inefável, que tal coisa não havia provado em nenhum momento em minha vida, nem mesmo no dia da minha primeira Comunhão e nem no dia da minha primeira Missa. Naquele instante comecei a compreender o que era o missionário e o que Deus lhe reservava […]. Rezai fervorosamente para que Deus nos conserve a santa vocação e nos torne dignos da nossa santa missão; para que não pereça nenhuma das almas que Deus, nos seus eternos decretos, quis que se salvassem pelo nosso trabalho, para que nos faça audazes campeões da fé, até à morte, até ao martírio” (Carlo Crespi, Nuovo drappello. L’inno della riconoscenza, in Bollettino Salesiano, L, n.12, dezembro de 1926).
            O P. Carlo cumpriu o encargo recebido colocando em prática seus conhecimentos universitários, em particular através das amostras de minerais, flora e fauna provenientes do Equador. Porém, logo foi além da missão que lhe foi confiada, entusiasmando-se com temas de caráter etnográfico e arqueológico que, em seguida, ocuparão muito tempo de sua intensa vida.
            Desde os primeiros roteiros, Carlo Crespi não se limita a admirar, mas recolhe, classifica, anota, fotografa, filma e documenta qualquer coisa que atraia sua atenção de estudioso. Com entusiasmo, adentra-se no Oriente equatoriano para gravar filmes e documentários, e para recolher importantes coleções botânicas, zoológicas, étnicas e arqueológicas.
            Este é aquele mundo magnético que já lhe vibrava no coração antes mesmo de chegar lá, do qual assim se refere dentro de seus livretos: “Nestes dias uma voz nova, insistente, me soa na alma, uma sacra nostalgia dos países de missão; alguma vez também pelo desejo de conhecer, em particular, coisas científicas. Oh, Senhor! Estou disposto a tudo, a abandonar a família, os parentes, os colegas de estudos; tudo para salvar alguma alma, se este é o teu desejo, a tua vontade” (Sem lugar, sem data. – Apontamentos pessoais e reflexões do Servo de Deus sobre temas de natureza espiritual extraídos de 4 livretos).
            Um primeiro roteiro, que durou três meses, iniciou-se em Cuenca, tocou Gualaceo, Indanza e terminou no rio Santiago. Alcançou, então, o vale do rio São Francisco, a lagoa de Patococha, Tres Palmas, Culebrillas, Potrerillos (a localidade mais alta, a 3.800 metros acima do nível do mar), Rio Ishpingo, a colina de Puerco Grande, Tinajillas, Zapote, Loma de Puerco Chico, Plan de Milagro e Pianoro. Em cada um destes lugares recolheu amostras para secar e integrar às várias coleções. Blocos de anotações e numerosas fotografias documentam tudo com precisão.
            O P. Carlo Crespi organizou uma segunda viagem através dos vales de Yanganza, Limón, Peña Blanca, Tzaranbiza, bem como ao longo do caminho de Indanza. Como é fácil supor, os deslocamentos na época eram difíceis: existiam somente trilhas de mulas, além de precipícios, condições climáticas inóspitas, feras perigosas, serpentes letais e doenças tropicais.
            A tudo isso se somava o perigo de ataques por parte dos indomáveis habitantes do Oriente, dos quais o P. Carlo, porém, conseguiu se aproximar, lançando as sementes do longa-metragem “Los invencibles Shuaras del Alto Amazonas”, que filmará em 1926 e que será projetado em 26 de fevereiro de 1927, em Guayaquil. Superando todas estas insídias, conseguiu reunir seiscentas variedades de coleópteros, sessenta pássaros de maravilhosa plumagem empalhados, musgos, líquens, samambaias. Estudou cerca de duzentas espécies locais e, servindo-se da subclassificação de Carlo Allioni utilizada pelos naturalistas, encontrou 21 variedades de samambaias, pertencentes à zona tropical abaixo dos 800 m acima do nível do mar; 72 da subtropical, que vai dos 800 m aos 1.500 m acima do nível do mar; 102 da Subandina, entre os 1.500 m e os 3.400 m acima do nível do mar, e 19 da Andina, superior aos 3.600 m acima do nível do mar (Muito interessante é o comentário do prof. Roberto Bosco, prestigioso botânico e membro da Sociedade Botânica Italiana que, quatorze anos depois, em 1938, decidiu estudar e ordenar sistematicamente “a vistosa coleção de samambaias” preparada em poucos meses pelo “Prof. Carlo Crespi, com material do Equador).
            As espécies mais dignas de nota, estudadas por Roberto Bosco, foram batizadas de “Crespianas”.
            Resumindo: já em outubro de 1923, para preparar a Exposição Vaticana, o P. Carlo havia organizado as primeiras excursões missionárias por todo o Vicariato, até Méndez, Gualaquiza e Indanza, recolhendo materiais etnográficos e muita documentação fotográfica. As despesas foram cobertas com tecidos doados e com os fundos recolhidos na Itália. Com o material coletado, que posteriormente transferiria para a Itália, organizou uma Feira de Exposição entre os meses de junho e julho de 1924, na cidade de Guayaquil. O trabalho suscitou críticas entusiasmadas, reconhecimento e ajuda. Desta Exposição se referirá, dez anos depois, em uma carta de 31 de dezembro de 1935 aos Superiores de Turim, para informá-los sobre os fundos recolhidos de novembro de 1922 a novembro de 1935.
            O P. Crespi passou o primeiro semestre de 1925 nas florestas da zona de Sucùa-Macas, estudando a língua Shuar e recolhendo ulterior material para a Exposição missionária de Turim. Em agosto do mesmo ano começou uma negociação com o Governo para obter um grande financiamento, que se concluiu em 12 de setembro com um contrato de 110.000 sucres (equivalente a 500.000 liras de então e que hoje seriam € 489.493,46), que permitia terminar a estrada de mulas Pan-Méndez. Além disso, obteve também a permissão de retirar da alfândega 20 toneladas de ferro e material apreendido de alguns comerciantes.
            Em 1926 o P. Carlo, regressando à Itália levou consigo gaiolas com animais vivos da zona oriental do Equador (uma difícil coleta de pássaros e animais raros) e caixas com material etnográfico, que apresentou na a Exposição Missionária de Turim, organizada pessoalmente por ele, que também fez o discurso oficial de encerramento, em 10 de outubro.
            No mesmo ano se ocupou em organizar a Exposição e, depois, em fazer diversas conferências e a participar do Congresso Americano de Roma com duas conferências científicas. Este seu entusiasmo e esta sua competente pesquisa científica respondiam, perfeitamente, às diretivas dos Superiores, e, portanto, através da Exposição Missionária Internacional de 1925, em Roma, e de 1926, em Turim, o Equador pôde ser amplamente conhecido. Além disso, em âmbito eclesial, contatou a Obra de Propaganda Fide, a Santa Infância e a Associação para o Clero Indígena. Em âmbito civil, estreitou relações com o Ministério das Relações Exteriores do Governo italiano.
            Destes contatos e dos colóquios com os Superiores da Congregação Salesiana obtiveram-se alguns resultados. Em primeiro lugar, os Superiores o presentearam com o envio de 4 sacerdotes, 4 seminaristas, 9 irmãos coadjutores e 4 irmãs religiosas para o Vicariato. Além disso, obteve uma série de ajudas econômicas dos Organismos Vaticanos e a colaboração com material sanitário para os hospitais no valor de cerca de 100.000 liras (€ 97.898,69). Como reconhecimento dos Superiores Maiores pelo seu empenho pela Exposição Missionária, eles se encarregaram da construção da Igreja de Macas, com duas cotas de 50.000 liras (€ 48,949, 35), enviadas diretamente a Dom Domenico Comin.
            Terminada sua tarefa de colecionador, fornecedor e animador das grandes mostras internacionais, em 1927 o P. Crespi voltou ao Equador, que se tornou a sua segunda pátria. Estabeleceu-se no Vicariato, sob a jurisdição do bispo, Dom Comin, e em espírito de obediência dedicou-se a viagens de propaganda e sensibilização para assegurar subvenções e fundos especiais, necessários às obras das missões, tais como a estrada Pan Méndez, o Hospital Guayaquil, a escola Guayaquil em Macas, o Hospital Quito em Méndez, a Escola agrícola de Cuenca (cidade onde, ainda em 1927, começou a desenvolver seu apostolado sacerdotal e salesiano).
            Por alguns anos ainda continuou se ocupou das ciências, mas sempre com o espírito apostólico.

Carlo Riganti
Presidente Associação Carlo Crespi

Imagem: 24 marzo 1923 – Padre Carlo Crespi In partenza per l’Ecuador sul Piroscafo Venezuela




Salesianos na Ucrânia (vídeo)

A Visitadoria Salesiana Maria Auxiliadora (UKR), de rito bizantino, tem remodelado a sua missão educativo-pastoral desde o início da invasão russa, em 2022. Entre sirenes antiaéreas, abrigos improvisados e escolas nos porões, os salesianos tornaram-se uma presença concreta: acolhem deslocados, distribuem ajuda, acompanham espiritualmente militares e civis, transformam uma obra em centro de acolhida e cuidam do campo de refugiados “Mariápolis”, onde servem diariamente mil refeições e onde animam um oratório e atividades esportivas, entre elas o primeiro time ucraniano de Futebol de Amputados. O testemunho pessoal de um nosso irmão revela as feridas, as esperanças e as orações de quem perdeu tudo, mas continua a acreditar que, após esta longa Via Sacra nacional, surgirá a Páscoa da paz para a Ucrânia.

A pastoral da Visitadoria Maria Auxiliadora (UKR), de rito bizantino, durante a guerra
Nossa pastoral teve que se modificar quando a guerra começou. Nossas atividades educativo-pastorais tiveram que se adaptar a uma realidade completamente diferente, marcada frequentemente pelo som incessante das sirenes anunciando o perigo de ataques de mísseis e bombardeios. Cada vez que o alarme soa, somos forçados a interromper as atividades e descer com os jovens para os abrigos subterrâneos ou os bunkers. Em algumas escolas, as aulas são sempre nos porões, garantindo maior segurança aos alunos.

Desde o início, imediatamente começamos a ajudar e a socorrer a população sofredora. Abrimos nossas casas para acolher os deslocados, organizamos a coleta e distribuição da ajuda humanitária: preparamos, com os nossos jovens, milhares de pacotes com alimentos, roupas e tudo o que é necessário para enviar às pessoas necessitadas nos territórios próximos aos combates ou mesmo nas zonas de combate. Além disso, alguns de nossos irmãos salesianos atuam como capelães nas zonas de combate. Lá, eles dão apoio espiritual aos jovens militares, mas também levam ajuda humanitária às pessoas que permaneceram nas cidades sob contínuos bombardeios, também ajudando-os a se mudarem para um lugar mais seguro. Um salesiano diácono, que esteve nas trincheiras, foi atingido e perdeu o tornozelo. Quando, alguns anos atrás, li no Boletim Salesiano em italiano um artigo que falava dos salesianos nas trincheiras da Primeira ou da Segunda Guerra Mundial, não imaginei que o mesmo aconteceria nesta época moderna no meu país. Muito me impressionaram as palavras de um soldado ucraniano muito jovem que, citando um historiador e eminente oficial defensor e combatente pela independência do nosso povo, dizia: “Nós lutamos defendendo nossa independência não porque odiamos quem está à nossa frente, mas porque amamos quem está atrás de nós”.

Neste período, também transformamos uma de nossas casas salesianas em um centro de acolhida para refugiados.

Para apoiar a reabilitação física, mental, psicológica e social dos jovens que perderam algum membro na guerra, criamos um time de Futebol de Amputados, a primeira equipe desse tipo na Ucrânia.
Desde o início da invasão, em 2022, colocamos à disposição da prefeitura de Lviv um terreno nosso, destinado à construção de uma escola salesiana, para realizar um campo modular para refugiados internos, “Mariápolis”, onde nós, salesianos, trabalhamos em parceria com o Centro do Departamento Social da Prefeitura. Damos apoio assistencial e acompanhamento espiritual, tornando o ambiente mais acolhedor. Apoiados pela ajuda de nossa Congregação, nas suas várias organizações (entre elas, VIS e Missões Dom Bosco, as várias procuradorias missionárias e outras fundações de caridade) e também por agências estatais de outros países, pudemos organizar a cozinha do campo com o seu respectivo pessoal, o que nos permite oferecer almoço, todos os dias, para cerca de 1000 pessoas. Além disso, graças a esta ajuda, também podemos organizar várias atividades em estilo salesiano para 240 crianças e jovens que estão no campo.

Uma pequena experiência e um pobre testemunho pessoal
Gostaria de compartilhar aqui minha pequena experiência e dar um testemunho… Eu, realmente, agradeço ao Senhor que, através do meu Inspetor, me chamou para este específico serviço. Há três anos trabalho no campo que abriga cerca de 1.000 refugiados internos. Desde o início, estou ao lado de pessoas que perderam tudo de uma hora para outra, exceto a dignidade. As suas casas foram destruídas e saqueadas, suas economias e os bens acumulados com esforço ao longo dos anos de vida desapareceram. Muitos perderam algo bem mais precioso: seus entes queridos, mortos diante de seus olhos por mísseis ou minas. Algumas das pessoas que estão no campo tiveram que viver por meses nos porões de prédios desabados, alimentando-se do pouco que encontravam, mesmo que já vencido. Bebiam a água dos radiadores e ferviam cascas de batata para se alimentar. E, assim que podiam, fugiam ou eram evacuados, sem saber para onde ir, sem nenhuma certeza sobre o que lhes esperava. E ainda mais, alguns viram suas cidades, como Mariupol, arrasadas. Foi para homenagear esta belíssima cidade de Maria que nós, salesianos, demos o nome ao campo de refugiados de “Mariápolis”, confiando este lugar e os seus habitantes à Virgem Maria. E Ela, como mãe, está ao lado de cada um nestes momentos de provação. Fizemos uma capela dedicada a Ela no campo, onde há um ícone escrito por uma senhora vinda da martirizada cidade de Kharkiv. A capela tornou-se para todos os residentes, independentemente da confissão cristã a que pertençam, um lugar de encontro com Deus e consigo mesmos.

Estar com eles, amá-los, acolhê-los, escutá-los, consolá-los, encorajá-los, rezar por eles e com eles, e apoiá-los no que posso, são os momentos que fazem parte do meu serviço que, agora, se tornou minha vida neste momento. É uma verdadeira escola de vida, de espiritualidade, onde aprendo muitíssimo estando ao lado do sofrimento deles. Quase todos esperam que a guerra acabe logo e a paz chegue, para poderem voltar para casa. Mas, para muitos, esse sonho não é mais possível: suas casas não existem mais. Assim, como posso, tento oferecer-lhes alguma centelha de esperança, ajudando-os a encontrar Aquele que não abandona ninguém, que está próximo nos sofrimentos e nas dificuldades da vida.

Às vezes me pedem para prepará-los para a Reconciliação: com Deus, consigo mesmos, com a dura realidade que são forçados a viver. Outras vezes, ajudo-os nas necessidades mais concretas: remédios, roupas, fraldas para adultos, visitas ao hospital. Também faço o trabalho de administrador, junto com meus três colegas leigos. Todos os dias, às 17h, rezamos pela paz, e um pequeno grupo aprendeu a rezar o Rosário, recitando-o diariamente.

Como salesiano procuro estar atento às necessidades dos jovens: desde o início, com a ajuda dos animadores, criamos um oratório dentro do campo com muitas atividades, passeios, acampamentos nas montanhas durante o verão. Além disso, um dos compromissos que levo adiante é o de acompanhar o refeitório, para garantir que nenhuma das pessoas residentes no campo fique sem uma refeição quente.

Entre os habitantes do campo estão: o pequeno Maksym, que acorda no meio da noite, aterrorizado por qualquer barulho forte; Maria, uma mãe que perdeu tudo, inclusive o marido, e todos os dias sorri para os filhos para não lhes pesar a dor; Petro, 25 anos, que estava em casa com sua namorada quando um drone russo lançou uma bomba: a explosão amputou suas duas pernas, e sua namorada morreu pouco depois. Petro ficou a noite toda à beira da morte, até que os soldados o encontraram pela manhã e o levaram para um lugar seguro. A ambulância não podia se aproximar por causa dos combates.
Em meio a tanto sofrimento, continuo meu apostolado com a ajuda do Senhor e o apoio dos meus irmãos salesianos.

Nós, salesianos de rito bizantino, juntamente com nossos 13 irmãos de rito latino presentes na Ucrânia – em grande parte de origem polonesa e pertencentes à Inspetoria Salesiana de Cracóvia (PLS) – compartilhamos profundamente a dor e os sofrimentos do povo ucraniano. Como filhos de Dom Bosco, continuamos com fé e esperança nossa missão educativo-pastoral, adaptando-nos a cada dia às difíceis condições impostas pela guerra.

Estamos ao lado dos jovens, das famílias e de todos aqueles que sofrem e precisam de ajuda. Desejamos ser sinais visíveis do amor de Deus, para que a vida, a esperança e a alegria dos jovens nunca sejam sufocadas pela violência e pela dor.

Com este simples testemunho, reafirmamos a vitalidade do nosso carisma salesiano, que sabe responder também aos desafios mais dramáticos da história. Nossas duas peculiaridades, a de rito bizantino e a de rito latino, tornam visível aquela unidade indissolúvel do Carisma Salesiano, como afirmam as Constituições Salesianas no art. 100: “O carisma do Fundador é princípio de unidade da Congregação e, por sua fecundidade, está na origem das maneiras diversas de viver a única vocação salesiana”.

Acreditamos que a dor e o sofrimento não têm a última palavra, e que, na fé, toda Cruz já contém a semente da Ressurreição. Após esta longa Semana Santa, chegará inevitavelmente a Ressurreição para a Ucrânia: virá a verdadeira e justa PAZ.

Algumas informações
Alguns irmãos salesianos capitulares me pediram informações sobre a guerra na Ucrânia. Permitam-me dizer algo rapidamente. Um esclarecimento: a guerra na Ucrânia não pode ser interpretada como um conflito étnico ou uma disputa territorial entre dois povos com reivindicações opostas ou direitos sobre um determinado território. Não se trata de uma briga entre duas partes lutando por um pedaço de terra. E, portanto, não é uma batalha entre iguais. O que temos na Ucrânia é uma invasão, uma agressão unilateral. Trata-se de um povo que agrediu indevidamente um outro. Uma nação, que fabricou motivações infundadas, inventando um suposto direito, violando a ordem e as leis internacionais, decidiu atacar outro Estado, violando sua soberania e integridade territorial, o direito de decidir seu próprio destino e de conduzir o seu próprio desenvolvimento, ocupando e anexando territórios. Destruindo cidades e vilas, muitas delas arrasadas, tirando a vida de milhares de civis. Aqui há um agressor e um agredido: é precisamente esta a peculiaridade e o horror desta guerra.
E é partindo desse pressuposto que também deveria ser concebida a paz que esperamos. Uma paz que tenha o sabor da justiça e seja baseada na verdade, não temporária, não oportunista, não uma paz fundada em conveniências ocultas e comerciais, evitando criar precedentes para regimes autocráticos no mundo que poderiam um dia decidir invadir outros países, ocupar ou anexar uma parte de um país vizinho ou distante, simplesmente porque o desejam ou porque lhes agrada, ou porque são mais poderosos.
Outro absurdo desta guerra não provocada e não declarada é que o agressor, além de não dar à vítima o direito de se defender, também intimida e ameaça os países que se colocam ao lado de quem está indefeso, ajudando a vítima agredida injustamente a defender-se e a resistir.

Algumas tristes estatísticas
Desde o início da invasão de 2022 até hoje (08/04/2025), a ONU registrou e confirmou dados relativos a 12.654 mortos e 29.392 feridos entre os CIVIS na Ucrânia.

Segundo as últimas notícias disponíveis verificadas pela UNICEF, pelo menos 2.406 CRIANÇAS foram mortas ou feridas pela escalada da guerra na Ucrânia desde 2022. As vítimas infantis incluem 659 CRIANÇAS MORTAS e 1.747 FERIDAS – ou seja, pelo menos 16 crianças mortas ou feridas a cada semana. Milhões de crianças continuam a ter suas vidas prejudicadas devido aos ataques em curso ou por terem que fugir e ser evacuadas para outros lugares e países. As crianças do Donbas sofrem com a guerra já há 11 anos.
A Rússia iniciou, juntamente com o plano de invasão da Ucrânia, um programa de deportações forçadas de crianças ucranianas. Dados mais recentes falam de 20.000 crianças retiradas de suas casas, detidas por meses e submetidas a uma ‘russificação’ forçada através de intensa propaganda antes da adoção forçada.

P. Andrii Platosh, sdb






Dom Bosco, promotor da “misericórdia divina”

Como padre muito jovem, Dom Bosco publicou um volume, em pequeno formato, intitulado “Exercício da devoção à Misericórdia de Deus”.

Tudo começou com a Marquesa de Barolo
            A Marquesa Júlia Colbert di Barolo (1785-1864), declarada Venerável pelo Papa Francisco em 12 de maio de 2015, cultivou pessoalmente uma devoção especial à misericórdia divina; por isso, nas comunidades religiosas e educacionais que havia fundado perto de Valdocco, tinha introduzido o costume de uma semana de meditações e orações sobre este assunto. Mas ela não estava satisfeita. Ela queria que essa prática se espalhasse também em outros lugares, especialmente nas paróquias, no meio do povo. Pediu o consentimento da Santa Sé, que não só concordou, mas também concedeu várias indulgências em favor dessa prática devocional. Tratava-se então de fazer uma publicação adequada ao fim a que se destinava.
            Estamos no verão de 1846, quando Dom Bosco, tendo superado a grave crise de esgotamento que o havia levado à beira da sepultura, se retirou para junto de Mamãe Margarida nos Becchi para convalescer e se “demitiu” de seu muito apreciado serviço como capelão de uma das obras de Barolo, com grande desgosto da própria Marquesa. Mas “seus jovens” o chamaram para a casa Pinardi, recentemente alugada.
            A essa altura interveio o famoso patriota Sílvio Péllico, secretário da marquesa e admirador e amigo de Dom Bosco, que tinha musicado alguns de seus poemas. As memórias salesianas nos dizem que Péllico, com uma certa ousadia, propôs à marquesa que encarregasse Dom Bosco de fazer a publicação que lhe interessava. O que fez a marquesa? Ela aceitou, embora não com muito entusiasmo. Quem sabe? Talvez ela quisesse colocá-lo à prova. E Dom Bosco também aceitou.

Um tema muito caro ao seu coração
            O tema da misericórdia de Deus estava entre seus interesses espirituais, aqueles sobre os quais ele havia sido formado no seminário de Chieri e, sobretudo, no Colégio Eclesiástico de Turim. Fazia só dois anos ele havia terminado de frequentar as aulas de seu conterrâneo São José Cafasso, apenas quatro anos mais velho que ele, mas seu diretor espiritual, cujos sermões seguia nos exercícios espirituais para sacerdotes, mas também o formador de meia dúzia de outros fundadores, alguns deles até santos. Pois bem, Cafasso, embora filho da cultura religiosa de seu tempo – feita de prescrições e da lógica de “fazer o bem para escapar do castigo divino e merecer o Paraíso” – não perdia uma oportunidade de falar da misericórdia de Deus, tanto em suas aulas como na pregação. E como podia deixar de fazê-lo, se se dedicava constantemente ao sacramento da Penitência e à assistência aos condenados à morte? Tanto mais que esta devoção indulgenciada constituía na época uma reação pastoral contra o rigorismo do jansenismo que sustentava a predestinação dos que eram salvos.
            Assim, Dom Bosco, logo que voltou do seu povoado, no início de novembro, começou a trabalhar, seguindo as práticas piedosas aprovadas por Roma e espalhadas pelo Piemonte. Com a ajuda de alguns textos que facilmente pôde encontrar na biblioteca do Colégio que ele conhecia muito bem, no fim do ano publicou, às suas custas, um livrinho de 111 páginas, num formato pequeno, intitulado “Exercício de devoção à Misericórdia de Deus”. Ele o doou imediatamente às meninas, mulheres e freiras das fundações Barolo. Não está documentado, mas a lógica e a gratidão quer que ele o tenha presenteado também à Marquesa Barolo, promotora do projeto. Mas a mesma lógica e gratidão fariam com que a Marquesa não se deixasse vencer em generosidade, enviando-lhe, talvez anonimamente como em outras ocasiões, uma contribuição para as despesas.
            Não há aqui espaço para apresentar os conteúdos “clássicos” do livrinho de meditações e orações de Dom Bosco; gostaríamos apenas de assinalar que seu princípio básico é: “cada um deve invocar a Misericórdia de Deus para si e para todos os homens, porque «somos todos pecadores», […] todos necessitados de perdão e de graça […] todos chamados à salvação eterna”.
            Significativo, pois, é o fato de que, ao concluir cada dia da semana, Dom Bosco, na lógica do título “exercícios de devoção”, ofereça uma prática de piedade: convidar outros a intervir, perdoar aquele que nos ofendeu, fazer logo uma mortificação para obter a misericórdia de Deus para todos os pecadores, dar alguma esmola ou substituí-la pela recitação de orações ou jaculatórias etc. No último dia, a prática é substituída por um belo convite, talvez até alusivo à Marquesa Barolo, para rezar “pelo menos uma Ave Maria para a pessoa que promoveu essa devoção”.

Prática educativa
            Mas, além dos escritos com fins edificantes e formativos, pode-se perguntar como Dom Bosco educou concretamente seus jovens para que confiassem na misericórdia divina. A resposta não é difícil e poderia ser documentada de muitas maneiras. Limitar-nos-emos a três experiências vitais vividas em Valdocco: os sacramentos da Confissão e da Comunhão e sua figura de um “pai cheio de bondade e de amor”.

A Confissão
            Dom Bosco iniciou centenas de jovens de Valdocco na vida cristã adulta. Mas com que meios? Dois em particular: Confissão e Comunhão.
            Como se sabe, Dom Bosco é um dos grandes apóstolos da Confissão, e isso se deve, antes de tudo, ao exercício pleno desse ministério, como fez, aliás, seu mestre e diretor espiritual, o P. Cafasso, acima mencionado, e a figura muito admirada de seu quase contemporâneo o santo Cura d’Ars (1876-1859). Se a vida do segundo, como está escrito, “foi passada no confessionário” e a do primeiro pôde oferecer muitas horas do dia (“o tempo necessário”) para ouvir em confissão “bispos, sacerdotes, religiosos, eminentes leigos e pessoas simples que a ele afluíam”. Dom Bosco não pôde fazer o mesmo por causa das muitas ocupações em que esteve envolvido. No entanto, no confessionário, ele se colocou à disposição dos jovens (e dos salesianos) todos os dias em que eram celebradas funções religiosas em Valdocco ou em casas salesianas, ou em ocasiões especiais.
            Tinha começado a fazer isso tão logo tinha terminado de “aprender a ser padre” no Colégio (1841-1844), quando aos domingos reunia os jovens no oratório itinerante no decurso de dois anos, quando ia ouvir confissões no santuário da Consolata ou nas paróquias piemontesas para as quais era convidado, quando aproveitava as viagens de carruagem ou de trem para ouvir confissões de cocheiros ou de passageiros. Nunca deixou de fazer isso até o fim da vida; quando lhe foi pedido para não se cansar com confissões, respondeu que por esta altura era a única coisa que ainda podia fazer por seus jovens. E qual foi o seu pesar quando, por razões burocráticas e mal-entendidos, sua licença de confissão não foi renovada pelo Arcebispo! Os testemunhos sobre Dom Bosco como confessor são inúmeros e, de fato, a famosa fotografia que o retratava no ato de confessar um jovem cercado de tantos outros esperando para fazê-lo, deve ter agradado ao próprio santo, que talvez tenha tido a ideia disso, e que continua sendo um ícone significativo e indelével de sua figura no imaginário coletivo.
            Mas, além de sua experiência como confessor, Dom Bosco foi um incansável promotor do sacramento da Reconciliação, divulgou sua necessidade, sua importância, a utilidade de sua frequência, apontou os perigos de uma celebração sem as condições necessárias, ilustrou as maneiras clássicas de abordá-la frutuosamente. Fê-lo através de palestras, boas noites, lemas espirituosos e palavrinhas ao ouvido, cartas circulares aos jovens nos colégios, cartas pessoais e a narração de numerosos sonhos que tinham como objeto a confissão, bem ou mal feita. De acordo com sua inteligente prática catequética, ele lhes contava episódios de conversões de grandes pecadores, e também suas próprias experiências pessoais a esse respeito.
            Dom Bosco, um profundo conhecedor da alma juvenil, para induzir todos os jovens ao arrependimento sincero, baseia-se no amor e gratidão para com Deus, apresentado em sua infinita bondade, generosidade e misericórdia. Em vez disso, para sacudir os corações mais frios e endurecidos, ele descreve os possíveis castigos do pecado e impressiona salutarmente suas mentes com descrições vívidas sobre o juízo divino e o inferno. Mesmo nesses casos, porém, não satisfeito em levar os meninos ao arrependimento por seus pecados, ele procura levá-los à necessidade da misericórdia divina, uma disposição importante para antecipar seu perdão mesmo antes da confissão sacramental. Como de costume, Dom Bosco não entra em discussões doutrinárias; apenas se interessa por uma confissão sincera, que cura terapeuticamente a ferida do passado, recompõe o tecido espiritual do presente para o futuro de uma “vida de graça”.
            Dom Bosco acredita no pecado, acredita no pecado grave, acredita no inferno e fala de sua existência aos leitores e ouvintes. Mas também está convencido de que Deus é a misericórdia em pessoa, razão pela qual deu ao homem o sacramento da Reconciliação. E assim ele insiste nas condições para recebê-lo bem, e sobretudo no confessor como “pai” e “médico” e não tanto como “médico e juiz”: “O confessor sabe quanto a misericórdia de Deus seja maior do que suas faltas e lhe concede o perdão através de sua intervenção” (Esboço biográfico do jovem Miguel Magone, pág. 24-25).
            Segundo as memórias salesianas, ele sugeria muitas vezes aos seus jovens que invocassem a misericórdia divina, que não desanimassem depois do pecado, mas que voltassem à confissão sem medo, confiando na bondade do Senhor e depois tomassem resoluções firmes para o bem.
            Como “educador no campo da juventude”, Dom Bosco sentiu a necessidade de insistir menos no ex opere operato (pela própria ação do sacramento) e mais no ex opere operantis (pela ação do indivíduo), isto é, nas disposições do penitente. Em Valdocco todos se sentiam convidados a fazer uma boa confissão, todos sentiam o risco de más confissões e a importância de fazer uma boa confissão; muitos deles sentiam então que estavam vivendo em uma terra abençoada pelo Senhor. Não foi à toa que a misericórdia divina fez despertar um jovem falecido depois que os panos funerários foram exibidos, para que pudesse confessar seus pecados (a Dom Bosco).
            Em suma, o sacramento da confissão, bem explicado em suas características específicas e frequentemente celebrado, foi talvez o meio mais eficaz pelo qual o santo piemontês levou seus jovens a confiar na imensa misericórdia de Deus.

A Comunhão
            Mas a comunhão, o segundo pilar da pedagogia religiosa de Dom Bosco, também serviu para este propósito.
            Dom Bosco é certamente um dos maiores promotores da prática sacramental da Comunhão frequente. Sua doutrina, modelada no modo de pensar da Contrarreforma, deu mais importância à Comunhão do que à celebração litúrgica da Eucaristia, mesmo havendo uma evolução em sua frequência. Nos primeiros vinte anos de sua vida sacerdotal, na esteira de Tertuliano e Santo Agostinho e, depois, do Concílio de Trento e de Santo Afonso, sugeriu a Comunhão semanal, ou várias vezes por semana ou mesmo diariamente, dependendo da perfeição das disposições correspondentes às graças do sacramento. Domingos Sávio, que em Valdocco tinha começado a se confessar e a comungar quinzenalmente, passou a fazê-lo todas as semanas, depois três vezes por semana, finalmente, depois de um ano de intenso crescimento espiritual, todos os dias, obviamente sempre seguindo o conselho de seu confessor, o próprio Dom Bosco.
            Mais tarde, na segunda metade dos anos 60, Dom Bosco, com base em suas experiências pedagógicas e de uma forte corrente teológica a favor da comunhão frequente, que teve como líderes o bispo francês Dom de Ségur e o prior de Gênova, Padre José Frassinetti, Dom Bosco passou a convidar mais vezes seus jovens para a comunhão frequente, convencido de que permitia passos decisivos na vida espiritual e favorecia seu crescimento no amor de Deus. E no caso da impossibilidade da Comunhão Sacramental diária, ele sugeriu a Comunhão espiritual, talvez durante uma visita ao Santíssimo Sacramento, tão apreciada por Santo Afonso. O importante, porém, era manter a consciência em estado de poder comungar todos os dias: a decisão estava, de certa maneira, a cargo do confessor.
            Para Dom Bosco, toda comunhão dignamente recebida – jejum prescrito, estado de graça, disposição para desligar-se do pecado, uma bela ação de graças depois – anula as faltas diárias, fortalece a alma para evitá-las no futuro, aumenta a confiança em Deus e em sua infinita bondade e misericórdia; além disso, é fonte de graça para ter sucesso na escola e na vida, é uma ajuda para suportar os sofrimentos e vencer as tentações.
            Dom Bosco crê que a comunhão é uma necessidade para que os “bons” se mantenham como tais e para que os “maus” se tornem “bons”. É para aqueles que querem se tornar santos, não para os santos, como os remédios são dados aos doentes. Obviamente, ele sabe que a frequência, por si só, não é um indício seguro de bondade, pois há aqueles que a recebem com muita tibieza e por hábito, tanto mais que a própria superficialidade dos jovens muitas vezes não lhes permite compreender toda a importância do que estão fazendo.
            Com a Comunhão, então, pode-se pedir graças particulares do Senhor para si mesmo e para os outros. As cartas de Dom Bosco estão cheias de pedidos a seus jovens para rezar e comungar de acordo com sua intenção, a fim de que o Senhor lhe conceda bom êxito nos “assuntos” de toda ordem em que se encontre envolvido. E ele fez o mesmo com todos os seus correspondentes, que foram convidados a se aproximar deste sacramento para obter as graças pedidas, enquanto ele faria o mesmo na celebração da Santa Missa.
            Dom Bosco se preocupava muito que seus rapazes crescessem alimentados pelos sacramentos, mas também queria o máximo respeito pela liberdade deles. E deixou instruções precisas a seus educadores em seu tratado sobre o Sistema Preventivo: “Nunca se obriguem os jovens a frequentar os santos sacramentos: basta encorajá-los e dar-lhes comodidade de se aproveitarem deles”.
            Ao mesmo tempo, porém, permaneceu inflexível em sua convicção de que os sacramentos são de suma importância. Escreveu peremptoriamente: “Diga-se o que se quiser sobre os vários sistemas de educação, mas não encontro base segura a não ser na frequência da Confissão e da Comunhão” (O pastorzinho dos Alpes, ou vida do jovem Francisco Besucco de Argentera, 1864. p. 100).

Uma paternidade e misericórdia personificada
            A misericórdia de Deus, operante particularmente no momento dos sacramentos da Confissão e da Comunhão, encontrava então sua expressão externa não só num Dom Bosco “padre confessor”, mas também num “pai, irmão, amigo” dos jovens na vida cotidiana ordinária. Com algum exagero, pode-se dizer que a confiança deles em Dom Bosco era tal que muitos deles quase não faziam distinção entre Dom Bosco “confessor” e Dom Bosco “amigo” e “irmão”; outros, às vezes, podiam trocar a acusação sacramental com as efusões sinceras de um filho para com seu pai; por outro lado, o conhecimento que Dom Bosco tinha dos jovens era tal que, com perguntas sóbrias, ele os inspirava com extrema confiança e não raro sabia como fazer a acusação no lugar deles.
            A figura de Deus Pai, misericordioso e providente, que ao longo da história manifestou sua bondade desde Adão, para com os homens, justos ou pecadores, mas todos necessitados de ajuda e objeto de cuidados paternos, e em todo caso todos chamados à salvação em Jesus Cristo, é assim modulada e refletida na bondade de Dom Bosco “Pai de seus jovens”, que só quer o bem deles, que não os abandona, sempre pronto a compreendê-los, a compadecer-se deles, a perdoá-los. Para muitos deles, órfãos, pobres e abandonados, acostumados desde tenra idade ao duro trabalho cotidiano, objeto de manifestações muito modestas de ternura, filhos de uma época em que o que prevalecia era a submissão decisiva e a obediência absoluta a qualquer autoridade constituída, Dom Bosco era talvez a carícia jamais experimentada de um pai, a “ternura” de que fala o Papa Francisco.
            Sua carta aos jovens da casa Mirabello, no final de 1864, continua comovente: “Aquelas vozes, aqueles vivas, aquele beijo e aquele aperto de mão, aquele sorriso cordial, aquele falar um com o outro sobre a alma, aquele encorajar o outro a fazer o bem são coisas que embalsamaram meu coração, e por isso não posso pensar nisso sem me comover até as lágrimas”. Eu lhes direi […] que vocês são a pupila do meu olho” (Epistolário II, editado por F. Motto II, carta n. 792).
            Ainda mais comovente é sua carta aos jovens de Lanzo de 3 de janeiro de 1876: “Deixem-me dizer-lhes e que ninguém se ofenda, vocês são todos ladrões; digo-o e repito, vocês me tiraram tudo. Quando estive em Lanzo, vocês me encantaram com sua benevolência e com sua bondade amorosa, vocês me ataram as faculdades da mente com sua piedade; ainda sobrava-me esse pobre coração, cujos afetos vocês já me havia roubado inteiramente. Agora sua carta marcada por 200 mãos amigas e caríssimas tomou posse de todo esse coração, ao qual nada mais restou senão um vivo desejo de amá-los no Senhor, de lhes fazer o bem e de salvar as almas de todos” (Epistolário III, carta n. 1389).
            A bondade amorosa com que ele tratava e queria que os salesianos tratassem os meninos tinha um fundamento divino. Afirmava-o citando uma expressão de São Paulo: “A caridade é benigna e paciente; sofre tudo, mas espera tudo, e suporta qualquer problema”.
            A bondade amorosa foi, portanto, um sinal de misericórdia e de amor divino que fugia ao sentimentalismo e às formas de sensualidade por causa da caridade teológica que foi sua fonte. Dom Bosco comunicava esse amor aos meninos individualmente e também a grupos deles: “Que eu lhes nutro muito carinho, não preciso lhes dizer, eu lhes dei provas claras disso. Que vocês também me amam, não preciso que me digam, porque me demonstraram isso constantemente. Mas em que se baseia esse nosso afeto mútuo? […] Portanto, o bem de nossas almas é o fundamento de nosso afeto” (Epistolário II, n. 1148). O amor de Deus, o primum teológico, é, portanto, o fundamento do primum pedagógico.
            A bondade amorosa foi também a tradução do amor divino em amor verdadeiramente humano, feito de sensibilidade reta, cordialidade amável, afeto benevolente e paciente, tendente à comunhão profunda do coração. Em suma, aquele amor efetivo e afetivo que se experimenta de maneira privilegiada na relação entre educando e educador, quando gestos de amizade e de perdão por parte do educador induzem o jovem, em virtude do amor que guia o educador, a abrir-se à confiança, a sentir-se apoiado em seu esforço de superação e de compromisso, a dar seu consentimento e a aderir em profundidade aos valores que o educador vive pessoalmente e lhe propõe. O jovem compreende que essa relação o reconstrói e o reestrutura como homem. O empreendimento mais árduo do Sistema Preventivo é precisamente o de conquistar o coração do jovem, de gozar de sua estima, de sua confiança, de fazer dele um amigo. Se um jovem não ama o educador, este pode fazer muito pouco do jovem e em favor do jovem.

As obras de misericórdia
            Poderíamos agora continuar com as obras de misericórdia, que o Catecismo distingue entre obras corporais e espirituais, estabelecendo dois grupos de sete. Não seria difícil documentar como Dom Bosco viveu, praticou e encorajou a prática dessas obras de misericórdia e como, por seu “ser e trabalhar”, ele constituiu de fato um sinal e um testemunho visível, em obras e palavras, do amor de Deus pela humanidade. Devido a limitações de espaço, limitamo-nos a indicar a possibilidade de pesquisa. Resta, porém, inquestionável que hoje elas parecem ficar abandonadas também por causa da falsa oposição entre misericórdia e justiça, como se a misericórdia não fosse uma maneira típica de expressar esse amor que, como tal, jamais poderá contradizer a justiça.




Venerável Francisco Convertini, pastor segundo o Coração de Jesus

O venerável padre Francesco Convertini, salesiano missionário na Índia, emerge como um pastor segundo o Coração de Jesus, forjado pelo Espírito e totalmente fiel ao projeto divino sobre sua vida. Através dos testemunhos de quantos o encontraram, delineiam-se sua profunda humildade, a dedicação incondicional ao anúncio do Evangelho e o fervoroso amor por Deus e pelo próximo. Viveu com alegre simplicidade evangélica, enfrentando dificuldades e sacrifícios com coragem e generosidade, sempre atento a quem quer que encontrasse em seu caminho. O texto destaca sua extraordinária humanidade e riqueza espiritual, um presente precioso para a Igreja.

1. Agricultor na vinha do Senhor
            Apresentar o perfil virtuoso do P. Francisco Convertini, missionário salesiano na Índia, homem que se deixou moldar pelo Espírito e soube realizar a sua fisionomia espiritual segundo o projeto de Deus para ele, é algo belo e sério ao mesmo tempo, porque recorda o verdadeiro sentido da vida, como resposta a um chamado, a uma promessa, a um projeto de graça.
            Muito original é a síntese esboçada sobre ele por um sacerdote de seu país, o P. Quirico Vasta, que conheceu o P. Francisco em raras visitas à sua amada terra de Puglia. Esta testemunha nos oferece uma síntese do perfil virtuoso do grande missionário, introduzindo-nos de maneira autorizada e convincente a descobrir algo da estatura humana e religiosa desse homem de Deus. “O ‘modo’ de medir a estatura espiritual desse homem santo, do P. Francisco Convertini, não é o analítico de comparar a sua vida com os muitos ‘parâmetros de conduta’ religiosos (o P. Francisco, como salesiano, também aceitou os compromissos próprios de um religioso: pobreza, obediência, castidade, e permaneceu fiel a eles durante toda a sua vida). Ao contrário, o P. Francisco Convertini aparece, em síntese, como realmente foi desde o início: um jovem camponês que, depois – e talvez por causa dos horrores da guerra –, se abre à luz do Espírito e, deixando tudo para trás, põe-se a seguir o Senhor. Por um lado, ele sabe o que está deixando para trás; e ele o deixa não apenas com o vigor típico do camponês do sul, pobre, mas tenaz; mas também com alegria e com aquela força de espírito muito pessoal que a guerra revigorou: a de alguém que pretende seguir de cabeça erguida, embora silenciosamente e no fundo de sua alma, aquilo em que concentrou sua atenção. Por outro lado, novamente como um camponês, que captou em algo ou alguém as “certezas” do futuro e o fundamento de suas esperanças e sabe “em quem está confiando”, ele permite que a luz daquele que lhe falou o coloque em uma posição de clareza operacional. E imediatamente adota as estratégias para atingir a meta: oração e disponibilidade sem medida, custe o que custar. Não é por acaso que as virtudes-chave desse homem santo são: ação silenciosa e sem clamor (cf. São Paulo: “É quando sou fraco que sou forte”) e um senso muito respeitoso para com os outros (cf. Atos: “Há mais alegria em dar do que em receber”).
Visto dessa forma, o P. Francisco Convertini é verdadeiramente um homem: tímido, inclinado a esconder seus dons e méritos, avesso à ostentação, gentil com os outros e forte consigo mesmo, comedido, equilibrado, prudente e fiel; um homem de fé, esperança e em comunhão habitual com Deus; um religioso exemplar, em obediência, pobreza e castidade”.

2. Traços distintivos: “Um encanto emanava dele, que curava você”
            Retratando as etapas de sua infância e juventude, sua preparação para o sacerdócio e a vida missionária, o amor especial de Deus por seu servo e sua correspondência com esse bom Pai são evidentes. Em particular, se destacam como características distintivas de sua fisionomia espiritual:

– Fé sem limites – confiança em Deus, encarnada no abandono filial à vontade divina.
            Ele tinha grande confiança na infinita bondade e misericórdia de Deus e nos grandes méritos da paixão e morte de Jesus Cristo, em quem confiava tudo e de quem esperava tudo. Sobre a rocha firme dessa fé, ele empreendeu todos os seus trabalhos apostólicos. Frio ou calor, chuva tropical ou sol escaldante, dificuldade ou fadiga, nada o impedia de proceder sempre com confiança, quando se tratava da glória de Deus e da salvação das almas.

– Amor incondicional a Jesus Cristo Salvador, a quem oferecia tudo como sacrifício, a começar por sua própria vida, entregue à causa do Reino.
            O P. Convertini se alegrava com a promessa do Salvador e se regozijava com a vinda de Jesus, como Salvador universal e único mediador entre Deus e os homens: “Jesus nos deu tudo de si mesmo ao morrer na cruz, e não seremos nós capazes de nos dar completamente a Ele?”

A salvação integral do próximo, procurada com uma evangelização apaixonada.
            Os abundantes frutos de seu trabalho missionário se deveram à sua oração incessante e aos sacrifícios sem reservas feitos pelo próximo. São homens e missionários com essas características que deixam uma marca indelével na história das missões, do carisma salesiano e do ministério sacerdotal.
            Mesmo em contato com hindus e muçulmanos, se por um lado ele era impelido por um desejo genuíno de proclamar o Evangelho, que muitas vezes levava à fé cristã, por outro lado sentia-se compelido a enfatizar aquelas verdades básicas facilmente percebidas até mesmo pelos não cristãos, como a infinita bondade de Deus, o amor ao próximo como caminho para a salvação e a oração como meio de obter graças.

A união incessante com Deus por meio da oração, dos sacramentos, a entrega a Maria, Mãe de Deus e nossa, o amor pela Igreja e pelo Papa, a devoção aos santos.
            Ele se sentia filho da Igreja e a servia com o coração de um autêntico discípulo de Jesus e missionário do Evangelho, confiado ao Imaculado Coração de Maria e na companhia dos santos, considerados como intercessores e amigos.

Ascese evangélica simples e humilde no seguimento da cruz, encarnada em uma vida extraordinariamente comum.
            Transparecia em toda a sua pessoa a profunda humildade, a pobreza evangélica (levava consigo o indispensável) e o semblante angelical. Penitência voluntária, autocontrole: pouco ou nenhum descanso, refeições irregulares. Ele se privava de tudo para doar aos pobres, até mesmo suas roupas, sapatos, cama e comida. Ele sempre dormia no chão. Jejuava por muito tempo. Com o passar dos anos, ele contraiu várias doenças que prejudicaram sua saúde: sofria de asma, bronquite, enfisema, problemas cardíacos… muitas vezes o atacavam de tal forma que ele tinha que ficar de cama. Causava admiração o fato de conseguir suportar tudo isso sem reclamar. Era exatamente isto que atraía a veneração dos hindus, para os quais ele era o “sanyasi”, aquele que sabia como renunciar a tudo por amor a Deus e por eles.

            Sua vida aparece como uma ascensão linear rumo às alturas da santidade no cumprimento fiel da vontade de Deus e na doação de si mesmo a seus irmãos, por meio do ministério sacerdotal vivido com fidelidade. Leigos, religiosos e eclesiásticos falam de sua extraordinária maneira de viver a vida cotidiana.

3. Missionário do Evangelho da alegria: “Eu lhes anunciei Jesus. Jesus, o Salvador. Jesus misericordioso»
            Não houve um dia sequer em que ele não fosse a alguma família para falar de Jesus e do Evangelho. O P. Francisco tinha tanto entusiasmo e zelo que até esperava por coisas que pareciam humanamente impossíveis. O P. Francisco ficou famoso como pacificador entre famílias ou entre vilarejos em discórdia. “Não é por meio de discussões que chegamos ao entendimento. Deus e Jesus estão além de nossas discussões. Devemos, acima de tudo, orar e Deus nos dará o dom da fé. Por meio da fé, encontraremos o Senhor. Por acaso não está escrito na Bíblia que Deus é amor? É pelo caminho do amor que se chega a Deus”.

            Era um homem interiormente pacificado e levava paz. Queria que entre as pessoas, nos lares ou nos vilarejos, não houvesse brigas, discussões ou divisões. “Em nossa aldeia, éramos católicos, protestantes, hindus e muçulmanos. Para que a paz reinasse entre nós, de tempos em tempos o padre nos reunia e nos dizia como poderíamos e deveríamos viver em paz entre nós. Em seguida, ele ouvia aqueles que queriam dizer algo e, no final, depois de orar, ele dava a bênção: uma maneira maravilhosa de manter a paz entre nós”. Ele tinha uma paz de espírito verdadeiramente surpreendente; era a força que vinha da certeza de que ele tinha de estar fazendo a vontade de Deus, buscada com esforço, mas depois abraçada com amor quando encontrada.
            Era um homem que vivia com simplicidade evangélica, a transparência de uma criança, a disponibilidade para qualquer sacrifício, sabendo entrar em sintonia com cada pessoa que encontrava em seu caminho, viajando a cavalo, de bicicleta ou, mais frequentemente, caminhando dias inteiros com sua mochila nos ombros. Ele pertencia a todos, sem distinção de religião, casta ou status social. Era amado por todos, porque levava a todos “a água de Jesus que salva”.

4. Um homem de fé contagiante: lábios em oração, rosário nas mãos, olhos voltados para o céu
            «Sabemos por ele que nunca se descuidou da oração, tanto quando estava com os outros como quando estava sozinho, mesmo como soldado. Isso o ajudou a fazer tudo por Deus, especialmente quando fez a primeira evangelização entre nós. Para ele, não havia horário fixo: manhã ou noite, sol ou chuva; calor ou frio não eram impedimentos quando se tratava de falar sobre Jesus ou fazer o bem. Quando ia às aldeias, caminhava até mesmo à noite e sem comer para chegar a alguma casa ou aldeia e pregar o Evangelho. Mesmo quando foi colocado como confessor em Krishnagar, ele vinha até nós para atender confissões durante o calor sufocante depois do almoço. Certa vez, eu lhe perguntei: “Por que ele vem a essa hora?” E ele: “Na paixão, Jesus não escolheu a hora conveniente quando estava sendo conduzido a Anás, Caifás ou Pilatos. Ele teve que fazer isso mesmo contra sua própria vontade, para fazer a vontade do Pai”.
            Evangelizava não por proselitismo, mas por atração. Era o seu comportamento que atraía as pessoas. Sua dedicação e seu amor faziam com que as pessoas dissessem que o P. Francisco era a verdadeira imagem do Jesus que ele pregava. O amor de Deus o levava a buscar uma união íntima com Ele, a se recolher em oração, a evitar qualquer coisa que pudesse desagradar a Deus. Ele sabia que só se conhece a Deus por meio da caridade. Ele costumava dizer: “Ame a Deus, não lhe desagrade”».

            «Se havia um sacramento no qual o P. Francisco se destacava heroicamente, foi a administração do Sacramento da Reconciliação. Para qualquer pessoa em nossa diocese de Krishnagar, dizer P. Francisco é dizer o homem de Deus que mostrava a paternidade do Pai no perdão, especialmente no confessionário. Passou os últimos 40 anos de sua vida mais no confessionário do que em qualquer outro ministério: horas e horas, especialmente na preparação para festas e solenidades. Assim, toda a noite de Natal e Páscoa ou festas de padroeiros. Ele estava sempre presente pontualmente no confessionário todos os dias, mas especialmente aos domingos antes das missas ou na véspera de festas e no sábado. Depois, ele ia para outros lugares onde era confessor regular. Essa era uma tarefa muito querida para ele e muito esperada por todos os religiosos da diocese, aos quais ele ia semanalmente. Seu confessionário era sempre o mais lotado e o mais desejado. Os padres, os religiosos, as pessoas comuns: parecia que o P. Francisco conhecia todos pessoalmente, tão pertinente era em seus conselhos e admoestações. Eu mesmo me maravilhava com a sabedoria de suas admoestações quando me confessava com ele. De fato, o servo de Deus foi meu confessor durante toda a sua vida, desde o tempo em que era missionário nas aldeias até o fim de seus dias. Eu costumava dizer a mim mesmo: “Isso é exatamente o que eu queria ouvir dele…” O Bispo Dom Morrow, que se confessava com ele regularmente, considerava-o seu guia espiritual, dizendo que o P. Francisco era guiado pelo Espírito Santo em seus conselhos e que sua santidade pessoal compensava sua falta de dons naturais.»

            A confiança na misericórdia de Deus era um tema quase recorrente em suas conversas, e ele o usava muito bem como confessor. Seu ministério de confessionário era um ministério de esperança para si mesmo e para aqueles que se confessavam com ele. Suas palavras inspiravam esperança em todos que o procuravam. “No confessionário, o servo de Deus era o sacerdote modelo, famoso na administração desse sacramento. O servo de Deus estava sempre ensinando, procurando levar todos à salvação eterna… O servo de Deus gostava de dirigir suas orações ao Pai que está nos céus, e assim também ensinava as pessoas a verem a Deus como Pai bondoso. Especialmente para os que estavam em dificuldades, inclusive espirituais; e para os pecadores arrependidos, ele lhes lembrava de que Deus é misericordioso e que é preciso sempre confiar nele. O servo de Deus aumentou suas orações e mortificações para descontar suas infidelidades, como ele dizia, e pelos pecados do mundo”.

            Eloquentes foram as palavras do P. Rosário Stroscio, superior religioso, que concluiu o anúncio da morte do P. Francisco da seguinte forma: «Aqueles que conheceram o P. Francisco sempre se lembrarão com amor das pequenas advertências e exortações que ele costumava fazer na confissão. Com sua vozinha tão fraca, mas tão cheia de ardor: “Amemos as almas, trabalhemos somente pelas almas… Aproximemo-nos das pessoas… Vamos lidar com elas de tal forma que as pessoas entendam que as amamos…” Toda a sua vida foi um magnífico testemunho da técnica mais frutuosa do ministério sacerdotal e do trabalho missionário. Podemos resumi-la na simples expressão: “Para ganhar almas para Cristo, não há meio mais poderoso do que a bondade e o amor!”».

5. Amava a Deus e amava o próximo por amor a Deus: Coloque amor! Coloque o amor!
            Para “Ciccilluzzo”, nome familiar, que ajudava nos campos, cuidando dos perus e fazendo outros trabalhos adequados à sua pouca idade, sua mãe Catarina costumava repetir: “Coloque amor! Coloque amor!”.
            “O P. Francisco entregou tudo a Deus, porque estava convencido de que, tendo consagrado tudo a Ele como sacerdote religioso e missionário, Deus tinha plenos direitos sobre ele. Quando lhe perguntávamos por que ele não voltava para casa (na Itália), ele respondia que agora tinha se entregado inteiramente a Deus e a nós”. O fato de ser padre era tudo para os outros: “Sou padre para o bem do meu próximo. Esse é o meu primeiro dever”. Ele se sentia em dívida com Deus em tudo; de fato, tudo pertencia a Deus e ao próximo, enquanto ele havia se doado totalmente, não reservando nada para si: o P. Francisco agradecia continuamente ao Senhor por tê-lo escolhido para ser sacerdote missionário. Ele demonstrava esse senso de gratidão para com qualquer pessoa que tivesse feito algo por ele, mesmo os mais pobres.
            Deu exemplos extraordinários de fortaleza ao se adaptar às condições de vida do trabalho missionário que lhe foi confiado: uma língua nova e difícil, que procurou aprender muito bem, porque era a maneira de se comunicar com seu povo; um clima muito duro, o de Bengala, túmulo de tantos missionários, que aprendeu a suportar por amor a Deus e às almas; viagens apostólicas a pé por áreas desconhecidas, com o risco de encontrar animais selvagens.

            Ele foi missionário e evangelizador incansável numa área muito difícil como Krishnagar – que ele queria transformar em Crist-nagar, a cidade de Cristo – onde as conversões eram difíceis, sem mencionar a oposição dos protestantes e de membros de outras religiões. Para a administração dos sacramentos, ele enfrentou todos os perigos possíveis: chuva, fome, doenças, animais selvagens, pessoas mal-intencionadas. “Ouvi muitas vezes o episódio do P. Francisco, que certa noite, enquanto levava o Santíssimo Sacramento a um doente, deparou-se com um tigre agachado no caminho por onde ele e seus companheiros tinham de passar… Enquanto os companheiros tentavam fugir, o servo de Deus ordenou ao tigre: “Deixe seu Senhor passar!”; e o tigre se afastou. Mas já ouvi outros exemplos semelhantes sobre o servo de Deus, que muitas vezes viajava a pé à noite. Certa vez, um bando de bandidos o atacou, acreditando conseguir algo dele. Mas quando o viram privado de tudo, exceto do que estava carregando, eles se desculparam e o acompanharam até a próxima aldeia”.
            Sua vida como missionário foi uma viagem constante: de bicicleta, a cavalo e, na maioria das vezes, a pé. Esse caminhar a pé talvez seja a atitude que melhor retrata o missionário incansável e o sinal do autêntico evangelizador: “Que beleza, pelas montanhas, os passos de quem traz boas-novas, daquele que traz a notícia da paz, que vem anunciar a felicidade, noticiar a salvação.” (Is 52,7).

6. Olhos límpidos e voltados para o céu
            “Observando o rosto sorridente do servo de Deus e olhando para seus olhos claros e voltados para o céu, pensamos que ele não era daqui, mas do céu. Ao vê-lo, desde a primeira vez, muitos relataram uma impressão inesquecível dele: seus olhos brilhantes que mostravam um rosto cheio de simplicidade e inocência e sua longa e venerável barba lembravam a imagem de uma pessoa cheia de bondade e compaixão. Uma testemunha declarou: “O P. Francisco era um santo. Não sei como fazer um julgamento, mas acho que não é possível encontrar pessoas assim. Éramos pequenos, mas ele conversava conosco, nunca desprezou ninguém. Ele não fazia distinção entre muçulmanos e cristãos. Meu padre se dirigia a todos da mesma forma e, quando estávamos juntos, ele nos tratava da mesma maneira. Ele nos dava conselhos de criança: “Obedeçam a seus pais, façam bem a lição de casa, amem-se como irmãos”. Depois nos dava pequenos doces: em seus bolsos sempre havia algo para nós”.
            O P. Francisco manifestava seu amor a Deus principalmente por meio da oração, que parecia ser ininterrupta. Ele sempre podia ser visto movendo os lábios em oração. Mesmo quando falava com as pessoas, ele sempre mantinha os olhos erguidos como se estivesse vendo a pessoa com quem estava falando. O que mais impressionava as pessoas era a capacidade do P. Convertini de estar totalmente concentrado em Deus e, ao mesmo tempo, na pessoa à sua frente, olhando com olhos sinceros para o irmão que encontrava em seu caminho: “Ele tinha, sem dúvida, os olhos fixos na face de Deus. Esse era um traço indelével de sua alma, uma concentração espiritual de nível impressionante. Ele o seguia atentamente e respondia com grande precisão quando você falava com ele. No entanto, você sentia que ele estava “em outro lugar”, em outra dimensão, em diálogo com o Outro”.

            Para a conquista da santidade, ele incentivava os outros, como no caso de seu primo Lino Palmisano, que estava se preparando para o sacerdócio: “Fico muito feliz em saber que você já está no tirocínio; isso também passará logo, se você souber aproveitar as graças do Senhor que Ele lhe dará todos os dias, para se transformar em um santo cristão de bom senso. Os estudos mais prazerosos de teologia o aguardam, os quais alimentarão sua alma com o Espírito de Deus, que o chamou para ajudar Jesus em Seu apostolado. Não pense nos outros, mas apenas em você, em como se tornar um sacerdote santo como Dom Bosco. Dom Bosco também disse em sua época: “Os tempos são difíceis, mas nós vamos puf, puf, vamos em frente mesmo contra a correnteza”. Era a mãe celestial lhe dizendo: infirma mundi elegit Deus[Deus escolheu o que para o mundo é fraqueza – cf. 1Cor 1,27].Não se preocupe, eu o ajudarei. Caro irmão, o coração, a alma de um sacerdote santo aos olhos do Senhor vale mais do que todos os membros; o dia de seu sacrifício junto com o de Jesus no altar está próximo, prepare-se. Você nunca se arrependerá de ter sido generoso com Jesus e com seus superiores. Confie neles, eles o ajudarão a superar as pequenas dificuldades do dia que sua bela alma poderá encontrar. Eu me lembrarei de você na Santa Missa todos os dias, para que você também possa um dia se oferecer totalmente ao Bom Deus”.

Conclusão
            Assim como no início, também no final deste breve excurso sobre o perfil virtuoso do P. Convertini, aqui está um testemunho que resume o que foi apresentado.
            “Uma das figuras pioneiras que me impressionou profundamente foi a do Venerável P. Francisco Convertini, zeloso apóstolo do amor cristão, que conseguiu levar o evangelho da Redenção nas igrejas, nas áreas paroquiais, nas vielas e nos barracos dos refugiados e a qualquer pessoa que encontrasse, consolando, aconselhando, ajudando com sua primorosa caridade: uma verdadeira testemunha das obras de misericórdia corporais e espirituais, pelas quais seremos julgados: sempre pronto e zeloso no ministério do sacramento do perdão. Cristãos de todas as denominações, muçulmanos e hindus, aceitaram com alegria e prontidão aquele que chamavam de homem de Deus. Ele sabia como levar a cada um a verdadeira mensagem de amor, que Jesus pregou e trouxe a esta terra: com o contato evangélico direto e pessoal, para jovens e idosos, meninos e meninas, pobres e ricos, autoridades e párias, ou seja, o último e mais desprezado degrau do lixo (sub)humano. Para mim e para muitos outros, foi uma experiência abrasadora que me ajudou a entender e viver a mensagem de Jesus: «Amai-vos uns aos outros como eu vos amei»”.

            A última palavra vai para o P. Francisco, como um legado que ele deixa para cada um de nós. Em 24 de setembro de 1973, escrevendo de Krishnagar a seus parentes, o missionário quer envolvê-los no trabalho pelos não cristãos que ele vem realizando com dificuldade desde sua última doença, mas sempre com zelo: “Depois de seis meses no hospital, minha saúde está um tanto debilitada, sinto-me como uma panela quebrada e consertada. No entanto, o misericordioso Jesus me ajuda milagrosamente em Seu trabalho pelas almas. Deixo que me levem até a cidade e depois volto a pé, após fazer conhecer Jesus e nossa santa religião. Depois de terminar minhas confissões em casa, vou para o meio dos pagãos, que são muito melhores do que alguns cristãos. Afetuosamente seu no Coração de Jesus, Padre Francisco”.




P. Elias Comini: sacerdote mártir em Monte Sole

No dia 18 de dezembro de 2024, o Papa Francisco reconheceu oficialmente o martírio do P. Elias Comini (1910-1944), Salesiano de Dom Bosco, que, portanto, será beatificado. Seu nome se junta ao de outros sacerdotes — como o P. João Fornasini, já Beato desde 2021 — que foram vítimas das violentas atrocidades nazistas na área de Monte Sole, nas colinas de Bolonha, durante a Segunda Guerra Mundial. A beatificação do P. Elias Comini não é apenas um evento de extraordinária relevância para a Igreja bolonhesa e a Família Salesiana, mas também constitui um convite universal para redescobrir o valor do testemunho cristão: um testemunho em que a caridade, a justiça e a compaixão prevalecem sobre qualquer forma de violência e ódio.

Dos Apeninos aos pátios salesianos
            O P. Elias Comini nasceu em 7 de maio de 1910 na localidade “Madonna del Bosco” em Calvenzano di Vergato, na província de Bolonha. Sua casa natal é contígua a um pequeno santuário mariano, dedicado à “Madonna del Bosco” [Nossa Senhora do Bosque], e essa forte marca sob a proteção de Maria o acompanhará por toda a vida.
            Ele é o segundo filho de Cláudio e Ema Limoni, que se casaram na igreja paroquial de Salvaro, em 11 de fevereiro de 1907. No ano seguinte nasceu o primogênito Hamlet. Dois anos depois, Elias veio ao mundo. Batizado no dia seguinte ao nascimento – 8 de maio – na paróquia de Santo Apolinário em Calvenzano, Elias recebeu naquele dia também os nomes de “Miguel” e “José”.
            Quando tinha sete anos, a família se mudou para a localidade “Casetta” em Pioppe di Salvaro, no município de Grizzana. Em 1916, Elias entrou para a escola: frequentou as três primeiras séries do ensino fundamental em Calvenzano. Nesse período, ele também recebeu a Primeira Comunhão. Ainda pequeno, mostrou-se muito envolvido no catecismo e nas celebrações litúrgicas. Recebeu a Crisma em 29 de julho de 1917. Entre 1919 e 1922, Elias aprendeu os primeiros elementos de pastoral na “escola de fogo” de D. Fidêncio Mellini, que, quando jovem, conheceu Dom Bosco, o qual lhe profetizou o sacerdócio. Em 1923, o P. Mellini orientou tanto Elias quanto seu irmão Hamlet para os Salesianos de Finale Emilia, e ambos aproveitarão o carisma pedagógico do santo dos jovens: Hamlet como docente e “empreendedor” na área da escola; Elias como Salesiano de Dom Bosco.
            Noviço desde 1º de outubro de 1925 em São Lázaro di Savena, Elias Comini ficou órfão de pai em 14 de setembro de 1926, a poucos dias (3 de outubro de 1926) de sua Primeira Profissão religiosa, que renovou até a Perpétua, em 8 de maio de 1931, no aniversário do batismo, no Instituto “São Bernardino” de Chiari. Em Chiari, ele também foi “tirocinante” no Instituto Salesiano “Rota”. Recebeu em 23 de dezembro de 1933 as ordens menores do ostiariado e do leitorado; em 22 de fevereiro de 1934, do exorcistado e do acolitado. Foi subdiácono em 22 de setembro de 1934. Ordenado diácono na catedral de Bréscia em 22 de dezembro de 1934, o P. Elias foi ordenado sacerdote pela imposição das mãos do Bispo de Bréscia, D. Jacinto Tredici, em 16 de março de 1935, com apenas 24 anos: no dia seguinte, celebrou a Primeira Missa no Instituto Salesiano “São Bernardino” de Chiari. Em 28 de julho de 1935, ele festejará com uma Missa em Salvaro.
            Matriculado na faculdade de Letras Clássicas e Filosofia da então Real Universidade de Milão, ele sempre foi muito querido pelos alunos, tanto como docente quanto como pai e guia no Espírito: seu caráter, sério sem rigidez, lhe valeu estima e confiança. O P. Elias também é um excelente músico e humanista, que aprecia e sabe fazer apreciar as “coisas belas”. Nos trabalhos escritos, muitos alunos, além de desenvolver a proposta, consideram natural abrir seu coração ao P. Elias, proporcionando-lhe assim a oportunidade de acompanhá-los e orientá-los. Do P. Elias “Salesiano” se dirá que era como a galinha com os pintinhos ao redor («Lia-se no rosto deles toda a felicidade de ouvi-lo: pareciam uma ninhada de pintinhos ao redor da galinha»): todos próximos a ele! Essa imagem remete à de Mt 23,37 e expressa sua atitude de reunir as pessoas para alegrá-las e protegê-las.
            O P. Elias se formou em 17 de novembro de 1939 em Letras Clássicas com uma tese sobre o De resurrectione carnis [Sobre a ressurreição da carne] de Tertuliano, sob a orientação do professor Luís Castiglioni (latinista de renome e coautor de um famoso dicionário de Latim, o “Castiglioni-Mariotti”): ao se deter nas palavras «resurget igitur caro [portanto a carne ressuscitará]», Elias comenta que se trata do canto de vitória após uma longa e extenuante batalha.

Uma viagem sem retorno
            Quando o irmão Hamlet se mudou para a Suíça, a mãe – Dona Ema Limoni – ficou sozinha nas montanhas: por isso, o P. Elias, em plena concordância com os Superiores, lhe dedicaria todos os anos suas férias. Quando voltava para casa, ajudava a mãe, mas – sacerdote – se tornava antes de tudo disponível na pastoral local, ao lado de D. Mellini.
            De acordo com os Superiores e em particular com o Inspetor, P. Francisco Rastello, o P. Elias voltou a Salvaro também no verão de 1944: naquele ano, esperava poder afastar a mãe de uma área onde, a uma curta distância, forças Aliadas, partidários da resistência italiana e efetivos nazifascistas constituíam uma situação de risco particular. O P. Elias estava ciente do perigo que corria ao deixar sua Treviglio para ir a Salvaro, e um coirmão, o P. José Bertolli, sdb, recorda: «ao me despedir, disse-lhe que uma viagem como a dele poderia também ser sem retorno; perguntei-lhe também, naturalmente brincando, o que ele me deixaria, se não voltasse; ele me respondeu no mesmo tom, que me deixaria seus livros…; depois não o vi mais». O P. Elias já estava ciente de que se dirigia para “o olho do furacão” e não buscou na Casa Salesiana (onde poderia facilmente ter permanecido) uma forma de proteção: «A última lembrança que tenho dele remonta ao verão de 1944, quando, em razão da guerra, a Comunidade começou a se dissolver; ainda lembro minhas palavras que, de forma amistosa, se dirigiam a ele, com um ar quase de brincadeira, lembrando-o de que ele, nesses períodos sombrios que estávamos prestes a enfrentar, deveria se sentir privilegiado, pois no telhado do Instituto havia sido traçada uma cruz branca e ninguém teria coragem de bombardeá-lo. Ele, porém, como um profeta, me respondeu para estar muito atento, porque durante as férias eu poderia ler nos jornais que o P. Elias Comini havia morrido heroicamente no cumprimento de seu dever». «Estava muito viva em todos a sensação do perigo ao qual ele se expunha», comentou um coirmão.
            No caminho para Salvaro, o P. Comini faz uma parada em Módena, onde cuida de uma grave ferida em uma perna: segundo uma versão, por ter se interposto entre um veículo e um pedestre, evitando assim um acidente mais grave; segundo outra versão, por ter ajudado um senhor a empurrar um carrinho. De qualquer forma, por ter socorrido o próximo. Dietrich Bonhoeffer escreveu: «Quando um louco joga seu carro na calçada, eu não posso, como pastor, me contentar em enterrar os mortos e consolar as famílias. Eu devo, se estiver naquele lugar, pular e agarrar o motorista ao volante».
            O episódio de Módena expressa, nesse sentido, uma atitude do P. Elias que em Salvaro, nos meses seguintes, se tornaria ainda mais evidente: interpor-se, mediar, acorrer pessoalmente, expor sua vida pelos irmãos, sempre consciente do risco que isso implica e serenamente disposto a arcar com as consequências.

Um pastor na linha de frente da guerra
            Coxeando, ele chega a Salvaro ao entardecer de 24 de junho de 1944, apoiando-se como pode em uma bengala: um instrumento incomum para um jovem de 34 anos! Encontra a casa paroquial transformada: Dom Mellini abriga dezenas de pessoas, pertencentes a núcleos familiares de desabrigados; além disso, as 5 irmãs Servas do Sagrado Coração, responsáveis pela creche, entre as quais irmã Alberta Taccini. Idoso, cansado e abalado pelos eventos bélicos, naquele verão D. Fidêncio Mellini tem dificuldade em decidir, tornou-se mais frágil e incerto. O P. Elias, que o conhece desde criança, começa a ajudá-lo em tudo e assume um pouco a situação. A ferida na perna também o impede de afastar a mãe: o P. Elias permanece em Salvaro e, quando pode novamente andar bem, as circunstâncias mudadas e as crescentes necessidades pastorais farão com que ele fique.
            O P. Elias reanima a pastoral, acompanha o catecismo, cuida dos órfãos abandonados a si mesmos. Ele também acolhe os desabrigados, encoraja os temerosos, modera os imprudentes. A presença do P. Elias torna-se agregadora, um sinal positivo naqueles momentos dramáticos em que as relações humanas são dilaceradas por desconfianças e oposições. Coloca a serviço de tanta gente as capacidades organizativas e a inteligência prática treinadas em anos de vida salesiana. Escreve ao irmão Hamlet: «Certamente são momentos dramáticos, presságios de outros piores. Esperamos tudo na graça de Deus e na proteção de Nossa Senhora, que vocês devem invocar por nós. Espero poder ainda lhes enviar notícias nossas».
            Os alemães da Wehrmacht patrulham a área e, nas colinas, está a brigada partisana “Estrela Vermelha”. O P. Elias Comini permanece uma figura estranha a reivindicações ou partidarismos de qualquer tipo: é um sacerdote e faz valer demandas de prudência e pacificação. Aos partisanos, ele dizia: «Rapazes, vejam o que fazem, porque estão arruinando a população…», expondo-a a retaliações. Eles o respeitam e, em julho e setembro de 1944, pedirão Missas na paróquia de Salvaro. O P. Elias aceita, fazendo descer os partisanos e celebrando sem se esconder, evitando, em vez disso, subir para a área partisana e preferindo – como sempre fará naquele verão – permanecer em Salvaro ou em áreas vizinhas, sem se esconder ou deslizar em atitudes “ambíguas” aos olhos dos nazifascistas.
            Em 27 de julho, o P. Elias Comini escreve as últimas linhas de seu Diário espiritual: «27 de julho: estou exatamente no meio da guerra. Sinto saudades de meus coirmãos e de minha casa em Treviglio; se pudesse, voltaria amanhã».
            Desde 20 de julho, compartilhava uma fraternidade sacerdotal com o padre Martinho Capelli, Dehoniano, nascido em 20 de setembro de 1912 em Nembro, na região de Bérgamo, e já docente de Sagrada Escritura em Bolonha, também hóspede de Dom Mellini e ajudando na pastoral.
            Elias e Martinho são dois estudiosos de línguas antigas que agora devem cuidar das coisas mais práticas e materiais. A casa paroquial de D. Mellini torna-se o que Dom Luciano Gherardi chamaria mais tarde de «a comunidade da arca», um lugar que acolhe para salvar. O P. Martinho era um religioso que se entusiasmou ao ouvir falar dos mártires mexicanos e desejava ser missionário na China. Elias, desde jovem, é perseguido por uma estranha consciência de “dever morrer” e já aos 17 anos havia escrito: «Persiste sempre em mim o pensamento de que devo morrer! – Quem sabe?! Vamos agir como o servo fiel: sempre preparado para o chamado, a “reddere rationem [prestar contas]” da gestão».
            Em 24 de julho, o P. Elias inicia o catecismo para as crianças em preparação para as primeiras Comunhões, agendadas para 30 de julho. No dia 25, nasce uma menina no batistério (todos os espaços, da sacristia ao galinheiro, estavam lotados) e um laço rosa é pendurado.
            Durante todo o mês de agosto de 1944, soldados da Wehrmacht estão estacionados na casa paroquial de D. Mellini e no espaço em frente. Entre alemães, desabrigados, consagrados… a tensão poderia explodir a qualquer momento: o P. Elias medeia e previne também em pequenas coisas, por exemplo, atuando como um “amortecedor” entre o volume excessivo do rádio dos alemães e a paciência já muito curta de D. Mellini. Houve também um pouco de Rosário todos juntos. O P. Ângelo Carboni confirma: «Na intenção sempre de confortar o Bispo, o P. Elias se esforçou muito contra a resistência de uma companhia de alemães que, estabelecendo-se em Salvaro em 1º de agosto, queria ocupar diversos ambientes da Casa Paroquial, tirando toda a liberdade e conforto das famílias e desabrigados ali hospedados. Acomodados os alemães no arquivo do Bispo, eles voltaram a perturbar, ocupando com seus carros boa parte do pátio da Igreja; com modos ainda mais gentis e palavras persuasivas, o P. Elias conseguiu também essa outra liberação para conforto do Bispo, que a opressão da luta havia forçado ao descanso». Naquelas semanas, o sacerdote salesiano é firme em proteger o direito de D. Mellini de se mover com certa liberdade em sua própria casa – bem como o dos desabrigados de não serem afastados da casa paroquial –: no entanto, reconhece algumas necessidades dos homens da Wehrmacht e isso atrai a benevolência deles em relação a D. Mellini, que os soldados alemães aprenderão a chamar de o bom pastor. Dos alemães, o P. Elias consegue comida para os desabrigados. Além disso, canta para acalmar as crianças e conta episódios da vida de Dom Bosco. Em um verão marcado por assassinatos e retaliações, com o P. Elias, alguns civis conseguem até ouvir um pouco de música, evidentemente transmitida pelo aparelho dos alemães, e se comunicar com os soldados através de breves gestos. O P. Rino Germani, sdb, Vice-Postulador da Causa, afirma: «Entre as duas forças em luta se insere a obra incansável e mediadora do Servo de Deus. Quando necessário, ele se apresenta ao Comando alemão e, com educação e preparação, consegue conquistar a estima de alguns oficiais. Assim, muitas vezes consegue evitar retaliações, saques e lutos».
            A casa paroquial foi liberada da presença fixa da Wehrmacht em 1º de setembro de 1944 – «Em 1º de setembro, os alemães deixaram livre a área de Salvaro; apenas alguns permaneceram por mais alguns dias na casa Fabbri» – e a vida em Salvaro pôde respirar aliviada. O P. Elias Comini persevera, enquanto isso, nas iniciativas de apostolado, auxiliado pelos outros sacerdotes e pelas irmãs.
            No entanto, enquanto o padre Martinho aceita alguns convites para pregar em outros lugares e sobe para a montanha, onde seus cabelos claros lhe causam um grande problema com os partidários da resistência, suspeitando que ele seja alemão, o P. Elias permanece essencialmente fixo. Em 8 de setembro, escreve ao diretor salesiano da Casa de Treviglio: «Deixo você imaginar nosso estado de espírito nesses momentos. Passamos por dias muito sombrios e dramáticos. […] Meu pensamento está sempre com você e com os queridos coirmãos daí. Sinto uma saudade vivíssima […]».

            Desde o dia 11, ele prega os Exercícios para as Irmãs sobre o tema dos Novíssimos, dos votos religiosos e da vida do Senhor Jesus.
            Toda a população – declarou uma consagrada – amava o P. Elias, também porque ele não hesitava em se dedicar a todos, a todo momento; não pedia apenas às pessoas que rezassem, mas oferecia-lhes um exemplo válido com sua piedade e aquele pouco de apostolado que, dadas as circunstâncias, era possível exercer.
            A experiência dos Exercícios imprime uma dinâmica diferente a toda a semana e envolve transversalmente consagrados e leigos. À noite, de fato, o P. Elias reúne 80-90 pessoas: tentava amenizar a tensão com um pouco de alegria, bons exemplos, caridade. Naqueles meses, tanto ele quanto o P. Martinho, como outros sacerdotes: primeiro entre todos, o P. João Fornasini, estavam na linha de frente em muitas obras de bem.

O massacre de Monte Sole
            A matança mais cruel e a maior realizada pelas SS nazistas na Europa, durante a guerra de 1939-45, foi aquela consumada em torno de Monte Sole, nos territórios de Marzabotto, Grizzana Morandi e Monzuno, embora seja comumente conhecida como o “massacre de Marzabotto”.
            Entre 29 de setembro e 5 de outubro de 1944, os mortos foram 770, mas no total as vítimas de alemães e fascistas, da primavera de 1944 até a libertação, foram 955, distribuídas em 115 diferentes localidades dentro de um vasto território que inclui os municípios de Marzabotto, Grizzana e Monzuno e algumas porções dos territórios vizinhos. Desses, 216 eram crianças, 316 mulheres, 142 idosos, 138 as vítimas reconhecidas como partisanos, cinco sacerdotes, cuja culpa aos olhos dos alemães consistia em terem estado próximos, com a oração e a ajuda material, a toda a população de Monte Sole nos trágicos meses de guerra e ocupação militar. Junto com o P. Elias Comini, Salesiano, e o padre Martinho Capelli, Dehoniano, naqueles dias trágicos também foram mortos três sacerdotes da Arquidiocese de Bolonha: o P. Ubaldo Marchioni, o P. Ferdinando Casagrande, o P. João Fornasini. De todos os cinco, está em andamento a Causa de Beatificação e Canonização. O P. João, o “Anjo de Marzabotto”, morreu em 13 de outubro de 1944. Tinha vinte e nove anos e seu corpo permaneceu não sepultado até 1945, quando foi encontrado gravemente mutilado; foi beatificado em 26 de setembro de 2021. O P. Ubaldo morreu em 29 de setembro, assassinado por uma metralhadora no altar de sua igreja em Casaglia; tinha 26 anos, havia sido ordenado sacerdote dois anos antes. Os soldados alemães o encontraram com a comunidade na oração do terço. Ele foi morto ali, aos pés do altar. Os outros – mais de 70 – no cemitério próximo. O P. Ferdinando foi morto, em 9 de outubro, com um tiro na nuca, junto com sua irmã Júlia; tinha 26 anos.

Da Wehrmacht às SS
            Em 25 de setembro, a Wehrmacht deixa a área e cede o comando às SS do 16º Batalhão da 16ª Divisão Blindada “Reichsführer – SS”, uma Divisão que inclui elementos SS “Totenkopf – Cabeça de Morto” e era precedida por um rastro de sangue, tendo estado presente em Sant’Ana di Stazzema (Lucca) em 12 de agosto de 1944; em São Terêncio Monti (Massa-Carrara, na Lunigiana) em 17 daquele mês; em Vinca e arredores (Massa-Carrara, na Lunigiana, ao pé das Alpes Apuanos) de 24 a 27 de agosto.
            Em 25 de setembro, as SS estabelecem o “Alto Comando” em Sibano. Em 26 de setembro, vão para Salvaro, onde também está o P. Elias: uma área fora da zona de imediata influência partisana. A dureza dos comandantes em manifestar o mais total desprezo pela vida humana, o hábito de mentir sobre o destino dos civis e a estrutura paramilitar – que recorria voluntariamente a técnicas de “terra queimada”, em desprezo a qualquer código de guerra ou legitimidade de ordens dadas de cima – tornava-os um esquadrão da morte que nada deixava intacto em seu caminho. Alguns haviam recebido uma formação de caráter explicitamente concentracionista e eliminacionista, destinada à: supressão da vida, com finalidades ideológicas; ódio contra aqueles que professavam a fé judaico-cristã; desprezo pelos pequenos, pelos pobres, pelos idosos e pelos fracos; perseguição de quem se opusesse às aberrações do nacional-socialismo. Havia um verdadeiro catecismo – anticristão e anticatólico – do qual os jovens das SS estavam impregnados.
            “Quando se pensa que a juventude nazista era formada no desprezo pela personalidade humana dos judeus e das outras raças ‘não eleitas’, no culto fanático de uma suposta superioridade nacional absoluta, no mito da violência criadora e das ‘novas armas’ portadoras de justiça no mundo, compreende-se onde estavam as raízes das aberrações, tornadas mais fáceis pela atmosfera de guerra e pelo temor de uma derrota decepcionante”.
            O P. Elias Comini – com o P. Capelli – corre para confortar, tranquilizar, exortar. Decide acolher na casa paroquial principalmente os sobreviventes das famílias em que os alemães haviam matado em retaliação. Ao fazer isso, ele retira os sobreviventes do perigo de encontrar a morte logo depois, mas, acima de tudo, os arranca – pelo menos na medida do possível – daquela espiral de solidão, desespero e perda da vontade de viver que poderia se traduzir até mesmo em desejo de morte. Ele também consegue falar com os alemães e, em pelo menos uma ocasião, fazer com que as SS desistam de seu propósito, fazendo-as passar adiante e podendo, assim, avisar os refugiados para saírem do esconderijo.
            O Vice-Postulador, P. Rino Germani, sdb, escrevia: “Chega o P. Elias. Ele os tranquiliza. Diz-lhes para saírem, porque os alemães foram embora. Fala com os alemães e os faz passar adiante”.
            Também é morto Paulo Calanchi, um homem cuja consciência nada lhe reprova e que comete o erro de não fugir. Será ainda o P. Elias a correr, antes que as chamas consumam seu corpo, tentando ao menos honrar seus restos mortais, não tendo chegado a tempo para salvar sua vida: “O corpo de Paulinho é salvo das chamas justamente pelo P. Elias que, arriscando sua vida, o recolhe e transporta com um carrinho até a Igreja de Salvaro”.
            A filha de Paulo Calanchi testemunhou: “Meu pai era um homem bom e honesto [“em tempos de racionamento e de fome, dava pão a quem não tinha”] e havia recusado fugir, sentindo-se tranquilo em relação a todos. Foi morto pelos alemães, fuzilado, em retaliação; mais tarde, a casa também foi incendiada, mas o corpo de meu pai havia sido salvo das chamas justamente pelo P. Comini, que, arriscando sua própria vida, o havia recolhido e transportado com um carrinho até a Igreja de Salvaro, onde, em um caixão que ele mesmo construiu, reaproveitando tábuas, foi sepultado no cemitério. Assim, graças à coragem do P. Comini e, muito provavelmente, também do Padre Martinho, terminada a guerra, eu e minha mãe pudemos encontrar e fazer transportar o caixão de nosso querido para o cemitério de Vergato, junto ao de meu irmão João Luís, que morreu 40 dias depois ao atravessar a linha de frente”.
            Uma vez, o P. Elias havia dito sobre a Wehrmacht: “Devemos amar também esses alemães que vêm nos perturbar”. “Amava a todos sem preferência”. O ministério do P. Elias foi muito precioso para Salvaro e para muitos deslocados, naqueles dias. Testemunhas declararam: “O P. Elias foi nossa sorte porque tínhamos o Pároco muito idoso e fraco. Toda a população sabia que o P. Elias tinha esse interesse por nós; o P. Elias ajudou a todos. Pode-se dizer que todos os dias o víamos. Ele celebrava a Missa, mas depois estava frequentemente no adro da igreja observando: os alemães estavam lá embaixo, em direção ao Reno; os partisanos vinham da montanha, em direção a Creda. Uma vez, por exemplo, (alguns dias antes do dia 26) vieram os partisanos. Nós saímos da igreja de Salvaro e havia os partisanos lá, todos armados; e o P. Elias pedia tanto que eles fossem embora, para evitar problemas. Eles o ouviram e foram embora. Provavelmente, se não fosse por ele, o que aconteceu depois teria ocorrido muito antes”. “Pelo que sei, o P. Elias era a alma da situação, pois com sua personalidade sabia controlar muitas coisas que, naqueles momentos dramáticos, eram de importância vital”.
            Embora fosse um sacerdote jovem, o P. Elias Comini era confiável. Essa sua confiabilidade, unida a uma profunda retidão, o acompanhava um pouco desde sempre, até mesmo desde que era coroinha, como resulta de um testemunho: “Tive-o por quatro anos em Rota, de 1931 a 1935, e, embora ainda coroinha, ele me deu uma ajuda que dificilmente teria encontrado em outro coirmão, mesmo mais velho”.

O tríduo da paixão
            No entanto a situação se agrava após poucos dias, na manhã de 29 de setembro, quando as SS cometem um terrível massacre na localidade de “Creda”. O sinal para o início do massacre são um foguete branco e um vermelho no ar: começam a atirar, as metralhadoras atingem as vítimas, posicionadas contra um pórtico e praticamente sem saída. Em seguida, são lançadas granadas, algumas incendiárias, e o estábulo – onde alguns conseguiram encontrar abrigo – pega fogo. Poucos homens, aproveitando um momento de distração das SS naquele inferno, se precipitam em direção à floresta. Atílio Comastri, ferido, se salva porque o corpo sem vida da esposa Inês Gandolfi lhe serviu de escudo: vagará por dias, em estado de choque, até conseguir passar a linha de frente e salvar a vida; havia perdido, além da esposa, a irmã Marcelina e a filha Bianca, de apenas dois anos. Carlos Cardi também consegue se salvar, mas sua família é exterminada: Walter Cardi tinha apenas 14 dias, foi a menor vítima do massacre de Monte Sole. Mário Lippi, um dos sobreviventes, atesta: “Não sei eu mesmo como me salvei milagrosamente, dado que de 82 pessoas reunidas sob o pórtico, 70 foram mortas [69, segundo a declaração oficial]. Lembro que, além do fogo das metralhadoras, os alemães também lançaram sobre nós granadas e acredito que alguns fragmentos dessas me feriram levemente no lado direito, nas costas e no braço direito. Eu, junto com outras sete pessoas, aproveitando que em [um] lado do pórtico havia uma portinha que levava para a rua, corri em direção à floresta. Os alemães, ao nos ver fugindo, atiraram atrás de nós, matando um de nós [chamado] Emílio Gandolfi. Preciso dizer que entre as 82 pessoas reunidas sob o mencionado pórtico havia também cerca de vinte crianças, das quais duas de colo, nos braços de suas respectivas mães, e cerca de vinte mulheres”.
            Em Creda, são 21 as crianças com menos de 11 anos, algumas muito pequenas; 24 mulheres (das quais uma adolescente); quase 20 os “idosos”. Entre as famílias mais atingidas estão os Cardi (7 pessoas), os Gandolfi (9 pessoas), os Lolli (5 pessoas), os Macchelli (6 pessoas).
            Da casa paroquial de D. Mellini, olhando para cima, em certo momento se vê a fumaça: mas é de manhã cedo, Creda permanece oculta à vista e a floresta atenua os ruídos. Na paróquia, naquele dia – 29 de setembro, festa dos Santos Arcanjos – celebram-se três Missas, de manhã cedo, em imediata sucessão: a de D. Mellini; a de P. Capelli que depois vai levar a Unção dos Enfermos na localidade de “Casellina”; a do P. Comini. E é então que o drama bate à porta: “Ferdinando Castori, que também escapou do massacre, chegou à igreja de Salvaro ensanguentado como um açougueiro e foi se esconder dentro da cúspide do Campanário”. Por volta das 8 horas, chega à casa paroquial um homem transtornado: parecia “um monstro pelo aspecto aterrorizante”, diz a Irmã Alberta Taccini. Pede ajuda para os feridos. Cerca de setenta pessoas estão mortas ou morrendo entre terríveis suplícios. O P. Elias, em poucos instantes, tem a lucidez de esconder 60/70 homens na sacristia, empurrando contra a porta um velho armário que deixava a entrada visível por baixo, mas era, no entanto, a única esperança de salvação: “Foi então que o P. Elias, pessoalmente, teve a ideia de esconder os homens ao lado da sacristia, colocando depois um armário na frente da porta (ele foi ajudado por uma ou duas pessoas que estavam na casa do Bispo). A ideia foi do P. Elias; mas todos eram contrários ao fato de que fosse ele mesmo a realizar aquele trabalho… Ele mesmo quis assim. Os outros diziam: «E se depois nos descobrem?»”.
Outra versão: “O P. Elias conseguiu esconder em um local adjacente à sacristia cerca de sessenta homens e empurrou um velho armário contra a porta. Enquanto isso, o crepitar das metralhadoras e os gritos desesperados das pessoas chegavam das casas vizinhas. O P. Elias teve a força de iniciar o Santo Sacrifício da Missa, a última de sua vida. Não havia terminado ainda, quando chegou aterrorizado e ofegante um jovem da localidade de “Creda” pedindo socorro porque as SS haviam cercado uma casa e prendido sessenta e nove pessoas, homens, mulheres, crianças”.
             “Ainda com os paramentos sagrados, prostrado ao altar, imerso em oração, invoca para todos a ajuda do Sagrado Coração, a intercessão de Maria Auxiliadora, de São João Bosco e de São Miguel Arcanjo. Depois, com um breve exame de consciência, recitando três vezes o ato de contrição, faz uma preparação para a morte. Recomenda à assistência das irmãs todas aquelas pessoas e à Superiora que conduza fortemente a oração para que os fiéis possam encontrar nela o conforto de que precisam”.
            A propósito do P. Elias e do padre Martinho, que chegou um pouco depois, «constatam-se algumas dimensões de uma vida sacerdotal doada conscientemente pelos outros até o último instante: a morte deles foi um prolongar o dom da vida na Missa celebrada até o último dia». A escolha deles tinha «raízes longínquas, na decisão de fazer o bem, mesmo que fosse na última hora, dispostos até ao martírio»: «muitas pessoas vieram buscar ajuda na paróquia e, sem o conhecimento do pároco, o P. Elias e o P. Martinho tentaram esconder o maior número possível de pessoas; depois de se certificarem de que estavam de alguma forma assistidas, correram para o local dos massacres para poder ajudar também os mais desafortunados; o próprio D. Mellini não se deu conta disso e continuava a procurar os dois padres para se fazer ajudar a receber toda aquela gente» («Temos a certeza de que nenhum deles era partisano ou tinha estado com os partisanos»).
            Naqueles momentos, o P. Elias atesta grande lucidez que se traduz tanto em espírito organizativo, quanto na consciência de colocar em risco a própria vida: «À luz de tudo isso, e o P. Elia sabia bem, não podemos, portanto, buscar aquela caridade que induz à tentativa de ajudar os outros, mas sim àquele tipo de caridade (que foi a mesma de Cristo) que induz a participar até o fundo do sofrimento alheio, não temendo nem mesmo a morte como sua última manifestação. O fato de que a sua foi uma escolha lúcida e bem pensada, também é demonstrado pelo espírito organizativo que manifestou até poucos minutos antes da morte, ao tentar com prontidão e inteligência ocultar o maior número possível de pessoas nos locais escondidos da casa paroquial; em seguida a notícia de Creda e, após, a caridade fraterna, a caridade heroica».
            Uma coisa é certa: se o P. Elias tivesse se escondido com todos os outros homens ou mesmo apenas tivesse permanecido ao lado de D. Mellini, não teria nada a temer. Em vez disso, o P. Elias e o P. Martinho pegam a estola, os óleos santos e uma teca com algumas Partículas consagradas «partiram, portanto, para a montanha, armados da estola e do óleo dos enfermos»: «Quando o P. Elias voltou depois de ter ido se encontrar com o Bispo, pegou a âmbula com as Hóstias e o Óleo Santo e se virou para nós: ainda aquele rosto! estava tão pálido, que parecia alguém já morto. E disse: “Orem, orem por mim, porque tenho uma missão a cumprir”». «Orem por mim, não me deixem sozinho!». «Nós somos sacerdotes e devemos ir e temos que cumprir o nosso dever». «Vamos levar o Senhor aos nossos irmãos».
            Lá em cima, em Creda há muita gente que está morrendo entre suplícios: devem acorrer, abençoar e – se possível – tentar interpor-se em relação às SS.
            A senhora Massimina [Zappoli], posteriormente também testemunha na investigação militar de Bolonha, lembra: «Apesar das orações de todos nós, eles celebraram rapidamente a Eucaristia e, impulsionados apenas pela esperança de poder fazer algo pelas vítimas de tanta ferocidade, ao menos com um conforto espiritual, pegaram o Santíssimo Sacramento e correram em direção a Creda. Lembro que enquanto o P.  Elias, já correndo, passou ao meu lado na cozinha, eu me agarrei a ele numa última tentativa de dissuadi-lo, dizendo que nós ficaríamos à mercê de nós mesmos; ele deu a entender que, por mais grave que fosse nossa situação, havia quem estivesse pior do que nós e era a esses que eles deveriam ir».
            Ele está irredutível e se recusa, como depois sugeriu D. Mellini, a adiar a subida a Creda quando os alemães tivessem ido embora: «Foi [portanto] uma paixão, antes de ser cruenta, […] do coração, a paixão do espírito. Naqueles tempos estávamos aterrorizados por tudo e por todos: não se tinha mais confiança em ninguém: qualquer um poderia ser um inimigo determinante para a própria vida. Quando os dois Sacerdotes perceberam que alguém realmente precisava deles, não hesitaram para decidir o que fazer […] e, sobretudo, não recorreram àquela que era a decisão imediata para todos, ou seja, encontrar um esconderijo, tentar se proteger e ficar fora da confusão. Os dois Sacerdotes, em vez disso, decidiram ser verdadeiramente sacerdotes: ou seja, assistir e confortar; para prestar também o serviço dos Sacramentos, portanto da oração, do conforto que a fé e a religião oferecem».
            Uma pessoa disse: «Para nós, o P. Elias já era santo. Se ele fosse uma pessoa normal […] não teria se arriscado; ele também se teria escondido, atrás do armário, como todos os outros».
            Com os homens escondidos, são as mulheres que tentam reter os sacerdotes, em uma tentativa extrema de salvar suas vidas. A cena é ao mesmo tempo agitada e bastante eloquente: «Lídia Macchi […] e outras mulheres tentaram impedi-los de partir, tentaram segurá-los pela batina, correram atrás deles, os chamaram em voz alta para que voltassem: impulsionados por uma força interior que é ardor de caridade e solicitude missionária, eles estavam já decididamente caminhando em direção a Creda, levando os confortos religiosos».
            Uma delas lembra: «Eu os abracei, os segurava firmes pelos braços, dizendo e suplicando: – Não vão! – Não vão!».
            E Lídia Marchi acrescenta: «Eu puxava Padre Martinho pela batina e o segurava […] mas os dois sacerdotes repetiam: – Precisamos ir; o Senhor nos chama».
            «Precisamos cumprir nosso dever. E [o P. Elias e padre Martinho,] como Jesus, foram ao encontro de um destino marcado».
            «A decisão de ir a Creda foi opção dos dois sacerdotes por puro espírito pastoral; apesar de todos tentarem dissuadi-los, eles quiseram ir, impulsionados pela esperança de poder salvar algum daqueles que estavam à mercê da fúria dos soldados».
            É quase certo que nunca chegaram a Creda. Capturados, segundo uma testemunha, perto de uma “pilarzinho”, logo fora do campo de visão da paróquia, o P. Elias e o P. Martinho foram vistos mais tarde carregados de munições, à frente de rastreados, ou ainda sozinhos, amarrados, com correntes, perto de uma árvore enquanto não havia nenhuma batalha em curso e as SS comiam. O P. Elias intimou uma mulher a fugir, a não parar para evitar ser morta: «Ana, por caridade, fuja, fuja».
            «Estavam carregados e curvados sob o peso de tantas caixinhas pesadas que das costas envolviam o corpo na frente e atrás. Com as costas faziam uma curva que os levava quase com o nariz ao chão».
            «Sentados no chão […] muito suados e cansados, com as munições nas costas».
            «Aprisionados, são forçados a carregar munições para cima e para baixo pela montanha, testemunhas de violências inauditas».
            «[As SS os obrigam a] descer e subir várias vezes pela montanha, sob sua escolta, e realizando ainda, sob os olhos das duas vítimas, as mais horripilantes violências».
            Onde estão, agora, a estola, os óleos santos e sobretudo o Santíssimo Sacramento? Não há mais nenhum vestígio. Longe de olhos indiscretos, as SS espoliaram à força os sacerdotes, livrando-se daquele Tesouro do qual nada mais seria encontrado.
            Perto da noite de 29 de setembro de 1944, foram levados com muitos outros homens (forçados e não por represália ou não porque eram pró-partisanos, como as fontes demonstram), para a casa “dos “Birociai” [Carroceiros]” em Pioppe di Salvaro. Mais tarde, eles, divididos em grupos, terão sortes muito diferentes: poucos serão libertados, após uma série de interrogatórios. A maioria, avaliados como aptos para o trabalho, será enviada para campos de trabalho forçado e poderá – posteriormente – retornar às suas famílias. Os avaliados como incapazes, por mero critério etário (cf. campos de concentração) ou de saúde (jovem, mas ferido ou que simula estar doente na esperança de se salvar) serão mortos na noite de 1° de outubro na “Botte [Reservatório de água]” da Canapiera [fábrica de cânhamo] de Pioppe di Salvaro, já em ruínas porque bombardeada pelos Aliados dias antes.
            O P. Elias e o P. Martinho – que foram interrogados – puderam se mover por toda a casa e receber visitas. O P. Elias intercedeu por todos e um jovem, muito sofrido, adormeceu em seus joelhos: em um deles, o P. Elias recebeu o Breviário, a ele tão caro e que quis manter consigo até os últimos instantes. Hoje, a minuciosa pesquisa histórica através das fontes documentais, apoiada pela mais recente historiografia científica, demonstrou como nunca havia sido bem-sucedido um intento, realizado pelo Cavalheiro Emílio Veggetti, de libertar o P. Elias, e como nem o P.  Elias nem o P. Martinho nunca foram realmente considerados ou pelo menos tratados como “espiões”.

O holocausto
            Finalmente, foram inseridos, embora jovens (34 e 32 anos), no grupo dos incapazes e com eles executados. Viveram aqueles últimos instantes orando, fazendo orar, absolvendo-se mutuamente e dando todo o possível conforto da fé. O P.  Elias conseguiu transformar a macabra procissão dos condenados até uma passarela em frente ao reservatório da “canapiera”, onde serão mortos, em um ato coral de entrega, segurando até onde pôde o Breviário aberto na mão (depois, lê-se, um alemão golpeou violentamente suas mãos e o Breviário caiu no reservatório) e, sobretudo, entoando as Ladainhas. Quando começaram a atirar, o P. Elias Comini salvou um homem porque o protegia com seu corpo e gritou «Piedade». O P. Martinho invocou, por sua vez, “Perdão”, erguendo-se com dificuldade no reservatório, entre os companheiros mortos ou moribundos, e traçando o sinal da Cruz poucos instantes antes de morrer ele mesmo, devido a uma enorme ferida. As SS quiseram se certificar de que ninguém sobrevivesse lançando algumas granadas. Nos dias seguintes, diante da impossibilidade de recuperar os corpos imersos em água e lama devido a chuvas abundantes (as mulheres tentaram, mas nem mesmo o P. Fornasini conseguiu), um homem abriu as comportas e a impetuosa corrente do rio Reno levou tudo. Nada mais foi encontrado deles: consummatum est!
            Tinha-se delineado seu estar dispostos «também ao martírio, mesmo que aos olhos dos homens pareça estulto recusar a própria salvação para dar um mísero alívio a quem já estava destinado à morte». Dom Benito Cocchi em setembro de 1977 em Salvaro disse: «Pois bem aqui diante do Senhor, dizemos que nossa preferência vai a esses gestos, a essas pessoas, àqueles que pagam com a própria vida: a quem num momento em que valiam apenas as armas, a força e a violência, quando uma casa, a vida de uma criança, uma família inteira eram avaliadas como nada, soube realizar gestos que não têm voz nos balanços de guerra, mas que são verdadeiros tesouros de humanidade, resistência e alternativa à violência; a quem assim colocava raízes para uma sociedade e uma convivência mais humana».
            Nesse sentido, «O martírio dos sacerdotes constitui o fruto de sua escolha consciente de compartilhar a sorte do rebanho até o sacrifício extremo, quando os esforços de mediação entre a população e os ocupantes, há muito perseguidos, perdem toda possibilidade de sucesso».
            O P. Elias Comini havia estado lúcido sobre seu destino, dizendo – já nas primeiras fases de detenção –: «Para fazer o bem nos encontramos em muitos sofrimentos»; «Era o P.  Elias que, apontando para o céu, saudava com os olhos lacrimejantes». «Elias se aproximou e me disse: “Vá a Bolonha, ao Cardeal, e diga a ele onde estamos”. Eu respondi: “Como posso ir a Bolonha?”. […] Enquanto isso, os soldados me empurravam com o cano do fuzil. O P. Elias me saudou dizendo: “Nos veremos no paraíso!”. Eu gritei: “Não, não, não diga isso”. Ele respondeu, triste e resignado: “Nos veremos no Paraíso”».
            Com dom Bosco…: «Eu [os] espero a todos no Paraíso»!
            Era a noite de 1° de outubro, início do mês dedicado ao Rosário e às Missões.
            Nos anos de sua primeira juventude, Elias Comini havia dito a Deus: «Senhor, prepara-me para ser o menos indigno para ser vítima aceitável» (“Diário” 1929); «Senhor, […] recebe-me também como vítima expiatória» (1929); «eu gostaria de ser uma vítima de holocausto» (1931). «[A Jesus] pedi a morte em vez de falhar na vocação sacerdotal e no amor heroico pelas almas» (1935).




Vera Grita, peregrina de esperança

            Vera Grita, filha de Hamlet e de Maria Anna Zacco da Pirrera, nasceu em Roma no dia 28 de janeiro de 1923; era a segunda de quatro irmãs. Viveu e estudou em Savona, onde obteve a habilitação para o magistério. Aos 21 anos, durante uma repentina incursão aérea sobre a cidade (1944), foi atropelada e pisoteada pela multidão em fuga, sofrendo graves consequências para seu corpo, que a partir de então ficou marcado para sempre pelo sofrimento. Passou despercebida em sua breve vida terrena, ensinando nas escolas do interior da Ligúria (Rialto, Erli, Alpicella, Deserto de Varazze), onde conquistou a estima e o afeto de todos por seu caráter bondoso e manso.
            Em Savona, na paróquia salesiana de Maria Auxiliadora, participava da Missa e era assídua ao sacramento da Penitência. Desde 1963, seu confessor era o salesiano P. João Bocchi. Salesiana Cooperadora desde 1967, realizou sua vocação no dom total de si ao Senhor, que de maneira extraordinária se doava a ela, no íntimo de seu coração, com a “Voz”, com a “Palavra”, para comunicar-lhe a Obra dos Tabernáculos Vivos. Submeteu todos os escritos ao diretor espiritual, o salesiano P. Gabriel Zucconi, e guardou no silêncio de seu coração o segredo daquela vocação, guiada pelo divino Mestre e pela Virgem Maria que a acompanharam ao longo do caminho da vida oculta, do despojamento e do aniquilamento de si.
            Sob o impulso da graça divina e acolhendo a mediação dos guias espirituais, Vera Grita respondeu ao dom de Deus, testemunhando em sua vida, marcada pelo sofrimento da doença, o encontro com o Ressuscitado e dedicando-se com heroica generosidade ao ensino e à educação dos alunos, suprindo as necessidades da família e testemunhando uma vida de pobreza evangélica. Centrada e firme no Deus que ama e sustenta, com grande firmeza interior, foi capaz de suportar as provas e os sofrimentos da vida. Com base nessa solidez interior, deu testemunho de uma existência cristã feita de paciência e constância no bem.
            Morreu no dia 22 de dezembro de 1969, aos 46 anos, em um quartinho do hospital em Pietra Lígure, onde havia passado os últimos seis meses de vida em um crescendo de sofrimentos aceitos e vividos em união com Jesus Crucificado. “A alma de Vera – escreveu o P. Borra, Salesiano, seu primeiro biógrafo – com as mensagens e as cartas entra na fileira daquelas almas carismáticas chamadas a enriquecer a Igreja com chamas de amor a Deus e a Jesus Eucarístico para a dilatação do Reino”.

Uma vida privada das esperanças humanas
            Humanamente, a vida de Vera é marcada desde a infância pela perda de um horizonte de esperança. A perda da autonomia econômica em seu núcleo familiar, portanto, o afastamento dos pais para ir a Módica, na Sicília, com as tias e, sobretudo, a morte do pai em 1943, colocam Vera diante das consequências de eventos humanos particularmente sofridos. Após o dia 4 de julho de 1944, dia do bombardeio sobre Savona que marcará toda a vida de Vera, suas condições de saúde também estarão comprometidas para sempre. Por isso, a Serva de Deus se viu jovem sem qualquer perspectiva de futuro e teve que, em várias ocasiões, rever seus projetos e renunciar a muitos desejos: dos estudos universitários ao ensino e, sobretudo, a uma própria família com o jovem com quem estava namorando. Apesar do fim repentino de todas as suas esperanças humanas entre 20 e 21 anos, a esperança está muito presente em Vera: tanto como uma virtude humana que acredita em uma mudança possível e se empenha para realizá-la (mesmo muito doente, preparou e venceu o concurso para lecionar), quanto, sobretudo, como uma virtude teologal – ancorada na fé – que lhe infunde energia e se torna um instrumento de consolação para os outros.
            Quase todas as testemunhas que a conheceram ressaltam tal aparente contradição entre condições de saúde comprometidas e a capacidade de nunca se queixar, atestando, em vez disso, alegria, esperança e coragem mesmo em circunstâncias humanamente desesperadoras. Vera se tornou “portadora de alegria”.
            Uma sobrinha afirma: «Ela estava sempre doente e sofrendo, mas nunca a vi desanimada ou enraivecida por sua condição; sempre tinha uma luz de esperança sustentada pela grande fé. […] Minha tia estava frequentemente internada no hospital, sofrida e frágil, mas sempre serena e cheia de esperança pelo grande Amor que tinha por Jesus».
            Também a irmã Liliana tirou, dos telefonemas vespertinos com ela, encorajamento, serenidade e esperança, embora a Serva de Deus estivesse então sobrecarregada por numerosos problemas de saúde e por vínculos profissionais: «ela me infundia – diz – confiança e esperança, fazendo-me refletir que Deus está sempre perto de nós e nos conduz. Suas palavras me traziam de volta aos braços do Senhor e eu encontrava a paz».
            Inês Zannino Tibirosa, cujo testemunho é de particular valor pois visitou assiduamente Vera no hospital “Santa Corona” em seu último ano de vida, atesta: «apesar das graves dores que a doença lhe causava, nunca a ouvi reclamar de seu estado. Ela aliviava e dava esperança a todos que se aproximavam e, quando falava de seu futuro, o fazia com entusiasmo e coragem».
            Até o final, Vera Grita se manteve assim: mesmo na última parte de seu caminho terreno, guardou um olhar para o futuro, esperava que com os tratamentos o tuberculoma pudesse ser reabsorvido, esperava poder ocupar a cátedra nos Piani di Invrea no ano letivo de 1969-1970, assim como se dedicar à sua missão espiritual, logo que saísse do hospital.

Educada na esperança e no caminho espiritual pelo confessor
            Nesse sentido, a esperança atestada por Vera está enraizada em Deus e naquela leitura sapiencial dos eventos que seu guia espiritual, o P. Gabriel Zucconi, e, antes dele, o confessor, P. João Bocchi, lhe ensinaram. Precisamente o ministério do P. Bocchi – homem de alegria e esperança – exerceu uma influência positiva sobre Vera, que ele acolheu em sua condição de doente e a quem ensinou a dar valor aos sofrimentos – não buscados – dos quais estava sobrecarregada. Antes de tudo, o P. Bocchi foi mestre de esperança; dele se disse: «com palavras sempre cordiais e cheias de esperança, ele abriu os corações à magnanimidade, ao perdão, à transparência nas relações interpessoais; viveu as bem-aventuranças com naturalidade e fidelidade diária».
«Esperando e tendo a certeza de que, como aconteceu com Cristo, também acontecerá conosco: a Ressurreição gloriosa», o P. Bocchi realizava, através de seu ministério, um anúncio da esperança cristã, fundamentada na onipotência de Deus e na ressurreição de Cristo. Mais tarde, da África, para onde partiu como missionário, dirá: «estava lá porque queria levar e doar a eles Jesus Vivo e presente na Santíssima Eucaristia com todos os dons de Seu Coração: a Paz, a Misericórdia, a Alegria, o Amor, a Luz, a União, a Esperança, a Verdade, a Vida eterna».
            Vera se tornou portadora de esperança e de alegria também em ambientes marcados pelo sofrimento físico e moral, por limitações cognitivas (como entre seus pequenos alunos com deficiência auditiva) ou condições familiares e sociais não ideais (como no “clima escaldante” de Erli).
            A amiga Maria Mattalia recorda: «Vejo o doce sorriso de Vera, às vezes cansado por tanto lutar e sofrer; lembrando sua força de vontade, busco seguir seu exemplo de bondade, de grande fé, esperança e amor […]».
            Antonieta Fazio – ex-zeladora da escola de Casanova – testemunhou sobre ela: «era muito querida por seus alunos, que amava muito, e em particular por aqueles com dificuldades intelectuais […]. Muito religiosa, transmitia a cada um fé e esperança, embora ela mesma estivesse sofrendo muito fisicamente, mas não abatida moralmente».
            Nesses contextos, Vera trabalhava para fazer renascer as razões da esperança. Por exemplo, no hospital (onde a comida é pouco satisfatória) ela se privou de um cacho especial de uvas para deixar uma parte no criado-mudo de todas as doentes do quarto, assim como sempre cuidou de sua aparência para se apresentar bem, em ordem, com compostura e refinamento, contribuindo assim para combater o ambiente de sofrimento de uma clínica, e às vezes a perda da esperança em muitos doentes que correm o risco de “se deixar levar”.
            Através das Mensagens da Obra dos Tabernáculos Vivos, o Senhor a educou a uma postura de espera, paciência e confiança nele. Incontáveis são, de fato, as exortações sobre esperar o Esposo ou o Esposo que espera sua esposa:

“Espere em seu Jesus sempre, sempre.

Que Ele venha às nossas almas, venha às nossas casas; venha conosco para compartilhar alegrias e tristezas, cansaços e esperanças.

Deixe meu Amor agir e aumente sua fé, sua esperança.

Siga-me na escuridão, nas sombras porque você conhece o «caminho».

Espere em Mim, espere em Jesus!

Após o caminho da esperança e da espera, haverá a vitória.

Para chamá-los às coisas do Céu”.

Portadora de esperança ao morrer e ao interceder
            Mesmo na doença e na morte, Vera Grita testemunhou a esperança cristã.
            Sabia que, quando sua missão estivesse cumprida, também a vida na terra teria terminado. «Esta é a sua tarefa e quando estiver terminada você se despedirá da terra para os Céus»: por isso não se sentia “proprietária” do tempo, mas buscava a obediência à vontade de Deus.
            Nos últimos meses, apesar de uma condição agravante e exposta a um piora do quadro clínico, a Serva de Deus atestou serenidade, paz, percepção interior de um “cumprimento” de sua vida.
            Nos últimos dias, embora estivesse naturalmente apegada à vida, o P. José Formento a descreveu «já em paz com o Senhor». Nesse espírito, pôde receber a Comunhão até poucos dias antes de morrer, e receber a Unção dos Enfermos no dia 18 de dezembro.
            Quando a irmã Pina a visitou pouco antes da morte – Vera estava há cerca de três dias em coma – desobedecendo ao seu habitual recato, disse-lhe que havia visto muitas coisas, coisas belíssimas que, infelizmente, não tinha tempo de contar. Soube das orações do Padre Pio e do Papa Bom por ela, além de acrescentar – referindo-se à Vida eterna – «Todos vocês virão para o paraíso comigo, tenham certeza disso».
            Liliana Grita também testemunhou como, no último período, Vera «sabia mais do Céu do que da terra». Da sua vida foi feito o seguinte balanço: «ela, tão sofredora, consolava os outros, infundindo-lhes esperança e não hesitava em ajudá-los».
            Muitas graças atribuídas à mediação intercessora de Vera dizem respeito, por fim, à esperança cristã. Vera – mesmo durante a Pandemia de Covid 19 – ajudou muitos a reencontrar as razões da esperança e foi para eles proteção, irmã no espírito, ajuda no sacerdócio. Ajudou interiormente um sacerdote que, após um AVC, havia esquecido as orações, não conseguindo mais pronunciá-las com sua extrema dor e desorientação. Fez com que muitos voltassem a rezar, pedindo a cura de um jovem pai atingido por uma hemorragia.
            Também a Irmã Maria Hilária Bossi, Mestra das Noviças das Beneditinas do Santíssimo Sacramento de Ghiffa, observa como Vera – irmã no espírito – é uma alma que direciona ao Céu e acompanha em direção ao Céu: «Sinto-a irmã no caminho para o céu… Muitos […] que se reconhecem nela, e a ela se referem, no caminho evangélico, na corrida em direção ao céu».
            Em síntese, compreende-se como toda a história de Vera Grita foi sustentada não por esperanças humanas, pelo mero olhar para o “amanhã”, esperando que fosse melhor que o presente, mas por uma verdadeira Esperança teologal: «ela era serena porque a fé e a esperança sempre a sustentaram. Cristo estava no centro de sua vida, dele ela tirava a força. […] era uma pessoa serena porque tinha no coração a Esperança teologal, não a esperança superficial […], mas aquela que deriva somente de Deus, que é dom e nos prepara para o encontro com Ele».

            Numa oração a Maria da Obra dos Tabernáculos Vivos, lê-se: «Levante-nos [Maria] da terra para que aqui vivamos e sejamos para o Céu, para o Reino do seu Filho».
            É bonito também lembrar que o P. Gabriel teve que peregrinar na esperança entre tantas provas e dificuldades, como escreve em uma carta a Vera de 4 de março de 1968 de Florença: «No entanto, devemos sempre esperar. A presença das dificuldades não impede que, no final, o bem, o bom, o belo triunfem. A paz, a ordem, a alegria retornarão. O homem filho de Deus recuperará toda a glória que teve desde o princípio. O homem será salvo em Jesus e encontrará em Deus todo o bem. Então, vêm à mente todas as coisas belas prometidas por Jesus e a alma nele encontra sua paz. Coragem: agora estamos como em combate. Virá o dia da vitória. Essa é a certeza em Deus».
            Na igreja de Santa Corona em Pietra Lígure, Vera Grita participava da Missa e ia rezar durante os longos internamentos. Seu testemunho de fé na presença viva de Jesus Eucarístico e da Virgem Maria em sua breve vida terrena é um sinal de esperança e de conforto, para aqueles que neste lugar de cura pedirem sua ajuda e sua intercessão junto ao Senhor para serem aliviados e libertados do sofrimento.
            O caminho de Vera Grita na cansativa labuta dos dias também oferece uma nova perspectiva leiga à santidade, tornando-se exemplo de conversão, aceitação e santificação para os ‘pobres’, os ‘frágeis’, os ‘doentes’ que nela podem se reconhecer e reencontrar esperança.
            Escreve São Paulo, «que os sofrimentos do momento presente não são comparáveis à glória futura que deverá ser revelada em nós». Com «impaciência» esperamos contemplar o rosto de Deus, pois «na esperança fomos salvos» (Rom 8,18.24). Portanto, é absolutamente necessário esperar contra toda esperança, «Spes contra spem». Porque, como escreveu Carlos Péguy, a Esperança é uma criança «irredutível». Em relação à Fé que «é uma esposa fiel» e à Caridade que «é uma Mãe», a Esperança parece, à primeira vista, não valer nada. E, no entanto, é exatamente o contrário: será a Esperança, escreve Péguy, «que veio ao mundo no dia de Natal» e que «trazendo as outras, atravessará os mundos».
            «Escreva, Vera de Jesus, eu te darei luz. A árvore florida na primavera deu seus frutos. Muitas árvores deverão florescer novamente na estação oportuna para que os frutos sejam abundantes… Peço que aceite com fé cada prova, cada dor por Mim. Você verá os frutos, os primeiros frutos da nova floração». (Santa Corona – 26 de outubro de 1969 – Festa de Cristo Rei – Penúltima mensagem).




Os Meninos do Cemitério

O drama dos jovens abandonados continua a causar impacto no mundo contemporâneo. As estatísticas falam de cerca de 150 milhões de jovens forçados a viver nas ruas, uma realidade que se manifesta de forma dramática também em Monróvia, capital da Libéria. Por ocasião da festa de São João Bosco, em Viena, foi realizada uma campanha de conscientização promovida pela Jugend Eine Welt [Juventude de um só mundo], uma iniciativa que destacou não só a situação local, mas também as dificuldades encontradas em países distantes, como a Libéria, onde o salesiano Lothar Wagner dedica a sua vida a dar esperança a estes jovens.

Lothar Wagner: um salesiano que dedica a sua vida aos meninos de rua na Libéria
Lothar Wagner, salesiano coadjutor alemão, dedicou mais de vinte anos de sua vida ao apoio dos meninos na África Ocidental. Depois de ter amadurecido experiências significativas em Gana e Serra Leoa, nos últimos quatro anos concentrou-se com paixão na Libéria, um país marcado por conflitos prolongados, crises sanitárias e devastações como a epidemia de Ebola. Lothar tornou-se porta-voz de uma realidade muitas vezes ignorada, onde as cicatrizes sociais e econômicas comprometem as oportunidades de crescimento para os jovens.

A Libéria, com uma população de 5,4 milhões de habitantes, é um país onde a pobreza extrema é acompanhada de instituições frágeis e de uma corrupção generalizada. As consequências de décadas de conflitos armados e crises sanitárias deixaram o sistema educativo entre os piores do mundo, enquanto o tecido social se desgastou sob o peso de dificuldades econômicas e falta de serviços essenciais. Muitas famílias não conseguem garantir aos seus filhos as necessidades primárias, levando assim um grande número de jovens a procurar refúgio na rua.

Em particular, em Monróvia, alguns jovens encontram refúgio nos lugares mais inesperados: os cemitérios da cidade. Conhecidos como “meninos do cemitério”, estes jovens, sem uma habitação segura, refugiam-se entre os túmulos, lugar que se torna símbolo de um abandono total. Dormir ao ar livre, nos parques, nos aterros sanitários, até mesmo nos esgotos ou dentro de túmulos, tornou-se o trágico refúgio quotidiano para quem não tem outra escolha.

“É realmente muito comovente quando se caminha pelo cemitério e se veem meninos que saem dos túmulos. Deitam-se com os mortos porque não têm mais um lugar na sociedade. Uma situação deste tipo é escandalosa.”

Uma abordagem múltipla: do cemitério às celas de detenção
Não só os meninos dos cemitérios estão no centro da atenção de Lothar. O salesiano dedica-se também a outra realidade dramática: a dos detidos menores nas prisões liberianas. A prisão de Monróvia, construída para 325 detidos, acolhe hoje mais de 1.500 prisioneiros, entre os quais muitos jovens encarcerados sem uma acusação formal. As celas, extremamente superlotadas, são um claro exemplo de como a dignidade humana é muitas vezes sacrificada.

“Falta comida, água limpa, padrões higiênicos, assistência médica e psicológica. A fome constante e a dramática situação espacial devido à superlotação enfraquecem enormemente a saúde dos meninos. Numa pequena cela, projetada para dois detidos, estão trancados oito a dez jovens. Dorme-se por turnos, porque esta dimensão da cela oferece espaço só em pé aos seus numerosos habitantes”.

Para fazer face a esta situação, organiza visitas diárias na prisão, levando água potável, refeições quentes e um suporte psicossocial que se torna uma âncora de salvação. A sua presença constante é fundamental para procurar restabelecer um diálogo com as autoridades e as famílias, sensibilizando também sobre a importância de tutelar os direitos dos menores, muitas vezes esquecidos e abandonados a um destino infausto. “Não os deixamos sozinhos na sua solidão, mas procuramos dar-lhes uma esperança”, sublinha Lothar com a firmeza de quem conhece a dor quotidiana destas jovens vidas.

Um dia de conscientização em Viena
O apoio a estas iniciativas passa também pela atenção internacional. No dia 31 de janeiro, em Viena, a Jugend Eine Welt organizou um dia dedicado a evidenciar a precária situação dos meninos de rua, não só na Libéria, mas em todo o mundo. Durante o evento, Lothar Wagner compartilhou as suas experiências com estudantes e participantes, envolvendo-os em atividades práticas – como o uso de uma fita de sinalização para simular as condições de uma cela superlotada – para fazer compreender em primeira pessoa as dificuldades e a angústia dos jovens que vivem quotidianamente em espaços mínimos e em condições degradantes.

Além das emergências quotidianas, o trabalho de Lothar e dos seus colaboradores concentra-se também em intervenções a longo prazo. Os missionários salesianos, de fato, estão empenhados em programas de reabilitação que vão do suporte educativo à formação profissional para os jovens detidos, até à assistência legal e espiritual. Estas intervenções visam reintegrar os meninos na sociedade uma vez libertados, ajudando-os a construir um futuro digno e cheio de possibilidades. O objetivo é claro: oferecer não só uma ajuda imediata, mas criar um percurso que consinta aos jovens desenvolver as suas potencialidades e contribuir ativamente para o renascimento do país.

As iniciativas estendem-se também à construção de centros de formação profissional, escolas e estruturas de acolhimento, com a esperança de ampliar o número de jovens beneficiários e garantir um suporte constante, dia e noite. O testemunho de sucesso de muitos ex-“meninos do cemitério” – alguns dos quais tornaram-se professores, médicos, advogados e empresários – é a confirmação tangível de que, com o devido suporte, a transformação é possível.

Apesar do empenho e da dedicação, o percurso é repleto de obstáculos: a burocracia, a corrupção, a desconfiança dos meninos e a falta de recursos representam desafios quotidianos. Muitos jovens, marcados por abusos e exploração, têm dificuldade em confiar nos adultos, tornando ainda mais árdua a tarefa de instaurar uma relação de confiança e de oferta de um suporte real e duradouro. Contudo, cada pequeno sucesso – cada jovem que reencontra a esperança e começa a construir um futuro – confirma a importância deste trabalho humanitário.

O percurso empreendido por Lothar e pelos seus colaboradores testemunha que, apesar das dificuldades, é possível fazer a diferença na vida dos meninos abandonados. A visão de uma Libéria em que cada jovem possa realizar o próprio potencial traduz-se em ações concretas, da sensibilização internacional à reabilitação dos detidos, passando por programas educativos e projetos de acolhimento. O trabalho, assente em amor, solidariedade e uma presença constante, representa um farol de esperança num contexto em que o desespero parece prevalecer.

Num mundo marcado pelo abandono e pela pobreza, as histórias de renascimento dos meninos de rua e dos jovens detidos são um convite a acreditar que, com o devido suporte, cada vida pode ressurgir. Lothar Wagner continua a lutar para garantir a estes jovens não só um abrigo, mas também a possibilidade de reescrever o próprio destino, demonstrando que a solidariedade pode realmente mudar o mundo.




Uma roda misteriosa e profética (1861)

“O coração do sábio conhece o tempo (de agir) e julgamento (para dar sentido a suas ações). De fato, para todas as coisas, há tempo e julgamento… Ele não sabe o que vai acontecer. Quem pode anunciar-lhe como há de ser”? (cf. Ecl 8,5b-7). Desta percepção de Dom Bosco, o fato dele conhecer as coisas passadas e prever futuras que eram do seu interesse, nos dá nova prova à persuasão, que inspirou as Crônicas dos padres Domingos Ruffino e João Bonetti e também as memórias do P. João Cagliero, do P. César Chiala e de outros, todos eles testemunhas auriculares das palavras do servo de Deus.
Com singular concordância nos expõem um outro sonho, contado por Dom Bosco, no qual ele vê o Oratório de Valdocco, os frutos que produzia, a condição dos alunos perante Deus; aqueles que eram chamados ao estado eclesiástico ou ao estado religioso na Pia Sociedade, ou a viver no estado civil; e o futuro da nascente Pia Sociedade.

            Dom Bosco, portanto, sonhou, na noite anterior ao dia 2 de maio. Esse sonho durou seis horas, mais ou menos. Logo que o dia raiou, ele pulou da cama para tomar nota dos itens principais e dos nomes de alguns personagens que tinha visto passarem-lhe à sua frente enquanto dormia. Para contá-lo ele demorou três noites consecutivas, estando num estrado sob os pórticos depois das orações.
            No dia 2 de maio, falou cerca de três quartos de hora. O exórdio, como de costume nestas narrativas, apareceu um tanto confuso e estranho por motivos que já expusemos em outras ocasiões e devido àquelas que deixaremos ao juízo dos leitores. Assim ele começou falando aos jovens depois de ter anunciado assunto:
            Este sonho diz respeito somente aos estudantes. Muitíssimas coisas vistas por mim não podem ser descritas por falta de memória ou insuficiência de palavras. Parecia-me estar saindo de minha casa lá dos Becchi. Estava andando por um caminho que conduzia a um lugarejo vizinho a Castelnuovo chamado Capriglio. Queria chegar a um campo arenoso, de nossa propriedade, numa valada atrás do casario chamado Valcappone, cuja colheita dava apenas para pagar os impostos. Ali, na minha infância, eu tinha ido muitas vezes trabalhar. Já tinha percorrido um bom trecho de caminho, quando encontrei perto do campo um homem de uns quarenta anos, de estatura normal, de barba comprida bem ajeitada e de tez morena. Vestia um traje que descia até os joelhos e cingido na cintura. Trazia na cabeça uma espécie de boné branco. Estava numa postura de quem esperava alguém. Cumprimentou-me familiarmente como se eu fosse velho conhecido e me perguntou:
            – Aonde vai?
            Detendo o passo, respondi:
            – Eh! Vou ver um campo que temos por estas bandas. E o senhor, o que faz por aqui?
            – Não seja curioso! Não precisa saber!
            – Muito bem! Faça ao menos o favor de dizer-me seu nome, quem é, porque me parece que me conhece. De minha parte eu não o conheço.
            – Não é preciso que eu lhe diga meu nome e minhas qualidades. Vem. Façamo-nos companhia.
             Pus-me a caminho com ele e depois de alguns passos me vi diante de um campo coberto de pés de figo. Aí o meu companheiro me disse:
            – Olhe que belos figos. Se quer, pode colher e comer.
            Eu respondi maravilhado:
            – Nunca houve figos neste campo!
            E ele:
            – Mas agora existem. Olhe lá.
            – Mas estes estão verdes. Ainda não é a estação dos figos.
            – Mas pode ver. Há belos figos e bem maduros. Se quer… Vai logo porque já é tarde. 
            Eu não me decidia, e o amigo continuava insistindo: 
            – Ande logo! Não perca tempo! A noite vem caindo! 
            – Por qual motivo me apura tanto? Não vou comer! Não quero! Agrada-me vê-los, dá-los de presente, mas não me agradam muito ao meu paladar.
            – Bem, se é assim, vamos. Lembre-se, porém, o que o Evangelho de São Mateus, onde ele fala dos grandes acontecimentos que estavam para cair sobre Jerusalém. Jesus Cristo falava para seus discípulos: Ab arbore fici discite parabolam. Cum iam ramus ejus tener fuerit et folia nata, scitis quia prope est aestas (Da parábola da figueira, aprendei a lição: quando seus ramos vicejam e as folhas começam a brotar, sabeis que o verão está perto – Mt 24,32). E agora já está mais próximo o verão porque os frutos estão a amadurecer.
            Pusemo-nos de novo a caminho e eis que apareceu um outro campo coberto de videiras. E o desconhecido:
            – Quer uvas? Se não lhe agradam os figos, olhe lá aqueles cachos! Pegue e coma!
            – Oh! Pegaremos uvas a seu tempo lá na vinha.
            – Mas aqui também há!
            – A seu tempo!
            – Mas não está vendo toda aquela uva madura?
            – Mas será possível!? Nesta época!?
            – Ande logo! Vá! A noite vem chegando! Não tem tempo a perder!
            – E por que tanto afã para fazer depressa? Contanto que ao anoitecer me encontre em casa.        – Ande logo! Estou falando: ande logo. Logo chega a noite.
            – Bem, se cai a noite, voltará o dia.
            – Não é verdade! O dia não voltará mais.
            – Mas como!? O que quer dizer com isso?
           
– Que a noite se aproxima.
            – Mas de que noite está a me falar? Quer então dizer que devo preparar a mala e partir? Que eu devo partir já para minha eternidade?
            – A noite se aproxima: tem bem pouco tempo.
            – Diga-me pelo menos se será logo. Quando será?
            – Não seja tão curioso.  Non plus sapere quam oportet sapere (Não saber mais do que convém).
            – Assim dizia minha mãe a respeito dos enxeridos. – Pensei comigo e respondi em alta voz: – Por enquanto não tenho nenhum desejo de uvas!
            Enquanto isso íamos caminhando lentamente por um curto trecho de estrada e chegamos ao campo que era de nossa propriedade. Encontramos meu irmão José que carregava sua carroça. Ele se aproximou e me cumprimentou. Depois saudou meu companheiro, mas vendo que o amigo não respondia ao cumprimento e não lhe dava bola, perguntou-me se, por acaso, ele não tivesse sido colega de escola e respondi:
            – Não, nunca o vi.
            Então José voltou-se para o amigo e dirigiu-lhe a palavra:
            – Por gentileza, diga-me seu nome. Brinde-me com uma resposta para que eu saiba com quem estou a falar. – Mas o outro permaneceu mudo. Meu irmão ficou admirado e voltou-se para mim e perguntou:
            – Mas quem é essa pessoa?
            – Não sei! Ele não quis dizer!
            Nós insistimos ainda um pouco para saber donde vinha, mas o outro respondia apenas:
            – Non plus sapere quam oportet sapere.
            Neste momento meu irmão já se tinha afastado e não mais o vi. O desconhecido virou-se para mim e me disse:
            – Quer ver alguma coisa diferente?
            – De bom grado!
            – Quer ver seus meninos, como eles estão agora no presente? O que serão no futuro? Quer contá-los?
            – Oh! Sim! Sim!
            – Então venha comigo.

I

            Então ele tirou, não se de onde, uma engenhoca enorme que eu não saberia descrever. Tinha dentro uma grande roda. Fincou-a no chão.
            – O que quer dizer esta roda?
            – A eternidade nas mãos de Deus. E pegou a manivela da roda e a fez rodar e falou:
            – Pegue a manivela e dê uma volta.
            Assim o fiz. E me acrescentou:
            – Agora olhe lá dentro.
            – Olhei. Lá dentro havia um vidro em forma de lente com a largura um metro, mais ou menos, que se encontrava fixa no meio da máquina. Ao redor desta lente estava escrito: Hic est oculus qui humilia respicit in coelo et in terra (Este é o olho que vê as coisas humildes tanto céu quanto na terra). Logo coloquei os olhos sobre aquela lente. Olhei. Oh, que espetáculo! Vi lá dentro todos os jovens do Oratório. Eu pensava comigo: – Mas como é possível isso? Até o momento eu não vi ninguém nesta região e agora vejo todos os meus filhos! Mas eles não estão todos em Turim?
            Olhei por cima e pelos lados da engenhoca, mas por fora da lente não via nada. Levantei a cabeça para partilhar minha admiração com o amigo. Depois de alguns instantes ele me disse para dar mais um giro na manivela. Então eu vi estranha e singular separação dos jovens. Os bons separados dos maus. Os primeiros estavam radiantes de alegria; os outros, que por sinal não eram muitos, causavam compaixão. Eu os reconheci a todos, mas como eram diferentes do conceito que os colegas faziam deles. Uns tinham a língua furada, outros tinham os olhos piedosamente esbugalhados, outros oprimidos por dor de cabeça, feridas repugnantes, e havia jovens com o coração roído pelos vermes. Mais eu os olhava, mais me sentia oprimido e dizia: – Mas será possível que estes sejam os meus filhos? Não consigo compreender o que significam estas doenças!
            Ouvindo minhas palavras, o amigo que me tinha levado para a roda, me disse:
            – Ouça-me! Língua furada significa as más conversas. Os olhos esbugalhados representam os que interpretam e valoram erradamente as graças de Deus, preferindo a terra ao céu. A cabeça doída é a não preocupação com os seus conselhos, a satisfação com os caprichos próprios. Os vermes significam as paixões maldosas que corroem os corações. Também há surdos que não querem ouvir suas palavras para não ter que colocá-las em prática.
            Então fez-me um gesto para eu dar mais uma manivelada na roda. Aproximei o olho à lente do aparelho. Vi quatro jovens amarrados com pesadas correntes. Olhei bem e reconheci os quatro. Pedi explicações ao desconhecido, e ele respondeu:
            – Pode descobrir facilmente. São os que não ouvem os seus conselhos e não trocam de atitudes, estão na iminência de serem postos na prisão e aí apodrecerem por causa de seus delitos ou desobediências graves.
            – Quero tomar nota dos nomes deles para não esquecer. Mas o amigo respondeu:
            – Não é preciso. Estão todos anotados! Ei-los todos escritos neste caderno.
            Então lembrei-me de um livrinho que ele tinha na mão. Deu-me ordem para eu dar mais um giro na roda. Obedeci e enfiei os olhos naquela tela. Vi outros sete jovens que estavam bem altivos, em atitude desconfiada, com um cadeado na boa, que lhes trancava os lábios. Três deles também tapavam os ouvidos com as mãos. Afastei-me da imagem, quis pegar um caderno e lápis para anotar seus nomes. Aí o homem me disse:
            – Não é preciso. Estão anotados aqui no caderno que trago sempre comigo.
            Não quis de jeito nenhum que eu escrevesse. Eu estava espantado e condoído com aquela cena estranha. Perguntei o porquê de o cadeado trancar a boca daqueles tais, e ele explicou:
            – Mas não entende? São os que calam!
            – Mas calam o quê?
            – Calam!
            Então entendi que calavam na confissão. São os que, mesmo perguntados pelo confessor, não respondem ou respondem evasivamente ou contra a verdade. Respondem “não” quando é “sim”. E o amigo continuou:
            – Está vendo aqueles três outros que, além do cadeado na boca, tapam as orelhas com as mãos? A condição deles é deplorável. São os que não apenas omitem na confissão e de maneira alguma querem ouvir os avisos, os conselhos, as ordens do confessor. São os que ouviram suas palavras, mas não as colocaram em prática, não deram atenção. Poderiam baixar as mãos, mas não querem. Os outros quatro ouviram as exortações, as recomendações, mas não aproveitaram.
            – E como fazer para tirar o cadeado?
            – Ejiciatur superbia e cordibus eorum (Tire-se a soberba dos seus corações).
            – Eu darei o aviso a todos, mas para os que conservam as mãos nas orelhas existe pouca esperança.
            Aquele homem deu-me um conselho:
            – Ao dizer duas palavras no púlpito, uma seja sobre fazer bem a confissão.
            Prometi obedecer. Não quero dizer que vou me orientar exatamente assim, porque tornar-me-ia enjoado, mas vou fazer o possível para repetir muitas vezes esta máxima necessária. De fato, é bem maior o número dos que se condenam confessando-se, do que os que se condenam por não se confessarem, porque os depravados se confessam alguma vez, mas muitíssimas vezes não se confessam bem.
            Daí o personagem me mandou dar mais uma manivelada.
            Dito e feito. Olhei e vi três outros jovens com atitudes apavorantes. Cada um deles tinha um imenso gorila nas costas. Olhei atentamente. Vi que os animais tinham chifres. Cada um daqueles horrendos monstros com as patas dianteiras apertava o pescoço do infeliz com tal veemência que o fazia ficar vermelho e de rosto inflamado, e com os olhos ameaçando explodir das órbitas afora e cheios de sangue. Com as patas traseiras apertava as coxas que a custo conseguiam mover-se e com o rabo, chegava até o chão, enrodilhava-lhes as pernas de modo que era difícil e quase impossível caminhar.
            Isto significava que aqueles jovens, depois dos exercícios (espirituais), estavam em pecado mortal, especialmente da impureza e da imodéstia, réus de matéria grave contra o sexto mandamento. O demônio lhes apertava o pescoço, não lhes permitindo falar quando deviam. Fazia-os ficar de rosto vermelho e perdiam a intelecção, não sabendo mais o que fazer. Ficavam atados pela vergonha fatal que, em vez de levá-los à salvação, os leva à perdição. Com seus apertos fazia-lhes empurrar os olhos para fora das órbitas e aí não conseguiam divisar as próprias misérias e os meios para sair desta horrível situação, porque, dominados por uma amedrontadora preocupação, sentiam repugnância pelos sacramentos. Mantêm-nos presos pelas pernas para que não possam caminhar e nem dar passo para se colocarem no caminho do bem: é o predomínio da paixão por causa do hábito que lhes tira a possibilidade de emendarem-se.
            Asseguro-lhes, meus caros jovens, que, ao presenciar tal espetáculo, eu chorei. Teria querido pular para frente para libertar aqueles desgraçados, mas logo que me afastava da tela a imagem sumia. Quis então anotar os nomes daqueles três, mas o amigo disse:
            – Coisa inútil, porque eu já os tenho escrito no livro que tenho em mãos.
            Eu estava com o coração perturbado, lágrimas nos olhos e disse ao amigo:
            – Mas como é que estes pobres jovens estão neste estado! Eu lhes disse tantas palavras, servi-me de todos os cuidados na confissão e fora da confissão! – Perguntei-lhe o que deviam fazer para tirar das costas aquele monstro horrível. Ele respondeu ligeiro e entredentes:
            – Labor; sudor; fervor (trabalho, suor, fervor).
            – Não entendo. Fale mais claro. – De novo ele repetiu, mas sempre entredentes:
            – Labor; sudor; fervor.
            – É inútil. Se fala assim eu não o compreendo!
            – Oh! Quer debochar de mim.
            – Ora! Seja lá como quiser! Mas repito: não entendo!
            – Pois é! Está acostumado ao uso da gramática e às sintaxes das salas de aula. Pois então, observe: Labor, ponto e vírgula; Sudor, ponto e vírgula. Fervor, ponto. Entendeu?
            – Materialmente entendi as palavras. Porém, convém que me dê a explicação.
            – Labor in singulis operibus. Sudor in paenitentiis continuis. Fervor in orationibus ferventibus e perseverantibus (Trabalho nas obras assíduas, suor nas penitências contínuas, fervor nas orações fervorosas e perseverantes). Com eles muito se sacrificará. Não conseguirá conquistá-los, porque não querem sacudir o jugo de satanás, de quem são escravos.
            Eu continuava olhando e me atormentava pensando:
            –  Mas como!? Então todos estes estão perdidos? Possível!? Mesmo depois dos exercícios espirituais… aqueles tais… depois que eu fiz tanto por eles… depois de ter trabalhado tanto… depois de tantas pregações… depois de lhes ter dado tantos conselhos… feito tantas promessas… dado tantos avisos. Eu nunca teria imaginado tamanho desengano. – Eu não conseguia sossegar.
            Então meu intérprete começou a recriminar-me: – Oh, o soberbo! Vejam o soberbo! E quem é você para pretender converter porque trabalha? Porque ama os seus jovens, pretende vê-los todos corresponderem aos seus desejos? Pretende ser melhor do que nosso Divino Salvador em amar as almas, em trabalhar e sofrer por elas? Pensa que sua palavra seja mais eficaz do que a palavra de Jesus Cristo? Por acaso prega melhor do que Ele? Acha que usou mais caridade, maior cuidado com os seus jovens do que usou o Salvador para com seus Apóstolos? Você sabe que eles viviam continuamente com Ele, a todos os momentos, a cada instante ficavam repletos de todo tipo de benefícios, ouviam dia e noite Suas advertências e os preceitos de Sua doutrina, viam Suas obras que deviam ser um estímulo para a santificação de seus costumes. Quanto não terá feito e dito a respeito de Judas! Contudo Judas o traiu e morreu impenitente. Por acaso é melhor do que os Apóstolos? Pois bem! Os Apóstolos escolheram sete Diáconos. Eram apenas sete, escolhidos com todo cuidado e, todavia, um prevaricou! E você, entre quinhentos, se assusta com esse pequeno número que não corresponde aos seus cuidados? Pretende conseguir que não haja um desviado, que não haja um perverso sequer? Oh, o soberbo! – Quando ouvi isso, fiquei quieto. Mas sentia a alma deprimida pela dor. O homem continuou e percebeu que eu estava abatido. Fez-me dar mais um giro na roda, retomando:
            – Sossegue! Veja como o Senhor é generoso. Olhe quantas almas Deus quer lhe dar. Vê lá no fundo aquele grande número de jovens?
            Continuei a observar naquela tela imensa massa de jovens que nunca tinha conhecido em vida.
            – Sim! Estou vendo! Mas não conheço ninguém.
            – Pois bem! Estes são os que o Senhor lhe dará em compensação dos quatorze que não correspondem aos seus cuidados. Saiba que para compensar cada um dos quatorze o Senhor lhe dará cem.
            – Ah! Pobre e mim! Já estou com a casa cheia. Onde vou alojá-los?
            – Não se apoquente. Por enquanto lugar há suficiente. Mais tarde Aquele que os manda para você, Ele sabe onde você poderá colocá-los. Ele mesmo achará lugar.
            – Mas não é tanto o lugar que causa preocupação. O que mais me preocupa é o refeitório.
            – Por ora deixe de lado estas preocupações. O Senhor providenciará.
            – Bem, se é assim, fico muito contente. Até que me consolei. Olhei para todos aqueles jovens por muito tempo e ainda conservo na mente algumas fisionomias e poderei reconhecê-los se um dia os encontrar.
            Neste ponto Dom Bosco encerrou a Boa-noite. Era o dia 2 de maio.

II

            Na noite do dia 3, ele retomava a narrativa. Naquela tela ele tinha visto também o espetáculo das vocações, que dizia respeito a cada de seus alunos. Foi conciso e categórico em sua fala. Não proferiu nome algum e passou para outra ocasião a explicação das respostas ouvidas do guia a respeito de certos símbolos ou às alegorias que lhe passaram perante os olhos. Porém, o clérigo Ruffino tomou nota de diversos nomes recolhidos das suas confidências com os mesmos jovens, para quem Dom Bosco tinha segredado em particular o que ele tinha visto. Ruffino os escreveu em 1861 e no-los repassou.
            Para maior clareza de exposição e para não sermos obrigados a fazer muitas repetições, colocaremos tudo num bloco só, incluindo na narrativa os nomes omitidos e as explicações já dadas; estas, porém, não em forma de diálogo. Contudo, seremos exatos em referir ao pé da letra o que escreveu o cronista. Dom Bosco então começou a falar:

            O desconhecido estava perto da engenhoca da roda e da tela, e eu estava contente por ter visto tantos jovens que um dia viriam morar conosco. Então ele me disse:
            – Não quereria ver ainda uma cena espetacular?
            – Mas é claro que quero!
            – Rode a roda!
            Girei, olhei e vi. Todos os jovens estavam divididos em dois grupos, um grupo longe do outro, numa vasta região bem espraiada. De um dos lados aparecia um terreno coberto de legumes, hortaliças, relva e campo, em cuja orla havia umas fileiras de vinhas selvagens. Ali os jovens de um dos grupos, com pás, enxadas, as picaretas, os ancinhos, revolviam o terreno. Estavam distribuídos em quadras que tinham supervisores. Fiscal geral era o Cavaleiro Oréglia, de Santo Estêvão, que distribuía ferramentas agrícolas de todo tipo aos que cavavam e fazia trabalhar quem tinha pouca vontade. Ao longe divisei jovens que semeavam.
             O segundo grupo estava do outro lado, num extenso campo de trigo coberto de espigas douradas. Um valo comprido servia de limite entre este e outros campos cultivados que de ambas as partes se perdiam no horizonte. Os jovens trabalhavam recolhendo a messe, mas nem todos faziam o mesmo serviço. Alguns colhiam e faziam enormes feixes, uns amontoavam, outros respigavam, alguém dirigia a carroça, outro esbagoava, uns afiavam as foices e as aguçavam, um as distribuía, outro mais longe tocava violão. Era uma cena fabulosa de variantes surpreendentes.
            Naquele campo, à sombra de vetustas árvores, viam-se mesas cobertas de alimento necessário para toda aquela gente. Um pouco além um vasto e magnífico jardim cercado e sombreado, risonho de todas as espécies de canteiros de flores.
            A separação entre os trabalhadores da terra e os ceifeiros indicava os que abraçavam o estado eclesiástico e os que não o abraçavam. Eu não entendia o mistério e dirigi-me ao guia:
            – O que significa isto? Quem são aqueles que estão a cavar a terra?
            – Ainda não entende estas coisas? Os que cavam a terra são os que trabalham só para si mesmos, isto é, que não são chamados para o estado eclesiástico, mas são chamados ao estado laico.
            Logo entendi que os cavadores eram os aprendizes. Estes, em seu estado, basta que pensem em salvar a própria alma sem que tenham a obrigação especial de ocupar-se com a salvação dos outros. Repliquei:
            – E aqueles que estão a fazer a colheita, que estão do outro lado do campo?
            Sem dificuldade reconheci serem os que são chamados ao estado eclesiástico. Agora eu sei quem deve ser padre e quem deve seguir outro caminho. E eu contemplava com viva curiosidade o campo de trigo. Provera distribuía as foices aos ceifadores, e isto indicava que ele poderia tornar-se Reitor do Seminário ou diretor de comunidade religiosa ou de uma casa de estudos e, talvez algo mais importante. Deve-se notar que nem todos os que trabalhavam recebiam dele a foice, porque aqueles que a solicitavam eram os que fariam parte da nossa Congregação. Os outros recebiam a foice de outros distribuidores que não pertenciam aos nossos e, com isso, queria-se significar que se tornariam padres, mas exerceriam o sagrado ministério fora do Oratório. A foice é símbolo da Palavra de Deus.
            Nem a todos que solicitavam a foice Provera a entregava logo. Ele mandava alguns se alimentarem. Um comia um bocado, outros dois, isto é, o bocado da piedade e do estudo. O Tiago Rossi foi mandado a comer um bocado. Outros iam até o arvoredo onde estava o clérigo Durando que fazia muitas coisas e, entre elas, preparava a mesa para os ceifadores e lhe distribuía a comida. Este serviço mostrava os que são indicados de modo especial a promover a devoção para com o Santíssimo Sacramento. Ao mesmo tempo Mateus Galiano atarefava-se em levar água para os ceifadores.
            Costamagna foi pegar uma foice, mas Provera o mandou ao jardim a fim de colher duas flores. O mesmo aconteceu com Quattrocollo. Ao Rebuffo foi ordenado que recolhesse três flores, com a promessa de que lhe seria posta nas mãos uma foice. Olivero também estava nessa.
            Os jovens continuavam esparsos cá e acolá em meio às espigas. Muitos estavam dispostos em linha. Alguns tinham diante de si um canteiro grande, outros tinham um canteiro menor. O P. Ciattino, pároco de Maretto, colhia com uma foice entregue por Provera. P. Francésia e Vibert cortavam o trigo. Também colhiam Jacinto Perucatti, Merlone, Momo, Giarino, Jarach, os quais salvariam almas com a evangelização, se correspondessem à própria vocação. Quem colhia mais, quem colhia menos. Bondioni ceifava como um desesperado, mas nada de violento dura muito. Alguns lançavam a foice com muita força contra o trigo, mas ceifavam nada. Vaschetti pegou uma foice e se pôs a cortar, a cortar, e saiu do campo e foi trabalhar noutro lugar. A ouros aconteceu o mesmo. Entre aqueles que ceifavam, muitos não tinham uma foice bem afiada. De outras foices faltavam a pontas. Alguns a tinham muito gasta e quando queriam ceifar despedaçavam e estragavam tudo.
            Domingos Ruffino colhia e tinha recebido um canteiro muito grande. Sua foice cortava bem. Só tinha um defeito: a foice dele não tinha ponta, símbolo da humildade. Era o desejo de atingir um grau mais elevado entre os iguais. Ele foi até Francisco Cerruti para martelá-la. De fato, eu vi que Cerruti martelava as foices para afiá-las, indício de que devia colocar nos corações ciência e piedade, dando a ideia de que devia tornar-se um professor. O fato de martelar era o serviço de quem se entrega à formação do clero. Provera entregava a ele as foices desgastadas. Ao P. Rocchietti e a outros ele entregava as que precisavam ser afiadas. Essa era a ocupação deles.
            O serviço de afiar era próprio de quem dirige o clero na piedade. Viale se apresentou e foi pegar uma foice que não estava afiada, mas Provera quis dar-lhe uma cortante que tinha sido passada no esmeril. Vi também um serralheiro que devia preparar ferramentas agrícolas e este era o Constâncio.
            Enquanto fervilhava todo este complicado trabalho, Fusero preparava os feixes e isto significava o fato de conservar as consciências na graça de Deus. Mas descendo mais para os detalhes e tomando os feixes não como imagens dos meros fiéis, mas como dos que estão destinados ao estado eclesiástico, dava para entender que ele teria ocupado um lugar de formador dos clérigos.
            Havia quem o ajudava a amarrar os feixes. Lembro de ter visto entre outros o P. Turchi e Guivarello. Isto significa os que são destinados a harmonizar as consciências, como, por exemplo, confessando, especialmente os voluntários ou aspirantes ao estado eclesiástico. Outros transportavam os feixes sobre uma carroça, que representa a graça de Deus. Os pecadores convertidos devem embarcar nesta carroça para se encaminharem pela senda da salvação, que tem como ponto final o céu. A carroça se movimentou quando esteve cheia de feixes. Era puxada não por jovens, mas por bois, símbolo da força perseverante. Havia quem os conduzia. P. Rua estava na frende do carro e o guiava e isto significa que a ele caberia guiar as almas para o céu. P. Ângelo Sávio vinha andando atrás com a vassoura recolhendo as espigas e os feixes que caíam.
            Espalhados pelo campo, viam-se os que respigavam, entre eles João Bonetti e José Bongiovanni, isto é, os que recolhem os pecadores obstinados. Bonetti é especialmente chamado pelo Senhor para procurar de modo particular os infelizes afastados da foice dos ceifeiros. Fusero e Anfossi amontoavam no campo os feixes de trigo cortado para que fosse debulhado em tempo hábil: isso talvez fosse símbolo de alguma cátedra. Outros como o P. Alasonatti formavam os montes e os que administram o dinheiro, zelam pelo cumprimento das normas, ensinam as orações e o canto dos louvores sagrado e, afinal de contas, colaboram material e moralmente para repor as almas no caminho do paraíso.
            Aparecia um espaço plano de terra apropriado para bater as espigas. O P. João Cagliero, que antes tinha ido ao jardim colher flores e as tinha distribuído aos companheiros com um ramilhete nas mãos, foi até aquela área para debulhar o trigo. Debulhar o trigo refere-se aos destinados por Deus a se ocuparem da instrução do povo simples. À distância viam-se diversos focos de fumaça negra que subiam às nuvens. Era o trabalho dos que recolhiam o joio e, tendo saído fora dos limites da seara, o amontoavam e queimavam. Significava de modo especial os que são destinados a separar os maus dos bons. Indica os diretores das nossas futuras casas. Entre estes estava o P. Francisco Cerutti, João Tomietti, Domingos Belmonte, Paulo Álbera e outros que ainda estão estudando nas classes ginasiais e inferiores.
            Todas as cenas descritas acima desenvolviam-se ao mesmo tempo. Vi no meio daquela multidão de jovens alguns que carregavam uma lamparina para iluminar mesmo em pleno meio-dia. Seriam os que teriam sido de bom exemplo para outros operários do Evangelho e com isso devem iluminar o clero. Entre eles está Paulo Álbera que, além de carregar a lamparina, também tocava violão. Isto significa que mostrará o caminho para os sacerdotes e lhes incutirá coragem para seguirem adiante na própria missão: alude-se a um outro alto cargo que desempenhará na Igreja.
            Em meio a tanta movimentação, nem todos os jovens que eu via estavam ocupados em algum serviço. Um deles segurava uma pistola, isto é, tinha vocação para militar, mas ainda não se tinha decidido. Havia quem estava com a mão na cintura olhando para os que ceifavam e ao mesmo tempo não estavam nem um pouco decididos a imitar seu exemplo. Alguém estava indeciso, mas pesava-lhe o cansaço e não sabia se devia também meter-se a ceifar. Outro apressava-se em pegar a foice. Um grupinho, porém, reunido, permanecia sem fazer nada. Outros manejavam a foice segurando-a voltada de costas entre eles estava o Molino, e são os que fazem o contrário do que devem fazer. Existiam aqueles, e eram muitos, que se afastavam para ir recolher uvas silvestres e representam os que perdem tempo em coisas alheias ao ministério.
            Enquanto eu ia observando o que se passava no campo de trigo, vi um outro grupo de jovens que capinava, e também este grupo apresentava um espetáculo interessante: a maior parte deles era forte e trabalhava com afinco, mas também entre eles não faltavam os acomodados; havia quem manuseasse a enxada do lado errado, outros davam a enxadada sobre a terra, mas ela não rasgava o solo. Para alguns, a cada enxadada, a lâmina se soltava do cabo. O dito cabo significa a reta intenção.
            Percebi que alguns, que atualmente são aprendizes, antes estavam no campo a ceifar, e outros, que agora estão a estudar, anteriormente estavam capinando. Novamente tentei tomar nota de todas as situações, mas meu intérprete sempre me mostrava seu caderno e me impedia de escrever. Ao mesmo tempo percebi que havia muitíssimos jovens que lá estavam sem nada fazer, que não se decidiam se deviam ceifar ou carpir. Os dois Dalmazzo, o Primo Gariglio e Monasterolo com muitos outros olhavam, mas estavam resolvidos a assumir uma posição.
            E continuei a olhar. Notei que alguns dos que saíam do meio dos capinadores queriam meter-se a ceifar. Um deles correu distraidamente para o campo de trigo, mas sem antes pegar uma foice. Envergonhou-se daquela estulta precipitação, voltou atrás para pedi-la. Quem distribuía foices não queria ceder, mas ele queria. E o distribuidor lhe disse:
            – Ainda não é tempo.
            – Sim! É tempo sim! Eu quero.
            – Não! Vai ainda pegar duas flores naquele canteiro!
            Exclamou, levantando os ombros, o presunçoso:
            – Ah! Vou pegar quantas flores você quiser.
            – Não! Só duas!
            E aquele presunçoso correu logo. Mas lembrou-se de que não tinha perguntado que tipo de flores devia pegar. Voltou rápido. E recebeu esta resposta:
            – Pegará a flor da caridade e a flor da humildade.
            – Eu já as tenho!
            – Você as tem na presunção. Na realidade não tem nada.
            E o jovem discutiu, esperneou, enfureceu-se, agitou-se. E o distribuidor lhe disse:
            – Agora não é mais tempo de ficar bravo. – E negou-lhe resolutamente a foice. O pretendente roía os punhos de raiva.
            Tendo assistido a este último espetáculo, desgrudei os olhos da tela onde tinha visto coisas tão impressionantes. Estava comovido com as aplicações morais que se me tinham sugerido por aquele amigo. Eu ainda quis pedir algumas explicações, e ele me repetiu:
            – O campo de trigo significa a Igreja. A messe é o fruto recolhido. A foice é o símbolo dos meios para colher fruto, especialmente a palavra de Deus, foice sem corte é a falta de piedade, sem ponta é a falta de humildade. Sair do campo ceifando quer dizer sair do Oratório e abandonar a Pia Sociedade.

III

            Na noite do dia 4 de maio, Dom Bosco fez a conclusão do sonho em que no primeiro quadro lhe tinha sido mostrado o Oratório, seus alunos e, de modo especial, os estudantes. No segundo quadro os que eram chamados ao estado eclesiástico. Agora entramos no terceiro quadro do seriado, em que aparecem em cenas sucessivas os jovens do ano de 1861 inscritos na Pia Sociedade de São Francisco de Sales, com seu prodigioso crescimento e com o desaparecimento gradativo do mundo dos primeiros salesianos a quem iam se sucedendo os continuadores de sua obra. E aí Dom Bosco falou:

            Depois que eu tinha agradavelmente assistido à cena da colheita, rica de tanta variedade, o gentil desconhecido me ordenou:
            – Agora, dê dez rodadas com a manivela, conta e, depois, olha.
            Pus-me a girar a roda e, após dez giros, enfiei os olhos na lente. Vi todos os meus jovens que, havia uns poucos dias, eu os tinha acariciado como meninos. Agora estavam adultos, de aspecto viril, alguns de barba comprida, outros de cabelos grisalhos. Então eu perguntei:
            – Mas como é isso? Faz poucos dias aquele aí era um menino, quase de podia carregá-lo no colo! Como é que está assim crescido?
            – É natural. Quantas maniveladas deu na roda?
            – Dez.
            – Pois é! 61 a 71. Neste ano todos somam dez anos a mais.
            – Ah! Entendi. Olhei no fundo da lente. Panoramas desconhecidos. Novas casas que nos pertenciam. Muitos jovens alunos sob a direção dos meus caros filhos do Oratório, agora já padres, professores e diretores, que os instruíam e os divertiam. O personagem continuou a dizer:
            – Dê mais dez giros na manivela. Avançamos até 1881.
            Peguei a manivela e a roda rodou por mais dez vezes. Parei. Encostei o olho, olhei e vi. Só a metade dos jovens vistos antes, quase todos grisalhos e alguns já encurvados. Perguntei:
            – Onde estão os outros?
            – Já passaram, foram para a outra vida.
            A assombrosa diminuição dos meus jovens ocasionou-me viva preocupação. Mas retomei fôlego ao poder visualizar também como, num quadro imenso, lugares novos, e regiões desconhecidas, e uma multidão de jovens sob o cuidado e a direção de professores novos, ainda dependentes dos meus antigos jovens, alguns deles em idade bem madura. Depois dei mais dez giros na roda e aí só vi uma quarta parte dos meus jovens visualizados na rodada anterior, mais velhos, de barba e cabelos brancos…
            – E os outros todos?
            – Já foram para a outra vida. Estamos em 1891.
            Eis o que aconteceu debaixo de meus olhos: outra cena comovente. Meus filhos padres, cansados das fadigas, rodeados de jovens que eu nunca tinha visto. Muitos de pele de outra cor, bem diversos dos nossos lugares. E mais dez vezes rodei a roda. Só vi um terço dos meus jovens, já decrépitos, velhos, corcundas, desfigurados, macilentos, em seus últimos anos. Entre eles lembro de ter visto o P. Rua tão velho, magro, quase não dava para reconhecê-lo mais, tanto tinha mudado. Perguntei:
            – E os outros todos?
            – Já foram para a outra vida. Estamos em 1901.
            Em muitas casas eu não reconheci mais nenhum dos nossos antigos. Havia diretores e mestres nunca dantes vistos por mim, uma multidão de jovens cada vez maior, casas aumentadas, pessoal dirigente admiravelmente acrescido. O gentil intérprete continuou a falar:
            – Agora dê mais dez giros na roda neste controle e verá coisas que o consolam e outras que causarão profunda preocupação.
            Girei dez vezes mais a manivela. Ele exclamou:
            – Eis o ano de 1911!
            – Ah! Meus caros jovens! Vi casas novas, novos jovens; diretores e professores com trajes diferentes, novas atitudes.
            E dos meus do Oratório de Turim? Procurei e busquei com insistência no meio daquela multidão de jovens. Achei um só dentre vocês, todo encanecido e decrépito pelos muito anos, cercado de uma bela coroa de jovens. Contava o início do nosso Oratório. Recordava-lhes as coisas aprendidas de Dom Bosco e mostrava os retratos de Dom Bosco dependurados na parede da portaria, de outros velhos alunos, de superiores das casas que ele já tinha conhecido como anciãos…
            Depois de um novo comando na manivela, mais giros. Não vi senão um imenso ermo povoado de solidão, sem alma viva. Gritei estarrecido:
            – Oh! Não vejo mais ninguém! Não vejo mais ninguém dos meus! Onde estão todos aqueles jovens acolhidos por mim, tão alegres, espertos, vigorosos e que atualmente estão junto comigo no Oratório?
            – Estão na outra vida. Saiba que já se passaram dez anos a cada dezena da manivelada.
            Então contei quantas voltas de dez giros tinha dado com o manípulo e resultou que tinham transcorrido cinquenta anos e que lá pelo ano de 1911 os atuais jovens do Oratório tinham falecido todos. E o benévolo guia:
            – Quer ver algo surpreendente?
            – Sim! Sim! Quero sim.
            – Então preste atenção, se é que lhe agrada ver e saber mais. Gire a manivela em sentido contrário, contando outros tantos giros quantos deu antes.
            E a roda girou. Ele me disse:
            – Olhe agora!
            Olhei e vi. Apareceu diante de mim uma quantidade imensa de jovens, todos diferentes, de infinita variedade de trajes, países, feições e línguas. Embora eu me esforçasse o mais que podia, não consegui distinguir a não ser uma mínima parte junto com seus superiores, diretores, mestres e assistentes. Eu falei em voz alta:
            – Todos estes realmente são desconhecidos. E obtive a seguinte resposta:
            – Todavia, todos eles são seus filhos. Ouça-os, pois estão falando de você, de seus antigos filhos e que foram superiores deles mesmos e que agora não mais estão há tempo. Relembram os ensinamentos recebidos de vocês e deles.
            Olhei ainda com muita atenção. Mas quando tirei os olhos da tela, a roda começou a girar sozinha com extrema velocidade e muito estrépito. Aí eu acordei, morto de cansaço.
            Agora que lhes contei estas coisas, vocês poderão pensar: Quiçá! Dom Bosco é um homem fora do comum, algum grande personagem, seguramente um santo! Meus queridos jovens! Para dirimir falsos conceitos a meu respeito, deixo a todos a completa liberdade de acreditar ou não nestas coisas, dar ou não dar importância. Recomendo-lhes, porém, não levem isso em mofa, quer com companheiros, quer com pessoas estranhas. Acho por bem asseverar-lhes que o Senhor tem infinitos meios para manifestar aos homens sua vontade. Às vezes ele se serve de instrumentos ineptos e indignos, como se serviu da burra de Balaão, fazendo-a falar. Serviu-se do mesmo Balaão, falso profeta, que predisse muitas coisas relativas ao Messias. Isso pode acontecer também comigo. Peço, porém, que não comparem suas obras com as minhas.
            O que vocês devem fazer é apenas ouvir o que eu digo porque isto, é o que espero, mostrará sempre a vontade de Deus e redundará no bem das almas. Com relação àquilo que eu faço, nunca digam: Dom Bosco fez assim, então, está certo. Não! Primeiro observem o que eu faço. Se virem que é bom, imitem. Se, por acaso, perceberem que aquilo que eu faço não é conveniente, guardem-se de imitar. Considerem-no mal feito.
(MB IT VI, 898-916 / MB PT VI, 839-949)




A educação de acordo com São Francisco de Sales

A educação segundo São Francisco de Sales é um caminho de amor e cuidado com os jovens, baseado em regras indispensáveis: gentileza, compreensão e correção equilibrada. Da família à sociedade, São Francisco pede que os responsáveis demonstrem afeto sincero, conscientes de que os jovens precisam ser guiados com paciência e inspiração. A educação é um dom que ajuda a formar almas livres, capazes de pensar e agir em harmonia. Como um mestre da montanha, o bispo da Saboia nos lembra que corrigir significa acompanhar, salvaguardando a espontaneidade dos corações em crescimento e sempre visando à transformação interior. Assim nasce uma educação integral.

Um dever a ser cumprido com amor
            A educação é um fenômeno universal, baseado nas leis da natureza e da razão. É o melhor presente que os pais podem dar a seus filhos, nos quais ela nutrirá a gratidão e a piedade filial. Falando daqueles que são responsáveis pelos outros, tanto na família quanto na sociedade, Francisco de Sales recomenda que eles demonstrem amor: “Cumpram, portanto, seu dever com amor”.
            Os jovens precisam de orientação. Se é verdade que “aquele que governa a si mesmo é governado por um grande tolo”, isso deve ser ainda mais verdadeiro para aqueles que ainda são inexperientes. Da mesma forma, Celso Benigno, o filho mais velho da Senhora de Chantal, que era uma fonte de preocupação para sua mãe, precisava de orientação para ajudá-lo a “provar a bondade da verdadeira sabedoria por meio de admoestações e recomendações”.
            Para um jovem que estava prestes a “sair para o mundo”, ele sugeriu encontrar “algum espírito cortês” que ele pudesse visitar de tempos em tempos para “se recrear e recuperar o fôlego espiritual”. Devemos fazer como o jovem Tobias na Bíblia: enviado por seu pai a uma terra distante onde não conhecia o caminho, ele recebeu o seguinte conselho: “Vá, pois, e procure um homem para guiá-lo”.
            Especialista em montanhas, o bispo da Saboia gostava de lembrar às pessoas que aqueles que caminham em trilhas ásperas e escorregadias precisam ser amarrados, presos uns aos outros para avançar com mais segurança. Sempre que podia, ele oferecia ajuda e conselhos aos jovens em perigo. Para um jovem estudante envolvido em jogos de azar e libertinagem, ele escreveu “uma carta cheia de avisos bons, gentis e amigáveis”, convidando-o a fazer melhor uso de seu tempo.
            Um bom guia deve ser capaz de se adaptar às necessidades e possibilidades de cada indivíduo. Francisco de Sales admirava as mães que sabiam como dar a cada um de seus filhos o que eles precisavam e se adaptar a cada um “de acordo com o alcance de seu espírito”. É assim que Deus acompanha as pessoas. Seu ensinamento se assemelha ao de um pai atento às capacidades de cada um: “Como um bom pai que segura seu filho pela mão”, escrevia ele a Joana de Chantal, “ele adaptará seus passos aos seus e se contentará em não ir mais rápido do que você”.

Elementos da psicologia da juventude
            Para ter alguma chance de sucesso, o educador deve saber algo sobre os jovens em geral e sobre cada jovem em particular. O que significa ser jovem? Comentando a famosa visão da escada de Jacó, o autor da Introdução à vida devota observa que os anjos que subiam e desciam a escada tinham todos os atrativos da juventude: eram cheios de vigor e agilidade; tinham asas para voar e pés para caminhar com seus companheiros; seus rostos eram belos e alegres; “suas pernas, braços e cabeças estavam todos descobertos” e “o resto de seus corpos estava coberto, mas com uma túnica bela e leve”.
            Mas não idealizemos demais essa idade da vida. Para Francisco de Sales, a juventude é por natureza imprudente e ousada; os jovens devoram todas as dificuldades de longe e fogem delas de perto. “Jovem e ardente” são dois adjetivos que muitas vezes andam de mãos dadas, especialmente quando usados para descrever uma mente “repleta de concepções e fortemente inclinada a extremos”. E entre os riscos dessa idade está “o ardor do sangue jovem que está começando a ferver e de uma coragem que ainda não tem a prudência como guia”.
            Os jovens são versáteis, movem-se e mudam com facilidade. Como os cães jovens que adoram mudanças, os jovens são volúveis e inconstantes, agitados por vários “desejos de novidade e mudança”, e são suscetíveis a causar “grandes e infelizes escândalos”. É uma idade em que as paixões são ferozes e difíceis de controlar. Como as borboletas, esvoaçam em volta do fogo com o risco de queimar as asas.
            Muitas vezes, falta-lhes sabedoria e experiência, porque o amor-próprio cega a razão. Devemos temer essas duas atitudes opostas nelas: a vaidade, que na verdade é uma falta de coragem, e a ambição, que é um excesso de coragem que as leva a buscar injustificadamente a glória e a honra.
            Como é maravilhoso, porém, quando a juventude e a virtude se encontram! Francisco de Sales admira uma jovem que tinha tudo para gostar na primavera de sua vida e que amava e estimava “as santas virtudes”. Ele elogia todos aqueles que, durante sua juventude, mantiveram suas almas “sempre puras em meio a tantas infecções”.
            Os jovens, em particular, são sensíveis ao afeto que recebem. “É impossível expressar o quanto somos amigáveis”, escreveu ele a um pai sobre seu relacionamento com o filho indisciplinado, até mesmo insuportável, na escola. Como podemos ver, Francisco de Sales estava feliz em se proclamar amigo dos jovens. Da mesma forma, ele escreveu à mãe de uma menina da qual era padrinho: “A querida afilhadinha, como penso, tem uma secreta noção de que eu a amo, tão forte é a afeição que ela me demonstra”.
            Finalmente, “esta é a idade certa para receber impressões”, o que é bom porque significa que os jovens podem ser educados e são capazes de grandes coisas. O futuro pertence aos jovens, como vimos na Abadia de Montmartre, onde foram justamente os jovens, com sua abadessa ainda mais jovem, que realizaram a “reforma”.

O senso dos propósitos na educação
            Embora o realismo exija que os educadores conheçam as pessoas a quem se dirigem, eles nunca devem perder de vista o senso do propósito de sua ação. Não há nada melhor do que uma consciência clara das metas que estabelecemos para nós mesmos, porque “todo agente age para o fim e de acordo com o fim”.
            O que é, então, a educação e qual é o seu propósito? A educação, diz Francisco de Sales, é “uma infinidade de solicitações, auxílios, benefícios e outros serviços necessários à criança, exercidos e continuados em relação a ela até a idade em que não mais necessite deles”. Duas coisas chamam a atenção nessa definição: por um lado, a insistência na multiplicidade de atenções que a educação exige e, por outro, seu fim, que coincide com o momento em que o sujeito alcançou a autonomia. As crianças são educadas para alcançar a liberdade e o controle total sobre suas vidas.
            Em termos concretos, o ideal educativo de Francisco de Sales parece girar em torno da noção de harmonia, ou seja, a integração harmoniosa de todos os vários componentes que existem no ser humano: “ações, movimentos, sentimentos, inclinações, hábitos, paixões, faculdades e poderes”. A harmonia implica unidade, mas também distinção. A unidade requer um único mandamento, mas esse mandamento único deve não apenas respeitar as diferenças, mas também promover as distinções na busca da harmonia. Na pessoa humana, o governo pertence à vontade, à qual todos os outros componentes se referem, cada um em seu lugar e interdependente do outro.
            Francisco de Sales usa duas comparações para ilustrar seu ideal. Elas não deixam de ser análogas aos dois impulsos humanos fundamentais destacados pela psicanálise: agressão e prazer. Um exército é belo, explica ele, quando é composto de partes distintas dispostas de modo a formar um único exército. A música é bela quando as vozes estão unidas em distinção e quando são distintas, mas unidas.

Começando pelo coração
            “Aquele que conquistou o coração do homem conquistou o homem inteiro”, escreve o autor da Introdução à Vida Devota. Essa regra geral deve se aplicar ao campo da educação. A expressão “conquistar o coração” pode ser interpretada de duas maneiras. Pode significar que o educador deve visar o coração, ou seja, o núcleo interno da pessoa, antes de se preocupar com seu comportamento externo. Por outro lado, significa conquistar uma pessoa por meio do afeto.
            O homem é construído a partir de dentro: essa parece ser uma das grandes lições de Francisco de Sales, educador e reformador de pessoas e comunidades. Ele estava bem ciente de que seu método não era compartilhado por todos, pois escreveu: “Nunca pude aprovar o método daqueles que, para reformar o homem, começam pelo exterior, pelo comportamento, pelas roupas, pelos cabelos. Portanto, devemos começar por dentro, ou seja, pelo coração, a sede da vontade e a fonte de todas as nossas ações.
            O segundo ponto é tentar conquistar a afeição dos outros, de modo a estabelecer um bom relacionamento educativo com eles. Numa carta a uma abadessa, aconselhando-a sobre a reforma de seu mosteiro, composto em grande parte por jovens, encontramos indicações valiosas de como o bispo da Saboia concebia seu método de educação, formação e, mais precisamente nesse caso, “reforma”. Acima de tudo, não devemos alarmá-los, dando-lhes a impressão de que queremos reformá-los. O objetivo é que eles se reformem. Após essas preliminares, três ou quatro “truques” devem ser usados. Não é de se admirar, pois a educação também é uma arte, na verdade a arte das artes. O primeiro é pedir que eles façam as coisas com frequência, mas com muita facilidade e sem dar a impressão de que estão fazendo. Em segundo lugar, é preciso falar com frequência e em termos gerais sobre o que precisa ser mudado, como se estivesse pensando em outra pessoa. Em terceiro lugar, é preciso tentar tornar a obediência amável, sem se esquecer de mostrar novamente seus benefícios e vantagens. De acordo com Francisco de Sales, a gentileza deve ser preferida porque geralmente é mais eficaz. Por fim, os responsáveis devem mostrar que não agem por capricho, mas em virtude de sua responsabilidade e com vistas ao bem de todos.

Comandar, aconselhar, inspirar
            Parece que as intervenções propostas por Francisco de Sales no campo da educação têm como modelo os três modos que Deus usa com os homens para indicar-lhes sua vontade: mandamentos, conselhos e inspirações.
            É óbvio que os pais e os professores têm o direito e o dever de ordenar a seus filhos ou alunos para o bem deles, e que eles devem obedecer. Ele mesmo, em sua responsabilidade como bispo, não hesitou em fazê-lo quando necessário. Entretanto, de acordo com Camus, ele abominava espíritos absolutos que queriam ser obedecidos à vontade e que tudo tinha de ceder ao seu domínio. Ele dizia que “aqueles que amam ser temidos, temem ser amados”. Em alguns casos, a obediência pode ser forçada. Referindo-se ao filho de um de seus amigos, ele escreveu ao pai: “Se ele perseverar, ficaremos satisfeitos; se não perseverar, teremos de usar um destes dois remédios: ou retirá-lo para uma escola um pouco mais fechada do que esta, ou dar-lhe um mestre particular que seja um homem e a quem ele prestará obediência”. O uso da força pode ser totalmente descartado?
            Normalmente, porém, Francisco de Sales recorria a conselhos, avisos e recomendações. O autor da Introdução à Vida Devota se apresenta como um conselheiro, um assistente, alguém que dá “conselhos”. Embora muitas vezes ele use o imperativo, é um conselho que ele está dando, especialmente porque muitas vezes é acompanhado de uma condicional: “Se você pode fazê-lo, faça-o”. Às vezes, a recomendação é disfarçada como uma declaração de valor: é bom fazer isso, é melhor fazer assim etc.
            Mas quando ele pode e sua autoridade não está em questão, ele prefere agir por inspiração, sugestão ou insinuação. Esse é o método salesiano por excelência, que respeita a liberdade humana. Parecia-lhe particularmente adequado escolher um estado de vida. Esse é o método que ele recomendou à Senhora de Chantal para a vocação que ela queria para seus filhos, “inspirando-os gentilmente com pensamentos em sintonia com ela”.
            Mas a inspiração não é comunicada apenas por palavras. Os céus não falam, diz a Bíblia, mas proclamam a glória de Deus por meio de seu testemunho silencioso. Da mesma forma, “o bom exemplo é a pregação silenciosa”, como a de São Francisco que, sem dizer uma única palavra, atraiu um grande número de jovens com seu exemplo. De fato, o exemplo leva à imitação. Pequenos rouxinóis aprendem a cantar com os grandes, lembrou ele, e “o exemplo daqueles que amamos tem uma influência e uma autoridade suave e imperceptível sobre nós”, a ponto de sermos obrigados a deixá-los ou imitá-los.

Como corrigir?
            O espírito de correção consiste em “resistir ao mal e suprimir os vícios daqueles que nos foram confiados, constante e corajosamente, mas com brandura e tranquilidade”. No entanto, as falhas devem ser corrigidas sem demora, enquanto são pequenas, “porque se você esperar que elas cresçam, não poderá curá-las facilmente”.
            A severidade às vezes é necessária. Os dois jovens religiosos que estavam dando escândalo precisavam ser colocados de volta no caminho certo para que um grande número de consequências lamentáveis fosse evitado. Embora sua pouca idade possa ter sido uma desculpa, “a continuação de seu comportamento agora os torna imperdoáveis”. Há até mesmo casos em que é necessário “manter os ímpios com algum temor pela resistência que eles apresentarão”. O bispo de Genebra cita uma carta de São Bernardo aos frades de Roma que precisavam de correção, na qual ele “fala com eles adequadamente e com um sabão quente o suficiente”. Façamos como o cirurgião, pois “é uma amizade fraca ou ruim ver o amigo perecer e não o ajudar, vê-lo morrer de apostasia e não ousar dar-lhe o fio da navalha da correção para salvá-lo”.
            No entanto, a correção deve ser administrada sem paixão, porque “um juiz castiga os ímpios muito melhor quando profere suas sentenças com razão e em um espírito de tranquilidade, do que quando as profere com ímpeto e paixão, especialmente porque, julgando com paixão, ele não castiga as faltas de acordo com o que elas são, mas de acordo com o que ele mesmo é”. Da mesma forma, “as admoestações gentis e cordiais de um pai têm muito mais poder para corrigir um filho do que sua raiva e ira”. É por isso que é importante se proteger contra a raiva. Na primeira vez que você sentir raiva, ele disse à Filoteia, “você deve reunir suas forças rapidamente, não de forma repentina ou impetuosa, mas com cuidado e seriedade”. Em uma carta a uma freira que havia se queixado de “uma garotinha mal-humorada e desorganizada” confiada aos seus cuidados, o bispo deu o seguinte conselho: “Se puder, não a corrija com raiva”. Não sejamos como o rei Herodes ou como aqueles homens que dizem que governam quando são temidos, quando governar é “ser amado”.
            Há muitas maneiras de corrigir. Uma das melhores não é tanto retirar o que é negativo, mas incentivar tudo o que é positivo em uma pessoa. Isso é chamado de “correção por inspiração”, porque “é maravilhoso como a gentileza e a beleza de algo bom é uma maneira poderosa de atrair corações”.
            Seu discípulo, João Pedro Camus, contou a história de uma mãe que amaldiçoou o filho que a havia insultado. Pensou-se que o bispo deveria fazer o mesmo, mas ele respondeu: “O que você quer que eu faça? Eu estava com medo de derramar em um quarto de hora o pequeno licor de bondade que venho tentando coletar há vinte e dois anos”. Foi novamente Camus quem relatou essa frase “inesquecível” de seu mestre: “Lembre-se de que você pega mais moscas com uma gota de mel do que com um barril de vinagre”.
            A gentileza é preferível não só com os outros, mas também conosco mesmos. Todos devem estar preparados para reconhecer seus erros com calma e se corrigir sem ficar com raiva. Eis um bom conselho para uma “pobre garota” que está com raiva de si mesma: “Diga a ela que, por mais que possa lamentar-se, nunca ficará surpresa ou com raiva de si mesma”.

Educação progressiva
            São Francisco de Sales, que tinha um senso do real e do possível, bem como a contenção e o tato necessários, estava convencido de que grandes projetos só podem ser realizados com paciência e tempo. A perfeição nunca é o ponto de partida e provavelmente nunca será alcançada, mas o progresso é sempre possível. O crescimento tem suas próprias leis que devem ser respeitadas: as abelhas eram primeiro larvas, depois ninfas e, finalmente, abelhas “formadas, feitas e perfeitas”.
            Fazer as coisas de maneira ordenada, uma após a outra, sem confusão, até mesmo com certa lentidão, mas sem nunca parar, esse parece ser o ideal do bispo de Genebra. Vamos seguir em frente, disse ele, e “por mais lentamente que avancemos, percorreremos um longo caminho”. Da mesma forma, ele recomendou a uma abadessa que tinha a pesada tarefa de reformar seu mosteiro: “Você deve ter um coração grande e duradouro”. A lei da progressão é universal e se aplica em todos os campos.
            Para ilustrar seu pensamento, o santo da gentileza usou inúmeras comparações e imagens para inculcar um senso de tempo e a necessidade de perseverar. Algumas pessoas têm a tendência de voar antes de ter asas ou, de repente, querem ser anjos, quando não são apenas homens e mulheres de bem. Quando as crianças são pequenas, damos a elas leite e, quando crescem e começam a ter dentes, damos a elas pão e manteiga.
            Um ponto importante é não ter medo de repetir a mesma coisa várias vezes. Devemos imitar os pintores e escultores que criam suas obras repetindo as pinceladas do pincel e os golpes do cinzel. A educação é uma longa jornada. Ao longo do caminho, é preciso se purificar de muitos “humores” negativos, e essa purificação é lenta. Mas não devemos desanimar. A lentidão não significa resignação ou espera indecisa. Pelo contrário, devemos aprender a tirar o máximo proveito de tudo, não desperdiçando tempo e sabendo como usar “nossos anos, nossos meses, nossas semanas, nossos dias, nossas horas e até mesmo nossos momentos”.
            A paciência, frequentemente ensinada pelo bispo de Genebra, é uma paciência ativa que nos permite seguir em frente, embora com pequenos passos. “Pouco a pouco e passo a passo, devemos adquirir esse domínio”, escreveu ele a uma impaciente Filoteia. Aprendemos “primeiro a caminhar com pequenos passos, depois a nos apressar, depois a acelerar e, finalmente, a correr”. O crescimento até a idade adulta começa lentamente e se acelera cada vez mais, assim como a formação e a educação. Por fim, a paciência é nutrida pela esperança: “Não há solo tão ingrato que o amor do trabalhador não o fertilize”.

Educação integral
            Pelo que foi dito até agora, já está bem claro que, para Francisco de Sales, a educação não podia ser confundida com uma única dimensão da pessoa, como a instrução, ou boas maneiras, ou mesmo uma educação religiosa desprovida de fundamentos humanos. É claro que não se pode negar a importância de cada uma dessas áreas específicas. Com relação à educação e à formação da mente, basta lembrar o tempo e o esforço que ele dedicou durante a juventude para adquirir uma alta cultura intelectual e “profissional”, bem como o cuidado que dedicou à educação em sua diocese.
            Entretanto, sua principal preocupação era a formação integral da pessoa humana, compreendida em todas as suas dimensões e dinâmicas. Para demonstrar isso, vamos nos concentrar em cada uma das dimensões constituintes da pessoa humana em sua totalidade simbólica: o corpo com todos os seus sentidos, a alma com todas as suas paixões, a mente com todas as suas faculdades e o coração, a sede da vontade, do amor e da liberdade.