A Conversão

Diálogo entre um homem recentemente convertido a Cristo e um amigo incrédulo:
“Então você se converteu a Cristo?”.
“Sim.”
“Então você deve saber muito sobre ele. Diga-me, em que país ele nasceu?”.
“Não sei”.
“Quantos anos você tinha quando ele morreu?”.
“Não sei”.
“Quantos livros ele escreveu?”.
“Não sei”.
“Definitivamente, você sabe muito pouco para um homem que afirma ter se convertido a Cristo!”.
“O senhor tem razão. Tenho vergonha do pouco que sei sobre ele. Mas o que eu sei é o seguinte: há três anos eu era um bêbado. Estava muito endividado. Minha família estava desmoronando. Minha esposa e meus filhos temiam meu retorno para casa todas as noites. Mas agora parei de beber; não temos mais dívidas; nosso lar agora é feliz; meus filhos esperam ansiosamente que eu volte para casa à noite. Tudo isso Cristo fez por mim. E isso é o que eu sei de Cristo!”.

O que mais importa é exatamente como Jesus muda nossa vida. Devemos enfatizar isso com veemência: seguir Jesus significa mudar a maneira como vemos Deus, os outros, o mundo e a nós mesmos. Em comparação com o que é patrocinado pela opinião atual, é outra maneira de viver e outra maneira de morrer. Esse é o mistério da “conversão”.




Os exegetas

Um famoso estudioso da Bíblia convidou um grupo de colegas para sua casa. Eles se sentaram ao redor de uma mesa que tinha um magnífico vaso de flores no meio e começaram a discutir sobre uma página da Bíblia. Discutiam animadamente, analisando cada palavra, levantando hipóteses de raízes antigas, conjecturando, postulando, comparando, destilando, historicizando, desmitificando, psicologizando, feminilizando…
Não conseguiam concordar em quase nada.
De repente, o anfitrião interrompeu a discussão e voltou-se para um dos convidados que estava tirando flores do vaso no meio da mesa e destruindo-as sistematicamente.
“O que o senhor faz?”
“Conto as espirais, divido os estames e os pistilos, deixo de lado os talos e os filamentos…”.
“Esse zelo científico lhe dá crédito, mas, dessa forma, o senhor estraga toda a beleza dessas magníficas flores!”
O homem sorriu amargamente: “É exatamente isso que o senhor está fazendo”.

O rabino Elimelec havia feito um sermão maravilhoso sobre a arte de viver. Cheios de entusiasmo, os ouvintes o acompanharam alegremente enquanto ele pegava a carruagem de volta para sua aldeia.
Em certo momento, o rabino parou a carruagem e pediu ao cocheiro que seguisse em frente sem ele enquanto se misturava com as pessoas.
“Que exemplo de humildade!”, disse um de seus discípulos.
“A humildade não tem nada a ver com isso”, respondeu Elimelec. “Aqui as pessoas caminham felizes, cantam, bebem vinho, conversam, fazem novos amigos, e tudo isso graças a um velho rabino que veio falar sobre a arte de viver. Por isso, prefiro deixar minhas teorias na carruagem e aproveitar a festa.”




Vida de São Pedro, príncipe dos apóstolos

O momento culminante do Ano Jubilar para cada crente é a passagem pela Porta Santa, um gesto altamente simbólico que deve ser vivido com profunda meditação. Não se trata de uma simples visita para admirar a beleza arquitetônica, escultural ou pictórica de uma basílica: os primeiros cristãos não iam aos locais de culto por esse motivo, também porque na época não havia muito para admirar. Eles chegavam, na verdade, para rezar diante das relíquias dos santos apóstolos e mártires, e para obter a indulgência graças à sua poderosa intercessão.
Visitar os túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo sem conhecer suas vidas não é um sinal de apreço. Por isso, neste Ano Jubilar, desejamos apresentar os caminhos de fé desses dois gloriosos apóstolos, assim como foram narrados por São João Bosco.

Vida de São Pedro, príncipe dos apóstolos contada ao povo pelo P. João Bosco

Homem de pouca fé, por que duvidaste? (Mateus 14,31).

PREFÁCIO
CAPÍTULO I. Pátria e profissão de São Pedro. — Seu irmão André o conduz a Jesus Cristo. Ano 29 de Jesus Cristo
CAPÍTULO II. Pedro conduz o Salvador em seu barco — Pesca milagrosa. — Acolhe Jesus em sua casa. — Milagres realizados. Ano 30 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO III. São Pedro, chefe dos Apóstolos, é enviado a pregar. — Caminha sobre as ondas. — Bela resposta dada ao Salvador. Ano 31 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO IV. Pedro confessa pela segunda vez Jesus Cristo como Filho de Deus. — É constituído chefe da Igreja, e lhe são prometidas as chaves do reino dos Céus. Ano 32 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO V. São Pedro tenta dissuadir o divino Mestre da paixão. — Vai com ele ao monte Tabor. Ano 32 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO VI. Jesus, na presença de Pedro, ressuscita a filha de Jairo. — Paga o tributo por Pedro. — Ensina seus discípulos na humildade. Ano 32 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO VII. Pedro fala com Jesus sobre o perdão das injúrias e o desapego das coisas terrenas. — Recusa deixar-se lavar os pés. — Sua amizade com São João. Ano 33 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO VIII. Jesus prediz a negação de Pedro e lhe assegura que sua fé não falhará. — Pedro o segue no jardim de Getsêmani. — Corta a orelha de Malco. — Sua queda, seu arrependimento. Ano 33 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO IX. Pedro no sepulcro do Salvador. — Jesus lhe aparece. — À beira do lago de Tiberíades dá três distintos sinais de amor para com Jesus que o constitui efetivamente chefe e pastor supremo da Igreja.
CAPÍTULO X. Infalibilidade de São Pedro e de seus sucessores
CAPÍTULO XI. Jesus prediz a São Pedro a morte de cruz. — Promete assistência à Igreja até o fim do mundo. — Retorno dos Apóstolos ao cenáculo. Ano 33 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XII. São Pedro substitui Judas. — Vinda do Espírito Santo. — Milagre das línguas. Ano 33 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XIII. Primeira pregação de Pedro. Ano 33 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XIV. São Pedro cura um coxo. — Sua segunda pregação. Ano 33 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XV. Pedro é preso com João e, depois, libertado.
CAPÍTULO XVI. Vida dos primeiros Cristãos. — O caso de Ananias e Safira. — Milagres de São Pedro. Ano 34 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XVII. São Pedro novamente preso. — É libertado por um anjo. Ano 34 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XVIII. Eleição dos sete diáconos. — São Pedro resiste à perseguição de Jerusalém. — Vai à Samaria. — Seu primeiro confronto com Simão Mago. Ano 35 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XIX. São Pedro funda a cátedra de Antioquia; retorna a Jerusalém. — É visitado por São Paulo. Ano 36 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XX. São Pedro visita várias Igrejas. — Cura Eneias, o paralítico. — Ressuscita a defunta Tabita. Ano 38 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XXI. Deus revela a São Pedro a vocação dos Gentios. — Vai a Cesareia e batiza a família do Centurião Cornélio. Ano 39 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XXII. Herodes manda decapitar São Tiago Maior, e colocar São Pedro na prisão. — Mas é libertado por um Anjo. — Morte de Herodes. Ano 41 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XXIII. Pedro em Roma. — Ele transfere a cátedra apostólica. — Sua primeira carta. — Progresso do Evangelho. Ano 42 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XXIV. São Pedro no concílio de Jerusalém define uma questão. — São Tiago confirma seu julgamento. Ano 50 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XXV. São Pedro confere a São Paulo e a São Barnabé a plenitude do Apostolado. — É advertido por São Paulo. — Retorna a Roma. Ano 54 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XXVI. São Pedro ressuscita um morto. Ano 66 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XXVII. Voo. — Queda. — Morte desesperada de Simão Mago. Ano 67 de Jesus Cristo.
CAPÍTULO XXVIII. Pedro é procurado para morrer. — Jesus lhe aparece e lhe prediz iminente o martírio. — Testamento do santo Apóstolo.
CAPÍTULO XXIX. São Pedro na prisão converte Processo e Martiniano. — Seu martírio. Ano 69-70 de Jesus Cristo; 67 da era vulgar.
CAPÍTULO XXX. Sepulcro de São Pedro. — Atentado contra seu corpo.
APÊNDICE SOBRE A VINDA DE SÃO PEDRO A ROMA

PREFÁCIO
            Quem deve entrar em um palácio fechado e tomar posse dele, é necessário que goze do favor daquele que tem as chaves.
            Infeliz daquele que, encontrando-se numa pequena embarcação em alto-mar, não está nas graças do piloto. A ovelha perdida, que está longe de seu pastor, não conhece sua voz ou não a escuta.
            Caro leitor; sua morada é o céu, e você deve aspirar a alcançá-la. Enquanto você vive aqui embaixo, está navegando no tempestuoso mar do mundo, em perigo de colidir com os rochedos, naufragar e se perder nos abismos do erro.
            Como uma ovelhinha, você está a cada dia prestes a ser conduzido a pastagens nocivas, a se perder por penhascos e desfiladeiros, e a cair também nas garras dos lobos vorazes, ou seja, nas armadilhas dos inimigos de sua alma. Ah! Sim, você precisa tornar favorável aquele a quem foram entregues as chaves do céu; é necessário que você confie sua vida ao grande Piloto da Nave de Cristo, ao Noé do novo Testamento; você deve se unir ao Supremo Pastor da Igreja, o único que pode guiá-lo a pastagens saudáveis e conduzi-lo à vida.
            Assim, o Porteiro do reino dos Céus, grande Timoneiro e Pastor dos homens é precisamente São Pedro, príncipe dos Apóstolos, que exerce seu poder na pessoa do Sumo Pontífice, seu Sucessor. Ele ainda hoje abre e fecha, governa a Igreja, guia as almas à salvação.
            Não lhe desagrade, portanto, piedoso leitor, ao percorrer a breve vida que aqui lhe apresento; aprenda a conhecer quem ele é, a respeitar sua suprema autoridade de honra e jurisdição; aprenda a reconhecer a voz amorosa do Pastor e a ouvi-la. Porque quem está com Pedro, está com Deus, caminha na luz e corre em direção à vida; quem não está com Pedro, está contra Deus, vai cambaleando nas trevas e precipita-se na perdição. Onde está Pedro, ali está a vida; onde Pedro não está, ali está a morte.

CAPÍTULO I. Pátria e profissão de São Pedro[1]. — Seu irmão André o conduz a Jesus Cristo. Ano 29 de Jesus Cristo
            São Pedro era judeu de nascimento e filho de um pobre pescador chamado Jonas ou João, que habitava em uma cidade da Galileia chamada Betsaida. Esta cidade está situada na margem ocidental do lago de Genesaré, comumente chamado mar da Galileia ou de Tiberíades, que na verdade é um vasto lago de doze milhas de comprimento (± 19km) e seis de largura (± 13km).
            Antes que o Salvador lhe mudasse o nome, Pedro chamava-se Simão. Ele exercia a profissão de pescador, como seu pai; tinha um temperamento forte, inteligência viva e espirituosa; era rápido em responder, mas de coração bom e cheio de gratidão para com quem o beneficiava.
            Essa índole viva o levava frequentemente aos mais calorosos transportes de afeto para com o Salvador, do qual igualmente recebeu inequívocos sinais de predileção. Naquela época, não sendo ainda muito conhecido o valor da virgindade, Pedro casou-se na cidade de Cafarnaum, capital da Galileia, na margem ocidental do Jordão, que é um grande rio, o qual divide a Palestina de norte a sul.
            Como Tiberíades estava situada onde o Jordão deságua no mar da Galileia, e por isso muito adequada à pesca, assim São Pedro estabeleceu nesta cidade sua moradia habitual e continuou a exercer seu ofício habitual. A bondade de seu coração muito inclinado à verdade, o emprego inocente de pescador e a assiduidade ao trabalho contribuíram bastante para que ele se conservasse no santo temor de Deus.
            Naquela época, era difundido o pensamento na mente de todos de que a vinda do Messias era iminente; aliás, alguns diziam que já havia nascido entre os judeus. O que motivou São Pedro a usar a máxima diligência para vir a conhecê-lo. Ele tinha um irmão mais velho chamado André, que, cativado pelas maravilhas que se contavam sobre São João Batista, Precursor do Salvador, quis se tornar seu discípulo, passando a maior parte do tempo com ele em um áspero deserto.
            A notícia, que se confirmava a cada dia mais, de que o Messias já havia nascido, fazia com que muitos recorressem a São João, acreditando que ele mesmo era o Redentor. Entre esses estava Santo André, irmão de Simão Pedro. Mas não demorou muito para que, instruído por João, ele viesse a conhecer Jesus Cristo e, na primeira vez que ouviu falar dele, ficou tão cativado que correu imediatamente para dar a notícia ao irmão.
            Assim que o viu: “Simão,” disse-lhe, “encontramos o Messias; venha comigo para vê-lo.”
            Simão, que já havia ouvido algo de outros, mas vagamente, partiu imediatamente com seu irmão e foi até onde André havia deixado Jesus Cristo. Pedro, ao dar uma olhada no Salvador, ficou como arrebatado de amor. O divino Mestre, que havia concebido altos desígnios sobre ele, olhou-o com um ar de bondade e, antes que ele falasse, mostrou-lhe que estava plenamente informado sobre seu nome, seu nascimento, sua pátria, dizendo: “Tu és Simão, filho de João, mas doravante te chamarás Cefas.” Esta palavra significa pedra, da qual derivou o nome de Pedro. Jesus comunica a Simão que seria chamado Pedro, porque ele deveria ser aquela pedra sobre a qual Jesus Cristo fundaria sua Igreja, como veremos ao longo desta vida.
            Neste primeiro diálogo, Pedro reconheceu imediatamente ser de muito longe inferior à realidade o que seu irmão lhe havia contado e, desde aquele momento, tornou-se muito afeiçoado a Jesus Cristo, nem sabia mais viver longe dele. O divino Salvador, por outro lado, permitiu que este novo discípulo retornasse ao seu ofício anterior porque queria prepará-lo pouco a pouco para o total abandono das coisas terrenas, guiá-lo aos mais sublimes graus da virtude e assim torná-lo capaz de compreender os outros mistérios que lhe revelaria e fazê-lo digno do grande poder com o qual o queria investir.

CAPÍTULO II. Pedro conduz o Salvador em seu barco — Pesca milagrosa. — Acolhe Jesus em sua casa. — Milagres realizados. Ano 30 de Jesus Cristo.
            Pedro continuava, portanto, a exercer sua primeira profissão; mas sempre que o tempo e as ocupações lhe permitiam, ia com alegria ao divino Salvador, para ouvi-lo falar sobre as verdades da fé e do reino dos céus.
            Um dia, caminhando Jesus à beira do mar de Tiberíades, viu os dois irmãos Pedro e André em ato de lançar suas redes na água. Chamando-os a si, disse-lhes: “Venham comigo e, de pescadores de peixes como são, eu os tornarei pescadores de homens.” Eles prontamente obedeceram aos sinais do Redentor e, abandonando suas redes, tornaram-se fiéis e constantes seguidores dele. Não muito longe havia outra embarcação de pescadores, na qual estava um certo Zebedeu com dois filhos, Tiago e João, que consertavam suas redes. Jesus chamou também esses dois irmãos. Pedro, Tiago e João são os três discípulos que tiveram sinais de especial benevolência do Salvador e que, por sua vez, se mostraram em cada encontro fiéis e leais.
            Enquanto isso, o povo, tendo sabido que o Salvador estava lá, se aglomerava ao seu redor para ouvir sua divina palavra. Desejando satisfazer o desejo da multidão e ao mesmo tempo oferecer a todos a comodidade de poder ouvi-lo, não quis pregar da praia, mas de uma das duas embarcações que estavam próximas à costa; e para dar a Pedro um novo atestado de amor, escolheu a sua barca. Subindo a bordo e fazendo também Pedro subir, ordenou-lhe que se afastasse um pouco da margem e, sentando-se, começou a instruir aquela devota assembleia. Terminada a pregação, ordenou a Pedro que conduzisse a embarcação em alto-mar e lançasse a rede para pegar peixes.
            Pedro havia passado toda a noite anterior pescando naquele mesmo lugar e não havia apanhado nada; por isso, voltando-se para Jesus: “Mestre,” disse-lhe, “nós nos fatigamos a noite toda pescando e não pegamos nenhum peixe; no entanto, por causa da tua palavra, lançarei a rede ao mar.” Assim fez por obediência e, contra toda expectativa, a pesca foi tão abundante e a rede tão cheia de grandes peixes que, tentando puxá-la para fora das águas, estava prestes a se rasgar. Pedro, não podendo sozinho suportar o grande peso da rede, pediu socorro a Tiago e João, que estavam na outra embarcação, e estes vieram ajudá-lo. De acordo e com dificuldade, puxaram a rede para fora, despejaram os peixes nas embarcações, as quais ficaram tão cheias que ameaçavam afundar.
            Pedro, que começava a perceber algo de sobrenatural na pessoa do Salvador, reconheceu imediatamente que aquilo era um prodígio e, cheio de espanto, considerando-se indigno de estar com ele na mesma embarcação, humilhado e confuso, lançou-se a seus pés dizendo: “Senhor, eu sou um miserável pecador, por isso te peço que te afastes de mim.” Quase a dizer: “Oh! Senhor, eu não sou digno de estar na tua presença.” Diz Santo Ambrósio: admirando os dons de Deus, tanto mais merecia quanto menos presumia de si mesmo[2].
            Jesus agradou-se da simplicidade de Pedro e da humildade de seu coração e, desejando que ele abrisse a alma a melhores esperanças, para confortá-lo disse-lhe: “Afasta todo temor; doravante não serás pescador de peixes, mas serás pescador de homens.” A estas palavras Pedro tomou coragem e, quase transformado em outro homem, conduziu a embarcação à praia, abandonou tudo e se fez inseparável companheiro do Redentor.
            Assim como Jesus Cristo, ao falar, dirigiu o caminho para a cidade de Cafarnaum, assim Pedro foi com ele. Lá entraram ambos na Sinagoga e o Apóstolo ouviu a pregação que ali fez o Senhor e foi testemunha da milagrosa cura de um endemoninhado.
            Da Sinagoga Jesus foi à casa de Pedro onde sua sogra estava aflita por uma febre gravíssima. Juntamente com André, Tiago e João, ele pediu a Jesus que se compadecesse e libertasse aquela mulher do mal que a oprimia. O divino Salvador atendeu suas orações e, aproximando-se da cama da enferma, tomou-a pela mão, levantou-a e naquele instante a febre desapareceu. A mulher se encontrou tão perfeitamente curada que pôde se levantar imediatamente e preparar o almoço para Jesus e toda a sua comitiva. A fama de tais milagres atraiu à casa de Pedro muitos enfermos juntamente com uma multidão inumerável, de modo que toda a cidade parecia reunida lá. Jesus restituiu a saúde a quantos eram levados a ele; e todos, cheios de contentamento, partiam louvando e bendizendo o Senhor.
            Na barca de Pedro, os santos Padres reconhecem a Igreja, da qual é chefe Jesus Cristo, no lugar de quem Pedro deveria ser o primeiro a fazer suas vezes, e depois dele todos os Papas, seus sucessores. As palavras ditas a Pedro: “Conduze a barca para o alto-mar,” e as outras ditas a ele e aos seus Apóstolos: “Lançai as vossas redes para pegar peixes,” contêm também um nobre significado. A todos os Apóstolos, diz Santo Ambrósio, ordena que lancem as redes nas ondas; porque todos os Apóstolos e todos os pastores são obrigados a pregar a divina palavra e a guardar na nave, ou seja, na Igreja, aquelas almas que serão ganhas com sua pregação. Somente a Pedro, então, é ordenado conduzir a nave em alto-mar, porque ele, em preferência a todos, é feito participante da profundidade dos divinos mistérios e só ele recebe de Cristo a autoridade de resolver as dificuldades que podem surgir em questões de fé e de moral. Assim, na vinda dos outros apóstolos à sua barca, se reconhece a colaboração dos outros pastores, que, unindo-se a Pedro, devem ajudá-lo a propagar e conservar a fé no mundo e ganhar almas para Cristo[3].

CAPÍTULO III. São Pedro, chefe dos Apóstolos, é enviado a pregar. — Caminha sobre as ondas. — Bela resposta dada ao Salvador. Ano 31 de Jesus Cristo.
            Partindo da casa de Pedro, Jesus se dirigiu para a solidão, sobre um monte, para orar. Pedro e os outros discípulos, que naquele momento já eram numerosos, o seguiram; mas, ao chegarem ao local determinado, Jesus ordenou que parassem e, sozinho, retirou-se para um lugar afastado. Quando amanheceu, voltou para os discípulos. Nessa ocasião, o divino Mestre escolheu doze discípulos, a quem deu o nome de Apóstolos, que significa enviados, pois os Apóstolos foram realmente enviados para pregar o Evangelho, inicialmente apenas nas aldeias da Judeia; depois, para todo o mundo. Entre esses doze, destinou São Pedro para ocupar o primeiro lugar e ser o chefe, para que, como diz São Jerônimo, estabelecido entre eles um superior, fosse eliminada toda ocasião de discórdia e cisma. Ut capite constituto schismatis tolleretur occasio[4].
            Os novos pregadores iam com todo zelo anunciar o Evangelho, pregando em toda parte a vinda do Messias e confirmando suas palavras com milagres luminosos. Depois, voltavam ao divino Mestre, como que para prestar contas do que haviam feito. Ele os recebia com bondade e costumava então ir ele mesmo àquele lugar onde os Apóstolos haviam pregado. Certa vez, as multidões, tomadas de admiração e entusiasmo, queriam fazê-lo rei; mas ele, ordenando aos Apóstolos que fizessem a travessia para a margem oposta do lago, afastou-se daquela boa gente e foi se esconder no deserto. Os Apóstolos, conforme as ordens do Mestre, subiram à barca para atravessar o lago. Já a noite avançava e eles haviam chegado à costa, quando se levantou uma tempestade tão terrível que a embarcação, agitada pelas ondas e pelo vento, estava prestes a afundar.
            No meio daquela tempestade, certamente não imaginavam que poderiam ver Jesus Cristo, que haviam deixado na margem oposta do lago. Mas qual não foi a surpresa deles quando o viram a pouca distância caminhando sobre as águas, com passo firme e veloz, e avançando em direção a eles! Ao vê-lo, todos se assustaram, temendo que fosse algum espectro ou fantasma, e começaram a gritar. Jesus então fez ouvir sua voz e os encorajou, dizendo: “Sou eu, tende fé, não temais.”
            A essas palavras, nenhum dos Apóstolos ousou falar; apenas Pedro, pelo ímpeto de seu amor por Jesus e para se certificar de que não era uma ilusão, disse: “Senhor, se realmente és tu, ordena que eu vá a ti caminhando sobre as águas.” O Divino Salvador disse que sim; e Pedro, cheio de confiança, saltou para fora da embarcação e começou a caminhar sobre as ondas, como se estivesse sobre um pavimento. Mas Jesus, que queria provar a fé dele e torná-la mais perfeita, permitiu que se levantasse novamente um vento impetuoso, que, agitando as ondas, ameaçava submergir Pedro. Ao ver seus pés afundando na água, ele ficou apavorado e começou a gritar: “Mestre, Mestre, ajuda-me, senão estou perdido.” Então Jesus o repreendeu pela fraqueza de sua fé com estas palavras: “Homem de pouca fé, por que duvidaste?” Assim dizendo, ambos caminharam juntos sobre as ondas até que, ao entrarem na barca, o vento cessou e a tempestade se acalmou. Neste fato, os santos Padres reconhecem os perigos em que às vezes se encontra o Chefe da Igreja e o pronto socorro que lhe traz Jesus Cristo, seu Chefe invisível, que permite sim as perseguições, mas sempre lhe dá a vitória.
            Algum tempo depois, o Divino Salvador retornou à cidade de Cafarnaum com os Apóstolos, seguido por uma grande multidão. Enquanto se detinha nesta cidade, muitos se aglomeravam ao seu redor, pedindo-lhe que quisesse ensinar-lhes quais eram as obras absolutamente necessárias para se salvar. Jesus começou a instruí-los sobre sua doutrina celeste, sobre o mistério de sua Encarnação, sobre o Sacramento da Eucaristia. Mas como aqueles ensinamentos visavam erradicar a soberba do coração dos homens, a gerar neles a humildade ao obrigá-los a crer em altíssimos mistérios e especialmente no mistério dos mistérios, a divina Eucaristia, assim seus ouvintes, considerando aqueles discursos muito rígidos e severos, ficaram ofendidos e a maior parte o abandonou.
            Jesus, vendo-se abandonado por quase todos, voltou-se para os Apóstolos e disse: “Vede como muitos se vão? Também vós quereis ir embora?” A esta repentina interrogação, todos ficaram em silêncio. Somente Pedro, como chefe e em nome de todos, respondeu: “Senhor, a quem iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna; nós cremos e sabemos que tu és o Cristo, o filho de Deus.” São Cirilo reflete que esta interrogação foi feita por Jesus Cristo a fim de estimulá-los a confessar a verdadeira fé, como de fato aconteceu pela boca de Pedro. Quanta diferença entre a resposta do nosso Apóstolo e as murmurações de certos cristãos que acham dura e severa a santa lei do Evangelho, porque não se acomoda às suas paixões (Ciril. in Ioann. lib. 4).

CAPÍTULO IV. Pedro confessa pela segunda vez Jesus Cristo como Filho de Deus. — É constituído chefe da Igreja, e lhe são prometidas as chaves do reino dos Céus. Ano 32 de Jesus Cristo.
            Em várias ocasiões, o divino Salvador havia tornado evidentes os planos particulares que tinha para a pessoa de Pedro; mas ainda não havia se explicado tão claramente, como veremos no fato seguinte, que pode ser considerado o mais memorável da vida deste grande Apóstolo. Da cidade de Cafarnaum, Jesus foi para os arredores de Cesareia de Filipe, cidade não muito distante do rio Jordão. Lá, um dia, após ter orado, Jesus se voltou de repente para seus discípulos, que haviam retornado da pregação, e fazendo sinal para que se aproximassem dele, começou a interrogá-los assim: “Quem dizem os homens que eu sou?” “Há quem diga,” respondeu um dos Apóstolos, “que tu és o profeta Elias.” “A mim disseram,” acrescentou outro, “que tu és o profeta Jeremias, ou João Batista, ou algum dos antigos profetas ressuscitados.” Pedro não disse palavra. Jesus retomou: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro então se adiantou e, em nome dos outros Apóstolos, respondeu: “Tu és o Cristo, filho do Deus vivo.” Então Jesus afirmou: “Bem-aventurado és, Simão, filho de João, pois não foram os homens que te revelaram tais palavras, mas meu Pai celeste. A partir de agora, não te chamarás mais Simão, mas Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do inferno não poderão vencê-la. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra, será ligado também no céu, e o que desatares na terra, será desatado também no céu.[5]
            Este fato e estas palavras merecem ser uma pequena explicação, para que sejam bem compreendidas. Pedro ficou em silêncio enquanto Jesus apenas demonstrava querer saber o que os homens diziam sobre sua pessoa; quando então o divino Salvador convidou os Apóstolos a expressar seu sentimento, imediatamente Pedro, em nome de todos, falou, pois ele já gozava de uma primazia, ou seja, superioridade, sobre os outros companheiros.
            Pedro, divinamente inspirado, diz: “Tu és o Cristo,” e era o mesmo que dizer: “Tu és o Messias prometido por Deus que veio salvar os homens; és filho do Deus vivo,” para significar que Jesus Cristo não era filho de Deus como as divindades dos idólatras, feitas pelas mãos e pelo capricho dos homens, mas filho do Deus vivo e verdadeiro, ou seja, filho do Pai eterno; portanto, com Ele criador e supremo senhor de todas as coisas; com isso, vinha a confessá-lo como a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Jesus, quase para compensá-lo por sua fé, o chama de Bem-aventurado, e ao mesmo tempo muda seu nome de Simão para Pedro; claro sinal de que o queria elevar a uma grande dignidade. Assim Deus fez com Abraão, quando o estabeleceu pai de todos os crentes; assim com Sara, quando lhe prometeu o prodigioso nascimento de um filho; assim com Jacó, quando o chamou de Israel e lhe assegurou que da sua descendência nasceria o Messias.
            Jesus disse: “Sobre esta pedra edificarei minha Igreja;” essas palavras significam: tu, Pedro, serás na Igreja o que é o fundamento numa casa. O fundamento é a parte principal da casa, totalmente indispensável; tu, Pedro, serás o fundamento, ou seja, a suprema autoridade na minha Igreja. Sobre o fundamento se edifica toda a casa, para que, sustentando-se, dure firme e inabalável. Sobre ti, que eu chamo de Pedro, como sobre uma rocha ou pedra firmíssima, por minha virtude onipotente eu elevo o eterno edifício da minha Igreja, a qual, apoiada em ti, permanecerá forte e invicta contra todos os ataques de seus inimigos. Não há casa sem fundamento, não há Igreja sem Pedro. Uma casa sem fundamento não é obra de um arquiteto sábio; uma Igreja separada de Pedro nunca poderá ser a minha Igreja. Nas casas, as partes que não se apoiam no fundamento caem e vão à ruína; na minha Igreja, quem se separa de Pedro precipita-se no erro e se perde.”
             “As portas do inferno nunca vencerão minha Igreja.” As portas do inferno, como explicam os Santos Padres, significam as heresias, os hereges, as perseguições, os escândalos públicos e as desordens que o demônio tenta suscitar contra a Igreja. Todas essas potências infernais poderão, sim, separadamente ou reunidas, mover uma guerra feroz contra a Igreja e perturbar seu espírito pacífico, mas nunca poderão vencê-la.”
            Finalmente, Cristo diz: “Eu te darei as chaves do reino dos céus.” As chaves são o símbolo do poder. Quando o vendedor de uma casa entrega as chaves ao comprador, entende-se que lhe dá plena e absoluta posse. Da mesma forma, quando se apresentam as chaves de uma cidade a um Rei, se quer significar que aquela cidade o reconhece como seu senhor. Assim, as chaves do reino dos céus, ou seja, da Igreja, dadas a Pedro, demonstram que ele é feito senhor, príncipe e governante da Igreja. Portanto, Jesus Cristo acrescenta a Pedro: “Tudo o que ligares na terra será também ligado nos céus, e tudo o que desatares na terra será também desatado nos céus.” Essas palavras indicam claramente a suprema autoridade dada a Pedro; autoridade de ligar a consciência dos homens com decretos e leis em ordem ao seu bem espiritual e eterno, e a autoridade de desatá-los dos pecados e das penas que impedem o mesmo bem espiritual e eterno.
            É bom notar aqui que o verdadeiro Chefe supremo da Igreja é Jesus Cristo, seu fundador; São Pedro, então, exerce sua suprema autoridade fazendo as funções, ou seja, as vezes dele na terra. Jesus Cristo fez com Pedro, como fazem os Reis deste mundo, quando dão plenos poderes a algum de seus ministros com a ordem de que tudo deva depender dele. Assim, o Rei Faraó deu tal poder a José que ninguém podia mover nem mão nem pé sem sua permissão[6].
            Note-se também que os outros Apóstolos receberam de Jesus Cristo a faculdade de desatar e ligar[7], mas essa faculdade foi-lhes dada depois que São Pedro a recebeu sozinho, para indicar que ele era o único chefe destinado a conservar a unidade de fé e de moral. Os outros Apóstolos, então, e todos os bispos seus sucessores, deveriam sempre depender de Pedro e dos Papas seus sucessores, a fim de permanecerem unidos a Jesus Cristo, que do céu assiste seu Vigário e toda a Igreja até o fim dos séculos. Pedro recebeu a faculdade de desatar e de ligar juntamente com os outros Apóstolos, e assim ele e seus sucessores são iguais aos Apóstolos e aos Bispos; depois a recebeu sozinho, e por isso Pedro e os Papas seus sucessores são os Chefes supremos de toda a Igreja; não apenas dos simples fiéis, mas dos Sacerdotes e de todos os Bispos. São bispos e pastores de Roma, e papas e pastores de toda a Igreja.
            Com o fato que expusemos, o divino Salvador promete constituir São Pedro chefe supremo de sua Igreja, e lhe explica a grandeza de sua autoridade. Veremos o cumprimento dessa promessa após a ressurreição de Jesus Cristo.

CAPÍTULO V. São Pedro tenta dissuadir o divino Mestre da paixão. — Vai com ele ao monte Tabor. Ano 32 de Jesus Cristo.
            O divino Redentor, depois de ter feito conhecer aos seus discípulos como ele edificava sua Igreja sobre bases estáveis, inabaláveis e eternas, quis dar-lhes um ensinamento para que compreendessem bem que ele não fundava este seu reino, ou seja, sua Igreja, com riquezas ou magnificência mundana, mas sim com a humildade, com os sofrimentos. Com esse propósito, portanto, manifestou a São Pedro e a todos os seus discípulos a longa série de sofrimentos e a morte infamante que os judeus deveriam fazê-lo sofrer em Jerusalém. Pedro, pelo grande amor que nutria por seu divino Mestre, horrorizou-se ao ouvir os males aos quais sua sagrada pessoa estava prestes a ser exposta, e, transportado pelo afeto que um filho terno tem por seu pai, o afastou e começou a persuadi-lo a ir para longe de Jerusalém para evitar aqueles males e concluiu: “Longe de ti, Senhor, esses males.” Jesus o repreendeu por seu afeto excessivamente sensível, dizendo-lhe: “Retira-te de mim, adversário; este teu falar me dá escândalo: tu ainda não sabes saborear as coisas de Deus, mas apenas as coisas humanas.” Diz Santo Agostinho: “Eis aquele mesmo Pedro que pouco antes o havia confessado como Filho de Deus, aqui teme que ele morra como filho do homem.”
            No ato em que o Redentor manifestou os maus-tratos que deveria sofrer pelas mãos dos judeus, prometeu que alguns dos Apóstolos, antes que ele morresse, teriam um vislumbre de sua glória, e isso para confirmá-los na fé e para que não se deixassem abater quando o vissem exposto às humilhações da paixão. Portanto, alguns dias depois, Jesus escolheu três Apóstolos: Pedro, Tiago e João, e os levou a um monte chamado comumente Tabor. Na presença desses três discípulos, Ele se transfigurou, ou seja, deixou transparecer um raio de sua divindade ao redor de sua sacrossanta pessoa. No mesmo momento, uma luz resplandecente o cercou e seu rosto tornou-se semelhante ao brilho do sol, e suas vestes brancas como a neve. Pedro, ao chegar ao monte, talvez cansado da viagem, havia se colocado a dormir com os outros dois; mas todos naquele momento, despertando, viram a glória de seu Divino Mestre. Ao mesmo tempo, também apareceram Moisés e Elias. Ao ver o Salvador resplandecente, ao aparecimento daqueles dois personagens e daquele esplendor incomum, Pedro, atônito, queria falar e não sabia o que dizer; e quase fora de si, considerando como nada toda grandeza humana em comparação com aquele vislumbre do paraíso, sentiu arder de desejo de permanecer sempre ali junto com seu Mestre. Então, voltando-se para Jesus, disse: “Ó Senhor, como é bom estarmos aqui: se assim te parece, façamos aqui três tendas, uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias.” Pedro, como nos atesta o Evangelho, estava fora de si e falava sem saber o que dizia. Era um transporte de amor por seu Mestre e um vivo desejo de felicidade. Ele ainda falava quando, desaparecidos Moisés e Elias, sobreveio uma nuvem maravilhosa que envolveu os três Apóstolos. Naquele momento, do meio daquela nuvem, foi ouvida uma voz que dizia: “Este é o meu Filho amado, em quem tenho prazer, escutai-o.” Então os três Apóstolos, cada vez mais aterrorizados, caíram por terra como mortos; mas o Redentor, aproximando-se, tocou-os com a mão e, encorajando-os, levantou-os. Ao levantarem os olhos, não viram mais nem Moisés nem Elias; havia apenas Jesus em seu estado natural. Jesus ordenou-lhes que não manifestassem a ninguém aquela visão, senão após sua morte e ressurreição[8]. Após tal fato, aqueles três discípulos cresceram desmesuradamente em amor por Jesus. São João Damasceno explica por que Jesus preferiu escolher esses três Apóstolos, e diz que Pedro, tendo sido o primeiro a dar testemunho da divindade do Salvador, merecia ser também o primeiro a poder de forma sensível contemplar sua humanidade glorificada; Tiago também teve tal privilégio porque deveria ser o primeiro a seguir seu Mestre com o martírio; São João tinha o mérito virginal que o fez digno dessa honra[9].
            A Igreja católica celebra o venerável acontecimento da transfiguração do Salvador no monte Tabor no dia seis de agosto.

CAPÍTULO VI. Jesus, na presença de Pedro, ressuscita a filha de Jairo. — Paga o tributo por Pedro. — Ensina seus discípulos na humildade. Ano 32 de Jesus Cristo.
            Entretanto, aproximava-se o tempo em que a fé de Pedro deveria ser posta à prova. Por isso, o divino Mestre, para inflamá-lo cada vez mais de amor por ele, frequentemente lhe dava novos sinais de afeto e bondade. Tendo Jesus chegado a uma parte da Palestina chamada terra dos Gerasenos, apresentou-se a ele um chefe da sinagoga chamado Jairo, pedindo-lhe que quisesse devolver a vida à sua filha única de 12 anos, que havia morrido há pouco. Jesus quis atendê-lo; mas, ao chegar à casa dele, proibiu a todos de entrar, e apenas levou consigo Pedro, Tiago e João, para que fossem testemunhas daquele milagre.
            No dia seguinte, Jesus, afastando-se um pouco dos outros discípulos, entrou com Pedro na cidade de Cafarnaum para ir à casa dele. À porta da cidade, os cobradores de impostos, ou seja, aqueles que eram designados pelo governo para a arrecadação de tributos e impostos, puxaram Pedro de lado e lhe disseram: “O teu Mestre paga o tributo?” “Certamente que sim,” respondeu Pedro. Tendo dito isso, entrou em casa, onde o Senhor o havia precedido. Ao vê-lo, o Salvador, a quem tudo era manifesto, chamou-o e disse: “Dize-me, Pedro, quem são aqueles que pagam o tributo? São os filhos do rei, ou os estranhos da família real?” Pedro respondeu: “São os estranhos.” “Portanto,” continuou Jesus, “os filhos do rei estão isentos de todo tributo.” O que queria dizer: “Portanto, eu que sou, como tu mesmo declaraste, o Filho de Deus vivo, não sou obrigado a pagar nada aos príncipes da terra; no entanto, essa boa gente não me conhece como tu, e poderia se escandalizar; por isso, pretendo pagar o tributo. Vai ao mar, lança a rede, e na boca do primeiro peixe que pegares encontrarás a moeda para pagar o tributo por mim e por ti.” O Apóstolo executou o que lhe foi ordenado, e após algum intervalo de tempo voltou cheio de espanto com a moeda indicada pelo Salvador; e o tributo foi pago.
            Os Santos Padres admiraram duas coisas neste fato: a humildade e mansidão de Jesus, que se submete às leis dos homens, e a honra que se dignou fazer ao Apóstolo Pedro, igualando-o a si mesmo e mostrando-o abertamente como seu Vigário.
            Os outros Apóstolos, ao saberem da preferência dada a Pedro, sendo ainda muito imperfeitos na virtude, sentiram inveja; por isso, iam entre si discutindo quem entre eles era o maior. Jesus, que pouco a pouco queria corrigi-los de seus defeitos, quando chegaram à sua presença, fez-lhes conhecer como as grandezas do céu são bem diferentes daquelas da terra, e que aquele que quer ser o primeiro no Céu convém que se faça o último na terra. Disse-lhes então: “Quem é o maior? Quem é o primeiro em uma família? Talvez aquele que está sentado, ou aquele que serve à mesa? Certamente quem está à mesa. Agora, o que vedes em mim? Que personagem eu figurava? Certamente de um pobre que serve à mesa.”
            Este aviso deveria principalmente valer para Pedro, que no mundo deveria receber grandes honras por sua dignidade, e, no entanto, conservar-se na humildade e se nomear servo dos servos do Senhor, como costumam se chamar os Papas seus sucessores.

CAPÍTULO VII. Pedro fala com Jesus sobre o perdão das injúrias e o desapego das coisas terrenas. — Recusa deixar-se lavar os pés. — Sua amizade com São João. Ano 33 de Jesus Cristo.
            Um dia, o divino Salvador começou a ensinar os Apóstolos sobre o perdão das ofensas, e tendo dito que se deveria suportar qualquer ultraje e perdoar qualquer injúria, Pedro ficou cheio de espanto; pois ele estava prevenido, como todos os judeus, em favor das tradições judaicas, que permitiam à pessoa ofendida infligir uma pena aos ofensores, chamada a pena do talião. Voltou-se, portanto, para Jesus e disse: “Mestre, se o inimigo nos ofender sete vezes e sete vezes vier me pedir perdão, devo perdoá-lo sete vezes?” Jesus, que veio para mitigar os rigores da antiga lei com a santidade e pureza do Evangelho, respondeu a Pedro que “não somente deveria perdoar sete vezes, mas setenta vezes sete,” expressão que significa que se deve perdoar sempre. Neste fato os Santos Padres reconhecem primeiramente a obrigação que cada cristão tem de perdoar ao próximo toda afronta, em todo tempo e em todo lugar. Em segundo lugar, reconhecem a faculdade dada por Jesus a São Pedro e a todos os sagrados ministros de perdoar os pecados dos homens, qualquer que seja a gravidade e o número, desde que estejam arrependidos e prometam sincera emenda.
            Em outro dia, Jesus ensinava o povo, falando da grande recompensa que receberiam aqueles que desprezassem o mundo e fizessem bom uso das riquezas, desapegando seus corações dos bens da terra. Pedro, que ainda não havia recebido as luzes do Espírito Santo e que mais do que os outros precisava ser instruído, com sua habitual franqueza se dirigiu a Jesus e lhe disse: “Mestre, nós abandonamos tudo e te seguimos: fizemos o que ordenaste; qual será, portanto, o prêmio que nos darás?” O Salvador agradou-se da pergunta de Pedro e, enquanto elogiou o desapego dos Apóstolos de todo Bem terreno, assegurou que a eles estava reservado um prêmio particular, porque, deixando seus bens, o haviam seguido. Disse: “Vós que me seguistes, sentareis em doze tronos majestosos e, companheiros na minha glória, julgareis comigo as doze tribos de Israel e com elas toda a humanidade.”
            Não muito depois, Jesus foi ao templo de Jerusalém e começou a conversar com Pedro sobre a estrutura daquele grandioso edifício e sobre a preciosidade das pedras que o adornavam. O divino Salvador então aproveitou a ocasião para predizer sua total ruína, dizendo: “Deste magnífico templo não ficará pedra sobre pedra.” Então Jesus, saindo da cidade e passando perto de uma figueira, que havia sido por ele amaldiçoada, Pedro, maravilhado, fez notar ao divino Mestre como aquela planta já havia ficado totalmente seca. Era uma prova da veracidade das promessas do Salvador. Assim, Jesus, para encorajar os Apóstolos a terem fé, respondeu que em virtude da fé obteriam tudo o que pedissem.
            Por outro lado, a virtude que Cristo queria profundamente enraizada no coração dos Apóstolos e especialmente de Pedro, era a humildade, e disso em muitas ocasiões deu-lhes luminosos exemplos, sobretudo na véspera de sua paixão. Era aquele o primeiro dia da Páscoa dos judeus, que deveria durar sete dias e que costumava ser chamada dos ázimos. Jesus enviou Pedro e João a Jerusalém, dizendo: “Ide e preparai as coisas necessárias para a Páscoa.” Eles disseram: “Onde quereis que as preparemos?” Jesus respondeu: “Entrando na cidade, encontrareis um homem que leva um cântaro de água; ide com ele, e ele vos mostrará um grande cenáculo arrumado, e ali preparai o que for necessário para esta necessidade.” Assim fizeram. Chegada a noite, que era a última da vida mortal do Salvador, querendo Ele instituir o Sacramento da Eucaristia, a precedeu com um ato que demonstra a pureza de alma com que cada cristão deve se aproximar deste sacramento do divino amor, e ao mesmo tempo serve para conter a soberba dos homens até o fim do mundo. Enquanto estava à mesa com seus discípulos, perto do fim da ceia, o Senhor levantou-se da mesa, tomou uma toalha, cingiu-a à cintura e derramou água em uma bacia, mostrando que queria lavar os pés dos Apóstolos, que sentados e maravilhados estavam olhando o que seu Mestre queria fazer.
            Jesus veio, portanto, com a água a Pedro e, ajoelhando-se diante dele, pede-lhe o pé para lavar. O bom Pedro, horrorizado ao ver o Filho de Deus naquele ato de pobre servo, lembrando-se ainda que pouco antes o havia visto resplandecente de luz, cheio de vergonha e quase chorando, disse: “Que fazes, Mestre, que fazes? Tu lavares-me os pés? Nunca! Eu nunca poderei permitir.” O Salvador lhe disse: “O que eu faço não compreendes agora, mas compreenderás depois: por isso, cuida bem de não me contradizer; se eu não te lavar os pés, não terás parte comigo,” ou seja, tu estarás privado de todo o meu bem e serás deserdado. A estas palavras, o bom Pedro ficou terrivelmente perturbado; de um lado, doía-lhe ter que ser separado de seu Mestre, não queria desobedecer-lhe nem entristecê-lo; por outro lado, parecia-lhe que não poderia permitir-lhe um serviço tão humilde. No entanto, quando compreendeu que o Salvador queria obediência, disse: “Ó Senhor, já que queres assim, não devo nem quero resistir à tua vontade; faze de mim tudo o que melhor te parecer; se não basta lavar-me os pés, lava-me também as mãos e a cabeça.”
            O Salvador, após ter cumprido aquele ato de profunda humildade, voltou-se para seus Apóstolos e disse-lhes: “Vistes o que fiz? Se eu, que sou vosso Mestre e Senhor, vos lavei os pés, vós deveis fazer o mesmo entre vós.” Estas palavras significam que um seguidor de Jesus Cristo nunca deve recusar-se a qualquer obra de caridade, mesmo que humilde, sempre que com ela se promova o bem do próximo e a glória de Deus.
            Durante esta ceia, ocorreu um fato que diz respeito de maneira particular a São Pedro e São João. Já se pôde observar como o divino Redentor tinha especial afeto por esses dois Apóstolos; a um pela sublime dignidade a que estava destinado, ao outro pela singular candura dos costumes. Eles, por sua vez, amavam seu Salvador com o mais intenso amor, e estavam unidos entre si pelos laços de uma amizade especialíssima, da qual o mesmo Redentor mostrou agrado, porque fundada na virtude.
            Enquanto, portanto, Jesus estava à mesa com seus Apóstolos, no meio da ceia previu que um deles o trairia. Ao ouvir isso, todos se espantaram, e cada um temendo por si, começaram a olhar uns para os outros, dizendo: “Sou eu, por acaso?” Pedro, sendo mais fervoroso no amor por seu Mestre, desejava saber quem era aquele traidor; queria interrogar Jesus, mas fazê-lo em segredo, para que ninguém dos presentes percebesse. Então, sem proferir palavra, fez um sinal a João para que fosse ele a fazer aquela pergunta. Este dileto apóstolo havia tomado lugar perto de Jesus, e sua posição era tal que apoiava a cabeça sobre o peito dele, enquanto a cabeça de Pedro apoiava sobre a de João. João satisfez o desejo de seu amigo com tanta discrição que nenhum dos Apóstolos pôde entender nem o sinal de Pedro, nem a interrogação de João, nem a resposta de Cristo; pois ninguém, naquele momento, soube que o traidor era Judas Iscariotes, exceto os dois apóstolos privilegiados.

CAPÍTULO VIII. Jesus prediz a negação de Pedro e lhe assegura que sua fé não falhará. — Pedro o segue no jardim de Getsêmani. — Corta a orelha de Malco. — Sua queda, seu arrependimento. Ano 33 de Jesus Cristo.
            Estava se aproximando o tempo da paixão do Salvador, e a fé dos Apóstolos deveria ser posta à prova. Após a última ceia, quando Jesus estava prestes a sair do cenáculo, dirigiu-se aos seus Apóstolos e disse: “Esta noite é muito dolorosa para mim e de grande perigo para todos vocês: acontecerão comigo tais coisas que vocês ficarão escandalizados; e não parecerá mais verdadeiro aquilo que vocês conheceram e que agora acreditam em mim. Portanto, eu lhes digo que nesta noite todos me voltarão as costas.” Pedro, seguindo seu habitual ardor, foi o primeiro a responder: “Como? Nós todos irão voltar-lhe as costas? Mesmo que todos esses sejam tão fracos a ponto de abandoná-lo, eu certamente nunca o farei; pelo contrário, estou pronto para morrer contigo.” “Ah, Simão, Simão,” respondeu Jesus Cristo. “Satanás armou contra vós uma terrível tentação, e vos sacudirá como se faz com o trigo na peneira; e tu mesmo nesta noite, antes que o galo cante duas vezes, me negarás três vezes.” Pedro falava guiado por um caloroso sentimento de afeto e não considerava que sem a ajuda divina o homem cai em deploráveis excessos; por isso ele renovou as mesmas promessas dizendo: “Não, certamente; pode ser que todos te neguem, mas eu nunca!” Jesus, que conhecia bem essa presunção de Pedro, vinda de um ardor inconsiderado e de uma grande ternura por ele, teve compaixão e lhe disse: “Certamente cairás, Pedro, como te disse; no entanto, não percas a coragem. Eu orei por ti para que a tua fé não falhe; então, quando estiveres arrependido de tua queda, confirma teus irmãos: Rogavi pro te, ut non deficiat fides tua, et tu aliquando conversus, confirma fratres tuos.” Com essas palavras, o divino Salvador prometeu uma assistência particular ao Chefe de sua Igreja, para que sua fé nunca falhasse, ou seja, que como Mestre universal e nas coisas que dizem respeito à religião e à moral, ensinou e sempre ensinará a verdade, embora na vida privada ele possa cair em culpa, como de fato aconteceu a São Pedro.
            Enquanto isso, Jesus Cristo, após aquela memorável Ceia Eucarística, já avançada a noite, saiu do cenáculo com os onze Apóstolos e dirigiu-se ao monte das Oliveiras. Chegando lá, levou consigo Pedro, Tiago e João, e retirou-se para uma parte daquele monte chamada Getsêmani, onde costumava ir para orar. Jesus afastou-se ainda dos três Apóstolos à distância de um tiro de pedra e começou a orar. Antes, porém, no ato de se separar deles, avisou-os dizendo: “Vigiai e orai, porque a tentação está próxima.” Mas Pedro e seus companheiros, tanto pela hora tardia quanto pelo cansaço, sentaram-se para descansar e adormeceram.
            Esse foi um novo erro de Pedro, que deveria seguir o preceito do Salvador, vigiando e orando. Nesse ínterim, chegaram os guardas ao jardim para capturar Jesus e levá-lo à prisão. Pedro, vendo-os de relance, correu ao seu encontro para afastá-los; e vendo que eles resistiam, pôs a mão na espada que tinha consigo e, desferindo um golpe ao acaso, cortou a orelha de um servo do sumo sacerdote Caifás, chamado Malco.
            Não eram essas as provas de fidelidade que Jesus esperava de Pedro, nem nunca lhe havia ensinado a opor força a força. Foi isso um efeito de seu vivo amor ao divino Salvador, mas fora de propósito; por isso Jesus disse a Pedro: “Guarda tua espada na bainha, porque quem fere com a espada, pela espada perecerá.” Então, colocando em prática aquilo que havia ensinado tantas vezes em suas pregações, ou seja, fazer o bem a quem nos faz mal, pegou a orelha cortada e, com suma bondade, a recolocou com suas santas mãos no lugar do corte, de modo que ficou instantaneamente curada.
            Pedro e os outros Apóstolos, percebendo que toda resistência era inútil e que, na verdade, correriam perigo para si mesmos, deixaram de lado as promessas feitas pouco antes ao Mestre, deram-se à fuga e abandonaram Jesus, deixando-o sozinho nas mãos de seus algozes.
            Pedro, por outro lado, envergonhando-se de sua covardia, confuso e irresoluto, não sabia para onde ir nem onde ficar; por isso, de longe, seguiu Jesus até o pátio do palácio de Caifás, chefe de todos os sacerdotes judeus; e, por recomendação de um conhecido, conseguiu também entrar. Jesus estava lá dentro sob o poder dos Escribas e dos Fariseus, que o haviam acusado naquele tribunal e procuravam fazê-lo condenar com alguma aparência de justiça.
            Entrando apenas naquele lugar, nosso Apóstolo encontrou uma turba de guardas que estavam se aquecendo ao fogo ali aceso, e se pôs também com eles. À luz das chamas, a serva que por graça o deixara entrar, vendo-o pensativo e melancólico, começou a suspeitar que ele era um seguidor de Jesus. “Ei,” disse-lhe, “pareces um companheiro do Nazareno, não é verdade?” O Apóstolo, ao se ver descoberto diante de tanta gente, ficou atônito; e temendo pela prisão, talvez até pela morte, perdido todo o ânimo, respondeu: “Mulher, tu te enganas; eu não sou um deles; nem conheço esse Jesus de quem falas.” Dito isso, o galo cantou pela primeira vez; e Pedro não prestou atenção.
            Depois de ter permanecido algum momento na companhia daqueles guardas, dirigiu-se ao vestíbulo. Enquanto retornava perto do fogo, outra serva, apontando para Pedro, também começou a dizer aos que estavam ao redor: “Este também estava com Jesus Nazareno.” O pobre discípulo, a essas palavras cada vez mais apavorado, quase fora de si, respondeu que não o conhecia nem o havia visto. Pedro falava assim, mas a consciência o reprimia e experimentava os mais agudos remorsos; por isso, todo pensativo, com o olhar turvo e passo incerto, entrava e saía sem saber o que fazer. Mas um abismo leva a outro abismo.
            Após alguns instantes, um parente daquele Malco a quem Pedro havia cortado a orelha o viu e, fixando-o bem no rosto, disse: “Certamente este é um dos companheiros do Galileu! Tu és certamente, teu sotaque te trai. E então, não te vi eu no jardim com ele, quando cortaste a orelha de Malco?” Pedro, vendo-se em tão má situação, não soube encontrar outro escape senão jurar e perjurar que não o conhecia. Não havia ainda proferido bem a última sílaba, quando o galo cantou pela segunda vez.
            Quando o galo cantou pela primeira vez, Pedro não prestou atenção; mas nesta segunda vez, presta atenção ao número de suas negações, recorda a predição de Jesus Cristo e a vê precisamente cumprida. A essa lembrança, ele se perturba, sente o coração todo amargurado e, voltando o olhar para o bom Jesus, seu olhar se encontra com o dele. Este olhar de Cristo foi um ato mudo, mas ao mesmo tempo um golpe de graça, que, como uma flecha agudíssima, foi feri-lo no coração, não para lhe dar a morte, mas para restituir-lhe a vida[10].
            Aquele gesto de bondade e de misericórdia fez com que Pedro, sacudido como por um profundo sono, sentisse o coração se encher e fosse levado às lágrimas pelo dor. Para dar livre curso ao pranto, saiu daquele lugar maldito e foi chorar seu erro, invocando o perdão da divina misericórdia. O Evangelho nos diz apenas que: et egressus Petrus flevit amare: Pedro saiu e chorou amargamente. Deste erro, o santo Apóstolo carregou remorso toda a vida, e pode-se dizer que desde aquela hora até a morte não fez outra coisa senão chorar seu pecado, fazendo uma dura penitência. Diz-se que ele sempre tinha ao lado um pano para enxugar as lágrimas; e que toda vez que ouvia o galo cantar, estremecia e tremia, relembrando o doloroso momento de sua queda. Aliás, as lágrimas que derramava continuamente lhe fizeram dois sulcos nas faces. Bem-aventurado Pedro que tão cedo abandonou a culpa e fez tão longa e dura penitência! Bem-aventurado também aquele cristão que, após ter a desgraça de seguir Pedro na culpa, o segue também no arrependimento.

CAPÍTULO IX. Pedro no sepulcro do Salvador. — Jesus lhe aparece. — À beira do lago de Tiberíades dá três distintos sinais de amor para com Jesus que o constitui efetivamente chefe e pastor supremo da Igreja.
            Enquanto o divino Salvador era arrastado nos vários Tribunais e depois conduzido ao Calvário para morrer na Cruz, Pedro não o perdeu de vista, porque desejava ver onde iria acabar aquele lutuoso espetáculo.
            E embora o Evangelho não o diga, há razões para crer que ele se encontrou na companhia de seu amigo João aos pés da cruz. Mas após a morte do Salvador, o bom Pedro, todo humilhado pela maneira indigna com que havia correspondido ao grande amor de Jesus, pensava continuamente nele, oprimido pela mais amarga dor e arrependimento.
            Contudo, essa sua humilhação era precisamente a que atraía sobre Pedro a benignidade de Jesus. Após sua ressurreição, Jesus apareceu primeiramente a Maria Madalena e a outras piedosas mulheres, porque elas sozinhas foram ao sepulcro para embalsamá-lo. Depois de se manifestar a elas, acrescentou: “Ide imediatamente, relatai a meus irmãos e particularmente a Pedro que me viram vivo.” Pedro, que já se acreditava talvez esquecido pelo Mestre, ao ouvir de Jesus anunciar a ele nomeadamente a notícia da ressurreição, desatou numa torrente de lágrimas e não pôde mais conter a alegria no coração.
            Transportado pela alegria e pelo desejo de ver o Mestre ressuscitado, ele, na companhia do amigo João, começou a correr rapidamente pela montanha do Calvário. O ânimo deles, por outro lado, estava então agitado por dois sentimentos contrários: pela esperança de ver Jesus ressuscitado e pelo temor de que o relato feito a eles pelas piedosas mulheres não fosse senão efeito de sua fantasia, pois antes não compreendiam como ele deveria realmente ressuscitar. Corriam, entretanto, ambos juntos; mas João, sendo mais jovem e mais ágil, chegou ao sepulcro antes de Pedro. No entanto, não teve coragem de entrar e, inclinando-se um pouco à entrada, viu as faixas em que o corpo de Jesus havia sido envolto. Pouco depois, também chegou Pedro, que, fosse pela maior autoridade que sabia ter, fosse porque era de um caráter mais resoluto e pronto, sem parar do lado de fora, entrou imediatamente no sepulcro, examinou-o em todas as suas partes, pesquisando e apalpando por toda parte, e não viu outra coisa senão as faixas e o sudário enrolado à parte. Seguindo o exemplo de Pedro, entrou também João, e ambos eram da opinião de que o corpo de Jesus havia sido tirado do sepulcro e roubado. Pois, embora desejassem ardentemente que o divino Mestre tivesse ressuscitado, ainda assim não acreditavam nesta doce verdade. Os dois Apóstolos, após terem feito no sepulcro tais minuciosas observações, saíram e retornaram de onde haviam partido. Mas naquele mesmo dia, Jesus quis visitar Pedro pessoalmente para consolá-lo com sua presença e, o que é mais, apareceu precisamente a Pedro antes de todos os outros Apóstolos.
            Várias vezes o divino Salvador se manifestou a seus Apóstolos após a ressurreição para instruí-los e confirmá-los na fé.
            Um dia, Pedro, Tiago e João com alguns outros discípulos, tanto para evitar o ócio, quanto para ganhar algo para comer, foram pescar no lago de Tiberíades. Subiram todos em um barco, afastaram-no um pouco da costa e lançaram suas redes. Trabalharam a noite toda lançando as redes ora para um lado, ora para o outro, mas tudo em vão; já clareava o dia e nada haviam pescado. Então apareceu o Senhor na praia, onde, sem se fazer reconhecer, como se quisesse comprar peixes, disse-lhes: “Moços, tendes algo para comer?” “Pueri, numquid pulmentarium habetis?” “Não,” responderam. “Trabalhamos a noite toda e não pegamos nada.” Jesus acrescentou: “Lançai a rede à direita do barco e pegareis.” Fossem movidos por um impulso interior, ou foi para seguir o conselho d’Aquele que aos seus olhos parecia um experiente pescador, lançaram a rede e pouco depois a encontraram cheia de tantos e tão grandes peixes que mal puderam puxá-la para fora. A essa pesca inesperada, João se voltou para aquele que da praia havia dado aquele conselho e, reconhecendo que era Jesus, disse imediatamente a Pedro: “É o Senhor.” Pedro, ouvindo essas palavras, transportado pelo habitual fervor, sem mais consideração se lançou na água e nadou até a margem para ser o primeiro a saudar o Divino Mestre. Enquanto Pedro se detinha familiarmente com Jesus, os outros Apóstolos também se aproximaram arrastando a rede.
            Ao chegarem, encontraram o fogo aceso pela própria mão do Divino Salvador e pão preparado com peixe que estava assando. Os Apóstolos, movidos pelo desejo de ver o Senhor, deixaram todos os peixes no barco, de modo que o Salvador lhes disse: “Tragam aqui aqueles peixes que vocês pegaram agora.” Pedro, que em tudo era o mais pronto e obediente, ao ouvir aquela ordem, subiu imediatamente no barco e sozinho puxou para a terra a rede cheia de 153 grandes peixes. O texto sagrado nos avisa que foi um milagre o fato de a rede não se ter rasgado, embora houvesse tantos peixes e de tal tamanho. Os santos Padres reconhecem neste fato o poder divino do chefe da Igreja, que, assistido de modo particular pelo Espírito Santo, guia a mística nave cheia de almas a serem conduzidas aos pés de Jesus Cristo, que as redimiu e as aguarda no céu.
            Enquanto isso, Jesus havia preparado a refeição; e convidando os Apóstolos a se sentarem na areia, distribuiu a cada um o pão e o peixe que havia assado. Terminada a refeição, Jesus Cristo começou novamente a conversar com São Pedro e a interrogá-lo na frente dos companheiros da seguinte maneira: “Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?” “Sim,” respondeu Pedro, “tu sabes que eu te amo.” Jesus lhe disse: “Apascenta os meus cordeiros.” Então lhe perguntou mais uma vez: “Simão, filho de João, tu me amas?” “Senhor,” replicou Pedro, “tu bem sabes que eu te amo.” Jesus repetiu: “Apascenta os meus cordeiros.” O Senhor acrescentou: “Simão, filho de João, tu me amas?” Pedro, ao ver-se interrogado três vezes sobre o mesmo assunto, ficou profundamente perturbado. Naquele momento, recordou-se das promessas já feitas anteriormente, e que havia violado; e por isso temia que Jesus Cristo visse em seu coração um amor muito mais escasso do que aquele que achava ter, e quisesse prever outras negações. Portanto, desconfiando de suas próprias forças, Pedro com grande humildade respondeu: “Senhor, tu sabes tudo, e por isso sabes que eu te amo.” Essas palavras significavam que Pedro estava seguro naquele momento da sinceridade de seus afetos, mas não tanto em relação ao futuro. Jesus, que conhecia seu desejo de amá-lo e a sinceridade de seus afetos, o confortou dizendo: “Apascenta as minhas ovelhas.” Com essas palavras, o Filho de Deus cumpria a promessa feita a São Pedro de constituí-lo príncipe dos Apóstolos e pedra fundamental da Igreja. De fato, os cordeiros aqui significam todos os fiéis cristãos, espalhados nas várias partes do mundo, que devem estar submetidos ao Chefe da Igreja, assim como fazem os cordeiros ao seu pastor. As ovelhas, por sua vez, significam os bispos e outros ministros sagrados, que dão sim à pastagem da doutrina de Jesus Cristo aos fiéis cristãos, mas sempre de acordo, sempre unidos e submetidos ao supremo pastor da Igreja, que é o Papa Romano, o Vigário de Jesus Cristo na terra.
            Apoiado nessas palavras de Jesus Cristo, os católicos de todos os tempos sempre acreditaram como verdade de fé que São Pedro foi constituído por Jesus Cristo seu Vigário na terra e chefe visível de toda a Igreja, e que recebeu dele a plenitude de autoridade sobre os outros apóstolos e sobre todos os fiéis. Essa autoridade passou aos Papas Romanos, seus sucessores. Isso foi definido como dogma de fé no concílio de Florença no ano de 1439, com as seguintes palavras: “Nós definimos que a santa sede Apostólica e o Papa Romano é o sucessor do príncipe dos Apóstolos, o verdadeiro Vigário de Cristo e o chefe de toda a Igreja, o mestre e pai de todos os cristãos, e que a ele, na pessoa do bem-aventurado Pedro, foi dado por nosso Senhor Jesus Cristo pleno poder de apascentar, reger e governar a Igreja Universal.”
            Notam ainda os santos Padres que o divino Redentor quis que Pedro dissesse três vezes publicamente que o amava, quase para reparar o escândalo que havia dado negando-o três vezes.

CAPÍTULO X. Infalibilidade de São Pedro e de seus sucessores
            O divino Salvador deu ao Apóstolo Pedro o supremo poder na Igreja, ou seja, o primado de honra e de jurisdição, que veremos em breve sendo exercido por ele. Mas, para que, como chefe da Igreja, ele pudesse exercer convenientemente essa suprema autoridade, Jesus Cristo ainda o dotou de uma prerrogativa singular, ou seja, da infalibilidade. Sendo esta uma das verdades mais importantes, creio ser bom acrescentar algo em confirmação e declaração da doutrina que em todos os tempos a Igreja católica professou sobre este dogma.
            Antes de tudo, é necessário entender o que se entende por infalibilidade. Por ela se entende que o Papa, quando fala ex cathedra, ou seja, cumprindo o ofício de Pastor ou de Mestre de todos os cristãos, e julga as coisas referentes à fé ou aos costumes, não pode, pela assistência divina, cair em erro; portanto, nem se enganar nem enganar os outros. Note-se, portanto, que a infalibilidade não se estende a todas as ações, a todas as palavras do Papa; não lhe compete como homem privado, mas apenas como Chefe, Pastor, Mestre da Igreja, e quando define alguma doutrina referente à fé ou à moral e pretende obrigar todos os fiéis. Além disso, não se deve confundir a infalibilidade com a impecabilidade; de fato, Jesus Cristo prometeu a Pedro e a seus sucessores a primeira ao instruir os homens, mas não a segunda, na qual não quis privilegiá-los.
            Dito isso, afirmamos que uma das verdades mais bem provadas é precisamente a da infalibilidade doutrinal, concedida por Deus ao Chefe da Igreja. As palavras de Jesus Cristo não podem falhar, porque são palavras de Deus. Agora, Jesus Cristo disse a Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não poderão vencê-la. Eu te darei as chaves do reino dos Céus, e tudo o que tiveres ligado na terra será ligado também nos céus, e tudo o que tiveres solto na terra será solto também nos céus.”
            Segundo essas palavras, as portas[11], ou seja, as potências infernais, entre as quais ocupa o primeiro lugar o erro e a mentira, nunca poderão prevalecer nem contra a Pedra, nem contra a Igreja que sobre ela está fundada. Mas se Pedro, como Chefe da Igreja, errasse em coisas de fé e de costume, seria como se faltasse o fundamento. Faltando este, cairia o edifício, ou seja, a própria Igreja, e assim o fundamento e a construção deveriam ser considerados vencidos e derrubados pelas portas infernais. Agora, após as palavras acima mencionadas, isso não é possível, exceto se se queira blasfemar, afirmando que foram falaciosas as promessas do divino Fundador: coisa horrível não só para os católicos, mas para os próprios cismáticos e hereges.
            Além disso, Jesus Cristo assegurou que tudo o que Pedro, como Chefe da Igreja, ligasse ou deligasse, seria sancionado no céu. Portanto, assim como no céu não pode ser aprovado o erro, deve-se necessariamente admitir que o Chefe da Igreja seja infalível em seus julgamentos, em suas decisões emanadas na qualidade de Vigário de Jesus Cristo, de modo que ele, como mestre e juiz de todos os fiéis, não aprove e não condene senão aquilo que pode ser igualmente aprovado ou condenado no céu; e isso leva à infalibilidade.
            Isto se torna ainda mais manifesto nas palavras que Jesus Cristo dirigiu a Pedro quando lhe ordenou que confirmasse na fé os outros Apóstolos: “Simão, Simão,” disse-lhe, “eis que Satanás pediu para vos peneirar como se faz com o trigo; mas eu roguei por ti, para que a tua fé não falhe; e tu, quando tiveres voltado, confirma os teus irmãos.” Jesus Cristo, portanto, ora para que a fé do Papa não falhe; agora, é impossível que a oração do Filho de Deus não seja atendida. Além disso: Jesus ordenou a Pedro que confirmasse na fé os outros pastores e a estes que o escutassem; mas se não lhe tivesse comunicado também a infalibilidade doutrinal, teria colocado em perigo a possibilidade de enganá-los e arrastá-los ao abismo do erro. Pode-se acreditar que Jesus Cristo quisesse deixar a Igreja e seu Chefe em tão grande perigo?
            Finalmente, o divino Redentor, após sua Ressurreição, estabeleceu Pedro como Pastor supremo de seu rebanho, ou seja, de sua Igreja, confiando-lhe o cuidado dos cordeiros e das ovelhas: “Apascenta os meus cordeiros,” disse-lhe, “apascenta as minhas ovelhas.” Instrui, ensina uns e outros guiando-os às pastagens de vida eterna. Mas se Pedro errasse em matéria de doutrina, ou por ignorância ou por malícia, então ele seria como um pastor que conduz os cordeiros e as ovelhas a pastagens envenenadas, que em vez de vida lhes daria a morte. Agora, pode-se supor que Jesus Cristo, que para salvar suas ovelhinhas deu tudo de si, não quisesse estabelecer-lhes um pastor semelhante?
            Assim, segundo o Evangelho, o Apóstolo Pedro teve o dom da infalibilidade:
            I. Porque é Pedra fundamental da Igreja de Jesus Cristo;
            II. Porque seus julgamentos devem ser confirmados também no céu;
            III. Porque Jesus Cristo orou por sua infalibilidade, e sua oração não pode falhar;
            IV. Porque deve confirmar na fé, apascentar e governar não só os simples fiéis, mas os próprios pastores.
            É útil agora acrescentar que, juntamente com a autoridade suprema sobre toda a Igreja, o dom da infalibilidade passou de Pedro a seus sucessores, ou seja, aos Pontífices Romanos.
            Esta também é uma verdade de fé.
            Jesus Cristo, como vimos, deu mais amplo poder e dotou do dom da infalibilidade São Pedro, a fim de prover à unidade e à integridade da fé em seus seguidores. “Entre doze, um é eleito,” reflete o exímio doutor São Jerônimo, “para que, estabelecido um Chefe, seja retirada toda a ocasião de cisma: Inter duodecim unus eligitur, ut, capite constituto, schismatis tolleretur occasio.[12]” “O primado é conferido a Pedro,” escreveu São Cipriano, “para que uma se demonstre a Igreja, e uma a cátedra da verdade.[13]
            Dito isso, afirmamos: a necessidade de unidade e de verdade não existia apenas na época dos Apóstolos, mas também nos séculos seguintes; na verdade, essa necessidade aumentou ainda mais com a expansão da própria Igreja e com a ausência dos Apóstolos, privilegiados por Jesus Cristo com dons extraordinários para a promulgação do Evangelho. Portanto, segundo a intenção do divino Salvador, a autoridade e a infalibilidade do primeiro Papa não deveriam cessar com sua morte, mas se transmitir a outro, perpetuando-se assim na Igreja.
            Essa transmissão aparece claríssima, sobretudo nas palavras de Jesus Cristo a Pedro, com as quais o estabelecia como base, fundamento da Igreja. É manifesto que o fundamento deve durar tanto quanto o edifício; sendo impossível esse sem aquele. Mas o edifício, que é a Igreja, deve durar até o fim do mundo, tendo prometido o mesmo Jesus estar com sua Igreja até a consumação dos séculos: “Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação do mundo.” Portanto, até a consumação dos séculos deve durar o fundamento que é Pedro; mas como Pedro morreu, a autoridade e a infalibilidade devem ainda subsistir em alguém. Elas, de fato, subsistem em seus sucessores na Sé de Roma, ou seja, subsistem nos Pontífices Romanos. Portanto, pode-se dizer que Pedro vive ainda e julga em seus sucessores. Assim, de fato, se expressaram os legados da Sé Apostólica, com o aplauso do Concílio Geral de Éfeso no ano 431: “Quem até este tempo, e sempre em seus sucessores, vive e exerce o julgamento.”
            Por essa razão, desde os primeiros séculos da Igreja, surgindo questões religiosas, recorria-se à Igreja de Roma, e suas decisões e seus julgamentos eram considerados como regra de fé. Basta para toda prova as palavras de Santo Irineu, Bispo de Lion, martirizado no ano 202. “Para confundir,” ele escreveu, “todos aqueles que de qualquer modo, por vaidade, por cegueira ou por malícia se reúnem em conciliábulos, nos bastará indicar a tradição e a fé que a maior e mais antiga de todas as igrejas, a Igreja conhecida em todo o mundo, a Igreja Romana, fundada e constituída pelos gloriosíssimos Apóstolos Pedro e Paulo, anunciou aos homens e transmitiu até nós por meio da sucessão de seus bispos. De fato, a esta Igreja, devido ao seu preeminente principado, deve recorrer toda Igreja, ou seja, todos os fiéis de qualquer parte que sejam.[14]
            Quanto à infalibilidade do Papa, alguns hereges, entre os quais os protestantes e os chamados velhos católicos, a negam dizendo que somente Deus é infalível.
            Nós não negamos que só Deus é infalível por natureza; mas dizemos que ele pode conceder o dom da infalibilidade também a um homem, assistindo-o de modo que não se deixe enganar. Só Deus pode fazer verdadeiros milagres; e, no entanto, sabemos pela própria Sagrada Escritura que muitos homens os fizeram, e de forma impressionante. Eles os realizaram não por virtude própria, mas por virtude divina a eles comunicada. Assim, o Papa não é infalível por sua natureza, mas por virtude de Jesus Cristo que assim quis para o bem da Igreja.
            Além disso, os protestantes e seus seguidores, que ainda acreditam no Evangelho, não devem fazer tanto alarde porque nós católicos consideramos infalível um homem, quando ele age como nosso supremo e universal mestre; de fato, eles ainda conosco, sem acreditar que estão fazendo injustiça a Deus, consideram infalíveis pelo menos quatro, que são os Evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João; na verdade, consideram infalíveis todos os escritores sagrados tanto do Novo quanto do Velho Testamento. Agora, se se pode, na verdade se deve, crer na infalibilidade daqueles homens que nos transmitiram por escrito a palavra de Deus, o que pode nos impedir de crer na infalibilidade de outro homem destinado a conservá-la intacta e explicá-la em nome do próprio Deus?
            A própria razão nos sugere que era coisa conveniente que Jesus Cristo concedesse o dom da infalibilidade ao seu Vigário, ao Mestre de todos os fiéis. E mais! Se um pai sábio e amoroso tem filhos a serem instruídos, não é verdade que escolhe o mestre mais erudito e mais sábio que puder encontrar? Não é verdade ainda que, se esse pai pudesse dar a esse mestre o dom de nunca enganar o filho, nem por ignorância nem por malícia, ele lhe comunicaria de bom coração? Portanto, todos os homens, especialmente os cristãos, são filhos de Deus; o Papa é o grande Mestre que ele estabeleceu. Ora, Deus poderia conferir-lhe o dom de nunca cair em erro ao instruí-los. Quem, portanto, pode razoavelmente admitir que este ótimo Pai não tenha feito o que faríamos nós miseráveis?
            Em todos os séculos, todos os verdadeiros católicos constantemente acreditaram na infalibilidade do sucessor de Pedro. Mas, nestes últimos tempos, surgiram alguns hereges para contestá-la; na verdade, pela falta de uma definição expressa, alguns católicos mal informados também aproveitaram a oportunidade para colocá-la em dúvida. Portanto, em 18 de julho de 1870, o Concílio Vaticano, composto por mais de 700 Bispos presididos pelo imortal Pio IX, para prevenir os fiéis de todo erro, definiu solenemente a infalibilidade pontifícia como dogma de fé com estas palavras: “Nós definimos que o Pontífice Romano, quando fala ex cathedra, ou seja, cumprindo o ofício de Pastor e Mestre de todos os cristãos, e por sua suprema autoridade apostólica define alguma doutrina da fé e dos costumes a ser mantida por toda a Igreja, devido à assistência divina a ele prometida na pessoa do Bem-aventurado Pedro, goza da mesma infalibilidade da qual o divino Redentor quis dotar sua Igreja ao definir as doutrinas da fé e dos costumes. Portanto, essas definições do Pontífice Romano são por si mesmas, e não pelo consenso da Igreja, irrefutáveis. Se alguém ousar contradizer a esta nossa definição, seja excomungado.”
            Após esta definição, quem negasse a infalibilidade pontifícia cometeria grave desobediência à Igreja, e se fosse obstinado em seu erro, ele não pertenceria mais à Igreja de Jesus Cristo, e nós deveríamos evitá-lo como herege. “Quem não escuta a Igreja,” diz o Evangelho, “seja para ti como um pagão e um publicano,” isto é, seja excomungado.

CAPÍTULO XI. Jesus prediz a São Pedro a morte de cruz. — Promete assistência à Igreja até o fim do mundo. — Retorno dos Apóstolos ao cenáculo. Ano 33 de Jesus Cristo.
            Depois que São Pedro compreendeu que as repetidas perguntas do Salvador não eram um presságio de queda, mas eram a confirmação da alta autoridade que lhe havia sido prometida, ele se consolou. E como Jesus sabia que Pedro queria muito glorificar seu divino Mestre, quis predizer-lhe o tipo de suplício com o qual terminaria sua vida.
            Portanto, imediatamente após as três declarações de amor que lhe fizera, começou a falar-lhe assim: “Em verdade, em verdade, te digo, quando eras mais jovem, te vestias por ti mesmo e ias aonde querias; mas quando fores velho, outro, isto é, o carrasco, te cingirá, ou seja, te amarrará, e estenderás as mãos, e ele te levará para onde não queres.” Com essas palavras, diz o Evangelho, vinha a significar com qual morte Pedro glorificaria a Deus, isto é, sendo amarrado a uma cruz e coroado de martírio. Pedro, vendo que Jesus lhe dava uma autoridade suprema e a ele somente previa o martírio, mostrou-se ansioso para perguntar o que seria de seu amigo João e disse: “E deste, o que será?” Ao que Jesus respondeu: “Que te importa a ti este? Se eu quiser que ele permaneça até a minha vinda, a ti que importa? Tu faze o que te digo e segue-me.” Então Pedro adorou os decretos do Salvador e não ousou fazer mais perguntas a esse respeito.
            Jesus Cristo apareceu muitas vezes a São Pedro e aos outros Apóstolos; e um dia se manifestou sobre um monte onde estavam presentes mais de 500 discípulos. Em outra ocasião, depois de lhes dar a conhecer o supremo e absoluto poder que ele tinha no céu e na terra, conferiu a São Pedro e a todos os Apóstolos a faculdade de perdoar os pecados, dizendo: “Como o meu Pai me enviou, assim eu vos envio. Recebei o Espírito Santo: serão perdoados os pecados a quem os perdoardes, e serão retidos a quem os retiverdes. Quorum remiseritis peccata, remittuntur eis; quorum retinueritis, retenta sunt. Ide, pregai o Evangelho a todas as criaturas; ensinai-as e batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Quem crer e receber o batismo será salvo, quem não crer será condenado. Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, que no presente não podeis compreender. Mas o Espírito Santo, que enviarei sobre vós dentro de poucos dias, vos ensinará todas as coisas. Não vos deixeis abater. Vós sereis levados diante dos tribunais, diante dos magistrados e dos mesmos reis. Não vos preocupeis com o que deveis responder; o Espírito da verdade, que o Pai celeste vos enviará em meu nome, vos porá as palavras na boca e vos sugerirá todas as coisas. Tu, porém, Pedro, e todos vós, meus Apóstolos, não penseis que vos deixo órfãos; não, eu estarei convosco todos os dias até o fim dos séculos: Et ecce ego vobiscum sum omnibus diebus usque ad consummationem saeculi.
            Disse ainda muitas coisas aos seus Apóstolos; depois, no quadragésimo dia após sua ressurreição, recomendando-lhes que não partissem de Jerusalém até a vinda do Espírito Santo, os conduziu ao monte das Oliveiras. Lá os abençoou e começou a se elevar. Nesse momento apareceu uma nuvem resplandecente que o cercou e o retirou aos seus olhares.
            Os Apóstolos ainda estavam com os olhos voltados para o céu, como quem é arrebatado em doce êxtase, quando dois Anjos em formas humanas, magnificamente vestidos, se aproximaram e disseram: “Homens da Galileia, por que estais aqui olhando para o céu? Esse Jesus, que agora se afastou de vós e subiu ao céu, voltará da mesma maneira como o vistes subir.” Dito isso, desapareceram; e aquela devota comitiva partiu do monte das Oliveiras e retornou a Jerusalém para esperar a vinda do Espírito Santo, conforme a ordem do divino Salvador.

CAPÍTULO XII. São Pedro substitui Judas. — Vinda do Espírito Santo. — Milagre das línguas. Ano 33 de Jesus Cristo.
            Até agora consideramos Pedro apenas em sua vida privada; mas em breve o veremos percorrer uma carreira muito mais gloriosa, depois que receber os dons do Espírito Santo. Agora observemos como ele começou a exercer a autoridade de Sumo Pontífice, da qual havia sido investido por Jesus Cristo.
            Após a ascensão do divino Mestre, São Pedro, os Apóstolos e muitos outros discípulos se retiraram ao cenáculo, que era uma habitação situada na parte mais elevada de Jerusalém, chamada monte Sião. Aqui, em número de cerca de 120 pessoas, com Maria Mãe de Jesus, passavam os dias em oração, aguardando a vinda do Espírito Santo.
            Um dia, enquanto estavam envolvidos nas funções sagradas, Pedro levantou-se no meio deles e, pedindo silêncio com a mão, disse: “Irmãos, é necessário que se cumpra o que o Espírito Santo predisse pela boca do profeta Davi sobre Judas, que foi guia daqueles que prenderam o Divino Mestre. Ele, assim como vós, foi eleito para o mesmo ministério; mas prevaricou, e com o preço de suas iniquidades comprou um campo; e ele se enforcou, e se rasgando pelo meio, derramou as vísceras sobre a terra. O fato se tornou público a todos os habitantes de Jerusalém, e aquele campo recebeu o nome de Acéldama, isto é, campo de sangue. Ora, dele foi escrito no livro dos Salmos: ‘Que sua morada se torne deserta, e que não haja quem habite nela; e, em lugar dele, outro lhe suceda no episcopado[15].’ Portanto, é necessário que entre aqueles que estiveram conosco durante todo o tempo em que Jesus Cristo habitou conosco, começando pelo batismo de João até aquele dia em que, partindo de nós, subiu ao céu, é necessário que entre estes se escolha um, que seja conosco testemunha de sua ressurreição para a obra a que somos enviados.”
            Às palavras de Pedro todos silenciaram, pois todos o consideravam como chefe da Igreja e eleito por Jesus Cristo para fazer suas vezes na terra. Portanto, foram apresentados dois, a saber, José, chamado também Barsabás (que tinha por sobrenome Justo), e Matias. Reconhecendo em ambos igual mérito e igual virtude, os sagrados eleitores entregaram a escolha a Deus. Prostrados, então, começaram a orar assim: “Senhor, tu que conheces o coração de todos, mostra-nos qual dos dois escolheste para ocupar o lugar de Judas, o prevaricador.” Nesse caso, foi julgado bem usar com a oração também a sorte para conhecer a vontade de Deus. Atualmente a Igreja não mais utiliza esse meio, tendo muitas outras maneiras de reconhecer aqueles que são chamados ao ministério do altar. Lançaram, portanto, a sorte e esta caiu sobre Matias, que foi contado com os outros onze Apóstolos, e assim preencheu o décimo segundo lugar que havia permanecido vago.
            Este é o primeiro ato de autoridade Pontifícia que São Pedro exerceu; autoridade não apenas de honra, mas de jurisdição, como exerceram em todo tempo os Papas, seus sucessores.
            Consideramos em Pedro uma fé viva, humildade profunda, obediência pronta, caridade fervente e generosa; mas essas belas qualidades ainda estavam bem longe de colocá-lo em condições de exercer o alto ministério a que estava destinado. Ele deveria vencer a obstinação dos Judeus, destruir a idolatria, converter homens entregues a todos os vícios, e estabelecer em toda a terra a fé num Deus Crucificado. O conferimento dessa força, da qual Pedro necessitava para uma tão grande empreitada, estava reservado a uma graça especial a ser infundida por meio dos dons do Espírito Santo, que deveria descer sobre ele, para iluminar-lhe a mente e inflamar-lhe o coração com um prodígio inaudito.
            Esse acontecimento miraculoso é relatado nos Livros Sagrados da seguinte forma: era o dia de Pentecostes, isto é, o quinquagésimo após a ressurreição de Jesus Cristo, o décimo desde que Pedro estava no cenáculo em oração com os outros discípulos, quando de repente, à terceira hora, cerca das nove da manhã, ouviu-se no monte Sião um grande estrondo semelhante ao barulho do trovão acompanhado de um vento forte. Esse vento investiu na casa onde estavam os discípulos, que ficou cheia por todos os lados. Enquanto cada um refletia sobre a causa daquele estrondo, apareceram chamas que, a modo de línguas de fogo, iam pousar sobre a cabeça de cada um dos presentes. Eram aquelas chamas símbolo da coragem e da caridade inflamada com que os Apóstolos dariam início à pregação do Evangelho.
            Nesse momento, Pedro tornou-se um homem novo; encontrou-se iluminado a tal ponto que conhecia os mais altos mistérios, e experimentou em si mesmo uma coragem e uma força tais que as maiores empreitadas lhe pareciam nada.
            Naquele dia os Judeus celebravam uma grande festa em Jerusalém, e muitos haviam acorrido de várias partes do mundo. Alguns deles falavam latim, outros grego, outros egípcio, árabe, sírio, outros ainda persa e assim por diante.
            Ora, ao ruído do vento forte, acorreu ao redor do cenáculo uma grande multidão daquela gente de tantas línguas e nações, para saber o que havia acontecido. Ao ver isso, os Apóstolos saem e se aproximam deles para falar.
            E aqui começou a operar-se um milagre nunca ouvido; de fato, os Apóstolos, humanamente rudes, de modo que mal sabiam a língua do país, começaram a falar das grandezas de Deus nas línguas de todos aqueles que haviam acorrido. Um tal fato encheu de grande espanto os ouvintes, que, não sabendo como se explicar, iam dizendo uns aos outros: “O que será isso?”

CAPÍTULO XIII. Primeira pregação de Pedro. Ano 33 de Jesus Cristo.
            Enquanto a maior parte admirava a intervenção da potência divina, não faltaram alguns malignos que, acostumados a desprezar tudo que é santo, não sabendo mais o que dizer, iam chamando os Apóstolos de bêbados. Realmente uma tolice ridícula; pois a embriaguez não faz falar a língua desconhecida, mas faz esquecer ou maltratar a própria língua. Foi então que São Pedro, cheio de santo ardor, começou a pregar pela primeira vez Jesus Cristo.
            Em nome de todos os outros Apóstolos, ele se adianta perante a multidão, levanta a mão, pede silêncio e começa a falar assim: “Homens Judeus e vós todos que habitais em Jerusalém, abri os ouvidos às minhas palavras e sereis iluminados sobre este fato. Estes homens não estão de modo algum embriagados como pensais, porque estamos apenas à terceira hora da manhã, em que costumamos estar em jejum. Bem outra é a causa do que vedes. Hoje se cumpriu em nós a profecia do profeta Joel, que disse assim: ‘Acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que eu derramarei o meu Espírito sobre os homens; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão; os vossos jovens terão visões e os vossos velhos terão sonhos. Aliás, naqueles dias derramarei o meu espírito sobre os meus servos e sobre as minhas servas, e se tornarão profetas, e farei prodígios no céu e na terra. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.’
            Pedro continuou: “Agora, ouvi, ó filhos de Jacó: aquele Senhor, em cujo nome quem crer será salvo, é o mesmo Jesus Nazareno, aquele grande homem a quem Deus dava testemunho com uma multidão de milagres que operou, como vós mesmos haveis visto. Vós fizestes morrer aquele homem pela mão dos ímpios e assim, sem saber, servistes aos decretos de Deus, que queria salvar o mundo com sua morte. Deus, por outro lado, o ressuscitou da morte, como havia predito o profeta Davi com estas palavras: ‘Tu não me deixarás no sepulcro, nem permitirás que o teu santo prove a corrupção.’
            E Pedro acrescentou: “Notai, ó Judeus, que Davi não pretendia falar de si, porque vós bem sabeis que ele morreu e seu sepulcro permanece entre nós até o dia de hoje; mas sendo profeta e sabendo que Deus lhe havia prometido com juramento que da sua descendência nasceria o Messias, profetizou também sua ressurreição, dizendo que ele não seria deixado no sepulcro e que seu corpo não provaria a corrupção. Este, portanto, é Jesus Nazareno, que Deus ressuscitou da morte, do qual somos testemunhas. Sim, nós o vimos voltar à vida, o tocamos e comemos com ele.
            “Ele, portanto, tendo sido elevado ao céu pela virtude do Pai e tendo recebido dele a autoridade de enviar o Espírito Santo, segundo sua promessa, pouco antes enviou sobre nós este divino Espírito, de cuja virtude vedes em nós uma prova tão manifesta. Que, por sua vez, Jesus subiu ao céu, diz o próprio Davi com estas palavras: ‘O Senhor disse ao meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés.’ Agora vós bem sabeis que Davi não subiu ao céu para reinar. É Jesus Cristo que subiu ao céu: a ele, portanto, e não a Davi, foram apropriadas aquelas palavras. Saiba, portanto, todo o povo de Israel que aquele Jesus que vós crucificastes foi por Deus constituído Senhor de todas as coisas, rei e Salvador do seu povo, e ninguém pode salvar-se sem ter fé nele.”
            Esta pregação de Pedro deveria ter acirrado os ânimos de seus ouvintes, a quem recriminava o enorme delito cometido contra a pessoa do divino Salvador. Mas era Deus que falava pela boca de seu ministro, e por isso a pregação dele produziu efeitos maravilhosos. Portanto, agitados como por um fogo interno, efeito da graça de Deus, de todas as partes iam exclamando com coração verdadeiramente contrito: “O que devemos fazer?” São Pedro, observando que a graça do Senhor operava em seus corações e que já eles criam em Jesus Cristo, disse-lhes: “Fazei penitência e cada um, em nome de Jesus Cristo, receba o batismo; assim obterão a remissão dos pecados e receberão o Espírito Santo.”
            O Apóstolo continuou a instruir aquela multidão, animando todos a confiar na misericórdia e bondade de Deus, que deseja a salvação dos homens. O fruto dessa primeira pregação correspondeu à ardente caridade do pregador. Cerca de 3.000 pessoas se converteram à fé em Jesus Cristo e foram batizadas pelos Apóstolos. Assim começavam a se cumprir as palavras do Salvador quando disse a Pedro que, doravante, não seria mais pescador de peixes, mas pescador de homens. Santo Agostinho assegura que Santo Estêvão, protomártir, foi convertido nesta pregação.

CAPÍTULO XIV. São Pedro cura um coxo. — Sua segunda pregação. Ano 33 de Jesus Cristo.
            Pouco depois dessa pregação, à nona hora, ou seja, às três da tarde, Pedro e seu amigo João, como forma de agradecer a Deus pelos benefícios recebidos, iam juntos ao templo para orar. Ao chegarem a uma porta do templo chamada “Formosa” ou “Bela”, encontraram um homem coxo de ambos os pés desde o nascimento. Não conseguindo se sustentar, ele estava ali sendo carregado para viver pedindo esmolas àqueles que iam ao lugar santo. Aquele infeliz, ao ver os dois Apóstolos próximos a ele, pediu-lhes caridade, como fazia com todos. Pedro, assim inspirado por Deus, olhando-o fixamente, disse-lhe: “Olha para nós.” Ele olhava, e, na esperança de receber algo, não piscava os olhos. Então Pedro falou: “Escute, bom homem, eu não tenho nem ouro nem prata para te dar; mas o que tenho te dou. Em nome de Jesus Nazareno, levanta-te e anda.” Então o pegou pela mão a fim de levantá-lo, como em casos semelhantes tinha visto o divino Mestre fazer. Naquele momento, o coxo sentiu suas pernas se fortalecerem, seus nervos se robusteceram e adquiriu forças como qualquer outro homem mais saudável. Sentindo-se curado, deu um salto, começou a andar e, pulando de alegria e louvando a Deus, entrou com os dois Apóstolos no templo. Todo o povo, que tinha sido testemunha do fato e via o coxo andar por si mesmo, não pôde deixar de reconhecer naquela cura um verdadeiro milagre. A linguagem dos fatos é mais eficaz do que a das palavras. Portanto, a multidão, tendo sabido que foi São Pedro quem devolveu a saúde àquele infeliz, em grande número se apertou ao redor dele e de João, desejando todos admirar com seus próprios olhos quem sabia fazer obras tão maravilhosas.
            Este é o primeiro milagre que, após a Ascensão de Jesus Cristo, foi realizado pelos Apóstolos, e era conveniente que o fizesse Pedro, pois ele tinha entre todos a primeira dignidade na Igreja. Mas Pedro, ao ver-se cercado por tanta gente, considerou uma bela oportunidade de dar a Deus a glória devida e glorificar ao mesmo tempo Jesus Cristo, em cujo nome tinha sido realizado o prodígio.
            “Filhos de Israel,” disse-lhes, “por que vos maravilhais tanto com este fato? Por que fixais tanto os olhos em nós, como se por nossa virtude tivéssemos feito andar este homem? O Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais, glorificou seu Filho Jesus, aquele Jesus que vós traístes e negastes diante de Pilatos, quando ele julgava libertá-lo como inocente. Vós, portanto, tivestes a ousadia de negar o Santo e o Justo, e pedistes que Barrabás, ladrão e assassino, fosse libertado da morte, e renegando o Justo, o Santo e o autor da vida, o fizestes morrer. Mas Deus o ressuscitou da morte, e nós somos testemunhas, pois o vimos várias vezes, o tocamos e comemos com ele. Agora, em virtude de seu nome, pela fé que vem dele, foi curado este coxo que vedes e conheceis; foi Jesus que lhe devolveu a perfeita saúde diante de todos vós. Agora eu sei bem que vosso crime e o de vossos chefes, embora não tenhais desculpa suficiente, foi cometido por ignorância. Mas Deus, que fez predizer por seus profetas que o Messias deveria sofrer tais coisas, permitiu que verificásseis isso sem querer, de modo que o decreto da misericórdia de Deus teve seu cumprimento. Portanto, voltai-vos para vós mesmos e fazei penitência, para que vossos pecados sejam cancelados e assim possais vos apresentar com segurança da salvação diante do tribunal deste mesmo Jesus Cristo que eu vos preguei, e pelo qual todos devemos ser julgados.”
            Pedro prosseguiu: “Essas coisas foram preditas por Deus; portanto, crede em seus profetas e entre todos crede em Moisés, que é o maior deles. O que ele diz? «O Senhor,» diz Moisés, «fará surgir um profeta como eu, e a ele vós crereis em tudo o que ele vos disser. Quem não ouvir o que diz este profeta será exterminado do seu povo.»”
            “Isso dizia Moisés e falava de Jesus. Depois de Moisés, começando por Samuel, todos os profetas que vieram previram este dia e as coisas que aconteceram. Tais coisas e as grandes bênçãos que são preditas vos pertencem. Vós sois os filhos dos profetas, das promessas e das alianças que Deus fez com nossos pais, dizendo a Abraão, que é o tronco da descendência dos justos: ‘Em ti e na tua descendência serão abençoadas todas as gerações do mundo.’ Ele falava do Redentor, daquele Jesus, Filho de Deus, descendente de Abraão; aquele Jesus que Deus ressuscitou da morte e que nos manda a pregar sua palavra a vós antes de pregá-la a qualquer outro povo, trazendo-vos a bênção prometida, para que vos convertais de vossos pecados e tenhais a vida eterna.”
            A esta segunda pregação de São Pedro seguiram-se inúmeras conversões à fé. Cinco mil homens pediram o batismo, de modo que o número dos convertidos em apenas duas pregações já ascendia a oito mil pessoas, sem contar as mulheres e as crianças.

CAPÍTULO XV. Pedro é preso com João e, depois, libertado.
            O inimigo da humanidade, que via seu reino se destruindo, tentou suscitar uma perseguição contra a Igreja em seu início. Enquanto Pedro pregava, chegaram os sacerdotes, os magistrados do templo e os saduceus, que negavam a ressurreição dos mortos. Eles se mostravam extremamente enfurecidos porque Pedro pregava ao povo a ressurreição de Jesus Cristo.
            Impacientes e cheios de cólera interromperam a pregação de Pedro, colocaram as mãos sobre ele e o conduziram junto com João para a prisão, com a intenção de discutir com um e com outro no dia seguinte. Mas temendo os protestos do povo, não lhes fizeram nenhum mal.
            Amanhecido o dia, reuniram-se todos os principais da cidade; ou seja, o sinédrio da nação se reuniu em concílio para julgar os dois Apóstolos, como se fossem os mais ímpios e os mais temíveis homens do mundo. No meio daquela imponente assembleia foram introduzidos Pedro e João, e com eles o coxo que haviam curado.
            Foi, portanto, feita solenemente esta pergunta: “Com qual poder e em nome de quem vocês curaram este coxo?” Então Pedro, cheio do Espírito Santo, com uma coragem verdadeiramente digna do chefe da Igreja, começou a falar da seguinte maneira:
            “Príncipes do povo, e vós doutores da lei, ouvi. Se neste dia somos acusados e se forma um processo por uma obra bem feita, que é a cura deste enfermo, sabei todos, e que todo o povo de Israel saiba, que este homem, que vedes aqui diante de vós são e salvo, obteve a saúde em nome do Senhor Jesus Nazareno; aquele mesmo que vós crucificastes e que Deus fez ressuscitar da morte para a vida. Esta é a pedra da construção que foi rejeitada por vós e que agora se tornou a Pedra angular. Ninguém pode ter salvação senão nele, nem há outro nome sob o céu dado aos homens fora deste, no qual se possa ter salvação.”
            Esta fala franca e resoluta do príncipe dos Apóstolos produziu profunda impressão na alma de todos aqueles que compunham a assembleia, de modo que, admirando a coragem e a inocência de Pedro, não sabiam a que partido se apegar. Queriam puni-los, mas o grande crédito que o milagre realizado pouco antes lhes havia dado em toda a cidade fazia temer tristes consequências.
            No entanto, querendo tomar alguma resolução, fizeram sair os dois Apóstolos do lugar do concílio e concordaram em proibir-lhes, sob penas severíssimas, de nunca mais falarem no futuro das coisas passadas, nem nunca mais nomearem Jesus Nazareno, para que até mesmo a memória dele se perdesse. Mas está escrito que são inúteis os esforços dos homens quando são contrários à vontade de Deus.
            Portanto, reconduzidos os dois Apóstolos ao meio do concílio, ao ouvirem intimar aquela severa ameaça, longe de se espantarem, com firmeza e constância maior do que antes, Pedro respondeu:
            “Agora, decidi vós mesmos se a justiça e a razão permitem obedecer mais a vós do que a Deus. Nós não podemos deixar de manifestar o que temos ouvido e visto.”
            Então aqueles juízes, cada vez mais confusos, não sabendo nem o que responder nem o que fazer, tomaram a resolução de mandá-los por esta vez impunes, proibindo-lhes apenas de pregar mais a Jesus Nazareno.
            Assim que foram deixados livres, Pedro e João foram imediatamente encontrar os outros discípulos, que estavam em grande inquietação por sua prisão. Quando então ouviram o relato do que havia acontecido, cada um agradeceu a Deus, pedindo-lhe que quisesse dar força e virtude para pregar a divina palavra diante de qualquer perigo.
            Se os cristãos dos dias de hoje tivessem todos a coragem dos fiéis dos primeiros tempos e, superando todo respeito humano, professassem intrépidos sua fé, certamente não se veria tanto desprezo pela nossa santa religião, e talvez muitos que tentam zombar da religião e dos sagrados ministros seriam forçados a venerá-la junto com seus ministros.

CAPÍTULO XVI. Vida dos primeiros Cristãos. — O caso de Ananias e Safira. — Milagres de São Pedro. Ano 34 de Jesus Cristo.
            Pelas pregações de São Pedro e pelo zelo dos outros Apóstolos, o número dos fiéis cresceu grandemente.
            Nos dias estabelecidos, reuniam-se juntos para as funções sagradas. E a Sagrada Escritura diz precisamente que aqueles fiéis eram perseverantes na oração, em ouvir a palavra de Deus e em receber com frequência a santa comunhão, de modo que entre todos formavam um só coração e uma só alma para amar e servir a Deus Criador.
            Muitos, então, pelo desejo de desligar inteiramente o coração dos bens da terra e pensar unicamente no céu, vendiam suas propriedades e as traziam aos pés dos Apóstolos, para que fizessem o uso que melhor acreditassem em favor dos pobres. A Sagrada Escritura faz um especial elogio de certo José, apelidado Barnabé, que foi depois fiel companheiro de São Paulo Apóstolo. Este vendeu um campo que possuía e trouxe generosamente o preço inteiro aos Apóstolos. Muitos, seguindo seu exemplo, competiam para dar sinal de seu desapego das coisas terrenas, de modo que em breve aqueles fiéis formavam uma só família, da qual Pedro era o chefe visível. Entre eles não havia pobres, porque os ricos compartilhavam suas propriedades com os necessitados.
            No entanto, mesmo nesses tempos felizes houve fraudulentos, que, guiados por espírito de hipocrisia, tentaram enganar São Pedro e mentir ao Espírito Santo. O que teve as mais funestas consequências. Eis como o sagrado texto nos expõe o terrível acontecimento.
            Certo Ananias com sua esposa Safira fizeram a Deus a promessa de vender uma propriedade sua e, assim como os outros fiéis, levar o preço aos Apóstolos para que o distribuíssem conforme as diversas necessidades. Eles cumpriram pontualmente a primeira parte da promessa, mas o amor ao ouro os levou a violar a segunda.
            Eles podiam manter o campo ou o preço da venda. Mas feita a promessa, estavam obrigados a mantê-la, pois as coisas que se consagram a Deus ou à Igreja tornam-se sagradas e invioláveis.
            De acordo, portanto, entre si, retiveram para si uma parte do preço e trouxeram a outra a São Pedro com a intenção de fazê-lo crer que esta era a soma total obtida pela venda. Pedro teve especial revelação do engano e, assim que Ananias apareceu diante dele, sem lhe dar tempo de proferir palavra, com tom autoritário e grave começou a reprová-lo assim: “Por que você se deixou seduzir pelo espírito de Satanás até mentir ao Espírito Santo, retendo uma porção do preço daquele seu campo? Não estava ele em seu poder antes de vendê-lo? E depois de tê-lo vendido, não estava à sua disposição toda a soma obtida? Por que, portanto, você concebeu este malvado plano? Você deve, portanto, saber que não mentiu aos homens, mas a Deus.” Àquele tom de voz, àquelas palavras, Ananias, como atingido por um relâmpago, caiu morto instantaneamente.
            Assim que se passaram três horas, Safira também veio apresentar-se a Pedro, sem saber nada do lutuoso fim do marido. O Apóstolo usou maior compaixão para com ela e quis dar-lhe espaço para penitência interrogando-a se aquela soma era o inteiro produto da venda daquele campo. A mulher, com intrepidez e temeridade igual à de Ananias, com outra mentira confirmou a mentira de seu marido. Portanto, sendo repreendida por São Pedro com o mesmo zelo e com a mesma força, caiu também ela instantaneamente e expirou. É bom esperar que um castigo tão terrível tenha contribuído para poupá-los do castigo eterno na outra vida. Uma pena tão exemplar era necessária para insinuar veneração pelo cristianismo a todos aqueles que abraçavam a fé e procurar respeito ao príncipe dos Apóstolos, assim como para dar um exemplo da maneira terrível com que Deus pune o perjúrio e ao mesmo tempo nos ensinar a sermos fiéis às promessas feitas a Deus.
            Este fato, juntamente com os muitos milagres que Pedro operava, fez com que se dobrasse o fervor entre os fiéis e se expandisse a fama de suas virtudes.
            Todos os Apóstolos operavam milagres. Um doente que tivesse estado em contato com algum dos Apóstolos era imediatamente curado. São Pedro, então, se destacava acima de todos os outros. Era tal a confiança que todos tinham nele e em suas virtudes, que de todas as partes, até de países distantes, vinham a Jerusalém para serem espectadores de seus milagres. Às vezes acontecia que ele estava cercado por tal quantidade de coxos e por tantos doentes que não era mais possível se aproximar dele. Portanto, levavam os enfermos em macas para as praças públicas e para as ruas, de modo que São Pedro, passando por ali, ao menos a sombra de seu corpo chegasse a tocá-los: o que era suficiente para curar todo tipo de enfermidade. Santo Agostinho assegura que um morto, sobre o qual passou a sombra de Pedro, imediatamente ressuscitou.
            Os Santos Padres reconhecem neste fato o cumprimento da promessa do Redentor a seus Apóstolos, dizendo que eles operariam milagres ainda maiores do que aqueles que ele mesmo considerou oportuno realizar durante sua vida mortal[16].

CAPÍTULO XVII. São Pedro novamente preso. — É libertado por um anjo. Ano 34 de Jesus Cristo.
            A Igreja de Jesus Cristo adquiria novos fiéis a cada dia. A multidão de milagres unida à vida santa daqueles primeiros cristãos fazia com que pessoas de todas as classes, idades e condições corressem em massa para pedir o Batismo e assim assegurar sua eterna salvação. Mas o príncipe dos sacerdotes e os saduceus se consumiam de raiva e ciúmes; e não sabendo qual meio usar para impedir a propagação do Evangelho, prenderam Pedro e os outros Apóstolos e os fecharam na prisão. Mas Deus, para demonstrar mais uma vez que são vãos os projetos dos homens quando contrários aos desígnios do Céu, e que Ele pode fazer o que quer e quando quer, enviou naquela mesma noite um anjo que, abrindo as portas da prisão, os tirou de lá, dizendo-lhes: “Em nome de Deus, vão e preguem com segurança no templo, na presença do povo, as palavras de vida eterna. Não temam nem as ordens nem as ameaças dos homens.”
            Os Apóstolos, vendo-se assim prodigiosamente favorecidos e defendidos por Deus, conforme a ordem recebida, de manhã cedo foram ao templo pregar e ensinar o povo. O príncipe dos sacerdotes, que desejava castigar severamente os Apóstolos, para dar solenidade ao processo, convocou o Sinédrio, os anciãos, os escribas e todos aqueles que tinham alguma autoridade sobre o povo. Então mandou buscar os Apóstolos para que fossem trazidos da prisão.
            Os ministros, ou seja, os capangas, obedeceram às ordens dadas. Foram, abriram a prisão, entraram e não encontraram alma viva. Retornaram imediatamente à assembleia e, cheios de espanto, anunciaram a coisa assim: “Encontramos a prisão fechada e guardada com toda diligência; os guardas mantinham fielmente seus postos, mas, ao abrirmos, não encontramos ninguém.” Ao ouvir isso, não sabiam mais a que partido se apegar.
            Enquanto estavam consultando sobre o que deveriam deliberar, chegou alguém dizendo: “Vocês não sabem? Aqueles homens que vocês prenderam ontem estão agora no templo pregando com mais fervor do que antes.” Então se sentiram mais do que nunca ardendo de raiva contra os Apóstolos; mas o temor de se tornarem inimigos do povo os deteve, pois correriam o risco de serem apedrejados.
            O prefeito do templo se ofereceu para resolver ele mesmo tal questão da melhor maneira possível. Foi até onde estavam os pregadores e, com boas maneiras, sem usar qualquer violência, os convidou a virem com ele e os conduziu ao meio da assembleia.
            O sumo sacerdote, dirigindo-se a eles, disse: “Faz apenas alguns dias que nós lhes proibimos estritamente de falar sobre esse Jesus Nazareno, e enquanto isso vocês encheram a cidade com essa nova doutrina. Parece que quereis acusar-nos da morte daquele homem e fazer com que todas as pessoas nos odeiem como culpados daquele sangue. Como ousastes agir assim?”
            “Achamos que fizemos muito bem,” respondeu Pedro também em nome dos outros Apóstolos, “porque é necessário obedecer a Deus antes do que aos homens. O que pregamos é uma verdade que nos foi colocada na boca por Deus, e não tememos dizê-la a vós nesta veneranda assembleia.” Aqui Pedro repetiu o que já havia dito outras vezes sobre a vida, paixão e morte do Salvador; sempre concluindo que era impossível para eles calarem sobre aquelas coisas que, segundo as ordens recebidas de Deus, deveriam pregar.
            Àquelas palavras dos Apóstolos, pronunciadas com tanta firmeza, não tendo o que opor, se consumiam de raiva e já pensavam em fazê-los morrer. Mas foram desencorajados por um certo Gamaliel, que era um dos doutores da lei ali reunidos. Este, considerando bem todas as coisas, fez os Apóstolos saírem por um breve tempo, depois, levantando-se, disse em plena assembleia: “Ó israelitas, prestai bem atenção ao que estais prestes a fazer em relação a esses homens; porque se esta é obra dos homens, cairá por si mesma, como aconteceu com tantos outros; mas se a obra é de Deus, podereis impedi-la e destruí-la, ou quererão se opor a Deus?” Toda a assembleia se aquietou e seguiu seu conselho.
            Fazendo então retornar os Apóstolos, primeiro os fizeram açoitar; depois ordenaram que absolutamente não falassem mais sobre Jesus Cristo. Mas eles partiram da assembleia cheios de alegria, porque foram considerados dignos de sofrer algo pelo nome de Jesus Cristo.

CAPÍTULO XVIII. Eleição dos sete diáconos. — São Pedro resiste à perseguição de Jerusalém. — Vai à Samaria. — Seu primeiro confronto com Simão Mago. Ano 35 de Jesus Cristo.
            A multidão de fiéis que abraçava a fé ocupava tanto o zelo dos Apóstolos, que eles, tendo que se dedicar à pregação da palavra divina, ao ensino dos novos convertidos, à oração, à administração dos sacramentos, não podiam mais se ocupar dos assuntos temporais. Tal coisa causava descontentamento entre alguns cristãos, quase como se na distribuição das ajudas fossem considerados de pouca importância ou desprezados. Informados disso, São Pedro e os outros Apóstolos resolveram remediar a situação.
            Convocaram, portanto, uma numerosa assembleia de fiéis e, fazendo-lhes entender como não deveriam negligenciar as coisas de seu sagrado ministério para se ocuparem dos serviços temporais, propuseram a eleição de sete diáconos, que, conhecidos por seu zelo e virtude, cuidassem da administração de certas coisas sagradas, como a administração do Batismo, da Eucaristia; e ao mesmo tempo cuidassem da distribuição das esmolas e das outras coisas materiais.
            Todos aprovaram aquela proposta; então São Pedro e os outros Apóstolos impuseram as mãos aos novos eleitos e os destinaram a seus respectivos ofícios. Com a adição desses sete diáconos, além de terem providenciado às necessidades temporais, também se multiplicaram os operários evangélicos, e, portanto, mais numerosas conversões. Dentre os sete diáconos, foi célebre Santo Estêvão, que por sua intrepidez em sustentar a verdade do Evangelho, foi morto por apedrejamento fora da cidade. Ele é comumente chamado Protomártir, ou seja, o primeiro mártir, que após Jesus Cristo deu a vida pela fé. A morte de Santo Estêvão foi o início de uma grande perseguição suscitada pelos judeus contra todos os seguidores de Jesus Cristo, o que obrigou os fiéis a se dispersarem aqui e ali por várias cidades e em diferentes locais.
            Pedro com os outros Apóstolos permaneceu em Jerusalém tanto para confirmar os fiéis na fé, quanto para manter viva relação com aqueles que estavam dispersos em outros lugares. A fim de evitar a fúria dos judeus, ele se mantinha escondido, conhecido apenas pelos seguidores do Evangelho, saindo, no entanto, de sua moradia secreta sempre que visse necessidade. Enquanto isso, um edito do imperador Tibério Augusto em favor dos cristãos e a conversão de São Paulo fizeram cessar a perseguição. E foi então que se conheceu como a providência de Deus não permite nenhum mal sem extrair dele o bem; pois serviu-se da perseguição para difundir o Evangelho em outros lugares, e pode-se dizer que cada fiel era um pregador de Jesus Cristo em todos aqueles vilarejos aonde ia se refugiar. Entre aqueles que foram forçados a fugir de Jerusalém, havia um dos sete diáconos chamado Filipe.
            Ele foi à cidade de Samaria, onde com a pregação e com os milagres realizou muitas conversões. Chegou a Jerusalém a notícia de que um número extraordinário de samaritanos havia abraçado à fé. Os Apóstolos resolveram enviar para lá alguns que administrassem o Sacramento da Confirmação e suprissem aqueles que os Diáconos não tinham autoridade para administrar. Foram então designados para essa missão Pedro e João: Pedro para que, como chefe da Igreja, recebesse no seio dela aquela nação estrangeira e unisse os samaritanos aos judeus; João, então, como amigo especial de São Pedro e ilustre entre os outros por milagres e santidade.
            Havia em Samaria um certo Simão de Giton, chamado Mago, ou seja, feiticeiro. Este, à força de falácias e encantamentos, havia enganado muitos, se vangloriando de ser alguém extraordinário. Blasfemando, dizia que ele tinha a grande virtude de Deus. O povo parecia enlouquecido por ele e corria atrás dele aclamando-o como se fosse algo divino. Estando um dia presente à pregação de Filipe, ficou comovido e pediu o Batismo para também operar as maravilhas que geralmente os fiéis operavam após receber este Sacramento.
            Chegando lá, Pedro e João começaram a administrar o Sacramento da Confirmação, impondo as mãos como fazem os Bispos de hoje. Simão, vendo que com a imposição das mãos recebiam também o dom das línguas e de fazer milagres, pensou que seria uma grande sorte para ele se pudesse operar as mesmas coisas. Aproximando-se, então, de Pedro, tirou uma bolsa de dinheiro e a ofereceu, pedindo-lhe que também lhe concedesse o poder de fazer milagres e de dar o Espírito Santo àqueles a quem ele impusesse as mãos.
            São Pedro, vivamente indignado com tal impiedade, e voltando-se para ele, disse-lhe: “Malvado, fique contigo o teu dinheiro para perdição, pois acreditaste que por dinheiro se podem comprar os dons do Espírito Santo. Apressa-te em fazer penitência por esta tua malvadeza e ora a Deus para que Ele te conceda o perdão.”
            Simão, temendo que lhe acontecesse o que havia acontecido a Ananias e Safira, todo apavorado respondeu: “É verdade: orai também vós por mim para que em mim não se verifique tal ameaça.” Essas palavras parecem demonstrar que ele estava arrependido, mas não estava: não pediu aos Apóstolos que implorassem a Deus misericórdia, mas sim que mantivessem longe dele o flagelo. Passado o temor do castigo, ele voltou a ser o que era antes, ou seja, mago, sedutor, amigo do demônio. Nós o veremos em outros confrontos com Pedro.
            Os dois Apóstolos Pedro e João, assim que administraram o Sacramento da Confirmação aos novos fiéis da Samaria e os fortaleceram na fé que pouco antes haviam recebido, dando-lhes a saudação de paz, partiram daquela cidade. Passaram por muitos lugares pregando Jesus Cristo, considerando pouca toda fadiga desde que contribuísse para propagar o Evangelho e ganhar almas para o céu.

CAPÍTULO XIX. São Pedro funda a cátedra de Antioquia; retorna a Jerusalém. — É visitado por São Paulo. Ano 36 de Jesus Cristo.
            São Pedro, retornando da Samaria, permaneceu algum tempo em Jerusalém, depois foi pregar a graça do Senhor em vários locais. Enquanto com zelo digno do príncipe dos Apóstolos visitava as igrejas que estavam sendo fundadas aqui e ali, soube que Simão Mago da Samaria havia ido a Antioquia para espalhar lá suas imposturas. Ele então resolveu ir a essa cidade para dissipar os erros daquele inimigo de Deus e dos homens. Chegando àquela capital, imediatamente começou a pregar o Evangelho com grande zelo, e conseguiu converter tal número de pessoas à fé, que os fiéis começaram a ser chamados ali de cristãos, ou seja, seguidores de Jesus Cristo.
            Entre as personalidades ilustres que se converteram pelas pregações de São Pedro estava Santo Evódio. Na primeira chegada de Pedro, ele o convidou para sua casa, e o santo Apóstolo se afeiçoou a ele, lhe proporcionou a necessária instrução e, vendo-o adornado das necessárias virtudes, o consagrou sacerdote, depois bispo, para que fizesse suas vezes em tempo de sua ausência, e para que lhe sucedesse depois naquela sede episcopal.
            Quando Pedro queria dar início à pregação naquela cidade, encontrava grave obstáculo por parte do governador, que era um príncipe de nome Teófilo. Este fez prender o santo Apóstolo como inventor de uma religião contrária à religião do estado. Quis, portanto, discutir sobre as coisas que pregava, e ao ouvi-lo dizer que Jesus Cristo, por amor dos homens, morreu na cruz, disse: “Este é louco, não se deve mais ouvi-lo.” Para que então fosse considerado como tal, por escárnio fez-lhe cortar o cabelo pela metade, deixando-lhe um círculo ao redor da cabeça como uma coroa. O que então foi feito por desprezo, agora os eclesiásticos usam por honra, e se chama tonsura, que lembra a coroa de espinhos colocada sobre a cabeça do Divino Salvador.
            Quando Pedro se viu tratado daquela maneira, pediu ao governador que se dignasse ouvi-lo mais uma vez. Sendo-lhe concedido isso, Pedro lhe disse: “Tu, ó Teófilo, te escandalizas por ter-me ouvido dizer que o Deus que eu adoro morreu na cruz. Já te havia dito que Ele se fez homem, e sendo homem não deverias tanto te maravilhar que Ele tenha morrido, pois morrer é próprio do homem. Fica sabendo, por outro lado, que Ele morreu na cruz por sua própria vontade, porque com sua morte queria dar vida a todos os homens, fazendo paz entre seu Eterno Pai e a humanidade. Mas assim como te digo que Ele morreu, assim te asseguro que Ele ressuscitou por virtude própria, tendo antes ressuscitado muitos outros mortos.” Teófilo, ouvindo dizer que havia feito ressuscitar os mortos, se aquietou e, com ar de espanto, acrescentou: “Tu dizes que este teu Deus ressuscitou os mortos; agora, se tu em seu nome fizeres ressuscitar um meu filho, que morreu há alguns dias, eu acreditarei no que me pregas.” O Apóstolo aceitou o convite, foi ao túmulo do jovem e, na presença de muito povo, fez uma oração e em nome de Jesus Cristo o chamou à vida[17]. O que causou que o governador e toda a cidade acreditassem em Jesus Cristo.
            Teófilo tornou-se em breve um fervoroso cristão e, em sinal de estima e veneração por São Pedro, lhe ofereceu sua casa para que ele a usasse da maneira que melhor desejasse. Aquela edificação foi transformada em igreja, onde o povo se reunia para assistir ao divino sacrifício e para ouvir as pregações do santo Apóstolo. A fim de poder ouvi-lo com maior comodidade e proveito, levantaram-lhe ali uma cátedra da qual o santo dava as sagradas lições.
            É bom notar aqui que São Pedro por um período de três anos, na medida do possível, residia em Jerusalém como capital da Palestina, onde os judeus podiam mais facilmente se relacionar com ele. No ano trigésimo sexto ano de Jesus Cristo, tanto pela perseguição em Jerusalém, quanto para preparar o caminho à conversão dos gentios, veio estabelecer sua sede em Antioquia: ou seja, estabeleceu a cidade de Antioquia como sua moradia ordinária e como centro de comunhão com as outras Igrejas cristãs.
            Pedro governou esta Igreja de Antioquia por sete anos, até que, assim inspirado por Deus, transferiu sua cátedra para Roma, como contaremos a seu tempo. O estabelecimento da Santa Sé em Antioquia é particularmente narrado por Eusébio de Cesareia, por São Jerônimo, por São Leão Magno e por muitos escritores eclesiásticos. A Igreja católica celebra este acontecimento com uma solenidade especial no dia 22 de fevereiro.
            Enquanto São Pedro estava em Antioquia, ele foi a Jerusalém, onde recebeu uma visita que certamente lhe trouxe grande consolação. São Paulo, que havia sido convertido à fé por um impressionante milagre, embora tivesse sido instruído por Jesus Cristo e enviado por ele para pregar o Evangelho, quis ir até São Pedro para venerar nele o chefe da Igreja e receber dele os avisos e instruções que fossem oportunos. São Paulo ficou em Jerusalém com o príncipe dos Apóstolos por quinze dias. Esse tempo foi suficiente para ele, pois além das revelações recebidas de Jesus Cristo, havia passado sua vida estudando as santas Escrituras e, após sua conversão, se dedicou incansavelmente à meditação e à pregação da palavra de Deus.

CAPÍTULO XX. São Pedro visita várias Igrejas. — Cura Eneias, o paralítico. — Ressuscita a defunta Tabita. Ano 38 de Jesus Cristo.
            São Pedro foi encarregado pelo divino Salvador de conservar na fé todos os cristãos; e como muitas Igrejas estavam sendo fundadas aqui e ali pelos Apóstolos, pelos Diáconos e por outros discípulos, assim São Pedro, para manter a unidade da fé e para exercer a autoridade suprema que lhe foi conferida pelo Salvador, enquanto mantinha sua residência habitual em Antioquia, ia visitar pessoalmente as igrejas que naquele tempo já haviam sido fundadas e estavam sendo fundadas. Em certos lugares, confirmava os fiéis na fé, em outros, consolava aqueles que haviam sofrido na perseguição passada, aqui administrava o sacramento da Crisma, em todo lugar, então, ordenava pastores e bispos, que, após sua partida, continuassem a cuidar das igrejas e do rebanho de Jesus Cristo.
            Passando de uma cidade a outra, chegou aos santos que habitavam em Lida, cidade distante cerca de vinte milhas de Jerusalém. Os cristãos dos primeiros tempos, pela vida virtuosa e mortificada que levavam, eram chamados santos, e com esse nome deveriam se chamar os cristãos de hoje que, assim como aqueles, são chamados à santidade.
            Ao chegar às portas da cidade de Lida, Pedro encontrou um paralítico chamado Eneias. Este estava paralisado e completamente imóvel nos membros, e há oito anos não se movia de sua cama. Pedro, ao vê-lo, sem ser de modo algum solicitado, dirigindo-se a ele disse: “Eneias, o Senhor Jesus Cristo te curou; levanta-te e arruma a tua cama.” Eneias levantou-se em pé, são e robusto, como se nunca tivesse estado enfermo. Muitos estavam presentes a este milagre, que em breve se divulgou por toda a cidade e na vizinha região chamada Saron. Todos aqueles habitantes, movidos pela bondade divina que de maneira sensível dava sinais de seu poder infinito, creram em Jesus Cristo e entraram no seio da Igreja.
            A pouca distância de Lida havia Jope, outra cidade situada às margens do mar Mediterrâneo. Ali morava uma viúva cristã chamada Tabita, a qual, por suas esmolas e por muitas obras de caridade, era universalmente chamada de mãe dos pobres. Aconteceu que, naqueles dias, ela adoeceu e, após breve enfermidade, morreu, deixando em todos a mais viva dor. Segundo o costume daquelas épocas, as mulheres lavaram seu cadáver e o colocaram sobre o terraço para que, a seu tempo, fosse sepultado.
Agora, pela proximidade de Lida, tendo se espalhado em Jope a notícia do milagre operado na cura de Eneias, foram enviados dois homens para pedir a Pedro que quisesse vir ver a falecida Tabita. Ao saber da morte daquela virtuosa discípula de Jesus Cristo e do desejo dos cristãos que ele fosse lá para ressuscitá-la, Pedro partiu imediatamente com eles. Ao chegar a Jope, os discípulos o conduziram ao terraço e, mostrando-lhe o cadáver de Tabita, contaram-lhe as muitas boas obras daquela santa mulher e pediram-lhe que a quisesse ressuscitar.
            Os pobres e as viúvas, ao saberem da vinda de Pedro, correram chorando para pedir-lhe que quisesse devolver-lhes a boa mãe. “Veja,” diz uma, “esta roupa foi obra de sua caridade”; “esta túnica, as sandálias daquele menino,” outras acrescentavam, “são todas coisas doadas por ela.” Ao ver tanta gente chorando, tantas obras de caridade sendo contadas, Pedro ficou comovido. Levantou-se e, voltando-se para o cadáver, disse: “Tabita, eu te ordeno em nome de Deus, levanta-te.” Tabita, naquele instante, abriu os olhos e, ao ver Pedro, sentou-se e começou a falar com ele. Pedro, tomando-a pela mão, a levantou e, chamando os discípulos, devolveu-lhes a mãe tão esperada, sã e salva. Grande foi a alegria que se levantou em toda a casa; de todos os lados choravam de alegria, parecendo àqueles bons cristãos que haviam recuperado um tesouro naquela única mulher, que verdadeiramente era o consolo de todos. Deste fato, os pobres aprendam a ser gratos a quem lhes oferece esmola. Aprendam os ricos o que significa ser piedoso e generoso para com os pobres.

CAPÍTULO XXI. Deus revela a São Pedro a vocação dos Gentios. — Vai a Cesareia e batiza a família do Centurião Cornélio. Ano 39 de Jesus Cristo.
            Deus havia feito com que seus profetas predissessem várias vezes que, com a vinda do Messias, todas as nações seriam chamadas ao conhecimento do verdadeiro Deus.
            O mesmo divino Salvador havia dado ordem expressa aos seus Apóstolos, dizendo: “Ite, docete omnes gentes” (ide, ensinai a todas as nações). Os próprios pregadores do Evangelho já haviam recebido alguns não judeus à fé, como haviam feito com o Eunuco da rainha Candace e com Teófilo, governador de Antioquia; mas estes eram casos particulares, e os Apóstolos até então haviam pregado quase exclusivamente o Evangelho aos judeus, aguardando do Senhor um aviso especial da época em que deveriam, sem exceção, receber à fé também os gentios e os pagãos. Tal revelação deveria certamente ser feita a São Pedro, chefe da Igreja. Eis como o texto sagrado expõe este memorável acontecimento.
            Em Cesareia, cidade da Palestina, habitava um certo Cornélio, centurião, ou seja, oficial de uma coorte, corpo de 100 soldados, que pertencia à legião itálica, assim chamada porque composta de soldados italianos.
            A Sagrada Escritura faz-lhe um elogio, dizendo que ele era um homem religioso e temente a Deus; essas palavras querem dizer que ele era gentil, mas que havia abandonado a idolatria na qual nasceu, adorava o verdadeiro Deus, fazia muitas esmolas e orações, e vivia religiosamente segundo o ditame da reta razão.
            Deus, infinitamente misericordioso, que nunca falta, com sua graça, em vir em socorro de quem faz o que pode de sua parte, enviou um anjo a Cornélio para instruí-lo sobre o que deveria fazer. Estava este bom soldado fazendo oração quando viu aparecer diante de si um anjo sob a aparência de um homem vestido de branco. “Cornélio!” disse o anjo. Ele, tomado de medo, fixou nele os olhares, dizendo: “Quem és Tu, Senhor; o que queres?” Então o anjo respondeu: “Deus se lembrou de tuas esmolas; tuas orações chegaram ao seu trono; e, querendo satisfazer teus desejos, me enviou para te indicar o caminho da salvação. Portanto, manda alguém a Jope e procura um tal Simão, chamado Pedro. Ele habita junto a outro Simão, curtidor de peles, que tem a casa perto do mar. Deste Pedro saberás tudo o que é necessário para te salvar.” Não tardou Cornélio a obedecer à voz do Céu e, chamando a si dois domésticos e um soldado, pessoas todas que temiam a Deus, contou a visão e ordenou que fossem imediatamente a Jope para a finalidade indicada pelo anjo.
            Partiram imediatamente e, caminhando toda a noite, chegaram a Jope ao meio-dia do dia seguinte, pois a distância entre essas duas cidades é de cerca de 40 milhas. Pouco antes de chegarem, São Pedro também teve uma maravilhosa revelação, com a qual foi confirmado que também os gentios eram chamados à fé. Cansado de suas fadigas, o santo Apóstolo naquele dia havia ido à casa de seu hóspede para se restaurar e, segundo seu costume, foi primeiro a um quarto situado no andar superior para fazer oração. Enquanto orava, pareceu-lhe ver o céu aberto e do meio descer até a terra um certo utensílio à maneira de um amplo lençol, que, sustentado em suas quatro extremidades, formava como que um grande vaso cheio de toda sorte de animais quadrúpedes, serpentes e aves, todos os quais eram considerados impuros, segundo a lei de Moisés, isto é, não podiam ser comidos nem oferecidos a Deus.
            Ao mesmo tempo ouviu uma voz que disse: “Levanta-te, Pedro, mata e come.” Atônito o Apóstolo respondeu a esse comando: “De modo algum comerei animais impuros, dos quais sempre me abstive.” A voz acrescentou: “Não chames impuro o que Deus purificou.” Depois de se ter repetido por três vezes a mesma visão, aquele vaso misterioso se elevou para o céu e desapareceu.
            Os Santos Padres reconhecem figurados nesses animais impuros os pecadores e todos aqueles que, enredados no vício e no erro, por meio do sangue de Jesus Cristo são purificados e recebidos em graça.
            Enquanto Pedro estava meditando sobre o que poderia significar aquela visão, chegaram os três mensageiros. Naquele momento Deus fez com que o conhecessem e lhe ordenou que descesse para encontrá-los, se juntasse a eles e fosse com eles sem qualquer temor. Descendo, portanto, e vendo-os, disse: “Eis-me aqui, eu sou aquele que buscais. Qual é o motivo da vossa vinda?”
            Ouvindo a visão de Cornélio e a razão de sua viagem, compreendeu imediatamente o significado daquele misterioso lençol; por isso os acolheu benignamente e ficaram com ele naquela noite. Na manhã seguinte, acompanhado por seis discípulos, partiu de Jope com os mensageiros e, em número de dez, tomaram o caminho em direção a Cesareia.
            Após dois dias, Pedro, com toda a sua comitiva, chegou àquela cidade onde o centurião o aguardava com grande ansiedade. Este, para honrar ainda mais seu hóspede, convocou seus parentes e amigos, para que também pudessem participar das celestiais bênçãos que, à chegada de Pedro, esperava obter do Céu. Quando o bom centurião, segundo a ordem de Deus, mandou chamar Pedro para entender dele os divinos desígnios, certamente formou uma grande ideia dele, considerando-o uma pessoa sublime e não semelhante aos outros homens. Portanto, ao entrar Pedro em sua casa, ele se aproximou e se lançou aos pés dele em ato de adorá-lo. Pedro, cheio de humildade, imediatamente o levantou, avisando-o de que era, assim como ele, um simples homem. Continuando a falar, entraram no lugar da reunião.
            Lá, na presença de todos, Pedro contou a ordem recebida de Deus de conversar com os gentios e de não mais julgá-los como abomináveis e profanos. E concluiu: “Agora estou aqui convosco; dizei-me, portanto, qual é a razão pela qual me chamastes.” Cornélio obedeceu ao convite de Pedro, levantou-se e contou o que lhe havia acontecido quatro dias antes, protestando que ele e todos os presentes estavam prontos para executar tudo o que, por comissão divina, lhes tivesse ordenado. Então Pedro, explicando o caráter de Apóstolo do Senhor, depositário fiel da religião e da fé, começou a instruir toda aquela honrosa assembleia nos principais mistérios do Evangelho.
            Pedro continuava seu discurso quando o Espírito Santo desceu visivelmente sobre Cornélio e seus familiares, e de maneira sensível comunicou-lhes o dom das línguas, pelo que começaram glorificar a Deus, cantando seus louvores. São Pedro, vendo operar-se ali quase o mesmo prodígio ocorrido no cenáculo de Jerusalém, exclamou: “Há porventura alguém que possa impedir que nós batizemos estes, que receberam o Espírito Santo assim como nós?” Então, voltando-se para seus discípulos, ordenou que os batizassem a todos. A família de Cornélio foi a primeira de Roma e da Itália a abraçar a fé.
            São Pedro, após tê-los batizados a todos, retardou sua partida de Cesareia; ficou algum tempo para satisfazer às piedosas instâncias de Cornélio e de todos aqueles novos batizados que lhe pediam insistentemente. Pedro aproveitou aquele tempo para pregar o Evangelho naquela cidade, e tal foi o fruto que ele resolveu designar um pastor para aquela multidão de fiéis. Este foi São Zaqueu, de quem se fala no Evangelho, o qual, por isso, foi consagrado primeiro bispo de Cesareia[18].
            Este fato, ou seja, o ter admitido à fé os gentios, causou certa inveja entre os fiéis de Jerusalém; e não faltaram aqueles que desaprovaram publicamente o que São Pedro havia feito. Por isso, ele considerou bom ir àquela cidade, para esclarecer os iludidos e fazer conhecer que o que havia operado era por ordem de Deus. Chegando a Jerusalém, alguns se apresentaram a ele falando-lhe ousadamente assim: “Por que foste a homens não circuncidados e comeste com eles?” Pedro, na presença de todos os fiéis reunidos, sem dar atenção àquela interrogação, deu-lhes razão do que havia feito, começando pela visão que teve em Jope, do vaso cheio de toda sorte de animais impuros, da ordem recebida de Deus de se alimentar deles, da repugnância que mostrou em obedecer por temor de contradizer a lei, e da voz que se fez novamente ouvir de não mais chamar impuro o que havia sido purificado por Deus. Então expôs minuciosamente o que havia acontecido na casa de Cornélio e como, na presença de muitos, desceu o Espírito Santo. Então toda aquela assembleia, reconhecendo a voz do Senhor na de Pedro, aquietou-se e louvou a Deus por ter estendido os limites de sua misericórdia.

CAPÍTULO XXII. Herodes manda decapitar São Tiago Maior, e colocar São Pedro na prisão. — Mas é libertado por um Anjo. — Morte de Herodes. Ano 41 de Jesus Cristo.
            Enquanto a palavra de Deus, pregada com tanto zelo pelos Apóstolos e discípulos, produzia frutos de vida eterna entre os Judeus e os Gentios, a Judeia era governada por Herodes Agripa, sobrinho daquele Herodes que havia ordenado a matança dos inocentes.
            Dominado por um espírito de ambição e vaidade, desejava desesperadamente conquistar o afeto do povo. Os Judeus, e especialmente aqueles que tinham alguma autoridade, souberam aproveitar essa sua propensão para incitá-lo a perseguir a Igreja e buscar os aplausos dos perversos Judeus no sangue dos cristãos. Ele começou fazendo prender o Apóstolo São Tiago para depois condená-lo à morte. Este é São Tiago Maior, irmão de São João Evangelista, fiel amigo de Pedro, que teve com ele muitos sinais especiais de benevolência do Salvador.
            Este corajoso Apóstolo, após a descida do Espírito Santo, pregou o Evangelho na Judeia; depois (como narra a tradição) foi à Espanha, onde converteu alguns à fé. Retornando à Palestina, entre outros, converteu um certo Hermógenes, homem célebre; o que desagradou muito a Herodes, e serviu de pretexto para fazê-lo prender. Levado diante dos tribunais, demonstrou tanta firmeza ao responder e confessar Jesus Cristo que o juiz ficou maravilhado. O seu próprio acusador, comovido por tanta constância, renunciou ao judaísmo e se declarou publicamente cristão, e como tal também foi condenado à morte. Enquanto ambos eram levados ao suplício, ele se voltou para São Tiago e pediu perdão pelo que havia dito e feito contra ele. O santo Apóstolo, dando-lhe um olhar afetuoso, disse-lhe: “pax tecum” (a paz esteja contigo). Então o abraçou e o beijou, protestando que de todo coração o perdoava, e que como irmão o amava. Acredita-se que deste fato se originou o sinal de paz e perdão, que costuma ser usado entre os cristãos e especialmente no sacrifício da santa Missa. Depois disso, aqueles dois generosos confessores da fé tiveram a cabeça cortada e foram se unir eternamente no Céu. Essa morte entristeceu muito os fiéis, mas alegrou sobremaneira os Judeus, que, com a morte dos chefes da religião, pensavam em pôr fim à própria religião. Herodes, vendo que a morte de São Tiago agradou aos Judeus, pensou em proporcionar-lhes um espetáculo mais agradável, fazendo prender São Pedro, para depois deixá-lo à mercê da fúria cega deles. E como corria a semana dos ázimos, que para os Judeus é tempo de júbilo e preparação para a Páscoa, não quis macular a alegria pública com o suplício de um homem supostamente culpado. Carregado, portanto, de correntes, fez com que fosse conduzido entre dois guardas e ordenou que fosse cuidadosamente guardado dentro de uma obscura prisão até o término daquela solenidade. Deu então ordem rigorosa para que dezesseis soldados fossem colocados em guarda, os quais dia e noite vigiassem alternadamente a custódia da prisão de ferro que se abria para um atalho da cidade. Certamente aquele rei sabia como Pedro já havia sido preso outras vezes e saído de maneira totalmente maravilhosa, e não queria que lhe acontecesse novamente algo semelhante. Mas todas essas precauções, portas de ferro, correntes, guardas e vigias não serviram para outra coisa senão para dar maior destaque à obra de Deus.
            Como a arma mais poderosa deixada pelo Salvador aos cristãos é a oração, assim os fiéis, privados de seu pai e pastor comum, se reuniram chorando a prisão de São Pedro e continuamente apresentando orações a Deus, para que o libertasse do iminente perigo. Embora essas suas orações fossem fervorosíssimas, não obstante agradou ao Senhor exercitar por alguns dias a fé e a paciência deles para fazer conhecer ainda mais os efeitos da onipotência divina.
            Já era a noite anterior ao dia fixado para a morte de Pedro. Ele estava totalmente resignado às disposições divinas, igualmente preparado para viver ou morrer pela glória de seu Senhor; por isso, na escuridão daquela horrenda prisão, permanecia com a maior tranquilidade de seu ânimo. Pedro dormia, mas por ele vigiava Aquele que prometeu assistir sua Igreja. Era meia-noite e tudo estava em profundo silêncio, quando de repente uma luz resplandecente iluminou toda aquela prisão. E eis que um anjo enviado por Deus sacode Pedro, despertando-o e dizendo: “Apressa-te, levanta-te.” A tais palavras ambas as correntes se soltaram e caíram de suas mãos. Então o anjo continuou: “Veste-te imediatamente e põe o calçado.” São Pedro fez tudo, e o anjo prosseguiu dizendo: “Coloca também a capa sobre os ombros e segue-me.” Pedro obedeceu; mas parecia-lhe que tudo era um sonho e que ele estava fora de si. Enquanto isso, as portas da prisão estavam abertas, e ele saía seguindo o anjo que ia à sua frente. Passadas as primeiras e as segundas guardas, sem que dessem o menor sinal de vê-los, chegaram à porta de ferro de enorme grossura, que, saindo do edifício das prisões, dava acesso à cidade. Aquela porta se abriu sozinha. Saindo, portanto, caminharam um pouco juntos até que o anjo desapareceu. Então Pedro, refletindo sobre si mesmo, disse: “Agora me dou conta de que o Senhor realmente enviou seu anjo para me libertar das mãos de Herodes e do julgamento que os Judeus esperavam que ele fizesse sobre mim.” Considerando bem o lugar onde estava, foi diretamente à casa de uma certa Maria, mãe de João, chamado Marcos, onde muitos fiéis estavam reunidos em oração suplicando a Deus que se dignasse vir em socorro do chefe de sua Igreja. Chegando São Pedro àquela casa, começou a bater à porta. Uma jovem, de nome Rosa, foi ver quem era. “Quem está aí?” disse ela. E Pedro: “Sou eu, abra.” A jovem, reconhecendo bem a voz, quase fora de si de alegria, não se preocupou mais em abrir a porta e, deixando-o do lado de fora, correu para avisar os donos. “Vocês não sabem? É Pedro.” Mas eles disseram: “Você está delirando, Pedro está na prisão e não pode estar aqui a esta hora.” Mas ela continuava a afirmar que era realmente ele. Eles então acrescentaram: “Aquele que você viu ou ouviu pode ser seu anjo, que em sua forma veio nos dar alguma notícia.” Enquanto esses discutiam com a jovem, Pedro continuava a bater mais forte dizendo: “Ei, abram.” Isso os levou a correr rapidamente para abrir, e perceberam que era realmente Pedro.
            Todos pensavam estar sonhando, e cada um supunha estar vendo um morto ressuscitado. Alguns perguntavam quem o havia libertado, outros quando, alguns estavam impacientes para saber se havia ocorrido algum prodígio.
            Então Pedro, para satisfazê-los a todos, fez sinal com a mão para que ficassem em silêncio, e contou em ordem o que havia acontecido com o anjo e como o havia libertado da prisão. Todos choravam de ternura e, louvando a Deus, lhe agradeciam pelo favor que lhes havia feito.
            Pedro, considerando que sua vida não estava segura em Jerusalém, disse àqueles discípulos: “Ide e relatai essas coisas a Tiago (o Menor, bispo de Jerusalém) e aos outros irmãos, e os livrem da preocupação em que se encontram por minha causa. Quanto a mim, considero oportuno partir desta cidade e ir para outro lugar.”
            Quando a notícia se espalhou de que Deus havia assim prodigiosamente libertado o chefe da Igreja, todos os fiéis ficaram vivamente consolados.
            A Igreja católica celebra a memória deste glorioso acontecimento em primeiro de agosto sob o título de Festa de São Pedro em Cadeias.
            Mas o que aconteceu com Herodes e seus guardas? Quando amanheceu o dia, os guardas que nada tinham ouvido ou visto, foram de manhã verificar a prisão; quando então não encontraram mais Pedro, ficaram tomadas pelo mais profundo espanto. A coisa foi imediatamente relatada a Herodes, que ordenou que procurassem São Pedro, mas não foi possível encontrá-lo. Então, indignado, fez processar os soldados e os condenou todos à morte, talvez por suspeita de negligência ou infidelidade, tendo encontrado todas as portas da prisão abertas.
            Mas o infeliz Herodes não tardou muito a pagar o preço das injustiças e dos tormentos infligidos aos seguidores de Jesus Cristo. Por alguns assuntos políticos ele havia ido de Jerusalém à cidade de Cesareia, e enquanto desfrutava dos aplausos com que o povo loucamente o adulava, chamando-o de Deus, naquele mesmo instante foi ferido por um anjo do Senhor; foi levado para fora da praça e expirou, entre dores indescritíveis, devorado pelos vermes.
            Este fato mostra com quanta solicitude Deus vem em auxílio de seus servos fiéis, e dá um terrível aviso aos malignos. Estes devem temer grandemente a mão de Deus, que severamente pune também na vida presente aqueles que desprezam a religião ou as coisas sagradas ou a pessoa de seus ministros.

CAPÍTULO XXIII. Pedro em Roma. — Ele transfere a cátedra apostólica. — Sua primeira carta. — Progresso do Evangelho. Ano 42 de Jesus Cristo.
            O Apóstolo São Pedro, após ter fugido de Jerusalém, seguindo os impulsos do Espírito Santo, decidiu transferir a Santa Sé para Roma.
            Portanto, após ter mantido sua cátedra em Antioquia por sete anos, partiu em direção a Roma. Em sua viagem, pregou Jesus Cristo no Ponto e na Bitínia, que são duas vastas províncias da Ásia Menor. Prosseguindo sua viagem, pregou o santo Evangelho na Sicília e em Nápoles, dando a esta cidade como bispo Santo Aspreno. Finalmente chegou a Roma no ano quarenta e dois de Jesus Cristo, enquanto reinava um imperador de nome Cláudio.
            Pedro encontrou aquela cidade num estado verdadeiramente deplorável. Era, diz São Leão, um imenso mar de iniquidade, uma lixeira de todos os vícios, uma selva de bestas frenéticas. As ruas, as praças estavam semeadas de estátuas de bronze e de pedra adoradas como deuses, e diante daqueles horrendos simulacros queimavam incenso e ofereciam sacrifícios. O próprio demônio era honrado com nefandas imundícies; as ações mais vergonhosas eram reputadas atos de virtude. Acrescentem-se as leis que proibiam toda nova religião. Os sacerdotes idólatras e os filósofos eram também graves obstáculos. Além disso, tratava-se de pregar uma religião que desaprovava o culto de todos os deuses, condenava toda sorte de vícios e ordenava as mais sublimes virtudes. Todas essas dificuldades, em vez de deter o zelo do Príncipe dos Apóstolos, lhe acenderam ainda mais o desejo de libertar aquela miserável cidade das trevas da morte. São Pedro, portanto, apoiado apenas na ajuda do Senhor, entrou em Roma para formar da metrópole do império a primeira sede do sacerdócio, o centro do Cristianismo.
            Por outro lado, a fama das virtudes e dos milagres de Jesus Cristo já havia chegado ali. Pilatos havia enviado um relatório ao imperador Tibério, o qual, comovido ao ler a santa vida e a morte do Salvador, decidira incluí-lo entre os deuses romanos. Mas o Senhor do céu e da terra não quis ser confundido com as estúpidas divindades dos pagãos; e dispôs que o senado romano rejeitasse a proposta de Tibério como oposta às leis do império[19].
            Pedro começou a pregar o Evangelho aos Judeus que habitavam então em Trastevere, ou seja, em uma parte da cidade de Roma situada do outro lado do Tibre. Da sinagoga dos Judeus passou a pregar aos Gentios, os quais, com verdadeiro entusiasmo, corriam ansiosos para receber o Batismo. O número deles tornou-se tão grande, e a fé deles tão viva, que São Paulo pouco depois teve a consolação de escrever aos romanos estas palavras: “A vossa fé é anunciada”, ou seja, faz-se ouvir, estende sua fama por todo o mundo[20]. Nem somente sobre o povo simples recaíam as bênçãos do céu, mas também sobre pessoas de primeira nobreza. Viam-se homens elevados aos mais altos cargos de Roma abandonando o culto dos falsos deuses para se colocarem sob o suave jugo de Jesus Cristo. Eusébio, bispo de Cesareia, diz que os argumentos de Pedro eram tão robustos e se insinuavam com tanta doçura nos ânimos dos ouvintes, que ele se tornava senhor de seus afetos e todos ficavam como que encantados pelas palavras de vida que saíam de sua boca e não se cansavam de ouvi-lo. Assim grande era o número daqueles que pediam o Batismo, que Pedro, ajudado por outros companheiros, o administrava às margens do Tibre, da mesma forma que São João Batista o havia administrado ao longo do Jordão[21].
            Chegando a Roma, Pedro morou no subúrbio chamado Trastevere, a pouca distância do local onde foi então edificada a Igreja de Santa Cecília. Daqui nasceu a especial veneração que os moradores do bairro ainda conservam em relação à pessoa do Sumo Pontífice. Entre os primeiros a receber a fé estava um senador de nome Pudente, que havia ocupado os mais altos cargos do Estado. Ele deu hospitalidade em sua casa ao Príncipe dos Apóstolos, e ele aproveitava para celebrar os divinos Mistérios, administrar aos fiéis a Santa Eucaristia e explicar as verdades da fé àqueles que vinham ouvi-lo. Aquela casa foi logo transformada em um templo consagrado a Deus sob o título do Pastor; é o mais antigo templo cristão de Roma, e acredita-se que seja o mesmo que atualmente é chamado de Santa Pudenciana. Quase simultaneamente foi fundada outra Igreja pelo mesmo Apóstolo, que se crê que seja aquela que hoje se chama São Pedro em Cadeias.
            Vendo como Roma estava tão bem disposta a receber a luz do Evangelho, e ao mesmo tempo um lugar muito adequado para manter relações com todos os países do mundo, São Pedro estabeleceu sua cátedra em Roma, ou seja, estabeleceu que Roma fosse o centro e lugar de sua especial morada, para onde as várias nações cristãs pudessem e devessem recorrer nas dúvidas de religião e em suas várias necessidades espirituais. A Igreja católica celebra a festa do estabelecimento da cátedra de São Pedro em Roma no dia 18 de janeiro.
            É preciso aqui lembrar bem que por sede ou cátedra de São Pedro não se entende a cadeira material, mas se entende o exercício daquela suprema autoridade que ele havia recebido de Jesus Cristo, especialmente quando lhe disse que o que ele ligasse ou desligasse sobre a terra, também seria ligado ou desligado no céu. Entende-se o exercício daquela autoridade conferida a ele por Jesus Cristo de pastorear o rebanho universal dos fiéis, sustentar e conservar os outros pastores na unidade de fé e de doutrina como sempre fizeram os sumos pontífices de São Pedro até o atual Leão XIII.
            E visto que as ocupações que São Pedro tinha em Roma não lhe permitiam mais visitar as igrejas que em vários países havia fundado, escreveu uma longa e sublime carta dirigida especialmente aos cristãos que habitavam no Ponto, na Galácia, na Bitínia e na Capadócia, que são províncias da Ásia Menor. Ele, como pai amoroso, dirige o discurso aos seus filhos para animá-los a serem constantes na fé que lhes havia pregado e os adverte especialmente para se guardarem dos erros que os hereges, desde aqueles tempos, estavam espalhando contra a doutrina de Jesus Cristo.
            Conclui então essa carta com as seguintes palavras: “Vós, ó Anciãos, isto é, bispos e sacerdotes, eu vos conjuro a pastorear o rebanho de Deus, que de vós depende, governando-o não por coação, mas de boa vontade; não por torpe ganância, mas de boa vontade e fazendo-vos modelo do vosso rebanho. Vós, ó jovens, vós todos, ó cristãos, sede sujeitos aos sacerdotes com verdadeira humildade, porque Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes. Sede temperantes e vigiai, porque o demônio, vosso inimigo, como leão que ruge, anda ao redor buscando a quem devorar; mas resisti-lhe corajosamente na fé. Saúdam-vos os cristãos que estão na Babilônia (isto é, em Roma) e saúda-vos de modo especial Marcos, meu filho em Cristo.
            A graça do Senhor a todos vós que viveis em Jesus Cristo. Assim seja.[22]
            Os romanos que haviam abraçado com grande fervor a fé pregada por Pedro manifestaram a São Marcos, fiel discípulo do Apóstolo, o vivo desejo de que colocasse por escrito aquilo que Pedro pregava. São Marcos, de fato, havia acompanhado o Príncipe dos Apóstolos em várias viagens e o havia ouvido pregar em muitos lugares. Portanto, a partir do que havia ouvido nas pregações e nas conversas familiares com seu mestre, e de modo todo especial iluminado e inspirado pelo Espírito Santo, estava realmente em condições de satisfazer os piedosos desejos daqueles fiéis. Por isso, dispôs-se a escrever o Evangelho, ou seja, um relato fiel das ações do Salvador; e é isso que temos hoje sob o nome de Evangelho segundo São Marcos.
            São Pedro, de Roma, enviou vários de seus discípulos a diferentes partes da Itália e em muitos países do mundo. Enviou Santo Apolinário a Ravena, São Trófimo à Gália e precisamente à cidade de Arles, de onde o Evangelho se propagou para os outros lugares da França; mandou São Marcos a Alexandria do Egito para fundar em seu nome aquela igreja. Assim, a cidade de Roma, capital de todo o Império Romano, a cidade de Alexandria, que era a primeira depois de Roma, e a de Antioquia, capital de todo o Oriente, tiveram como fundador o Príncipe dos Apóstolos, e tornaram-se, portanto, as três primeiras sedes patriarcais, entre as quais foi por mais séculos repartido o domínio do mundo católico, sempre salvaguardando a dependência dos patriarcas alexandrino e antioqueno ao Pontífice Romano, chefe de toda a Igreja, pastor universal, centro de unidade. Enquanto São Pedro enviava tantos de seus discípulos para pregar em outros lugares o Evangelho, ele em Roma ordenava sacerdotes, consagrava bispos, entre os quais havia escolhido São Zino como vigário para fazer suas vezes nas ocasiões em que algum grave assunto o obrigasse a se afastar daquela cidade.

CAPÍTULO XXIV. São Pedro no concílio de Jerusalém define uma questão. — São Tiago confirma seu julgamento. Ano 50 de Jesus Cristo.
            Roma era a morada ordinária do Príncipe dos Apóstolos, mas seus cuidados deviam se estender a todos os fiéis cristãos. Portanto, caso surgissem dificuldades ou questões a respeito de assuntos de religião, ele enviava algum de seus discípulos, ou escrevia cartas a respeito e às vezes ia ele mesmo pessoalmente, como de fato fez na ocasião em que em Antioquia surgiu uma questão entre os judeus e os gentios.
            Os hebreus acreditavam que, para serem bons cristãos, era necessário receber a circuncisão e observar todas as cerimônias da lei de Moisés. Os gentios se recusavam a se submeter a essa pretensão dos judeus, e a situação chegou a tal ponto que derivava grave dano e escândalo entre os simples fiéis e entre os próprios pregadores do Evangelho. Portanto, São Paulo e São Barnabé julgaram bem recorrer ao julgamento do chefe da Igreja e dos outros Apóstolos, para que com sua autoridade resolvessem toda dúvida.
            São Pedro, portanto, foi de Roma a Jerusalém para convocar um concílio geral. Pois se o Senhor prometeu sua assistência ao chefe da Igreja, para que sua fé não falhasse, certamente o assiste também quando estão reunidos com ele os principais pastores da Igreja; tanto mais que Jesus Cristo nos assegurou estar de fato no meio daqueles que, mesmo em número de apenas dois, se reunissem em seu nome. Chegando, portanto, o Príncipe dos Apóstolos àquela cidade, convidou todos os outros Apóstolos e todos os principais pastores que pôde reunir; então Paulo e Barnabé, acolhidos em concílio, expuseram em plena assembleia sua embaixada em nome dos gentios de Antioquia; mostraram as razões e os temores de uma parte e da outra, pedindo sua deliberação para a quietude e a segurança das consciências. Dizia São Paulo: “Há alguns da seita dos fariseus, os quais acreditaram e afirmam ser necessário que, como os judeus, também os gentios sejam circuncidados e devam observar a lei de Moisés, se quiserem obter a salvação.” Aquela veneranda assembleia começou a examinar este ponto; e após madura discussão sobre a matéria proposta, levantou-se Pedro e começou a falar assim: “Irmãos, bem sabeis como Deus me elegeu para fazer conhecer aos gentios a luz do Evangelho e as verdades da fé, como aconteceu com o centurião Cornélio e com toda a sua família. Agora, Deus que conhece os corações dos homens deu testemunho àqueles bons gentios, enviando sobre eles o Espírito Santo, como havia feito sobre nós, e nenhuma diferença fez entre nós e eles, mostrando que a fé os havia purificado das impurezas que antes os excluíam da graça. Portanto, a coisa é clara: sem circuncisão os gentios são justificados pela fé em Jesus Cristo. Por que, portanto, queremos tentar a Deus, quase provocando-o a nos dar uma prova mais segura de sua vontade? Por que impor a esses nossos irmãos gentios um jugo que com dificuldade nós e nossos pais pudemos suportar? Portanto, nós cremos que pela única graça de nosso Senhor Jesus Cristo, tanto os judeus quanto os gentios, devem ser salvos.”
            Após a sentença do Vigário de Jesus Cristo, silenciou-se e aquietou-se toda aquela assembleia. Paulo e Barnabé confirmaram o que havia dito Pedro, contando as conversões e os milagres que Deus se havia dignado operar por meio deles entre os gentios que haviam convertido ao Evangelho.
            Quando Paulo e Barnabé terminaram de falar, São Tiago, bispo de Jerusalém, confirmou o julgamento de Pedro, dizendo: “Irmãos, agora prestai atenção também a mim. Bem disse Pedro que desde o princípio Deus concedeu a graça aos gentios, formando um só povo que glorificasse seu santo nome. Agora isso é confirmado pelas palavras dos profetas, as quais vemos nestes fatos se cumprirem. Por isso, eu julgo com Pedro que os gentios não devem ser inquietados depois que se converteram a Jesus Cristo; somente me parece que se deve ordenar a eles que, por respeito à débil consciência dos irmãos judeus e para facilitar a união entre esses dois povos, seja proibido comer coisas sacrificadas aos ídolos, carnes sufocadas, o sangue; e seja também proibida a fornicação.”
            Esta última coisa, isto é, a fornicação, não era necessário proibi-la, sendo totalmente contrária aos ditames da razão e proibida pelo sexto artigo do Decálogo. Foi, entretanto, renovada tal proibição em relação aos gentios, porque no culto a suas falsas divindades pensavam que era coisa lícita, ou até agradável, fazer ofertas de coisas imundas e obscenas.
            O julgamento de São Pedro, assim confirmado por São Tiago, agradou a todo o concílio; portanto, de comum acordo determinaram eleger pessoas autorizadas para enviar a Antioquia com Paulo e Barnabé. A estes, em nome do concílio, foram entregues cartas que continham as decisões tomadas. As cartas eram deste teor: “Os Apóstolos e os irmãos sacerdotes aos irmãos gentios que estão em Antioquia, na Síria, na Cilícia, saúde. Tendo nós entendido que alguns vindo daí têm perturbado e angustiado as vossas consciências com ideias arbitrárias, pareceu bem a nós aqui reunidos escolher e enviar a vós Paulo e Barnabé, homens a nós caríssimos, que sacrificaram sua vida e a expuseram ao perigo pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Com eles enviamos Silas e Judas, os quais, entregando-vos nossas cartas, vos confirmarão de viva voz as mesmas verdades. De fato, foi julgado pelo Espírito Santo e por nós não vos impor qualquer outro ônus, exceto aquilo que deveis observar, isto é, de abster-vos das coisas sacrificadas aos ídolos, das carnes sufocadas, do sangue e da fornicação. Fareis bem abstendo-vos destas coisas. Ficai em paz.”
            Este foi o primeiro concílio geral ao qual presidiu São Pedro, no qual, como Príncipe dos Apóstolos e chefe da Igreja, definiu a questão com a assistência do Espírito Santo. Assim, todo fiel cristão deve crer que as coisas definidas pelos concílios gerais reunidos e confirmados pelo Sumo Pontífice, Vigário de Jesus Cristo e sucessor de São Pedro, são verdades certíssimas, que dão os mesmos motivos de credibilidade como se saíssem da boca do Espírito Santo, porque eles representam a Igreja com seu chefe, a quem Deus prometeu sua infalibilidade até o fim dos séculos.

CAPÍTULO XXV. São Pedro confere a São Paulo e a São Barnabé a plenitude do Apostolado. — É advertido por São Paulo. — Retorna a Roma. Ano 54 de Jesus Cristo.
            Deus já havia feito conhecer mais vezes que queria enviar São Paulo e São Barnabé para pregar aos gentios. Mas até então exerciam seu sagrado ministério como simples sacerdotes, e talvez também como bispos, sem que ainda lhes fosse conferida a plenitude do apostolado. Quando então foram a Jerusalém por causa do concílio e contaram as maravilhas operadas por Deus por meio deles entre os gentios, permaneceram também em especiais conversas com São Pedro, Tiago e João. Contaram, diz o texto sagrado, grandes maravilhas àqueles que ocupavam os primeiros cargos na Igreja, entre os quais estavam certamente os três Apóstolos nomeados, que se consideravam como as três colunas principais da Igreja. Foi nesta ocasião, diz Santo Agostinho, que São Pedro, como chefe da Igreja, Vigário de Jesus Cristo e divinamente inspirado, conferiu a Paulo e a Barnabé a plenitude do apostolado, com a incumbência de levar a luz do Evangelho aos gentios. Assim, São Paulo foi elevado à dignidade de Apóstolo, com a mesma plenitude de poderes que gozavam os outros Apóstolos estabelecidos por Jesus Cristo.
            Enquanto São Pedro e São Paulo moravam em Antioquia, ocorreu um fato que merece ser referido. São Pedro estava certamente persuadido de que as cerimônias da lei de Moisés não eram mais obrigatórias para os gentios; no entanto, quando se encontrava com os judeus, comia à maneira judaica, temendo descontentá-los, se agisse de outra forma. Tal condescendência era causa de que muitos gentios se esfriassem na fé; portanto, surgia aversão entre gentios e judeus, e se rompia aquele vínculo de caridade que forma o caráter dos verdadeiros seguidores de Jesus Cristo. São Pedro ignorava as conversas que tinham lugar por causa deste fato. Mas São Paulo, percebendo que tal conduta de Pedro poderia gerar escândalo na comunidade dos fiéis, pensou em corrigi-lo publicamente, dizendo: “Se tu, sendo judeu, conheceste pela fé que podes viver como os gentios e não como os judeus, por que com teu exemplo queres obrigar os gentios à observância da lei judaica?” São Pedro ficou muito contente com tal aviso, pois com aquele fato se publicava diante de todos os fiéis que a lei cerimonial de Moisés não era mais obrigatória, e como aquele que a outros pregava a humildade de Cristo Jesus, soube praticá-la ele mesmo, não dando o mínimo sinal de ressentimento. Desde então não teve mais qualquer consideração pelas cerimônias contidas na lei de Moisés.
            Deve-se aqui, no entanto, notar com os Santos Padres que o que fazia São Pedro não era mau em si, mas fornecia aos cristãos motivo de discórdia. Quer-se ainda que São Pedro tenha estado de acordo com São Paulo a respeito da correção a ser feita publicamente, a fim de que fosse ainda mais conhecida a cessação da lei cerimonial de Moisés. De Antioquia foi pregar em várias cidades, até que foi avisado por Deus de retornar a Roma, para assistir os fiéis em uma feroz perseguição excitada contra os cristãos. Quando São Pedro chegou àquela cidade, Nero governava o império, homem cheio de vícios e, por consequência, o mais adverso ao cristianismo. Propositalmente ele havia feito atear fogo em vários pontos daquela capital, de modo que muitos cidadãos foram em grande parte consumidos pelas chamas; e depois jogava a culpa daquela malvada ação sobre os cristãos. Em sua crueldade, Nero havia mandado matar um virtuoso filósofo, de nome Sêneca, que fora seu mestre. Sua própria mãe pereceu vítima daquele filho desnaturado. Mas a gravidade desses crimes fez uma terrível impressão também no coração embrutecido de Nero, tanto que lhe parecia ver espectros que o acompanhavam dia e noite. Portanto, buscava apaziguar as sombras infernais, ou melhor, os remorsos da consciência, com sacrifícios. Desejando então buscar procurar algum alívio, mandou chamar os magos mais acreditados, para fazer uso de sua magia e de seus encantamentos. O mago Simão, aquele mesmo que havia tentado comprar de São Pedro os dons do Espírito Santo, aproveitou-se da ausência do Santo Apóstolo a fim de ir para lá e, à força de adulações ao imperador, desacreditar a religião cristã.

CAPÍTULO XXVI. São Pedro ressuscita um morto. Ano 66 de Jesus Cristo.
            O mago Simão sabia que, se pudesse fazer algum milagre, ganharia grande crédito. Aqueles que São Pedro realizava em toda parte serviam apenas para acendê-lo ainda mais de inveja e raiva; por isso, ele estudava algum prestígio para se mostrar superior a São Pedro. Confrontou com ele várias vezes, mas sempre saiu cheio de confusão. E como se gabava de saber curar enfermidades, prolongar a vida, ressuscitar os mortos, coisas que ele via serem feitas por São Pedro, aconteceu que foi convidado a fazer o mesmo. Um jovem de família nobre e parente do imperador havia morrido. Seus pais, inconsoláveis, foram aconselhados a recorrer a São Pedro para que ele viesse trazê-lo de volta à vida. Outros, no entanto, convidaram Simão.
            Ambos chegaram ao mesmo tempo à casa do falecido. São Pedro, de bom grado, consentiu que Simão fizesse suas tentativas para devolver a vida ao morto; pois sabia que somente Deus pode operar verdadeiros milagres, e que ninguém pode se gabar de tê-los realizado, exceto por virtude divina e em confirmação da religião católica, e que, portanto, todos os esforços do ímpio Simão seriam em vão. Cheio de arrogância e impulsionado pelo espírito maligno, Simão aceitou loucamente o desafio; e, convencido de que venceria, propôs a seguinte condição: se Pedro conseguisse ressuscitar o morto, eu seria condenado à morte; mas se eu der vida a este cadáver, Pedro pagará com sua cabeça. Não havendo entre os presentes quem recusasse aquela proposta. São Pedro aceitou de boa vontade e o mago se preparou para a façanha.
            Ele se aproximou do caixão do falecido e, invocando o demônio e realizando mil outros encantamentos, pareceu a alguns que aquele corpo frio dava algum sinal de vida. Então, os partidários de Simão começaram a gritar que Pedro deveria morrer. O Santo Apóstolo ria daquela impostura e, modestamente pedindo a todos que quisessem silenciar por um momento, disse: “Se o morto ressuscitou, que se levante, caminhe e fale; si resuscitatus est, surgat, ambulet, fabuletur. Não é verdade que ele mova a cabeça ou dê sinal de vida, é a vossa fantasia que vos faz pensar assim. Ordenem a Simão que se afaste do leito; e logo verão desaparecer do morto toda esperança de vida.[23]
            Assim foi feito, e aquele que antes estava morto continuava a jazer como uma pedra sem espírito e movimento. Então, o Santo Apóstolo se ajoelhou a pouca distância do caixão e começou a orar fervorosamente ao Senhor, suplicando-lhe que glorificasse seu santo nome para confusão dos ímpios e conforto dos bons. Após breve oração, voltando-se para o cadáver, disse em voz alta: “Jovem, levanta-te; o Senhor Jesus te dá a vida e a saúde.”
            Ao comando dessa voz, a qual a morte estava acostumada a obedecer, o espírito voltou prontamente a vivificar aquele corpo frio; e para que não parecesse uma ilusão, ele se levantou, falou, caminhou e foi alimentado. Além disso, Pedro o tomou pela mão e, vivo e são, o devolveu à mãe. Aquela boa mulher não sabia como expressar sua gratidão ao Santo, e humildemente pediu-lhe que não quisesse deixar sua casa, para que não fosse abandonado quem havia ressuscitado por suas mãos. São Pedro a confortou, dizendo: “Nós somos servos do Senhor, ele o ressuscitou e nunca o abandonará. Não temas por teu filho, pois ele tem seu guardião.”
            Restava agora que o mago fosse condenado à morte, e já uma multidão estava pronta para apedrejá-lo sob uma chuva de pedras, se o Apóstolo, movido de compaixão por ele, não tivesse pedido que fosse deixado em vida, dizendo que para ele era castigo bastante a grande a vergonha que havia sentido. Disse: “Viva, mas viva para ver crescer e se expandir cada vez mais o reino de Jesus Cristo.”

CAPÍTULO XXVII. Voo. — Queda. — Morte desesperada de Simão Mago. Ano 67 de Jesus Cristo.
            Na ressurreição daquele jovem, o mago Simão deveria admirar a bondade e a caridade de Pedro, e ao mesmo tempo reconhecer a intervenção da potência divina, e assim abandonar o demônio a quem servia há tanto tempo; mas o orgulho o tornou ainda mais obstinado. Animado pelo espírito de Satanás, ele se enfureceu mais do que nunca e resolveu a qualquer custo se vingar de São Pedro. Com esse pensamento, um dia foi até Nero e disse que estava enojado com os galileus, ou seja, os cristãos, que estava decidido a abandonar o mundo e que, para dar a todos uma prova infalível de sua divindade, queria subir por si mesmo ao Céu.
            A proposta agradou muito a Nero; e como desejava sempre encontrar novos pretextos para perseguir os cristãos, fez avisar São Pedro, que segundo ele era um grande conhecedor de magia, e desafiou-o a fazer o mesmo e a provar que Simão era um mentiroso; que se não o fizesse, ele mesmo seria julgado mentiroso e impostor, e como tal condenado à decapitação. O Apóstolo, apoiado na proteção do Céu, que nunca falta em defesa da verdade, aceitou o convite. São Pedro, portanto, sem qualquer socorro humano, se armou do escudo inexpugnável da oração. Ele também ordenou a todos os fiéis que, com jejum, unissem as próprias orações às suas. Ele também ordenou a todos os fiéis que, com jejum universal e orações contínuas, invocassem a divina misericórdia. O dia em que essas práticas religiosas eram realizadas era sábado, e daí surgiu o jejum do sábado, que nos tempos de Santo Agostinho ainda era praticado em Roma em memória deste acontecimento.
            Por outro lado, o Mago Simão, todo empolgado pelo favor prometido por seus demônios, se preparava para tramar e concluir com eles a fraude, e em sua loucura acreditava que com esse golpe derrubaria a Igreja de Jesus Cristo. Chegou o dia marcado. Uma imensa multidão estava reunida em uma grande praça de Roma. Nero, com toda a corte, vestido com roupas brilhantes de ouro e gemas, estava sentado em uma tribuna sob um riquíssimo pavilhão, observando e confortando seu campeão. Fez-se um profundo silêncio. Apareceu Simão vestido como se fosse um Deus e, fingindo tranquilidade, mostrava segurança de conquistar a vitória. Enquanto se exibia em discursos pomposos, de repente apareceu no ar uma carruagem de fogo, (era toda uma ilusão diabólica e jogo de fantasia). Sendo o mago recebido dentro dela à vista de todo o povo, o demônio o levantou do chão e o transportou pelo ar. Já tocava as nuvens e começava a desaparecer da vista do povo, que, com os olhos voltados para cima, jubilando de maravilha e batendo palmas, gritava: Vitória! Milagre! Glória e honra a Simão, verdadeiro filho dos Deuses!
            Pedro, em companhia de São Paulo, sem qualquer ostentação, se ajoelhou no chão e, com as mãos levantadas ao Céu, fervorosamente orou a Jesus Cristo que quisesse vir em auxílio de sua Igreja para fazer triunfar a verdade diante daquele povo iludido. Dito e feito: a mão de Deus onipotente, que havia permitido que os espíritos malignos levantassem Simão até àquela altura, de repente retirou deles todo poder, de modo que, privados de força, tiveram que abandoná-lo no mais grave perigo e no auge de sua glória. Retirada de Simão a virtude diabólica, abandonado ao peso de seu corpo gordo, ele teve uma queda desastrosa e despencou com tal ímpeto ao chão que, despedaçando-se em todos os membros, espirrou sangue até o tribunal de Nero. Tal queda ocorreu perto de um templo dedicado a Rômulo, onde hoje existe a igreja dos santos Cosme e Damião.
            O infeliz Simão certamente deveria ter perdido a vida se São Pedro não tivesse invocado Deus a seu favor. Pedro, diz São Máximo, orou ao Senhor para livrá-lo da morte, tanto para fazer conhecer a Simão a fraqueza de seus demônios, quanto para que, confessando o poder de Jesus Cristo, implorasse dele o perdão de suas culpas. Mas aquele que há muito fazia profissão de desprezar as graças do Senhor, era obstinado demais para se render, mesmo neste caso, em que Deus derramava em abundância a sua misericórdia. Simão, tornando-se o objeto das zombarias de todo o povo, cheio de confusão, pediu a alguns de seus amigos que o levassem para longe dali. Levado a uma casa próxima, sobreviveu ainda alguns dias; até que, oprimido pela dor e pela vergonha, se apegou à desesperada decisão de se livrar daqueles miseráveis restos de vida e, jogando-se de uma janela, se deu assim voluntariamente a morte[24].
            A queda de Simão é viva imagem da queda daqueles cristãos que, ou renegando a religião cristã ou negligenciando observá-la, caem do sublime grau de virtude a que a fé cristã os elevou, e se arruínam miseravelmente nos vícios e desordens, com desonra do caráter cristão e da religião que professam e com dano, às vezes irreparável, para suas almas.

CAPÍTULO XXVIII. Pedro é procurado para morrer. — Jesus lhe aparece e lhe prediz iminente o martírio. — Testamento do santo Apóstolo.
            O suplício que coube a Simão Mago, enquanto tornava evidente a vingança do Céu, contribuiu muito para aumentar o número de cristãos. Nero, por outro lado, vendo uma multidão de pessoas abandonarem o culto profano dos Deuses para professar a religião pregada por São Pedro, e percebendo que o Santo Apóstolo, com a pregação, havia conseguido ganhar pessoas muito favorecidas por ele, e aquelas mesmas que na corte eram instrumentos de iniquidade, sentiu aumentar sua raiva contra os cristãos e começou a se tornar ainda mais cruel contra eles.
            Em meio ao furor daquela perseguição, Pedro era incansável em animar os fiéis a serem constantes na fé até a morte e em converter novos gentios, de modo que o sangue dos mártires, longe de aterrorizar os cristãos e diminuir seu número, era uma semente fecunda que a cada dia os multiplicava. Somente os judeus de Roma, talvez estimulados pelos judeus da Judeia, se mostravam obstinados. Portanto, Deus, querendo chegar à última prova para vencer sua obstinação, fez publicamente predizer por seu Apóstolo que em breve suscitaria um rei contra aquela nação, o qual, após reduzi-la às mais graves angústias, nivelaria ao chão sua cidade, forçando os cidadãos a morrerem de fome e sede. Então, dizia-lhes, ver-se-ão alguns comerem os corpos dos outros e se consumirem mutuamente, até que, entregues a seus inimigos, verão sob seus olhos estraçalharem cruelmente suas esposas, suas filhas e seus filhos, espancados e mortos sobre as pedras; suas próprias terras serão reduzidas a desolação e ruína pelo ferro e pelo fogo. Aqueles que escaparem da calamidade comum serão vendidos como animais de carga e sujeitos à servidão perpétua. Tais males virão sobre os filhos de Jacó, porque se alegraram com a morte do Filho de Deus e agora se recusam a crer nele[25].
            Mas sabendo bem os ministros da perseguição que se esforçariam em vão se não eliminassem o chefe dos cristãos, voltaram-se contra ele para tê-lo em suas mãos e matá-lo. Os fiéis, considerando a perda que teriam com sua morte, estudavam todos os meios para impedir que ele caísse nas mãos dos perseguidores. Quando perceberam que era impossível que ele pudesse permanecer escondido por mais tempo, aconselharam-no a sair de Roma e se retirar para um lugar onde fosse menos conhecido. Pedro se recusava a tais conselhos sugeridos pelo amor filial e, na verdade, ardentemente desejava a coroa do martírio. Mas, continuando os fiéis a implorar-lhe que fizesse isso pelo bem da Igreja de Deus, ou seja, tentasse conservar-se vivo para instruir, confirmar na fé os crentes e ganhar almas para Cristo, finalmente ele consentiu e decidiu-se a partir.
            À noite, despediu-se dos fiéis para escapar ao furor dos idólatras. Mas, ao chegar fora da cidade, pela Porta Capena, hoje chamada Porta São Sebastião, apareceu-lhe Jesus Cristo na mesma aparência em que o havia conhecido e partilhado sua vida com por diversos anos. O Apóstolo, embora surpreso com essa aparição inesperada, no entanto, segundo sua prontidão de espírito, se animou a interrogá-lo, dizendo: “Ó Senhor, para onde vais?” Domine, quo vadis? Respondeu Jesus: “Eu vou a Roma para ser crucificado novamente.” Dito isso, desapareceu.
            Diante dessas palavras, Pedro compreendeu que sua própria crucificação era iminente, pois sabia que o Senhor não poderia mais ser crucificado por si mesmo, mas deveria ser crucificado na pessoa de seu Apóstolo. Em memória desse acontecimento, fora da Porta São Sebastião foi edificada uma igreja chamada ainda hoje “Domine, quo vadis”, ou “Santa Maria ad Passus”, isto é, Santa Maria aos pés, porque o Salvador, naquele lugar, onde falou a São Pedro, deixou impressa em uma pedra a sagrada pegada de seus pés. Esta pedra é conservada até hoje na igreja de São Sebastião.
            Após esse aviso, São Pedro voltou e, interrogado pelos cristãos de Roma sobre a razão de seu tão rápido retorno, contou-lhes tudo. Ninguém teve mais dúvida de que Pedro seria encarcerado e glorificaria o Senhor dando por Ele a vida. No temor, portanto, de cair a qualquer momento nas mãos dos perseguidores e que, nesses momentos calamitosos, a Igreja ficasse sem seu supremo pastor, Pedro pensou em nomear alguns bispos mais zelosos, para que um deles sucedesse no Pontificado após sua morte. Foram estes São Lino, São Cleto, São Clemente e Santo Anacleto, que já o haviam ajudado no ofício de seus vigários nas várias necessidades da Igreja.
            Não satisfeito em ter assim providenciado às necessidades da Sé Pontifícia, também quis dirigir um escrito a todos os fiéis, como seu testamento, ou seja, uma segunda carta. Esta carta é dirigida ao corpo universal dos cristãos, nomeando em particular aqueles do Ponto, da Galácia e de outras províncias da Ásia a quem havia pregado.
            Após ter novamente aludido às coisas já ditas em sua primeira carta, recomenda que tenham sempre os olhos em Jesus Salvador, cuidando-se da corrupção deste século e dos prazeres mundanos. Para resolvê-los a manter-se firmes na virtude, coloca diante deles os prêmios que o Salvador tem preparados no reino eterno do Céu; e ao mesmo tempo recorda os terríveis castigos com os quais Deus costuma punir os pecadores, muitas vezes também nesta vida, mas infalivelmente na outra com a pena eterna do fogo. Transportando-se então com seu pensamento para o futuro, prediz os escândalos que muitos homens perversos haveriam de suscitar, os erros que haveriam de disseminar e as astúcias das quais se serviriam para propagá-los. Diz ele: “Mas sabei que esses, à semelhança de fontes sem água e de névoas escuras agitadas pelos ventos, são todos impostores e sedutores de almas. Prometem uma liberdade, que sempre acaba numa miserável escravidão em que se encontram envolvidos; após o que, a eles é reservado o juízo, a perdição e o fogo.”
            E continua: “Para mim estou certo, segundo a revelação recebida de Nosso Senhor Jesus Cristo, que em breve devo abandonar este tabernáculo do meu corpo; mas não deixarei de fazer com que, mesmo após minha morte, tenhais os meios para recordar tais coisas em vossas mentes. Ficai certos de que as promessas do Senhor nunca faltarão: virá o dia extremo em que os céus cessarão de existir, os elementos serão dissolvidos ou devorados pelo fogo, a terra será consumida com tudo o que contém. Portanto, ocupai-vos nas obras de piedade, aguardando com paciência e prazer a vinda do dia do Senhor e, segundo suas promessas, vivamos de modo a podermos passar à contemplação dos céus e à posse de uma glória eterna.”
            Depois, os exorta a se conservarem puros do pecado e a crerem constantemente que a longa paciência que o Senhor frequentemente usa conosco é para nosso bem comum. Então recomenda calorosamente que não interpretem as Sagradas Escrituras com o entendimento privado de cada um, e nota particularmente as cartas de São Paulo, que ele chama de seu irmão caríssimo, das quais diz assim: “Jesus Cristo adia sua vinda para dar-lhes tempo de se converterem; estas coisas vos escreveu Paulo, nosso caríssimo irmão, segundo a sabedoria que lhe foi dada por Deus. Assim faz também em todas as suas cartas, onde ele fala dessas mesmas coisas. Ficai, porém, bem atentos que nessas cartas há algumas coisas difíceis de entender, que os homens ignorantes e instáveis explicam de forma perversa, como fazem também com outras partes da Sagrada Escritura, das quais abusam para sua própria perdição.” Essas palavras merecem ser atentamente consideradas pelos protestantes, que querem confiar a interpretação da Bíblia a qualquer homem do povo, por mais rude e ignorante que seja. A esses pode-se aplicar o que diz São Pedro, ou seja, que a estravagante explicação da Bíblia resultou em sua própria perdição: ad suam ipsorum perditionem[26].

CAPÍTULO XXIX. São Pedro na prisão converte Processo e Martiniano. — Seu martírio[27]. Ano 69-70 de Jesus Cristo; 67 da era vulgar.
            Finalmente chegara o momento em que deveriam se cumprir as previsões feitas por Jesus Cristo a respeito da morte de seu Apóstolo. Tanto esforço merecia ser coroado com a palma do Martírio. Enquanto um dia sentia tudo arder de amor pela pessoa do Divino Salvador e desejava vivamente poder se unir a Ele o mais rápido possível, foi surpreendido por perseguidores que imediatamente o amarraram e o conduziram a uma profunda e sombria prisão chamada Mamertina, onde costumavam prender os mais famosos criminosos[28]. A divina providência dispôs que Nero, por assuntos de governo, devesse se afastar por algum tempo de Roma; assim, São Pedro permaneceu cerca de nove meses na prisão. Mas os verdadeiros servos do Senhor sabem promover a glória de Deus em todo tempo e lugar.
            Na escuridão da prisão, Pedro, exercendo os cuidados de seu apostolado e especialmente o ministério da divina palavra, teve a consolação de conquistar para Jesus Cristo os dois guardas da prisão, chamados Processo e Martiniano, além de outras 47 pessoas que estavam encerradas no mesmo lugar.
            É tradição, confirmada pela autoridade de escritores confiáveis, que não havendo água para administrar o batismo a esses novos convertidos, Deus fez brotar naquele instante uma fonte perene, cujas águas continuam a jorrar até hoje. Os viajantes que vão a Roma procuram visitar a prisão Mamertina, que fica aos pés do Capitólio, onde ainda jorra a prodigiosa fonte. Esse edifício, tanto na parte subterrânea quanto naquela que se eleva acima da terra, é objeto de grande veneração entre os cristãos.
            Os ministros do imperador tentaram várias vezes vencer a constância do santo Apóstolo; mas, vendo que todos os seus esforços eram inúteis, e além disso, percebendo que, mesmo acorrentado, ele não cessava de pregar Jesus Cristo e assim aumentar o número de cristãos, decidiram fazê-lo silenciar com a morte. Era uma manhã quando Pedro viu a prisão se abrir. Entram os algozes, o amarram firmemente e anunciam que ele deve ser levado ao suplício. Oh! Então seu coração se encheu de alegria. Exclamava: “Eu me alegro porque em breve verei meu Senhor. Em breve irei encontrar Aquele que amei e de quem recebi tantos sinais de afeto e misericórdia.”
            Antes de ser levado ao suplício, o santo Apóstolo, segundo as leis romanas, foi submetido a uma dolorosa flagelação; isto lhe causou grande alegria, pois assim se tornava cada vez mais fiel seguidor de seu divino Mestre, que antes de ser crucificado foi submetido a semelhante castigo.
            Até mesmo o caminho que ele percorreu indo para o suplício merece ser notado. Os romanos, conquistadores do mundo, após submeter alguma nação, preparavam a pompa do triunfo em uma magnífica carruagem no vale ou melhor, na planície aos pés do monte Vaticano. De lá, pela via sagrada, chamada também triunfal, os vencedores subiam triunfantes ao Capitólio. São Pedro, após ter submetido o mundo ao suave jugo de Cristo, também é levado para fora da prisão e pela mesma estrada conduzido ao lugar onde se preparavam aquelas grandes solenidades.
            Assim celebrava também a cerimônia do triunfo e oferecia a si mesmo em holocausto ao Senhor, fora da porta de Roma, como fora de Jerusalém havia sido crucificado seu divino Mestre.
            Entre o monte Janículo[29] e o Vaticano havia um vale onde, ao se reunirem as águas, formava-se um pântano. No outro cimo da montanha que olhava para o pântano, estava o lugar destinado ao martírio do maior homem do mundo. O intrépido atleta, quando chegou ao lugar do patíbulo e viu a cruz na qual estava condenado a morrer, cheio de coragem e alegria exclamou: “Salve, ó cruz, salvação das nações, estandarte de Cristo, ó caríssima cruz, salve, ó conforto dos cristãos. Tu és aquela que me assegura o caminho do céu, és aquela que me assegura a entrada no reino da glória. Tu, que um dia vi rubra do santíssimo sangue do meu Mestre, hoje sê meu auxílio, meu conforto, minha salvação.[30]
            No entanto, São Pedro considerava para si uma honra demasiado grande sofrer uma morte semelhante à de seu divino Mestre; portanto, pediu a seus crucificadores que, por graça, quisessem fazê-lo morrer com a cabeça para baixo. Como tal maneira de morrer o fizesse sofrer mais, assim a graça lhe foi facilmente concedida. Mas seu corpo, naturalmente, não poderia se manter na cruz se as mãos e os pés fossem unicamente cravados com os pregos; por isso, seus santos membros foram amarrados com cordas àquele duro tronco.
            Ele foi acompanhado ao lugar do suplício por uma infinidade de cristãos e infiéis. Esse homem de Deus, em meio aos mesmos tormentos, quase esquecendo de si mesmo, consolava os primeiros para que não se afligissem por ele; esforçava-se para salvar os segundos, exortando-os a deixar o culto dos ídolos e abraçar o Evangelho, para que pudessem conhecer o único verdadeiro Deus, criador de todas as coisas. O Senhor, que sempre dirigia o zelo de tão fiel ministro, o consolou em sua última agonia com a conversão de um grande número de idólatras de toda condição e sexo[31].
            Enquanto São Pedro pendia na cruz, Deus também quis consolá-lo com uma visão celeste. Apareceram-lhe dois anjos com duas coroas de lírios e rosas, para indicar-lhe que seus sofrimentos haviam chegado ao fim e que ele deveria ser coroado de glória na bem-aventurada eternidade[32].
            São Pedro alcançou na cruz tão nobre triunfo no dia 29 de junho, no ano septuagésimo de Jesus Cristo e sexagésimo sétimo da era vulgar. No mesmo dia em que São Pedro morria na cruz, São Paulo, sob a espada do mesmo tirano, glorificava Jesus Cristo sendo decapitado. Dia verdadeiramente glorioso para todas as Igrejas da Cristandade, mas especialmente para a de Roma, a qual, após ter sido fundada por Pedro e longamente nutrida com a doutrina de ambos esses Príncipes dos Apóstolos, é agora consagrada por seu martírio, por seu sangue, e sublimada acima de todas as igrejas do mundo.
            Assim, enquanto era iminente a destruição da cidade santa de Jerusalém, e seu templo deveria ser queimado, Roma, que era a capital e a senhora de todas as nações, tornava-se, por meio desses dois Apóstolos, a Jerusalém da nova aliança, a cidade eterna, e tanto mais gloriosa que a velha Jerusalém, quanto a graça do Evangelho e o sacerdócio da nova lei são maiores do que o sacerdócio, de todas as cerimônias e figuras da antiga lei.
            São Pedro foi martirizado aos 86 anos, após um pontificado de 35 anos, 3 meses e 4 dias. Três anos os passou especialmente em Jerusalém. Depois, ocupou sua cátedra por sete anos em Antioquia, o restante em Roma.

CAPÍTULO XXX. Sepulcro de São Pedro. — Atentado contra seu corpo.
            Assim que São Pedro exalou o último suspiro, muitos cristãos partiram do lugar do suplício chorando a morte do supremo Pastor da Igreja. Por outro lado, São Lino, seu discípulo e imediato sucessor, dois sacerdotes irmãos, São Marcelo e Santo Apuleio, Santo Anacleto e outros fervorosos cristãos se reuniram em torno da cruz de São Pedro. Quando então os algozes se afastaram do lugar do martírio, eles depositaram o corpo do santo Apóstolo, ungiu-o com preciosos aromas, embalsamaram-no e o levaram para ser sepultado perto do Circo, ou seja, junto aos jardins de Nero no monte Vaticano, propriamente no lugar onde hoje ainda se venera. Seu corpo foi colocado em um local onde já haviam sido sepultados muitos mártires, discípulos dos santos Apóstolos e primícias da Igreja católica, que por ordem de Nero haviam sido expostos às feras, ou crucificados, ou queimados, ou mortos à força de inauditos tormentos. Santo Anacleto havia erguido ali um pequeno cemitério, em um canto do qual levantou uma espécie de oratório onde repousa o corpo de São Pedro. Este local tornou-se célebre e todos os papas sucessores de São Pedro demonstraram sempre vivo desejo de serem ali sepultados.
            Pouco depois da morte de São Pedro, vieram a Roma alguns cristãos do Oriente, que, considerando ser para eles um grande tesouro possuir as relíquias do santo Apóstolo, resolveram adquiri-las. Mas, sabendo que seria inútil tentar comprá-las com dinheiro, pensaram em roubá-las, quase como coisa própria, e levá-las de volta aos lugares de onde o santo viera. Foram, portanto, corajosamente ao sepulcro, tiraram o corpo de lá e o levaram para as catacumbas, que são um lugar escavado sob a terra, atualmente chamado de São Sebastião, com a intenção de enviá-lo ao Oriente assim que surgisse a oportunidade.
            Deus, por outro lado, que havia chamado aquele grande Apóstolo a Roma para que a tornasse gloriosa com o martírio, também dispôs que seu corpo fosse conservado naquela cidade e tornasse aquela igreja a mais gloriosa do mundo. Portanto, quando aqueles orientais foram cumprir seu plano, levantou-se uma tempestade com um turbilhão tão forte, que pelo barulho dos trovões e pelo relampejar dos relâmpagos foram forçados a interromper sua obra.
            Os cristãos de Roma perceberam o ocorrido e, em grande multidão, saindo da cidade, recuperaram o corpo do santo Apóstolo e o levaram novamente ao monte Vaticano de onde havia sido retirado[33].
            No ano 103, Santo Anacleto, tornando-se Sumo Pontífice, vendo um pouco acalmadas as perseguições contra os cristãos, às suas custas ergueu um pequeno templo, de modo que abrigasse as relíquias e todo o sepulcro ali existente. Esta é a primeira igreja dedicada ao Príncipe dos Apóstolos.
            Este sagrado depósito permaneceu exposto à veneração dos fiéis até a metade do terceiro século. Somente no ano 221, pela ferocidade com que eram perseguidos os cristãos, temendo que os corpos dos santos Apóstolos Pedro e Paulo fossem profanados pelos infiéis, foram transportados pelo Pontífice para as catacumbas chamadas Cemitério de São Calisto, naquela parte que hoje se chama cemitério de São Sebastião. Mas no ano 255 o papa São Cornélio, a pedido e instância de Santa Lucina e de outros cristãos, trouxe de volta o corpo de São Paulo na via Óstia, no local onde havia sido decapitado. O corpo de São Pedro foi novamente transportado e colocado na tumba primitiva aos pés do monte Vaticano.

CAPÍTULO XXXI. Tumba e Basílica de São Pedro no Vaticano.
            Nos primeiros séculos da Igreja, os fiéis, na maioria das vezes, não podiam ir ao túmulo de São Pedro, a não ser com grande perigo de serem acusados como cristãos e levados diante dos tribunais dos perseguidores. No entanto, sempre houve grande afluxo de pessoas, que vinham de lugares distantes para invocar a proteção do Céu no túmulo de São Pedro. Mas quando Constantino se tornou o senhor do Império Romano e pôs fim às perseguições, então cada um pôde livremente se mostrar seguidor de Jesus Cristo, e o túmulo de São Pedro se tornou o santuário do mundo cristão, onde de todos os cantos vinham pessoas para venerar as relíquias do primeiro Vigário de Jesus Cristo. O próprio imperador professava publicamente o Evangelho, e entre os muitos sinais que deu de apego à religião católica, um foi o de ter mandado construir várias igrejas, entre as quais aquela em honra do Príncipe dos Apóstolos; a qual, por isso, às vezes também é chamada de Basílica Constantiniana, mais comumente conhecida como Basílica Vaticana.
            Portanto, no ano 319, Constantino, por seu impulso e a convite de São Silvestre, estabeleceu que o local da nova Igreja fosse aos pés do Vaticano, com o desenho que englobasse todo o pequeno templo construído por Santo Anacleto e que até aquele momento havia sido objeto da veneração comum. No dia em que o Imperador Constantino queria dar início à santa empreitada, depositou no local o diadema imperial e todos os símbolos reais, então se prostrou ao chão e derramou muitas lágrimas de devota ternura. Pegando então a enxada, começou a cavar com suas próprias mãos o terreno, dando assim início à escavação das fundações da nova basílica. Quis ele mesmo formar o desenho e estabelecer o espaço que deveria abranger o novo templo; e para animar a dar mão à obra com alacridade, quis carregar sobre suas próprias costas doze caixões de terra em honra dos doze Apóstolos. Então foi desenterrado o corpo de São Pedro, e na presença de muitos fiéis e de muito clero, foi colocado por São Silvestre em uma grande caixa de prata, com outra caixa de bronze dourado, plantada firmemente no solo. A urna que continha o sagrado depósito tinha cinco pés de altura, largura e comprimento; sobre ela foi colocada uma grande cruz de ouro puríssimo, pesando cento e cinquenta libras, na qual estavam gravados os nomes de Santa Helena e de seu filho Constantino. Terminada aquela majestosa edificação, preparada uma cripta ou câmara subterrânea toda ornada de ouro e de gemas preciosas, cercada por uma quantidade de lâmpadas de ouro e de prata, ali colocou o precioso tesouro: a cabeça de São Pedro. São Silvestre convidou muitos bispos; e os fiéis cristãos de todas as partes do mundo compareceram a esta solenidade. Para encorajá-los ainda mais, abriu o tesouro da Igreja e concedeu muitas indulgências. O afluxo foi extraordinário; a solenidade foi majestosa; era a primeira consagração que se fazia publicamente com ritos e cerimônias tais como se praticam ainda hoje na consagração dos edifícios sagrados. A função se completou no ano 324, no dia dezoito de novembro. A urna de São Pedro, assim fechada, nunca mais foi reaberta, e sempre foi objeto de veneração em toda a cristandade. Constantino doou muitos bens para a decoração e a conservação daquele augusto edifício. Todos os sumos Pontífices se esforçaram para tornar glorioso o sepulcro do Príncipe dos Apóstolos.
            Mas todas as coisas humanas vão se consumindo com o tempo, e a basílica Vaticana no século XVI se viu em perigo de ruína. Por isso, os Pontífices decidiram refazê-la inteiramente. Após muitos estudos, graves fadigas e grandes despesas, pôde-se colocar a pedra fundamental do novo templo no ano de 1506. O grande papa Júlio II, apesar de sua avançada idade e do profundo abismo em que deveria descer para chegar à base do pilar da cúpula, quis, no entanto, descer pessoalmente para estabelecer e colocar com solene cerimônia a primeira pedra. É difícil descrever as fadigas, o trabalho, o dinheiro, o tempo, os homens que se empenharam nesta maravilhosa construção.
            O trabalho foi concluído no espaço de cento e vinte anos, e finalmente Urbano VIII, assistido por 22 cardeais e por todos aqueles dignitários que costumam participar das funções pontifícias, consagrou solenemente a majestosa basílica no dia 18 de novembro de 1626, ou seja, no mesmo dia em que São Silvestre havia consagrado a antiga basílica erigida por Constantino. Durante todo esse tempo, em meio a tantas restaurações e a tantos trabalhos de construção, as relíquias de São Pedro não sofreram qualquer transladação; nem a urna, nem a caixa de bronze foram movidas, nem a cripta foi aberta. O novo piso, tendo que ser um pouco elevado acima do antigo, foi disposto de modo a englobar a capela primitiva e deixar assim intacto o altar consagrado por São Silvestre. A esse respeito, nota-se que, quando o arquiteto Giacomo della Porta levantava as camadas do piso ao redor do antigo altar para sobrepor o novo, descobriu a janela que correspondia à sagrada urna. Colocando uma luz dentro, reconheceu a cruz de ouro que havia sido colocada por Constantino e por Santa Helena, sua mãe. Fez imediatamente um relatório ao Papa a esse respeito, que em 1594 era Clemente VIII, o qual, acompanhado pelos cardeais Bellarmino e Antoniano, foi pessoalmente ao local e encontrou o que havia sido relatado pelo arquiteto. O Pontífice não quis abrir nem o sepulcro nem a urna; nem consentiu que alguém se aproximasse, ao contrário, ordenou que a abertura fosse fechada com cimento. Desde então, nunca mais foi aberta a tumba, nem ninguém se aproximou mais daquelas relíquias veneráveis.
            Os peregrinos que vão a Roma para visitar a grande basílica de São Pedro no Vaticano, ao vê-la pela primeira vez, ficam como que encantados; e as personalidades mais célebres por seu engenho e ciência, ao chegarem em seus países, não conseguem dar mais do que uma pálida ideia.
            Aqui está o quanto que se pode compreender com alguma facilidade. Aquela igreja é embelezada com os mármores mais requintados que se puderam obter; sua amplitude e sua elevação chegam a um ponto que surpreende o olhar que a contempla; o piso, as paredes, a abóbada são ornados com tal maestria, que parecem ter esgotado todas as invenções da arte. A cúpula que, por assim dizer, sobe até as nuvens, é um compêndio de todas as belezas da pintura, da escultura e da arquitetura. Acima da cúpula, ou melhor, acima do próprio cupulim, há uma esfera ou bola de bronze dourado que, vista da terra, parece uma bolinha de jogo; mas quem sobe e entra nela vê um globo dentro do qual podem confortavelmente estar sentadas dezesseis pessoas. Em uma palavra, nesta basílica tudo é tão belo, tão raro e tão bem trabalhado que supera o que se pode imaginar no mundo. Príncipes, reis, monarcas e imperadores contribuíram para ornamentar este edifício maravilhoso, com magníficos dons que enviaram à tumba de São Pedro, e muitas vezes trazidos por eles mesmos de países distantes.
            E é precisamente no centro de um edifício tão magnífico que repousam as preciosas cinzas de um pobre pescador, de um homem sem erudição humana e sem riquezas, cuja fortuna consistia em uma rede. E isso foi desejado por Deus para que os homens compreendam como Deus, em sua onipotência, toma o homem mais humilde aos olhos do mundo para colocá-lo no trono glorioso para governar seu povo; compreenderão também quanto Ele honra, mesmo na vida presente, seus servos fiéis, e assim façam alguma ideia da imensa glória reservada no Céu a quem vive e morre em seu divino serviço. Reis, príncipes, imperadores e os maiores monarcas da terra vieram implorar a proteção daquele que foi tirado de uma barca para ser feito pastor supremo da Igreja; os hereges e os infiéis foram forçados a respeitá-lo. Deus poderia ter escolhido o supremo pastor de sua Igreja entre os maiores e mais sábios da terra; mas então talvez se atribuiria à sua sabedoria e poder aquelas maravilhas, que Deus queria que fossem inteiramente reconhecidas como vindas de sua mão onipotente.
            Somente em raríssimos casos os papas permitiram que as relíquias deste grande protetor de Roma fossem transportadas para outro lugar; por isso, poucos lugares da cristandade podem se gabar de possuí-las: toda a glória está em Roma.
            Quem quer que quisesse escrever as muitas peregrinações ali feitas em todos os tempos, de todas as partes do mundo e de todas as classes de pessoas, a multidão de graças ali recebidas, os estrondosos milagres ali operados, deveria escrever muitos e grandes volumes.
            Enquanto isso, nós, tomados por sentimentos de sincera gratidão, como conclusão e fruto do que dissemos sobre as ações do Príncipe dos Apóstolos, elevamos fervorosas orações ao trono do Deus Altíssimo; pedimos a este seu feliz Vigário e glorioso mártir, que se digne volver do Céu um olhar piedoso sobre as presentes necessidades de sua Igreja, se digne protegê-la e sustentá-la nos vigorosos ataques que todos os dias deve enfrentar por parte de seus inimigos, obtenha força e coragem para seus sucessores, para todos os bispos e para todos os sagrados ministros, para que todos se tornem dignos do ministério que Cristo lhes confiou. Deste modo, confortados por sua ajuda celestial, possam colher abundantes frutos de seus esforços, promovendo a glória de Deus e a salvação das almas entre os povos cristãos.
            Felizes aqueles povos que estão unidos a Pedro na pessoa dos Papas seus sucessores. Eles trilham o caminho da salvação; enquanto todos aqueles que se encontram fora deste caminho e não pertencem à união de Pedro não têm esperança alguma de salvação. Jesus Cristo mesmo nos assegura que a santidade e a salvação não podem ser encontradas senão na união com Pedro, sobre o qual repousa o fundamento inabalável de sua Igreja. Agradeçamos de coração a bondade divina que nos fez filhos de Pedro.
            E uma vez que ele tem as chaves do reino dos Céus, peçamos a ele que seja nosso protetor nas presentes necessidades, e assim no último dia de nossa vida ele se digne abrir-nos a porta da bem-aventurada eternidade.

APÊNDICE SOBRE A VINDA DE SÃO PEDRO A ROMA
            Embora as discussões sobre fatos particulares possam ser consideradas estranhas ao historiador, no entanto, a vinda de São Pedro a Roma, que é um dos pontos mais importantes da história eclesiástica, sendo fortemente combatida pelos hereges de hoje, me parece matéria de tal importância que não deve ser omitida.
            Isso parece ainda mais oportuno porque os protestantes há algum tempo em seus livros, jornais e conversas tentam fazer dela objeto de raciocínio, sempre com o objetivo de colocá-la em dúvida e desacreditar nossa santa religião católica. Eles fazem isso para diminuir, ou melhor, para destruir, se pudessem, a autoridade do Papa, pois dizem que se Pedro não veio a Roma, os Pontífices Romanos não são seus sucessores e, portanto, são não herdeiros de seus poderes. Mas os esforços dos hereges mostram apenas quão poderosa é contra eles a autoridade do Papa; para se livrar dela, não se envergonham de fabricar mentiras, pervertendo e negando a história. Acreditamos que este único fato será suficiente para fazer conhecer a grande má-fé que reina entre eles; pois colocar em dúvida a vinda de São Pedro a Roma é o mesmo que duvidar se há luz quando o sol brilha em pleno meio-dia.
            Considero oportuno notar aqui que até o século catorze, no espaço de cerca de mil e quatrocentos anos, não se encontra um autor, nem católico nem herege, que tenha levantado a menor dúvida sobre a vinda de São Pedro a Roma; e convidamos os adversários a citar um só. O primeiro que levantou essa dúvida foi Marsílio de Pádua, que vendeu sua capacidade de escritor ao imperador Luís da Baviera; e ambos, um com as armas, o outro com doutrinas perversas, se lançaram contra o primado do Sumo Pontífice. Tal dúvida, no entanto, foi considerada ridícula por todos, e desapareceu com a morte de seu autor.
            Duzentos anos depois, no século dezesseis, surgiram os espíritos turbulentos de Lutero e de Calvino, e da escola deles saíram vários, que, superando a má-fé dos próprios mestres, tentaram suscitar a mesma dúvida para melhor enganar os simples e os ignorantes. Quem tem um pouco de prática em história sabe qual crédito merece aquele que, apoiado unicamente em seu capricho, se coloca a contradizer um fato relatado com consenso unânime pelos escritores de todos os tempos e de todos os lugares. Esta única observação seria suficiente por si só para tornar manifesta a inexistência de tal dúvida. No entanto, para que o leitor conheça os autores que com sua autoridade vêm confirmar o que afirmamos, citaremos alguns. Como os protestantes admitem a autoridade da igreja dos primeiros quatro séculos, nós, desejosos de agradá-los em tudo que é possível, nos serviremos de escritores que viveram naquela época. Alguns deles afirmam que Pedro esteve em Roma, e outros atestam que ali fundou sua sede episcopal e sofreu o martírio.
            O Papa São Clemente, discípulo de São Pedro e seu sucessor no pontificado, em sua primeira carta escrita aos Coríntios, dá como pública e certa a vinda de São Pedro a Roma, sua longa permanência ali, o martírio sofrido ali junto com São Paulo. Eis suas palavras: «O exemplo desses homens, que, vivendo santamente, agregaram uma grande multidão de eleitos e sofreram muitos suplícios e tormentos, é mantido ótimo entre nós.»
            Santo Inácio, mártir, também discípulo de São Pedro e seu sucessor no bispado de Antioquia, sendo conduzido a Roma para ser ali martirizado, escreve aos romanos pedindo que não queiram impedir seu martírio e diz:
            «Eu vos imploro, não vos mando, como fizeram Pedro e Paulo: Não ut Petrus et Paulus praecipio vobis
            O mesmo afirma Pápias, contemporâneo dos acima citados e discípulo de São João Evangelista, como se pode ver em Eusébio na sua História Eclesiástica, livro 2, capítulo 15.
            A pouca distância destes, temos as ilustres testemunhas de Santo Irineu e de São Dionísio, os quais conheceram e conversaram longamente com os discípulos dos Apóstolos, e estavam muito bem informados sobre as coisas ocorridas na Igreja de Roma.
            Santo Irineu, bispo de Lião e martirizado no ano 202, atesta que São Mateus divulgou seu Evangelho aos Hebreus em sua própria língua, enquanto Pedro e Paulo pregavam em Roma e estabeleciam a Igreja: Petro et Paulo Romae evangelizantibus et constituentibus Ecclesiam[34]. Após tais testemunhos, não sabemos como os hereges ousam negar a vinda de São Pedro a Roma. Quase ao mesmo tempo floresceram Clemente de Alexandria, São Caio, sacerdote de Roma, Tertuliano de Cartago, Orígenes, São Cipriano e muitos outros, que concordam em relatar o grande afluxo de fiéis ao túmulo de São Pedro, martirizado em Roma; e todos, cheios de veneração pelo primado que gozava a Igreja de Roma, dizem que dela devem ser esperados os oráculos da eterna salvação, porque Jesus Cristo prometeu a conservação da fé ao seu fundador São Pedro[35].
E se desses escritores passamos aos luminares da Igreja, São Pedro de Alexandria, Santo Astério de Amasea, Santo Optato de Milevo, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo, Santo Epifânio, São Máximo de Turim, Santo Agostinho, São Cirilo de Alexandria e muitos outros, encontramos seus testemunhos plenamente unânimes e concordes sobre a verdade que afirmamos; ou seja, que Pedro esteve em Roma e lá sofreu o martírio. Santo Optato, bispo de Milevo na África, escrevendo contra os Donatistas, diz: «Não podes negar, tu sabes, que na cidade de Roma, desde o princípio, a cátedra episcopal foi mantida por Pedro.» Por amor à brevidade, citamos apenas as palavras do Doutor São Jerônimo, que viveu no IV século da Igreja. Ele escreve: «Pedro, príncipe dos Apóstolos, foi a Roma no segundo ano do imperador Cláudio, e ali manteve a cátedra sacerdotal até o último ano de Nero. Sepultado em Roma, no Vaticano, perto da Via Triunfal, é célebre pela veneração que lhe presta o universo.[36]» Acrescentem-se os muitos martirológios das diversas Igrejas latinas, que desde a mais remota antiguidade chegaram até nós, os diferentes Calendários dos Etíopes, dos Egípcios, dos Sírios, os menológios dos Gregos [= Catálogos com os dias em que são celebrados os santos da Igreja ortodoxa]; as mesmas liturgias de todas as Igrejas cristãs espalhadas nos vários países da cristandade; em toda parte se encontra registrada a verdade deste relato. Que mais? Os próprios protestantes, um tanto célebres em doutrina, como Gave, Ammendo, Pearsonio, Grotius, Ussher, Biondello, Scaliger, Basnagio e Newton, com muitos outros, concordam que a vinda do príncipe dos Apóstolos a Roma e sua morte ocorrida naquela metrópole do universo são um fato incontestável.
            É verdade que nem os Atos dos Apóstolos, nem São Paulo em sua carta aos Romanos mencionam este fato. Mas além dos escritores autorizados reconhecerem nesses autores claramente aludido tal acontecimento[37], observamos que o autor dos Atos dos Apóstolos não tinha o objetivo de escrever as ações de São Pedro nem dos outros Apóstolos, mas apenas as de São Paulo, seu companheiro e mestre; e isso quase para fazer a apologia deste Apóstolo dos gentios, entre todos o mais desprezado e caluniado pelos Hebreus. Portanto, após narrar os princípios da Igreja, do capítulo 16 até o final de seu livro, São Lucas não escreve mais nada sobre outros senão sobre Paulo e seus companheiros de missão. Na verdade, em seus Atos, Lucas não nos narra nem mesmo todas as coisas operadas por Paulo, coisas que sabemos apenas pelas cartas deste Apóstolo. De fato, ele nos fala talvez dos três naufrágios sofridos por seu mestre, da luta que em Éfeso teve que sustentar com as feras, e de outros fatos dos quais se faz menção em sua segunda carta aos Coríntios e aos Gálatas?[38] São Lucas nos fala talvez do martírio de Paulo, ou mesmo apenas daquelas coisas que ele fez após sua primeira prisão em Roma? Ele menciona talvez uma só das 14 cartas? Nada disso. Agora, qual a surpresa se o mesmo escritor silenciou muitas coisas operadas por Pedro, entre as quais sua vinda a Roma?
            O que dissemos sobre o silêncio de São Lucas vale para o silêncio de São Paulo em sua carta aos Romanos. Paulo, escrevendo aos Romanos, não saúda Pedro; portanto, concluem os protestantes, Pedro nunca esteve em Roma. Que estranheza de raciocínio! No máximo, se poderia deduzir que Pedro, naquele tempo, não estava em Roma; e nada mais. E quem não sabe que Pedro, enquanto ocupava a sede de Roma, frequentemente se afastava para ir a outros lugares fundar outras Igrejas nas várias partes da Itália? Ele não fez o mesmo quando ocupava sua sede em Jerusalém e em Antioquia? Foi exatamente nessa época que ele viajou por várias partes da Palestina, e depois na Ásia Menor, na Bitínia, no Ponto, na Galácia, na Capadócia, para as quais ele enviou especialmente sua primeira carta. Portanto, não se deve supor que ele não fizesse o mesmo na Itália, que lhe oferecia uma colheita abundante. Além disso, que Pedro na Itália não se ocupasse apenas de Roma, sabemos por Eusébio, historiador do século IV, que, escrevendo sobre as principais coisas que ele realizou, assim se expressa: “As provas das coisas feitas por Pedro são aquelas mesmas Igrejas que pouco depois brilharam, como por exemplo a Igreja de Cesareia na Palestina, a de Antioquia na Síria e a Igreja da própria cidade de Roma. Porque foi transmitido aos futuros que o mesmo Pedro constituiu essas Igrejas e todas as circunvizinhas. E assim também aquelas do Egito e da própria Alexandria, embora estas não por si mesmo, mas por meio de Marcos, seu discípulo, enquanto ele se ocupava na Itália e entre os povos circunvizinhos.[39]
            Portanto, Paulo em sua carta aos Romanos não saúda Pedro, porque sabia que naquele tempo ele talvez não estivesse em Roma. Certamente, se Pedro estivesse lá, ele mesmo poderia ter resolvido a questão surgida entre aqueles fiéis, que deu ocasião a Paulo de escrever sua célebre carta.
E depois, mesmo que Pedro estivesse na cidade, pode-se bem dizer que Paulo em sua carta não deixou que os fiéis o saudassem junto com os outros, porque fez com que o saudassem à parte pelo portador da mesma, ou lhe escreveu individualmente como ainda usamos nós atualmente com pessoas de destaque. Além disso, se o fato de Paulo, escrevendo aos Romanos, não ter feito saudar Pedro provasse que Pedro nunca esteve em Roma, então também deveríamos dizer que São Tiago Menor nunca foi bispo de Jerusalém, porque Paulo, escrevendo aos Hebreus, não o saúda de forma alguma. Agora, toda a antiguidade proclama São Tiago bispo de Jerusalém. Portanto, o silêncio de Paulo não conclui nada contra a vinda de São Pedro a Roma.
Acrescentemos: se do silêncio da Sagrada Escritura sobre a vinda de São Pedro a Roma pudesse razoavelmente inferir-se que Pedro não veio a Roma, então também se poderia argumentar assim: a Sagrada Escritura não diz que São Pedro morreu; portanto, São Pedro ainda está vivo, e vocês, protestantes, procurem-no em algum canto da terra.
            Há também uma razão para o silêncio da Sagrada Escritura sobre a ida e a morte de São Pedro em Roma, e não queremos omiti-la. Que Pedro é o chefe da Igreja, o pastor supremo, o mestre infalível de todos os fiéis, e que essas suas prerrogativas deveriam ser transmitidas a seus sucessores até o fim do mundo, isso é dogma de fé, e, portanto, deveria ser revelado ou por meio da Sagrada Escritura ou por meio da Tradição divina, como foi; mas que ele veio e morreu em Roma é um fato histórico, um fato que podia ser visto com os olhos, tocado com as mãos; e, portanto, não era necessário um testemunho da Sagrada Escritura para confirmá-lo, bastando para isso aquelas provas que anunciam e confirmam ao homem todos os outros fatos. Os protestantes que pretendem negar a ida de São Pedro a Roma porque não se pode provar com argumentos bíblicos caem no ridículo. O que diriam eles mesmos de quem negasse a vinda e a morte do imperador Augusto na cidade de Nola porque a Escritura não o diz? Se quisermos nos deter sobre esse silêncio dos Atos dos Apóstolos e da carta de São Paulo, digamos que isso não prova nem para nós nem para os protestantes. Porque a sã lógica e a simples razão natural nos ensinam que, quando se busca a verdade de um fato silenciado por um autor, deve-se procurar em outros que têm o direito de falar sobre isso. O que nós fizemos amplamente.
            Não ignoramos que Flávio Josefo não fala sobre essa vinda de São Pedro a Roma; assim como também não fala de São Paulo. Mas que importa a ele falar dos cristãos? Seu objetivo era escrever a história do povo judeu e da guerra judaica, e não os fatos particulares ocorridos em outros lugares. Ele fala sim de Jesus Cristo, de São João Batista, de São Tiago, cuja morte ocorreu na Palestina; mas fala talvez de São Paulo, de Santo André ou dos outros Apóstolos, que foram coroados com o martírio fora da Palestina? E ele mesmo não diz que pretende passar sob silêncio muitos fatos ocorridos em seu tempo[40]?
            E depois, não é uma loucura confiar mais em um judeu que não fala, do que nos primeiros cristãos que proclamam todos a uma só voz que São Pedro morreu em Roma, depois de ter ali permanecido muitos anos?
            Não queremos também omitir a dificuldade que alguns levantam sobre a discordância dos escritores em fixar o ano da vinda de São Pedro a Roma. Porque em nossos tempos os eruditos geralmente concordam na cronologia que seguimos. Mas dizemos que essa discordância dos escritores antigos demonstra a verdade do fato: demonstra que um escritor não copiou do outro, que cada um se servia daqueles documentos ou daquelas memórias que tinha em seus respectivos países e que eram publicamente conhecidos como certos; nem deve nos surpreender tal discordância cronológica (que é de um ou dois anos mais ou menos) naqueles tempos remotos em que cada nação tinha um modo próprio de computar os anos. Mas todos esses autores referem com franqueza tal vinda de São Pedro a Roma e mencionam as minuciosas circunstâncias relacionadas à sua permanência e morte naquela cidade.
            Os adversários contra a vinda de São Pedro a Roma ainda acrescentam: da primeira carta de São Pedro aos fiéis da Ásia se deduz que ele estava na Babilônia. Assim, de fato, ele se expressa em suas saudações: “Saúda-vos a Igreja que está reunida em Babilônia, e Marcos, meu filho”. Portanto, é impossível sua vinda a Roma. Começamos a dizer que, mesmo que por Babilônia, da qual fala Pedro, se entenda a metrópole da Assíria, no entanto, ainda não se poderia inferir que ele não pôde vir, e não veio a Roma. Seu pontificado foi bastante longo, e os críticos concordam em dizer que a referida carta foi escrita antes do ano 43, ou por volta disso. De fato, ele ainda saúda os fiéis em nome de Marcos, que sabemos por Eusébio ter sido enviado por Pedro para fundar a Igreja de Alexandria no ano 43 de Jesus Cristo. Conclui-se, portanto, que Pedro, desde a data de sua carta até sua morte, teve pelo menos mais 24 anos de vida. Em tão longo intervalo de tempo, ele não poderia ter feito a viagem a Roma?
            Mas temos outra resposta a dar; e é que Pedro falou metaforicamente e com o nome de Babilônia se referiu à cidade de Roma, onde justamente se encontrava ao escrever sua carta. Isso se deduz de toda a antiguidade. Pápias, discípulo dos Apóstolos, diz em termos claros que Pedro mostrou ter escrito sua primeira carta em Roma, enquanto com a tradução da palavra lhe dá o nome de Babilônia[41]. São Jerônimo diz igualmente que Pedro, em sua primeira carta, sob o nome de Babilônia, significou a cidade de Roma: Petrus in epistola prima sub nomine Babylonis figurative Romam significans, salutat vos, inquit, ecclesia quae est in Babylone collecta[42]. Nem essa linguagem era incomum entre os cristãos. São João dá a Roma o mesmo nome de Babilônia. Ele, em seu Apocalipse, depois de chamar Roma de cidade das sete colinas, a grande cidade que reina sobre os reis da terra, anuncia sua queda, escrevendo: Cecidit, cecidit Babylon magna: caiu, caiu a grande Babilônia[43]. Com muita razão, então, Roma poderia ser chamada uma Babilônia, porque encerrava em seu seio todos os erros espalhados nas várias partes do mundo que dominava.
            Além disso, Pedro tinha bons motivos para silenciar o nome literal do lugar de onde escrevia; porque, tendo fugido pouco antes das mãos de Herodes Agripa, e sabendo como entre esse rei e o imperador Cláudio havia uma estreita amizade, poderia temer justamente alguma armadilha desses dois inimigos do nome cristão, caso sua carta se perdesse. Para evitar esse perigo, portanto, a prudência queria que ele em seu escrito usasse uma palavra conhecida pelos cristãos e desconhecida pelos judeus e gentios. Assim o fez.
            Além disso, das próprias palavras de Pedro se deduz outra prova de sua vinda a Roma. De fato, Pedro, ao concluir sua carta, diz: “Saúda-vos a Igreja… e Marcos, meu filho”. Portanto, Marcos estava com Pedro. Dito isso, toda a tradição proclama concordemente que Marcos, filho espiritual de Pedro, seu discípulo, seu intérprete, seu escriba e diria seu secretário, esteve em Roma e nesta cidade escreveu o Evangelho como ouviu o próprio Mestre pregar[44]. Portanto, é necessário admitir também que Pedro esteve em Roma com o discípulo.
            Agora podemos chegar a esta conclusão. Por um espaço de mil e quatrocentos anos nunca houve ninguém que tenha levantado a menor dúvida contra a vinda de São Pedro a Roma. Ao contrário, temos uma longa série de homens célebres por santidade e doutrina, que desde os tempos apostólicos até nós, com sua autoridade, sempre a aceitaram. As liturgias, os martirológios, os próprios inimigos do cristianismo estão de acordo com a maioria dos protestantes sobre esse fato.
            Portanto, vocês, protestantes de hoje, ao contestar a vinda de São Pedro a Roma, se opõem a toda a antiguidade, se opõem à autoridade dos homens mais eruditos e piedosos dos tempos passados; se opõem aos martirológios, aos menológios, às liturgias, aos calendários da antiguidade; se opõem ao que escreveram seus próprios mestres.
            Ó protestantes, abri os olhos; ouvi as palavras de um amigo que vos fala movido unicamente pelo desejo do vosso bem. Muitos pretendem ser vossos guias na verdade; mas ou por malícia ou por ignorância vos enganam. Ouvi a voz de Deus que vos chama ao seu aprisco, sob a custódia do pastor supremo por Ele estabelecido. Abandonai todo compromisso, superai o obstáculo do respeito humano, renunciai aos erros em que homens iludidos vos precipitaram. Voltai à religião de vossos antepassados, que alguns de seus ancestrais abandonaram; convidai todos os seguidores da Reforma a ouvir o que dizia Tertuliano em seu tempo: “Portanto, ó cristão, se queres estar seguro no grande assunto da salvação, recorre às Igrejas fundadas pelos Apóstolos. Vai a Roma, de onde emana nossa autoridade. Ó Igreja feliz, onde com seu sangue derramaram toda a sua doutrina, onde Pedro sofreu um martírio semelhante à paixão de seu divino Mestre, onde Paulo foi coroado com o martírio ao ter a cabeça decepada, onde João, depois de ter sido mergulhado numa caldeira de óleo fervente, nada sofreu e, portanto, foi exilado na ilha de Patmos.[45]

Terceira Edição
Turim
Livraria Salesiana Editora 1899
[1ª ed., 1856; reimpressão 1867 e 1869; 2ª ed., 1884]

PROPRIEDADE DO EDITOR
S. Pier d’Arena – Escola Tip. Salesiana
Colégio São Vicente de Paulo
(N. 1265 — M)

Visto: nada obsta para a impressão
Gênova, 12 de junho de 1899
Cônego AGOSTINHO MONTALDO
V. Permite-se a impressão
Gênova, 15 de junho de 1899
Cônego PAULO CANEVELLO, Prov. Geral


[1] As notícias sobre a vida de São Pedro foram extraídas do Evangelho, dos Atos e de algumas cartas dos Apóstolos, bem como de vários outros autores, cujas memórias são referidas por César Barônio no primeiro volume de seus anais, pelos Bolandistas em 18 de janeiro, 22 de fevereiro, 29 de junho, 1º de agosto e em outros lugares. A vida de São Pedro foi amplamente tratada por Antônio Cesari nos Atos dos Apóstolos e também num volume separado, Luís Cuccagni em três volumes consistentes, e muitos outros.

[2] Santo Ambrósio. Comentário ao Evangelho de Lucas, livro 4.

[3] Santo Ambrósio. Obra citada.

[4] São Jerônimo. Contra Joviniano, capítulo 1, 26.

[5] Evangelho segundo Mateus, capítulo 16.

[6] Gênesis, capítulo 41.

[7] Evangelho segundo Mateus, capítulo 18.

[8] Evangelho segundo Mateus, capítulo 15.

[9] São João Damasceno. Homilia sobre a Transfiguração.

[10] São João Crisóstomo. Comentário ao Evangelho de Mateus.

[11] A tradução de “porta” para “potência”, portanto o sinal pela coisa significada, deriva do fato de que na antiga lei e entre os povos orientais, os príncipes e os juízes geralmente exerciam seu poder legislativo e judiciário diante das portas da cidade (veja III, pág. XXII, 2). Além disso, essa parte da cidade era mantida em um estado contínua de proteção [com destacamento de soldados] e munição, de modo que, uma vez conquistadas as portas, o restante era facilmente tomado. Até hoje se diz “Porta Otomana” ou “Sublime Porta” para indicar o poder dos Turcos.

[12] São Jerônimo. Contra Joviniano, capítulo 1, 26.

[13] Santo Agostinho. Sobre a Unidade da Igreja.

[14] Santo Irineu. Contra as Heresias, livro III, n. 3.

[15] Salmos 68, 108.

[16] Evangelho segundo João, 14, 12.

[17] Veja São Basílio de Selêucia e os Reconhecimentos de São Clemente.

[18] Veja Teodoreto, São João Crisóstomo, São Clemente, etc.

[19] Bento XIV. De Servorum Dei Beatificatione [Da Beatificação dos Servos de Deus], livro I, capítulo I.

[20] Carta aos Romanos, capítulo I.

[21] Eusébio. História Eclesiástica, livro II, capítulo 15.

[22] Primeira Carta de Pedro, capítulo 5.

[23] São Paciano. carta 2.

[24] Os santos Padres que relatam o fato de Simão Mago, entre outros, são: São Máximo de Turim, São Cirilo de Jerusalém, São Sulpício Severo, São Gregório de Tours, Papa São Clemente, São Basílio de Selêucia, Santo Epifânio, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Jerônimo e muitos outros.

[25] Lactâncio. livro 4.

[26] Epístola 2, capítulo 3.

[27] As opiniões dos estudiosos variam ao fixar o ano do martírio do Príncipe dos Apóstolos; mas a mais provável é a que o atribui ao ano 67 da era comum. De fato, São Jerônimo, incansável investigador e conhecedor das coisas sagradas, nos informa que São Pedro e São Paulo foram martirizados dois anos após a morte de Sêneca, mestre de Nero. Ora, de Tácito, historiador da época, sabemos que os cônsules sob os quais Sêneca morreu foram Sílio Nerva e Ático Vestino, que ocuparam o consulado no ano 65; portanto, os dois Apóstolos sofreram o martírio em 67. A esse cálculo de anos, pelo qual se fixa o martírio naquela época, correspondem os 25 anos e quase dois meses durante os quais São Pedro ocupou sua Cátedra em Roma; número de anos que sempre foi reconhecido por toda a antiguidade (veja “Observações histórico-cronológicas” de Dom Domingos Bartolini, cardeal da Santa Igreja: “Se o ano 67 da era comum é o ano do martírio dos gloriosos Príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo”, Roma, Tipografia Scalvini, 1866).

[28] A corrente com a qual foi preso São Pedro ainda se conserva em Roma na igreja chamada São Pedro em Correntes (Artano, “Vida de São Pedro”).

[29] No ponto mais alto do Monte Janículo, onde Anco Márcio, quarto rei de Roma, fundou a fortaleza janiculense, foi edificada a igreja de São Pedro em Montório, no lugar onde o santo Apóstolo sofreu o martírio. Este monte foi chamado Janículo porque dedicado a Jano, guardião das portas que em latim se dizem “januae”. Acredita-se que aqui também foi sepultado Jano, que construiu aquela parte de Roma em frente ao Capitólio. Também foi chamado Monte Áureo, pela antiga e vizinha Porta Áurea. Agora é chamado Montório, ou seja, Monte de Ouro, pela cor amarela da terra que cobre este monte, um dos sete montes da antiga Roma (veja Moroni, “Igrejas de São Pedro”).

[30] Bolandistas, dia 29 de junho.

[31] Santo Efrém Sírio.

[32] Veja Praça Emanuel.

[33] Veja São Gregório Magno, epístola 30. Baronio no ano 284.

[34] Santo Irineu, Contra as Heresias, livro III, capítulo 1.

[35] Caio Romano citado por Eusébio; Clemente Alexandrino. Stromata, livro 7; Tertuliano. De persecutionibus [das perseguições]; Orígenes citado por Eusébio. livro 3; São Cipriano. Carta 52 a Antoniano e carta 55 a Cornélio.

[36] São Jerônimo. De viris illustribus, capítulo 1.

[37] Teodoreto, bispo de Ciro, homem versadíssimo na história eclesiástica, falecido no ano 450, comentando a Carta de São Paulo aos Romanos, onde o Apóstolo escreve: “Desejaria vê-los, para comunicar-lhes algum dom espiritual a fim de que sejam fortalecidos” (Romanos 1,11), acrescenta que Paulo não disse que queria confirmá-los senão porque o grande São Pedro já havia comunicado a eles o Evangelho: “Porque Pedro primeiro lhes deu a doutrina evangélica, necessariamente acrescentou ‘para confirmá-los’” (Comentário à Carta aos Romanos).

[38] 1 Coríntios 11,23-24; Gálatas 1,17-18.

[39] Veja Teofania.

[40] Antiguidades Judaicas, livro 20, capítulo 5.

[41] Citado por Eusébio, livro II, 14.

[42] São Jerônimo. De viris illustribus.

[43] Apocalipse 17,5; 18,2.

[44] Veja São Jerônimo. De viris illustribus, capítulo 8.

[45] Tertuliano. De praescriptione haereticorum [da prescrição dos hereges, capítulo 36.




Vida de São Paulo Apóstolo, doutor das gentes

O momento culminante do Ano Jubilar para cada crente é a passagem pela Porta Santa, um gesto altamente simbólico que deve ser vivido com profunda meditação. Não se trata de uma simples visita para admirar a beleza arquitetônica, escultural ou pictórica de uma basílica: os primeiros cristãos não iam aos locais de culto por esse motivo, também porque na época não havia muito para admirar. Eles chegavam, na verdade, para rezar diante das relíquias dos santos apóstolos e mártires, e para obter a indulgência graças à sua poderosa intercessão.
Visitar os túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo sem conhecer suas vidas não é um sinal de apreço. Por isso, neste Ano Jubilar, desejamos apresentar os caminhos de fé desses dois gloriosos apóstolos, assim como foram narrados por São João Bosco.

Vida de São Paulo Apóstolo, doutor das gentes contada ao povo pelo sacerdote João Bosco

PREFÁCIO

CAPÍTULO I. Pátria, educação de São Paulo, seu ódio contra os Cristãos

CAPÍTULO II. Conversão e Batismo de Saulo — Ano de Cristo 34

CAPÍTULO III. Primeira viagem de Saulo — Retorna a Damasco; armadilhas são preparadas para ele — Vai a Jerusalém; apresenta-se aos Apóstolos — Jesus Cristo lhe aparece — Ano de Jesus Cristo 35-36-37

CAPÍTULO IV. Profecias de Ágabo — Saulo e Barnabé ordenados bispos — Vão à ilha de Chipre — Conversão do procônsul Sérgio — Castigo do mago Elimas — João Marcos retorna a Jerusalém — Ano de Jesus Cristo 40-43

CAPÍTULO V. São Paulo prega em Antioquia da Pisídia — Ano de Jesus Cristo 44

CAPÍTULO VI. São Paulo prega em outras cidades — Realiza um milagre em Listra, onde depois é apedrejado e deixado por morto — Ano de Jesus Cristo 45

CAPÍTULO VII. Paulo milagrosamente curado — Outras de suas fadigas apostólicas — Conversão de Santa Tecla

CAPÍTULO VIII. São Paulo vai conferir com São Pedro — Assiste ao Concílio de Jerusalém — Ano de Cristo 50

CAPÍTULO IX. Paulo se separa de Barnabé — Percorre várias cidades da Ásia — Deus o envia à Macedônia — Em Filipos converte a família de Lídia — Ano de Cristo 51

CAPÍTULO X. São Paulo liberta uma jovem do demônio — É açoitado com varas — É colocado na prisão — Conversão do carcereiro e de sua família — Ano de Cristo 51

CAPÍTULO XI. São Paulo prega em Tessalônica — Caso de Jasão — Vai a Bereia, onde é novamente perturbado pelos judeus — Ano de Cristo 52

CAPÍTULO XII. Estado religioso dos atenienses — São Paulo no Areópago — Conversão de São Dionísio — Ano de Cristo 52

CAPÍTULO XIII. São Paulo em Corinto — Sua moradia na casa de Áquila — Batismo de Crispo e de Sóstenes — Escreve aos Tessalonicenses — Retorno a Antioquia — Ano de Jesus Cristo 53-54

CAPÍTULO XIV. Apolo em Éfeso — O sacramento da Crisma — São Paulo opera muitos milagres — Caso de dois exorcistas judeus — Ano de Cristo 55

CAPÍTULO XV. Sacramento da Confissão — Livros perversos queimados — Carta aos Coríntios — Revolta em honra da deusa Diana — Carta aos Gálatas — Ano de Cristo 56-57

CAPÍTULO XVI. São Paulo retorna a Filipos — Segunda Carta aos fiéis de Corinto — Vai a esta cidade — Carta aos Romanos — Sua pregação prolongada em Trôade — Ressuscita um morto — Ano de Cristo 58

CAPÍTULO XVII. Pregação de São Paulo em Mileto — Sua viagem até Cesareia — Profecia de Ágabo — Ano de Cristo 58

CAPÍTULO XVIII. São Paulo se apresenta a São Tiago — Os judeus lhe tendem armadilhas — Fala ao povo — Repreende o sumo sacerdote — Ano de Cristo 59

CAPÍTULO XIX. Quarenta Judeus se comprometem com um voto a matar São Paulo — Um de seus sobrinhos descobre a trama — É transferido para Cesareia — Ano de Cristo 59

CAPÍTULO XX. Paulo diante do governador — Seus acusadores e sua defesa — Ano de Cristo 59

CAPÍTULO XXI. Paulo diante de Festo — Suas palavras ao rei Agripa — Ano de Cristo 60

CAPÍTULO XXII. São Paulo é embarcado para Roma — Sofre uma terrível tempestade, da qual é salvo com seus companheiros — Ano de Jesus Cristo 60

CAPÍTULO XXIII. São Paulo na ilha de Malta — É libertado da mordida de uma víbora — É acolhido na casa de Públio, de quem cura o pai — Ano de Cristo 60

CAPÍTULO XXIV. Viagem de São Paulo de Malta a Siracusa — Pregação em Régio — Sua chegada a Roma — Ano de Cristo 60

CAPÍTULO XXV. Paulo fala aos Judeus e lhes prega Jesus Cristo — Progresso do Evangelho em Roma — Ano de Cristo 61

CAPÍTULO XXVI. São Lucas — Os Filipenses enviam ajuda a São Paulo — Doença e cura de Epafrodito — Carta aos Filipenses — Conversão de Onésimo — Ano de Jesus Cristo 61

CAPÍTULO XXVII. Carta de São Paulo a Filêmon — Ano de Jesus Cristo 62

CAPÍTULO XXVIII. São Paulo escreve aos Colossenses, aos Efésios e aos Hebreus — Ano de Cristo 62

CAPÍTULO XXIX. São Paulo é libertado — Martírio de São Tiago, o Menor — Ano de Cristo 63

CAPÍTULO XXX. Outras viagens de São Paulo — Escreve a Timóteo e a Tito — Seu retorno a Roma — Ano de Cristo 68

CAPÍTULO XXXI. São Paulo é novamente aprisionado — Escreve a segunda carta a Timóteo — Seu martírio — Ano de Cristo 69-70

CAPÍTULO XXXII. Sepultamento de São Paulo — Maravilhas realizadas junto ao seu túmulo — Basílica a ele dedicada

CAPÍTULO XXXIII. Retrato de São Paulo — Imagem de seu espírito — Conclusão

PREFÁCIO

            São Pedro é o príncipe dos Apóstolos, primeiro Papa, Vigário de Jesus Cristo sobre a terra. Ele foi estabelecido como chefe da Igreja; mas sua missão era particularmente direcionada à conversão dos Judeus. São Paulo, por sua vez, é aquele Apóstolo que foi chamado de maneira extraordinária por Deus para levar a Luz do Evangelho aos Gentios. Esses dois grandes Santos são chamados pela Igreja como as colunas e os fundamentos da Fé, príncipes dos Apóstolos, que com seus esforços, com seus escritos e com seu sangue nos ensinaram a lei do Senhor; Ipsi nos docuerunt legem tuam, Domine (Eles nos ensinaram tua lei, Senhor). Por esse motivo, à vida de São Pedro, fazemos suceder a de São Paulo.
            É verdade que este apóstolo não é contado na série dos Papas; mas os esforços extraordinários que ele fez para ajudar São Pedro a propagar o Evangelho, seu zelo, sua caridade, a doutrina que nos deixou nos livros sagrados, o fazem parecer digno de ser colocado ao lado da vida do primeiro Papa, como uma forte coluna sobre a qual se apoia a Igreja de Jesus Cristo.

CAPÍTULO I. Pátria, educação de São Paulo, seu ódio contra os Cristãos

            São Paulo era Judeu da tribo de Benjamim. Oito dias após seu nascimento, foi circuncidado, e lhe foi imposto o nome de Saulo, que depois foi mudado para Paulo. Seu pai residia em Tarso, cidade da Cilícia, província da Ásia Menor. O imperador César Augusto concedeu muitos favores a esta cidade e, entre outros, o direito de cidadania romana. Portanto, São Paulo, sendo nascido em Tarso, era cidadão romano, qualidade que trazia consigo muitos benefícios, pois se podia gozar da imunidade das leis particulares de todos os países sujeitos ou aliados ao império romano, e em qualquer lugar um cidadão romano podia apelar ao senado ou ao imperador para ser julgado.
            Seus parentes, sendo abastados, o mandaram a Jerusalém para lhe dar uma educação condizente com seu estado. Seu mestre foi um doutor chamado Gamaliel, homem de grande virtude, de quem já falamos na vida de São Pedro. Naquela cidade, teve a sorte de encontrar um bom companheiro de Chipre, chamado Barnabé, jovem de grande virtude, cuja bondade de coração contribuiu muito para temperar o ânimo ardente do condiscípulo. Esses dois jovens sempre se mantiveram leais amigos, e nós os veremos se tornarem colegas na pregação do Evangelho.
            O pai de Saulo era Fariseu, ou seja, professava a seita mais severa entre os Judeus, que consistia em uma grande aparência externa de rigor, máxima totalmente contrária ao espírito de humildade do Evangelho. Saulo seguiu os princípios de seu pai, e como seu mestre também era Fariseu, ele se tornou cheio de entusiasmo para aumentar seu número e remover qualquer obstáculo que se opusesse a tal propósito.
            Era costume entre os Judeus fazer com que seus filhos aprendessem um ofício enquanto se dedicavam ao estudo da Bíblia. Faziam isso a fim de preservá-los dos perigos que a ociosidade traz consigo; e também para ocupar o corpo e o espírito em algo que pudesse proporcionar o sustento nas difíceis circunstâncias da vida. Saulo aprendeu o ofício de curtidor de peles e especialmente a costurar tendas. Ele se destacou entre todos da sua idade por seu zelo pela lei de Moisés e pelas tradições dos Judeus. Esse zelo pouco iluminado o tornou blasfemo, perseguidor e feroz inimigo de Jesus Cristo.
            Ele incitou os Judeus a condenar Santo Estêvão, e esteve presente à sua morte. E como sua idade não lhe permitia participar da execução da sentença, ele, quando Estêvão estava prestes a ser apedrejado, guardava as roupas de seus companheiros e os incitava com fúria a atirar pedras contra ele. Mas Estêvão, verdadeiro seguidor do Salvador, fez a vingança dos santos, ou seja, começou a orar por aqueles que o apedrejavam. Esta oração foi o princípio da conversão de Saulo; e Santo Agostinho diz precisamente que a Igreja não teria em Paulo um apóstolo, se o diácono Estêvão não tivesse orado.
            Naqueles tempos, foi suscitada uma violenta perseguição contra a Igreja de Jerusalém, e Saulo era aquele que mostrava uma ânsia feroz para dispersar e mandar à morte os discípulos de Jesus Cristo. A fim de fomentar melhor a perseguição em público e em privado, fez-se a tal propósito autorizar pelo príncipe dos sacerdotes. Então ele se tornou como um lobo faminto que não se sacia de devorar. Entrava nas casas dos Cristãos, os insultava, os maltratava, os prendia ou os fazia carregar correntes para serem depois arrastados para a prisão, fazia-os ser espancados com varas; em suma, usava todos os meios para forçá-los a blasfemar o santo nome de Jesus Cristo. A notícia das violências de Saulo se espalhou até em países distantes, de modo que o simples nome dele incutia medo entre os fiéis.
            Os perseguidores não se contentavam em ser cruéis contra as pessoas dos Cristãos; mas, como sempre foi usado pelos perseguidores, também os despojavam de seus bens e de tudo o que possuíam em comum. O que fazia com que muitos fossem levados a viver da caridade que os fiéis das Igrejas distantes lhes enviavam. Mas há um Deus que assiste e governa sua Igreja, e quando menos pensamos, ele vem em socorro de quem nele confia.

CAPÍTULO II. Conversão e Batismo de Saulo — Ano de Cristo 34

            A fúria de Saulo não podia se saciar; ele não respirava senão ameaças e massacres contra os discípulos do Senhor. Tendo ouvido que em Damasco, cidade distante cerca de cinquenta milhas de Jerusalém, muitos Judeus haviam abraçado a fé, sentiu arder em si um furioso desejo de ir lá fazer um massacre. Para agir livremente conforme lhe sugeria seu ódio contra os Cristãos, foi ao príncipe dos sacerdotes e ao senado, que com cartas o autorizaram a ir a Damasco, acorrentar todos os Judeus que se declarassem Cristãos e, portanto, conduzi-los a Jerusalém e ali puni-los com uma severidade capaz de deter aqueles que fossem tentados a imitá-los.
            Mas são vãos os projetos dos homens quando são contrários aos do Céu! Deus, movido pelas orações de Santo Estêvão e dos outros fiéis perseguidos, quis manifestar em Saulo seu poder e sua misericórdia. Saulo, com suas cartas de recomendação, cheio de ardor, devorando a estrada, estava próximo da cidade de Damasco, e já lhe parecia ter os Cristãos em suas mãos. Mas aquele era o lugar da divina misericórdia.
            No ímpeto de sua fúria cega, por volta do meio-dia, uma grande luz, mais resplandecente que a do sol, o cercou com todos os que o acompanhavam. Estonteados por aquele esplendor celeste, todos caíram ao chão como mortos; ao mesmo tempo, ouviram o ruído de uma voz, compreendida somente por Saulo. “Saulo, Saulo”, disse a voz, “por que me persegues?” Então Saulo, ainda mais apavorado, respondeu: “Quem sois vós que falais?” “Eu sou”, continuou a voz, “aquele Jesus que tu persegues. Lembra-te que é coisa muito dura dar coices contra o aguilhão, o que tu fazes resistindo a alguém mais poderoso do que tu. Perseguindo minha Igreja, tu persegues a mim mesmo; mas esta se tornará mais florescente, e não farás mal senão a ti mesmo.”
            Esta doce repreensão do Salvador, acompanhada pela unção interna de sua graça, amoleceu a dureza do coração de Saulo e o transformou em um homem completamente novo. Portanto, todo humilhado, exclamou: “Senhor, que quereis que eu faça?” Como se dissesse: Qual é o meio de procurar a vossa glória? Eu me ofereço a vós para fazer a vossa santíssima vontade.
            Jesus Cristo ordenou a Saulo que se levantasse e fosse à cidade onde um discípulo o instruiria sobre o que deveria fazer. Deus, diz Santo Agostinho, ao confiar a seus ministros a instrução de um apóstolo chamado de maneira tão extraordinária, nos ensina que devemos buscar sua santa vontade no ensinamento dos Pastores, que ele revestiu de sua autoridade para serem nossos guias espirituais na terra.
            Saulo, levantando-se, não via mais nada, embora mantivesse os olhos abertos. Portanto, foi necessário dar-lhe a mão e conduzi-lo a Damasco, como se Jesus Cristo quisesse levá-lo em triunfo. Ele se hospedou na casa de um comerciante chamado Judas; ali permaneceu três dias sem ver, sem beber e sem comer, ignorando ainda o que Deus quisesse dele.
            Havia em Damasco um discípulo chamado Ananias, muito estimado pelos Judeus por sua virtude e santidade. Jesus Cristo lhe apareceu e disse: “Ananias!” E ele respondeu: “Eis-me aqui, Senhor.” O Senhor acrescentou: “Levanta-te e vai à rua chamada Direita, e procura um certo Saulo natural de Tarso; tu o encontrarás enquanto ora.” Ananias, ao ouvir o nome de Saulo, tremeu e disse: “Ó Senhor, para onde me mandais? Vós bem sabeis o grande mal que ele fez aos fiéis em Jerusalém; agora é sabido por todos que ele veio aqui com pleno poder de prender todos os que creem em vosso Nome.” O Senhor replicou: “Vai tranquilo, não temas, porque este homem é um instrumento escolhido por mim para levar meu nome aos gentios, diante dos reis e diante dos filhos de Israel; porque eu lhe mostrarei quanto ele deve sofrer por meu nome.” Enquanto Jesus Cristo falava a Ananias, enviou a Saulo outra visão, na qual lhe apareceu um homem chamado Ananias que, aproximando-se dele, impunha-lhe as mãos para lhe devolver a vista. Foi o que fez o Senhor para assegurar a Saulo que Ananias era aquele que enviava para manifestar-lhe sua vontade.
            Ananias obedeceu, foi encontrar Saulo, impôs-lhe as mãos e disse: “Saulo, irmão, o Senhor Jesus que te apareceu no caminho por onde vinhas a Damasco, me enviou a ti para que recuperes a vista e sejas cheio do Espírito Santo.” Falando assim, Ananias, mantendo as mãos sobre a cabeça de Saulo, acrescentou: “Abre os olhos.” Nesse momento, caíram dos olhos de Saulo certas escamas, e ele recuperou perfeitamente a vista.
            Então Ananias disse: “Agora levanta-te e recebe o Batismo, e lava teus pecados, invocando o nome do Senhor.” Saulo levantou-se imediatamente para receber o Batismo; então, todo cheio de alegria, restaurou seu cansaço com um pouco de comida. Passados apenas alguns dias com os discípulos de Damasco, começou a pregar o Evangelho nas sinagogas, demonstrando com as Sagradas Escrituras que Jesus era Filho de Deus. Todos os que o ouviam estavam cheios de espanto, e iam dizendo: “Não é ele quem em Jerusalém perseguia aqueles que invocavam o nome de Jesus e que veio de propósito a Damasco para conduzi-los prisioneiros?”
            Mas Saulo já havia superado todo respeito humano; ele nada mais desejava do que promover a glória de Deus e reparar o escândalo dado; portanto, deixando que cada um dissesse dele o que quisesse, confundia os Judeus e com intrepidez pregava Jesus Crucificado.

CAPÍTULO III. Primeira viagem de Saulo — Retorna a Damasco; armadilhas são preparadas para ele — Vai a Jerusalém; apresenta-se aos Apóstolos — Jesus Cristo lhe aparece — Ano de Jesus Cristo 35-36-37

            Saulo, ao ver as graves oposições que lhe eram feitas pelos judeus, achou conveniente afastar-se de Damasco para passar algum tempo com os homens simples do campo e também para ir à Arábia em busca de outros povos mais dispostos a receber a fé.
            Após três anos, acreditando que a tempestade havia cessado, retornou a Damasco, onde com zelo e força se dedicou a pregar Jesus Cristo; mas os judeus, não podendo resistir às palavras de Deus que por meio de seu ministro lhes eram pregadas, decidiram matá-lo. Para melhor conseguir seu intento, o denunciaram a Areta, rei de Damasco, apresentando Saulo como perturbador da tranquilidade pública. Esse rei, muito crédulo, ouviu a calúnia e ordenou que Saulo fosse preso, e para que não fugisse, colocou guardas em todas as portas da cidade. No entanto, essas armadilhas não puderam permanecer tão ocultas que não chegassem ao conhecimento dos discípulos e do próprio Saulo. Mas como poderiam libertá-lo? Aqueles bons discípulos o conduziram a uma casa que dava para as muralhas da cidade e, colocando-o em uma cesta, o desceram pela muralha. Assim, enquanto as guardas vigiavam todas as portas e se fazia rigorosa busca em cada canto de Damasco, Saulo, libertado de suas mãos, são e salvo, tomou o caminho para Jerusalém.
            Embora a Judeia não fosse o campo confiado ao seu zelo, o motivo de sua viagem era, no entanto, santo. Ele considerava como seu indispensável dever apresentar-se a Pedro, de quem ainda não era conhecido, e assim prestar contas de sua missão ao Vigário de Jesus Cristo. Saulo havia impresso tanto terror com seu nome nos fiéis de Jerusalém que não podiam acreditar em sua conversão. Tentava se aproximar ora de um, ora de outro; mas todos, temerosos, o evitavam sem lhe dar tempo de se explicar. Foi nesse momento que Barnabé se mostrou um verdadeiro amigo. Assim que ouviu contar a prodigiosa conversão de seu condiscípulo, foi imediatamente até ele para consolá-lo; depois, foi até os Apóstolos e contou-lhes a prodigiosa aparição de Jesus Cristo a Saulo e como ele, instruído diretamente pelo Senhor, não desejava outra coisa senão publicar o santo nome de Deus a todos os povos da terra. Diante de tão alegres notícias, os discípulos o acolheram com alegria e São Pedro o manteve vários dias em sua casa, onde não deixou de apresentá-lo aos fiéis mais zelosos; nem deixava escapar qualquer oportunidade para dar testemunho de Jesus Cristo nos mesmos lugares onde o havia blasfemado e feito blasfemar.
            E como ele pressionava os judeus com muita veemência e os confundia em público e em privado, estes se levantaram contra ele, resolvidos a tirar-lhe a vida. Por isso, os fiéis o aconselharam a partir daquela cidade. A mesma coisa Deus lhe fez conhecer por meio de uma visão. Um dia, enquanto Saulo orava no templo, Jesus Cristo lhe apareceu e lhe disse: “Parta imediatamente de Jerusalém, porque este povo não crerá no que você está prestes a dizer sobre mim.” Paulo respondeu: “Senhor, eles sabem como eu fui perseguidor do vosso santo nome; se souberem que me converti, certamente seguirão meu exemplo e também se converterão.” Jesus acrescentou: “Não é assim: eles não prestarão fé alguma às suas palavras. Vá, eu o escolhi para levar meu Evangelho a terras distantes entre os gentios” (Atos dos Apóstolos, cap. 22).
            Deliberada assim a partida de Paulo, os discípulos o acompanharam a Cesareia e de lá o enviaram a Tarso, sua pátria, com a esperança de que pudesse viver com menor perigo entre os parentes e amigos e também começar naquela cidade a fazer conhecer o nome do Senhor.

CAPÍTULO IV. Profecias de Ágabo — Saulo e Barnabé ordenados bispos — Vão à ilha de Chipre — Conversão do procônsul Sérgio — Castigo do mago Elimas — João Marcos retorna a Jerusalém — Ano de Jesus Cristo 40-43

            Enquanto Saulo pregava a palavra divina em Tarso, Barnabé começou a pregá-la com grande fruto em Antioquia. Ao ver o grande número de pessoas que a cada dia abraçavam a fé, Barnabé achou conveniente ir a Tarso para convidar Saulo a vir ajudá-lo. De fato, ambos vieram a Antioquia, e aqui, com a pregação e com os milagres, ganharam um grande número de fiéis.
            Naqueles dias, alguns profetas, ou seja, alguns fervorosos cristãos que, iluminados por Deus, previam o futuro, vieram de Jerusalém a Antioquia. Um deles, chamado Ágabo, inspirado pelo Espírito Santo, previu uma grande fome que deveria desolar toda a terra, como de fato aconteceu sob o império de Cláudio. Os fiéis, para prevenir os males que essa fome causaria, resolveram fazer uma coleta e assim cada um, segundo suas forças, enviar algum socorro aos irmãos da Judeia. O que fizeram com ótimos resultados. Para ter uma pessoa de crédito junto a todos, escolheram Saulo e Barnabé e os enviaram para levar tal esmola aos sacerdotes de Jerusalém, para que fizessem a distribuição conforme a necessidade. Cumprida sua missão, Saulo e Barnabé retornaram a Antioquia.
            Havia também nesta cidade outros profetas e doutores, entre os quais um certo Simão, apelidado de o Negro, Lúcio de Cirene e Manaém, irmão de leite de Herodes. Um dia, enquanto eles ofereciam os Santos Mistérios e jejuavam, o Espírito Santo apareceu de maneira extraordinária e disse-lhes: “Separem-me Saulo e Barnabé para a obra do sagrado ministério a que os elegi.” Então foi ordenado um jejum com orações públicas e, tendo-lhes imposto as mãos, os consagraram bispos. Esta ordenação foi modelo daquelas que a Igreja Católica costuma fazer a seus ministros: dela tiveram origem os jejuns das quatro têmporas, as orações e outras cerimônias que costumam ter lugar na sagrada ordenação.
            Saulo estava em Antioquia quando teve uma visão maravilhosa, na qual foi arrebatado ao terceiro céu, ou seja, foi elevado por Deus para contemplar as coisas do Céu mais sublimes que um homem mortal pode imaginar. Ele mesmo deixou escrito que viu coisas que não podem ser expressas com palavras, coisas nunca vistas, nunca ouvidas, e que o coração do homem não pode nem mesmo imaginar. Dessa visão celeste, Saulo, confortado, partiu com Barnabé e foi diretamente a Selêucia da Síria, assim chamada para distingui-la de outra cidade do mesmo nome situada nas proximidades do Tigre em direção à Pérsia. Também estava com eles um certo João Marcos, não o Marcos Evangelista. Ele era filho daquela piedosa viúva na casa da qual São Pedro se refugiou quando foi miraculosamente libertado da prisão por um anjo. Era primo de Barnabé e havia sido levado de Jerusalém a Antioquia na ocasião em que foram lá levar as esmolas.
            Selêucia tinha um porto no Mediterrâneo: de lá, nossos operários evangélicos embarcaram para ir à ilha de Chipre, pátria de São Barnabé. Chegando a Salamina, cidade e porto considerável daquela ilha, começaram a anunciar o Evangelho aos judeus e depois aos gentios, que eram mais simples e mais dispostos a receber a fé. Os dois Apóstolos, pregando por toda aquela ilha, chegaram a Pafos, capital do país, onde residia o procônsul, ou seja, o governador romano chamado Sérgio Paulo. Aqui o zelo de Saulo teve a oportunidade de se exercitar devido a um mago chamado Bar-Jesus ou Elimas. Este, seja para ganhar o favor do procônsul ou para tirar dinheiro de suas fraudes, seduzia o povo e afastava Sérgio de seguir os sentimentos piedosos de seu coração. O procônsul, tendo ouvido falar dos pregadores que haviam vindo ao país que ele governava, mandou chamá-los para que fossem lhe fazer conhecer sua doutrina. Foram imediatamente Saulo e Barnabé expor-lhe as verdades do Evangelho; mas Elimas, ao ver-se privado da matéria de seus ganhos, temendo talvez algo pior, começou a obstruir os desígnios de Deus, contradizendo a doutrina de Saulo e desacreditando-o perante o procônsul para mantê-lo afastado da verdade. Então Saulo, todo aceso de zelo e do Espírito Santo, fixou o olhar nele: “Sem-vergonha”, disse-lhe, “arca de impiedade e de fraude, filho do diabo, inimigo de toda justiça, você ainda não se detém de perverter os caminhos retos do Senhor? Agora, eis que a mão de Deus pesa sobre você: desde este momento você será cego e pelo tempo que Deus quiser não verá a luz do sol.” Imediatamente caiu sobre seus olhos uma névoa, da qual, privado da faculdade de ver, ele andava tateando, procurando quem lhe desse a mão.
            Diante desse fato terrível, Sérgio reconheceu a mão de Deus e, movido pelos sermões de Saulo e por aquele milagre, creu em Jesus Cristo e abraçou a fé com toda sua família. Também o mago Elimas, apavorado por essa repentina cegueira, reconheceu o poder divino nas palavras de Paulo e, renunciando à arte mágica, se converteu, fez penitência e abraçou a fé. Nessa ocasião, Saulo tomou o nome de Paulo, tanto em memória da conversão daquele governador, quanto para ser mais bem acolhido entre os gentios, pois Saulo era um nome hebraico, enquanto Paulo era um nome romano.
            Recolhendo em Pafos um considerável fruto de sua pregação, Paulo e Barnabé, com outros companheiros, embarcaram rumo a Perge, cidade da Panfília. Ali, despediram João Marcos, que até então havia se esforçado em ajudá-los. Barnabé gostaria de mantê-lo ainda; mas Paulo, percebendo nele uma certa pusilanimidade e inconstância, decidiu enviá-lo de volta à sua mãe em Jerusalém. Veremos em breve este discípulo reparar a fraqueza agora demonstrada e se tornar um fervoroso pregador.

CAPÍTULO V. São Paulo prega em Antioquia da Pisídia — Ano de Jesus Cristo 44

            De Perge, São Paulo foi com São Barnabé a Antioquia da Pisídia, assim chamada para distingui-la de Antioquia da Síria, que era a grande capital do Oriente. Ali os judeus, como em muitas outras cidades da Ásia, tinham sua sinagoga onde nos dias de sábado se reuniam para ouvir a explicação da Lei de Moisés e dos Profetas. Os dois apóstolos também compareceram e com eles muitos judeus e gentios que já adoravam o verdadeiro Deus. Segundo o costume dos judeus, os doutores da lei leram um trecho da Bíblia que depois entregaram a Paulo, pedindo-lhe que lhes dissesse algo edificante. Paulo, que não esperava outra coisa senão a oportunidade de falar, levantou-se, indicou com a mão que todos fizessem silêncio e começou a falar assim: «Filhos de Israel, e vocês todos que temem o Senhor, como me convidam a falar, peço que me ouçam com a atenção que merece a dignidade das coisas que estou prestes a lhes dizer.
            «Aquele Deus que escolheu nossos pais quando estavam no Egito e com uma longa série de prodígios fez deles uma nação privilegiada, honrou de maneira especial a linhagem de Davi prometendo que dela faria nascer o Salvador do mundo. Aquela grande promessa, confirmada por tantas profecias, finalmente se cumpriu na pessoa de Jesus de Nazaré. João, ao qual certamente vocês creem, aquele João cujas sublimes virtudes fizeram acreditar que era o Messias, deu-lhe o mais autorizado testemunho dizendo que não se considerava digno de desatar nem mesmo as correias de suas sandálias. Vocês hoje, irmãos, vocês dignos filhos de Abraão, e vocês todos adoradores do verdadeiro Deus, de qualquer nação ou linhagem que sejam, são aqueles a quem é particularmente dirigida a palavra de salvação. Os habitantes de Jerusalém, enganados por seus chefes, não quiseram reconhecer o Redentor que lhes pregamos. Ao contrário, deram-lhe a morte; mas Deus onipotente não permitiu, como havia predito, que o corpo de seu Cristo sofresse corrupção no sepulcro. Portanto, no terceiro dia após a morte, o fez ressurgir glorioso e triunfante.
            Até este ponto vocês não têm culpa alguma, porque a luz da verdade ainda não havia chegado até vocês. Mas tremam de agora em diante se algum dia fecharem os olhos; tremam por provocar sobre vocês a maldição fulminada pelos profetas contra quem não quer reconhecer a grande obra do Senhor, cujo cumprimento deve ocorrer nestes dias».
            Terminada a fala, todos os ouvintes se retiraram em silêncio, meditando sobre as coisas ouvidas de São Paulo.
            Entretanto, eram diversos os pensamentos que ocupavam suas mentes. Os bons estavam cheios de alegria pelas palavras de salvação que lhes foram anunciadas, mas grande parte dos judeus, sempre persuadidos de que o Messias deveria restabelecer o poder temporal de sua nação e envergonhando-se de reconhecer como Messias aquele que seus príncipes haviam condenado à morte ignominiosa, acolheram com desdém a pregação de Paulo. No entanto, mostraram-se satisfeitos e convidaram o Apóstolo a retornar no sábado seguinte, com ânimo, porém, bem diferente: os maliciosos para se prepararem para contradizê-lo, e aqueles que temiam o Senhor, israelitas e gentios, para melhor se instruírem e se confirmarem na fé. No dia combinado, reuniu-se uma imensa multidão para ouvir esta nova doutrina. Assim que São Paulo começou a pregar, imediatamente os doutores da sinagoga se levantaram contra ele. Opondo inicialmente algumas dificuldades; quando perceberam que não podiam resistir à força das razões com as quais São Paulo provava as verdades da fé, entregaram-se a gritos, injúrias e blasfêmias. Os dois apóstolos, vendo-se sufocar a palavra na boca, com forte ânimo exclamaram em alta voz: «A vocês se deveria em primeiro lugar anunciar a divina palavra; mas já que vocês tapam maldosamente os ouvidos e com fúria a rejeitam, tornam-se indignos da vida eterna. Nós, portanto, nos voltamos para os gentios para cumprir a promessa feita por Deus pela boca de seu profeta quando disse: “Eu te destinei para luz dos gentios e para a salvação deles até a extremidade da terra”».
            Os judeus então, ainda mais movidos por inveja e indignação, incitaram contra os Apóstolos uma feroz perseguição.
            Serviram-se de algumas mulheres que gozavam de crédito por serem piedosas e honestas, e com elas incitaram os magistrados da cidade, e todos juntos, gritando e fazendo alvoroço, forçaram os Apóstolos a sair de seus limites. Assim forçados, Paulo e Barnabé partiram daquela infeliz terra e, no ato de sua partida, segundo o mandamento de Jesus Cristo, sacudiram a poeira de seus pés em sinal de renunciar para sempre a qualquer relação com eles, como homens reprovados por Deus e atingidos pela maldição divina.

CAPÍTULO VI. São Paulo prega em outras cidades — Realiza um milagre em Listra, onde depois é apedrejado e deixado por morto — Ano de Jesus Cristo 45

            Paulo e Barnabé, expulsos da Pisídia, foram para a Licaônia, outra província da Ásia Menor, e se dirigiram a Icônio, que era a capital. Os santos Apóstolos, buscando apenas a glória de Deus, esquecendo os maus-tratos que haviam recebido em Antioquia pelos Judeus, se dedicaram imediatamente a pregar o Evangelho na sinagoga. Aqui Deus abençoou seus esforços, e uma multidão de Judeus e Gentios abraçou a fé. Mas aqueles entre os Judeus que permaneceram incrédulos e se obstinaram na impiedade, iniciaram outra perseguição contra os Apóstolos. Alguns os recebiam como homens enviados por Deus, outros os proclamavam impostores. Portanto, tendo sido avisados de que muitos deles, protegidos pelos chefes da sinagoga e pelos magistrados, queriam apedrejá-los, foram a Listra e depois a Derbe, cidades não muito distantes de Icônio. Essas cidades e os países vizinhos foram o campo onde nossos zelosos operários se dedicaram a semear a palavra do Senhor. Entre os muitos milagres que Deus realizou pela mão de São Paulo nesta missão, foi brilhante aquele que estamos prestes a relatar.
            Em Listra havia um homem coxo desde o nascimento, que nunca havia conseguido dar um passo com seus pés. Tendo ouvido que São Paulo realizava milagres extraordinários, sentiu nascer em seu coração uma viva confiança de que também poderia obter a saúde por meio dele, como tantos outros já haviam conseguido. Ele ouvia as pregações do Apóstolo, quando este, olhando fixamente para aquele infeliz e penetrando as boas disposições de sua alma, lhe disse em alta voz: “Levanta-te e fica em pé sobre os teus pés”. A um tal comando, o coxo se levantou e começou a andar rapidamente. A multidão que estava presente a tal milagre se sentiu tomada de entusiasmo e maravilha. “Esses não são homens”, exclamavam de todos os lados, “mas são deuses revestidos de aparência humana, descidos do céu entre nós”. E segundo tal suposição errônea, chamavam Barnabé de Júpiter, porque o viam de semblante mais majestoso, e Paulo, que falava com maravilhosa eloquência, chamavam de Mercúrio, que entre os Gentios era o intérprete e mensageiro de Júpiter e o deus da eloquência. Chegou a notícia do fato ao sacerdote do templo de Júpiter, que estava fora da cidade, e ele julgou ser seu dever oferecer aos grandes hóspedes um solene sacrifício e convidar todo o povo a participar. Preparadas as vítimas, as coroas e tudo o que fosse necessário para a função, trouxeram tudo diante da casa onde estavam hospedados Paulo e Barnabé, querendo de todas as maneiras fazer-lhes um sacrifício. Os dois Apóstolos, acesos de santo zelo, se lançaram na multidão e, em sinal de dor, rasgando suas vestes, gritavam: “Oh, o que fazeis, ó miseráveis? Nós somos homens mortais como vós; nós, com todo o espírito, vos exortamos a converter-vos do culto dos deuses ao culto daquele Senhor que criou o céu e a terra, e que, embora no passado tenha tolerado que os Gentios seguissem suas loucuras, no entanto forneceu claros argumentos de seu ser e de sua infinita bondade com obras que o fazem conhecer como supremo Senhor de todas as coisas”.
            A tão franca fala acalmaram-se os ânimos e abandonaram a ideia de fazer aquele sacrifício. Os sacerdotes ainda não haviam cedido totalmente e estavam perplexos se deveriam desistir quando chegaram de Antioquia e de Icônio alguns Judeus, enviados das sinagogas para perturbar as santas empreitadas dos Apóstolos. Aqueles malignos fizeram tanto e disseram tanto que conseguiram revoltar todo o povo contra os dois Apóstolos. Assim, aqueles que poucos dias antes os veneravam como deuses, agora os chamavam de malfeitores; e como apenas São Paulo havia falado, a ira se voltou toda contra ele.
            Lançaram sobre ele tal tempestade de pedras que, acreditando-o morto, o arrastaram para fora da cidade. Veja, leitor, como se deve avaliar a glória do mundo! Aqueles que hoje o querem elevar acima das estrelas, amanhã talvez o queiram no mais profundo dos abismos! Bem-aventurados aqueles que depositam em Deus sua confiança.

CAPÍTULO VII. Paulo milagrosamente curado — Outras de suas fadigas apostólicas — Conversão de Santa Tecla

            Os discípulos com outros fiéis, tendo sabido ou talvez visto o que havia sido feito a Paulo, se reuniram em torno do seu corpo chorando-o como morto. Mas logo foram consolados; pois, seja que Paulo estivesse realmente morto, seja que estivesse apenas todo machucado, Deus em um instante o fez retornar são e vigoroso como antes, a tal ponto que ele pôde se levantar por si mesmo e, cercado pelos discípulos, retornar à cidade de Listra entre aqueles mesmos que pouco antes o haviam apedrejado.
            Mas no dia seguinte, saindo daquela cidade, passou a Derbe, outra cidade da Licaônia. Aí pregou Jesus Cristo e fez muitas conversões. Paulo e Barnabé visitaram muitas cidades onde já haviam pregado e, observando os graves perigos a que estavam expostos aqueles que há pouco tempo haviam abraçado à fé, ordenaram Bispos e Sacerdotes que tivessem cuidado daquelas igrejas.
            Entre as conversões realizadas nesta terceira missão de Paulo é muito célebre a de Santa Tecla. Enquanto ele pregava em Icônio, essa jovem foi ouvi-lo. Anteriormente, ela havia se dedicado às belas letras e ao estudo da filosofia profana. Já seus parentes a haviam prometido a um jovem nobre, rico e muito poderoso. Encontrando-se um dia ouvindo São Paulo enquanto pregava sobre o valor da virgindade, apaixonou-se por essa preciosa virtude. Ao ouvir depois a grande estima que o Salvador tinha por ela e o grande prêmio que era reservado no céu àqueles que têm a bela sorte de conservá-la, sentiu ardente desejo de consagrar-se a Jesus Cristo e renunciar a todas as vantagens dos casamentos terrenos. Ao recusar aquele casamento, vantajoso aos olhos do mundo, seus parentes se indignaram fortemente e, de acordo com o noivo, tentaram todas as maneiras, todas as lisonjas para fazê-la mudar de propósito. Tudo em vão: quando uma alma é ferida pelo amor de Deus, todo esforço humano não consegue mais afastá-la do objeto que ama. De fato, os parentes, o noivo, os amigos, mudando o amor em fúria, incitaram os juízes e os magistrados de Icônio contra a santa virgem e das ameaças passaram aos fatos.
            Ela foi jogada em um cercado de feras famintas e ferozes; Tecla, unicamente armada da confiança em Deus, faz o sinal da Santa Cruz, e aqueles animais depõem sua ferocidade e respeitam a esposa de Jesus Cristo. Acende-se uma fogueira na qual ela é precipitada; mas, feito apenas o sinal da Cruz, as chamas se extinguem e ela se conserva ilesa. Em suma, foi exposta a todo tipo de tormentos e de todos foi prodigiosamente libertada. Por essas coisas, foi-lhe dado o nome de protomártir, ou seja, primeira mártir entre as mulheres, como Santo Estêvão foi o primeiro mártir entre os homens. Ela viveu ainda muitos anos no exercício das mais heroicas virtudes e morreu em paz em idade muito avançada.

CAPÍTULO VIII. São Paulo vai conferir com São Pedro — Assiste ao Concílio de Jerusalém — Ano de Cristo 50

            Após as fadigas e os sofrimentos suportados por Paulo e Barnabé em sua terceira missão, contentes com as almas que conseguiram conduzir ao aprisco de Jesus Cristo, retornaram a Antioquia da Síria. Lá contaram aos fiéis daquela cidade as maravilhas operadas por Deus na conversão dos Gentios. O Santo Apóstolo foi ali consolado com uma revelação, na qual Deus lhe ordenou que se dirigisse a Jerusalém para conferir com São Pedro sobre o Evangelho que ele pregava. Deus havia ordenado isso para que São Paulo reconhecesse em São Pedro o Chefe da Igreja, e assim todos os fiéis compreendessem como os dois príncipes dos Apóstolos pregavam uma mesma fé, um só Deus, um só batismo, um só Salvador Jesus Cristo.
            Paulo partiu em companhia de Barnabé, levando consigo um discípulo chamado Tito, ganho à fé no decorrer desta terceira missão. Este é aquele famoso Tito, que se tornou modelo de virtude, fiel seguidor e colaborador do nosso santo Apóstolo e de quem também teremos muitas vezes a falar. Chegando a Jerusalém, apresentaram-se aos Apóstolos Pedro, Tiago e João, que eram considerados como as principais colunas da Igreja. Entre outras coisas, foi ali acordado que Pedro com Tiago e João se aplicariam de maneira especial para conduzir os Judeus à fé; Paulo e Barnabé, por sua vez, se dedicariam principalmente à conversão dos Gentios.
            Paulo permaneceu quinze dias naquela cidade, após o que retornou com seus companheiros a Antioquia. Lá encontraram os fiéis muito agitados por uma questão derivada do fato de que os Judeus queriam obrigar os Gentios a se submeterem à circuncisão e às outras cerimônias da lei de Moisés, o que era o mesmo que dizer que era necessário se tornar um bom Judeu para depois se tornar um bom Cristão. As contendas foram tão longe que, não podendo se aquietar de outra forma, foi decidido enviar Paulo e Barnabé a Jerusalém para consultar o Chefe da Igreja para que por ele fosse decidida a questão.
            Nós já contamos na vida de São Pedro como Deus, com uma maravilhosa revelação, havia feito conhecer a este príncipe dos Apóstolos que os Gentios, ao virem à fé, não eram obrigados à circuncisão nem às outras cerimônias da lei de Moisés; no entanto, para que a vontade de Deus fosse conhecida por todos e fosse de modo solene resolvida toda a dificuldade, Pedro convocou um concílio universal, que foi o modelo de todos os concílios que foram celebrados nos tempos futuros. Ali Paulo e Barnabé expuseram o estado da questão, que foi definida por São Pedro e confirmada pelos outros Apóstolos da seguinte maneira:
            «Os Apóstolos e os anciãos aos irmãos convertidos do paganismo, que habitam em Antioquia e nas outras partes da Síria e da Cilícia. Tendo nós entendido que alguns que foram daqui têm perturbado e angustiado as vossas consciências com ideias arbitrárias, pareceu bem a nós aqui reunidos escolher e enviar a vós Paulo e Barnabé, homens a nós caríssimos, que sacrificaram suas vidas pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Com eles enviamos Silas e Judas, os quais, entregando-vos nossas cartas, vos confirmarão de boca as mesmas verdades. De fato, foi julgado pelo Espírito Santo e por nós não vos impor outra lei, exceto aquelas que deveis observar, isto é, abster-vos das coisas sacrificadas aos ídolos, das carnes sufocadas, do sangue e da fornicação, das quais coisas abstendo-vos fareis bem. Fiquem em paz.»
            Esta última coisa, ou seja, a fornicação, não precisava ser proibida, sendo totalmente contrária aos ditames da razão e proibida pelo sexto preceito do Decálogo. No entanto, foi renovada tal proibição em relação aos Gentios, que no culto de seus falsos deuses pensavam que era lícito, ao contrário, coisa agradável àquelas imundas divindades.
            Chegando Paulo e Barnabé com Silas e Judas a Antioquia, publicaram a carta com o decreto do concílio, com o qual não só aquietaram o tumulto, mas encheram os irmãos de alegria, reconhecendo cada um a voz de Deus na de São Pedro e do concílio. Silas e Judas contribuíram muito para aquela alegria comum, pois sendo eles profetas, ou seja, cheios do Espírito Santo e dotados do dom da palavra divina e de uma graça particular para interpretar as Sagradas Escrituras, tiveram muita eficácia em confirmar os fiéis na fé, na concordância e nos bons propósitos.
            São Pedro, tendo sido informado dos progressos extraordinários que o Evangelho fazia em Antioquia, quis também ir visitar aqueles fiéis, a quem já havia pregado por mais anos e entre os quais havia mantido a Sé Pontifícia por sete anos. Enquanto os dois príncipes dos Apóstolos permaneciam em Antioquia, aconteceu que Pedro, para agradar aos Judeus, praticava algumas cerimônias da lei mosaica; o que causava uma certa aversão por parte dos Gentios, sem que São Pedro estivesse ciente disso. São Paulo, ao tomar conhecimento desse fato, avisou publicamente São Pedro, o qual com admirável humildade recebeu o aviso sem proferir palavras de desculpa; ao contrário, a partir de então tornou-se muito amigo de São Paulo, e em suas cartas não costumava chamá-lo por outro nome senão pelo de irmão caríssimo. Exemplo digno de ser imitado por aqueles que de alguma forma são avisados de seus defeitos.

CAPÍTULO IX. Paulo se separa de Barnabé — Percorre várias cidades da Ásia — Deus o envia à Macedônia — Em Filipos converte a família de Lídia — Ano de Cristo 51

            Paulo e Barnabé pregaram por algum tempo o Evangelho na cidade de Antioquia, esforçando-se até para divulgá-lo nos países vizinhos. Não muito depois, Paulo pensou em visitar as Igrejas onde havia pregado. Disse, portanto, a Barnabé: “Parece-me bem que voltemos a ver os fiéis daquelas cidades e terras onde pregamos, para ver como vão as coisas da religião entre eles.” Nada estava mais a peito de Barnabé, e por isso ele imediatamente concordou com o Santo Apóstolo; mas propôs levar consigo também aquele João Marcos que os havia seguido na missão anterior e depois os deixara em Perge. Talvez ele desejasse apagar a mancha que havia feito naquela ocasião, por isso queria estar novamente em sua companhia. São Paulo não pensava assim: “Você vê”, dizia a Barnabé, “que este não é um homem em quem se possa confiar: certamente você se lembra de como, ao chegarmos a Perge da Panfília, ele nos abandonou.” Barnabé insistia dizendo que poderia ser acolhido, e apresentava boas razões. Não conseguindo os dois Apóstolos entrar em acordo, decidiram se separar e seguir caminhos diferentes.
            Assim Deus fez servir essa diversidade de sentimentos para sua maior glória; porque, separados, levavam a luz do Evangelho a mais lugares, coisa que não teriam feito indo ambos juntos.
            Barnabé foi com João Marcos para a ilha de Chipre e visitou aquelas Igrejas onde havia pregado com São Paulo na missão anterior. Este Apóstolo trabalhou muito para difundir a fé em Jesus Cristo e finalmente foi coroado com o martírio em Chipre, sua pátria. João Marcos, desta vez, foi constante, e o veremos depois como fiel companheiro de São Paulo, que teve muito a louvar seu zelo e caridade.
            São Paulo levou consigo Silas, aquele que lhe fora designado como companheiro para levar os atos do concílio de Jerusalém a Antioquia, iniciou sua quarta viagem e foi visitar várias Igrejas que ele havia fundado. Primeiro foi a Derbe, depois a Listra, onde algum tempo atrás o Santo Apóstolo fora deixado como morto. Mas Deus quis desta vez compensá-lo pelo que havia sofrido antes.
            Ele encontrou lá um jovem que havia convertido na outra missão, chamado Timóteo. Paulo já conhecia o belo caráter deste discípulo e em seu coração havia decidido torná-lo um colaborador do Evangelho, ou seja, consagrá-lo sacerdote e tomá-lo como companheiro em seus trabalhos apostólicos. Antes, porém, de conferir-lhe a sagrada ordenação, Paulo pediu informações aos fiéis de Listra e descobriu que todos elogiavam este bom jovem, magnificando sua virtude, modéstia e seu espírito de oração; e isso diziam não apenas os de Listra, mas até mesmo os de Icônio e das outras cidades vizinhas, e todos pressagiavam em Timóteo um zeloso sacerdote e um santo bispo.
            Diante desses luminosos testemunhos, Paulo não teve mais dificuldade em consagrá-lo sacerdote. Paulo, portanto, levando consigo Timóteo e Silas, continuou a visita das Igrejas, recomendando a todos que observassem e se mantivessem firmes nas decisões do concílio de Jerusalém. Assim fizeram os de Antioquia, e assim fizeram em todo tempo os pregadores do Evangelho para assegurar os fiéis de não caírem em erro: manter-se aos decretos, às ordens dos concílios e do Papa Romano, sucessor de São Pedro.
            Paulo e seus companheiros atravessaram a Galácia e a Frígia para levar o Evangelho à Ásia, mas o Espírito Santo o proibiu.
            Para facilitar a compreensão das coisas que estamos prestes a contar, é bom notar de passagem que pela palavra Ásia em sentido amplo se entende uma das três partes do mundo. Costuma-se chamar de Ásia Maior toda a extensão da Ásia, exceto aquela parte que se chama Ásia Menor, hoje Anatólia, que é a península compreendida entre o Mar de Chipre, o Egeu e o Mar Negro. Também foi chamada de Ásia Proconsular uma parte da Ásia Menor mais ou menos extensa de acordo com o número das províncias confiadas ao governo do procônsul romano. Aqui, por Ásia, onde São Paulo planejava ir, entende-se uma porção da Ásia Proconsular, situada em torno de Éfeso e compreendida entre os montes Tauro, o Mar Negro e a Frígia.
            São Paulo então pensou em ir à Bitínia, que é outra província da Ásia Menor um pouco mais em direção ao Mar Negro; mas nem isso lhe foi permitido por Deus. Portanto, voltou e foi a Trôade, que é uma cidade e província onde antigamente havia uma famosa cidade chamada Troia. Deus havia reservado para outro tempo a pregação do Evangelho àqueles povos; por ora, queria enviá-lo a outros países.
            Enquanto São Paulo estava em Trôade, apareceu-lhe um anjo vestido de homem segundo o uso dos macedônios, que, estando em pé diante dele, começou a suplicá-lo assim: “Oh! tenha piedade de nós; passe à Macedônia e venha em nosso socorro.” Dessa visão, São Paulo conheceu a vontade do Senhor e sem demora se preparou para atravessar o mar e ir à Macedônia.
            Em Trôade, juntou-se a São Paulo um primo seu chamado Lucas, que lhe foi de grande ajuda em suas fadigas apostólicas. Ele era um médico de Antioquia, de grande inteligência, que escrevia com pureza e elegância em grego. Ele foi para Paulo o que São Marcos foi para São Pedro; e assim como ele, escreveu o Evangelho que lemos sob o nome de Evangelho segundo Lucas. Também o livro intitulado Atos dos Apóstolos, do qual extraímos quase todas as coisas que dizemos sobre São Paulo, é obra de São Lucas. Desde que se uniu como companheiro do nosso Apóstolo, não houve mais perigo, fadiga ou sofrimento que pudesse abalar sua constância.
            Paulo, portanto, segundo o aviso do anjo, juntamente com Silas, Timóteo e Lucas, embarcou de Trôade, navegou pelo Egeu (que separa a Europa da Ásia) e com próspera navegação chegou à ilha de Samotrácia, depois a Neápolis, não a capital do Reino de Nápoles, mas uma pequena cidade na fronteira da Trácia e da Macedônia. Sem parar, o Apóstolo foi diretamente a Filipos, cidade principal, assim chamada porque foi edificada por um rei daquele país chamado Filipe. Ali permaneceram por algum tempo.
            Naquela cidade, os judeus não tinham sinagoga, seja porque fossem proibidos, seja porque eram muito poucos em número. Tinham apenas uma “proseuca”, ou seja, lugar de oração, que chamamos de oratório. No dia de sábado, Paulo e seus companheiros saíram da cidade à beira de um rio onde encontraram uma “proseuca” com algumas mulheres. Começaram imediatamente a pregar o reino de Deus àquela audiência simples. Uma comerciante chamada Lídia foi a primeira a ser chamada por Deus; assim, ela e sua família receberam o Batismo.
            Esta mulher piedosa, grata pelos benefícios recebidos, assim pediu aos mestres e aos pais de sua alma: “Se vocês me consideram fiel a Deus, não me neguem uma graça após aquela do Batismo que reconheço ter recebido de vocês. Venham à minha casa, permaneçam quanto desejarem e considerem-na como sua.” Paulo não queria consentir; mas ela fez tais insistências que ele teve que aceitar. Eis o fruto que produz a palavra de Deus, quando é bem ouvida. Ela gera a fé; mas deve ser ouvida e explicada pelos ministros sagrados, como dizia o próprio São Paulo: “Fides ex auditu, auditus autem per verbum Christi” (A fé vem do ouvir, e o ouvir vem pela palavra de Cristo).

CAPÍTULO X. São Paulo liberta uma jovem do demônio — É açoitado com varas — É colocado na prisão — Conversão do carcereiro e de sua família — Ano de Cristo 51

            São Paulo e seus companheiros andavam por aí espalhando a semente da palavra de Deus pela cidade de Filipos. Um dia, indo à “proseuca”, encontraram uma pitonisa, que diríamos ser uma maga ou bruxa. Ela tinha um demônio que falava por sua boca e adivinhava muitas coisas extraordinárias; o que dava muito lucro aos seus senhores, pois as pessoas ignorantes iam consultá-la e para se fazer prever o futuro tinham que pagar bem pelas consultas. Assim, ela começou a seguir São Paulo e seus companheiros, gritando-lhes: “Estes homens são servos do Deus Altíssimo; eles vos mostram o caminho da salvação.” São Paulo a deixou falar sem dizer nada, até que, aborrecido e indignado, se voltou para aquele espírito maligno que falava por sua boca e disse em tom ameaçador: “Em nome de Jesus Cristo, eu te ordeno que saias imediatamente desta jovem.” O dizer e o fazer foram uma só coisa, porque, forçado pela poderosa virtude do nome de Jesus Cristo, teve que sair daquele corpo, e pela sua partida a maga ficou sem magia.
            Vocês, leitores, compreenderão a razão pela qual o demônio louvava São Paulo, e este santo Apóstolo rejeitou os louvores. O espírito maligno queria que São Paulo o deixasse em paz, e assim o povo acreditasse que a doutrina de São Paulo era a mesma das adivinhações daquela endemoninhada. O santo Apóstolo quis demonstrar que não havia qualquer acordo entre Cristo e o demônio, e ao recusar suas adulações, mostrou quão grande era o poder do nome de Jesus Cristo sobre todos os espíritos do inferno.
            Os senhores daquela jovem, vendo que com o demônio se foi toda a esperança de lucro, se indignaram fortemente contra São Paulo e, sem esperar qualquer sentença, pegaram a ele e a seus companheiros e os levaram ao Palácio da Justiça. Chegando à presença dos juízes, disseram: “Estes homens de raça judaica estão perturbando nossa cidade para introduzir uma religião nova, que certamente é um sacrilégio.” O povo, ouvindo que se tratava de uma ofensa à religião, se enfureceu e se lançou contra eles de todos os lados.
            Os juízes se mostraram cheios de indignação e, rasgando suas vestes, sem fazer qualquer processo, sem examinar se havia crime ou não, mandaram que fossem severamente açoitados com varas e, quando estavam saciados ou cansados de bater, mandaram que Paulo e Silas fossem levados à prisão, ordenando ao carcereiro que os guardasse com a máxima diligência. Este não apenas os trancou na prisão, mas para maior segurança prendeu seus pés entre os grilhões. Aqueles santos homens, no horror da prisão, cobertos de feridas, longe de se queixar, exultavam de alegria e durante a noite iam cantando louvores a Deus. Os outros prisioneiros estavam maravilhados.
            Era meia-noite e ainda cantavam e bendiziam a Deus, quando de repente se ouviu um fortíssimo terremoto, que com horrível estrondo fez tremer até os fundamentos daquele edifício. A este tremor caem as correntes dos prisioneiros, quebram-se seus grilhões, as portas das prisões se abrem e todos os detidos se encontram em liberdade. O carcereiro acordou e, correndo para saber o que havia acontecido, encontrou as portas abertas. Então, ele, não duvidando que os prisioneiros haviam fugido, e por isso talvez ele mesmo tivesse que pagar com a vida, no excesso da desesperação corre, saca uma espada, a aponta para o peito e já está prestes a se matar. Paulo, ou pela claridade da lua ou à luz de alguma lamparina, vendo aquele homem em tal ato de desespero, “Para!”, começou a gritar, “Não te faças nenhum mal, estamos todos aqui.” Acalmado por estas palavras, ele se tranquiliza um pouco e, mandando trazer luz, entrou na prisão e encontrou os prisioneiros cada um em seu lugar. Tomado de espanto e movido por uma luz interior da graça de Deus, todo tremendo se lançou aos pés de Paulo e Silas, dizendo: “Senhores, que devo fazer para ser salvo?”
            Todos podem imaginar quanta alegria Paulo sentiu em seu coração ao ouvir tais palavras! Ele se voltou para ele e respondeu: “Crê no Filho de Deus, Jesus Cristo, e serás salvo tu e toda a tua família.”
            Aquele bom homem, sem demora, levou para casa os santos prisioneiros, lavou suas feridas com aquele amor e reverência que teria feito a seu pai. Reunida então sua família, foram instruídos na verdade da fé. Ouvindo com humildade de coração a palavra de Deus, aprenderam em breve o que era necessário para se tornarem cristãos. Assim, São Paulo, vendo-os cheios de fé e da graça do Espírito Santo, os batizou a todos. Então, começaram a agradecer a Deus pelos benefícios recebidos. Aqueles novos fiéis, vendo Paulo e Silas exaustos e enfraquecidos pelos açoites e pelo longo jejum, correram imediatamente para preparar-lhes o jantar com o qual foram restaurados. Os dois Apóstolos sentiram o maior conforto pelas almas que haviam ganho para Jesus Cristo; por isso, cheios de gratidão a Deus, retornaram à prisão esperando aquelas disposições que a divina Providência lhes faria conhecer a respeito.
            Enquanto isso, os magistrados se arrependeram de terem feito bater e trancar na prisão aqueles em quem não puderam encontrar culpa alguma, e mandaram alguns oficiais dizer ao carcereiro que deixasse em liberdade os dois prisioneiros. Muito feliz com tal notícia, o carcereiro correu imediatamente para comunicá-la aos Apóstolos. “Vocês”, disse, “podem certamente ir em paz.” Mas a Paulo pareceu que deveria ser diferente. Se eles assim fugissem às escondidas, se acreditaria que eram culpados de grave delito, e isso em detrimento do Evangelho. Ele, portanto, chamou a si os oficiais e disse-lhes: “Seus magistrados, sem ter conhecimento deste caso, sem qualquer forma de julgamento, publicamente nos fizeram bater, nós que somos cidadãos romanos; e agora querem nos mandar embora às escondidas. Certamente não será assim: que venham eles mesmos e nos conduzam para fora da prisão.” Aqueles mensageiros levaram esta resposta aos magistrados; os quais, tendo entendido que eram cidadãos romanos, ficaram tomados de grande temor, porque bater num cidadão romano era crime capital. Por isso, vieram imediatamente à prisão e com palavras amáveis se desculparam pelo que haviam feito e, tirando-os honrosamente da prisão, pediram que saíssem da cidade. Os Apóstolos foram imediatamente à casa de Lídia, onde encontraram os companheiros imersos em consternação por causa deles; e ficaram grandemente consolados ao vê-los postos em liberdade. Depois disso, partiram da cidade de Filipos. Assim, aqueles cidadãos rejeitaram as graças do Senhor em troca das graças dos homens.

CAPÍTULO XI. São Paulo prega em Tessalônica — Caso de Jasão — Vai a Bereia, onde é novamente perturbado pelos judeus — Ano de Cristo 52

            Paulo, com seus companheiros, partiu de Filipos, deixando ali as duas famílias de Lídia e do carcereiro convertidas a Jesus Cristo. Passando pelas cidades de Anfípolis e Apolônia, chegou a Tessalônica, a principal cidade da Macedônia, muito famosa pelo seu comércio e pelo seu porto no Egeu. Hoje em dia é chamada Salônica.
            Lá Deus havia preparado ao santo Apóstolo muitos sofrimentos e muitas almas para ganhar a Cristo. Ele começou a pregar e, por três sábados, continuou a demonstrar com as Sagradas Escrituras que Jesus Cristo era o Messias, o Filho de Deus, que as coisas que lhe aconteceram haviam sido anunciadas pelos Profetas; portanto, deviam ou renunciar às profecias ou crer na vinda do Messias. A tal pregação, alguns creram e abraçaram a fé; mas outros, especialmente os judeus, mostraram-se obstinados e, com grande ódio, levantaram-se contra São Paulo. Colocando-se à frente de alguns malvados da plebe, reuniram-se e, em grupos, tumultuaram toda a cidade. E, como Silas e Paulo haviam se hospedado na casa de um certo Jasão, correram tumultuando até a casa dele para tirá-los e conduzi-los diante do povo. Os fiéis perceberam a tempo e conseguiram fazê-los fugir. Não conseguindo mais encontrá-los, pegaram Jasão junto com alguns fiéis e os arrastaram diante dos magistrados da cidade, gritando em alta voz: “Esses perturbadores da humanidade vieram também aqui de Filipos; e Jasão os acolheu em sua casa; agora estes transgridem os decretos e violam a majestade de César, afirmando que há um outro Rei, isto é, Jesus Nazareno.” Essas palavras inflamaram os tessalonicenses e fizeram os mesmos magistrados se enfurecerem. Mas Jasão, assegurando-os de que não queriam fazer tumultos e que, caso pedissem aqueles estrangeiros, ele os apresentaria, mostraram-se satisfeitos e o tumulto se acalmou. Mas Silas e Paulo, vendo inútil todo esforço naquela cidade, seguiram os conselhos dos irmãos e foram a Bereia, outra cidade daquela província.
            Em Bereia, Paulo começou a pregar na sinagoga dos judeus, ou seja, colocou-se no mesmo perigo do qual havia sido quase milagrosamente libertado pouco antes. Mas desta vez sua coragem foi amplamente recompensada. Os bereanos ouviram a palavra de Deus com grande avidez. Paulo sempre citava aqueles trechos da Bíblia que diziam respeito a Jesus Cristo, e os ouvintes corriam imediatamente para conferi-los e verificar os textos que ele citava; e, encontrando-os correspondentes com exatidão, se inclinavam à verdade e acreditavam no Evangelho. Assim fazia o Salvador com os judeus da Palestina quando os convidava a ler atentamente as Sagradas Escrituras: Scrutamini Scripturas, et ipsae testimonium perhibent de me (Examinai as Escrituras e são elas que dão testemunho de mim – Jo 5,39).
            No entanto, as conversões ocorridas em Bereia não puderam permanecer ocultas a ponto de não chegarem notícias aos de Tessalônica. Os obstinados judeus desta cidade correram em grande número a Bereia para prejudicar a obra de Deus e impedir a conversão dos gentios. São Paulo era principalmente procurado como aquele que sustentava em particular a pregação. Os irmãos, vendo-o em perigo, fizeram-no acompanhar secretamente para fora da cidade por pessoas de confiança e, por caminhos seguros, o conduziram a Atenas. Permaneceram, porém, em Bereia Silas e Timóteo. Mas Paulo, ao despedir aqueles que o haviam acompanhado, recomendou-lhes com urgência que dissessem a Silas e a Timóteo que o alcançassem o mais rápido possível. Os santos Padres, na obstinação dos judeus de Tessalônica, reconhecem aqueles cristãos que, não contentes em não aproveitar eles mesmos os benefícios da religião, buscam afastar os outros, o que fazem ou caluniando os sagrados ministros ou desprezando as coisas da mesma religião. O Salvador diz a estes: “A vós será tirada a minha vinha”, isto é, a minha religião, “e será dada a outros povos que a cultivarão melhor do que vós e trarão frutos a seu tempo.” Ameaça terrível, mas que, infelizmente, já se concretizou e se está concretizando em muitos países, onde outrora florescia a religião cristã, os quais atualmente vemos imersos nas densas trevas do erro, do vício e da desordem. — Deus nos livre deste flagelo!

CAPÍTULO XII. Estado religioso dos atenienses — São Paulo no Areópago — Conversão de São Dionísio — Ano de Cristo 52

            Atenas era uma das cidades mais antigas, mais ricas e mais comerciais do mundo. Ali a ciência, o valor militar, os filósofos, os oradores, os poetas sempre foram os mestres da humanidade. Os próprios romanos haviam enviado a Atenas para coletar leis que levaram a Roma como oráculos de sabedoria. Havia também um senado de homens considerados espelho de virtude, justiça e prudência; eles eram chamados areopagitas, do Areópago, lugar onde tinham o tribunal. Mas com tanta ciência, estavam imersos na vergonhosa ignorância das coisas da religião. As seitas dominantes eram a dos epicureus e a dos estoicos. Os epicureus negavam a Deus a criação do mundo e a providência, nem admitiam prêmio ou pena na outra vida; por isso colocavam a beatitude nos prazeres da terra. Os estoicos consideravam o supremo bem apenas na virtude e faziam o homem em algumas coisas maior do que o próprio Deus, porque acreditavam ter a virtude e a sabedoria por si mesmos. Todos adoravam mais deuses, e não havia crime que não fosse favorecido por alguma insensata divindade.
            São Paulo, homem desconhecido, considerado vil por ser judeu, deveria pregar-lhes a Jesus Cristo, também judeu, morto na cruz, e levá-los a adorá-lo como verdadeiro Deus. Portanto, somente Deus poderia fazer com que as palavras de São Paulo pudessem mudar corações tão inveterados no vício e alheios à verdadeira virtude, e fazer com que abraçassem e professassem a santa religião cristã.
            Enquanto Paulo aguardava Silas e Timóteo, sentia em seu coração compaixão por aqueles miseráveis enganados e, como de costume, começava a discutir com os judeus e com todos aqueles que se encontravam com ele, ora nas sinagogas, ora nas praças. Os epicureus e os estoicos também vieram discutir com ele e, não podendo resistir às razões, iam dizendo: “O que quer dizer esse charlatão?” Outros diziam: “Parece que este quer nos mostrar algum novo Deus.” O que diziam porque ouviam mencionar Jesus Cristo e a ressurreição. Alguns outros, querendo agir com mais prudência, convidaram Paulo a ir ao Areópago. Quando chegou a esse magnífico senado, disseram-lhe: “Poderíamos saber algo sobre essa tua nova doutrina? Pois tu nos fazes soar aos ouvidos coisas nunca antes ouvidas por nós. Desejamos saber a realidade do que ensinas.”
            Ao saber que um estrangeiro deveria falar no Areópago, acorreu uma grande multidão de gente.
            Convém aqui notar que entre os atenienses era severamente proibido dizer a menor palavra contra suas inúmeras e estúpidas divindades, e consideravam crime capital receber ou adicionar entre eles algum deus estrangeiro, que não fosse cuidadosamente examinado e proposto pelo senado. Dois filósofos, um chamado Anaxágoras e o outro Sócrates, foram mortos apenas por terem deixado entender que não podiam admitir tantas ridículas divindades. Destas coisas se entende facilmente o perigo em que estava São Paulo pregando o verdadeiro Deus àquela terrível assembleia e tentando derrubar todos os seus deuses.
            O santo Apóstolo, portanto, vendo-se naquele augusto senado e devendo falar aos mais sábios dos homens, julgou bem adotar um estilo e uma maneira de raciocinar muito mais elegantes do que costumava. E, como aqueles senadores não admitissem o argumento das Escrituras, ele pensou em se fazer ouvir pela força da razão. Levantando-se, portanto, e fazendo silêncio entre todos, começou:
            «Homens atenienses, eu vos vejo em todas as coisas religiosos até o escrúpulo. Porque, passando por esta cidade e considerando os vossos simulacros, encontrei também um altar com esta inscrição: Ao Deus Desconhecido. Eu, portanto, venho anunciar-vos aquele Deus que vós adorais sem conhecer. Ele é aquele Deus que fez o mundo e todas as coisas que nele existem. Ele é o Senhor do céu e da terra, por isso não habita em templos feitos por mãos humanas. Nem ele é servido pelas mãos dos mortais como se tivesse necessidade deles; pois, ao contrário, ele é quem dá a todos a vida, o fôlego e todas as coisas. Ele fez com que de um só homem descendessem todos os outros, cuja descendência se espalhou por toda a terra. Ele fixou os tempos e os limites da sua habitação, para que buscassem a Deus, se porventura o pudessem encontrar, embora Ele não esteja longe de nós.
            «Porque nele vivemos, nos movemos e somos, como também disse algum dos vossos poetas (Arato, famoso poeta da Cilícia): “Porque somos também sua descendência”. Sendo, portanto, nós descendência de Deus, não devemos considerar que Ele seja semelhante ao ouro ou à prata ou à pedra esculpida pela arte ou pela invenção dos homens. Deus, porém, na sua misericórdia, fechou os olhos para o passado sobre tal ignorância; mas agora ordenou que façamos penitência. Pois Ele fixou um dia em que julgará com justiça todo o mundo por meio de um homem estabelecido por Ele, como deu prova a todos ressuscitando-o dos mortos».
            Até este ponto, aqueles ouvintes levianos, cujos vícios e erros haviam sido atacados com muita sutileza, mantiveram-se em bom comportamento. Mas ao primeiro anúncio do dogma extraordinário da ressurreição, os epicureus se levantaram e, em grande parte, saíram zombando daquela doutrina que certamente lhes incutia terror. Outros, mais discretos, disseram-lhe que por aquele dia bastava, e que o ouviriam outra vez sobre o mesmo assunto. Assim foi recebido o mais eloquente dos Apóstolos por aquela assembleia soberba. Adiaram o aproveitamento da graça de Deus; essa graça não lemos que tenha sido depois concedida a eles por Deus.
            Deus, porém, não deixou de consolar seu servo com a conquista de algumas almas privilegiadas. Entre outras, foi Dionísio, um dos juízes do Areópago, e uma mulher chamada Dâmaris, que se acredita ser sua esposa. Conta-se que este Dionísio, à morte do Salvador, contemplando aquele eclipse pelo qual as trevas se espalharam sobre toda a terra, exclamou: “Ou o mundo se desfaz, ou o autor da natureza sofre violência.” Assim que ele pôde conhecer a causa daquele acontecimento, rendeu-se imediatamente às palavras de São Paulo. Conta-se também que, tendo ido visitar a Mãe de Deus, ficou tão surpreso com tanta beleza e majestade, que se prostrou ao chão para venerá-la, afirmando que a adoraria como uma divindade se a fé não o tivesse assegurado que há um só Deus. Depois São Paulo o consagrou bispo de Atenas e morreu coroado pelo martírio.

CAPÍTULO XIII. São Paulo em Corinto — Sua moradia na casa de Áquila — Batismo de Crispo e de Sóstenes — Escreve aos Tessalonicenses — Retorno a Antioquia — Ano de Jesus Cristo 53-54

            Se Atenas era a cidade mais célebre pela ciência, Corinto era considerada a primeira pelo comércio. Para lá convergiam mercadores de todas as partes. Tinha dois portos no istmo do Peloponeso: um chamado Cencreia, que dava para o Egeu, e o outro chamado Léquio, que se debruçava sobre o Adriático. A desordem e a imoralidade eram levadas ao triunfo. Apesar de tais obstáculos, São Paulo, assim que chegou a esta cidade, começou a pregar em público e em privado.
            Ele se hospedou na casa de um judeu chamado Áquila. Este era um fervoroso cristão que, para evitar a perseguição publicada pelo imperador Cláudio contra os cristãos, havia fugido da Itália com sua esposa chamada Priscila e viera a Corinto. Exerciam a mesma arte que Paulo havia aprendido na juventude, ou seja, fabricavam tendas para uso dos soldados. Para não ser um peso para seus anfitriões, o santo Apóstolo também se dedicava ao trabalho e passava na oficina todo o tempo que lhe restava livre do sagrado ministério. Todo sábado, porém, ia à sinagoga e se esforçava para fazer conhecer aos judeus que as profecias referentes ao Messias haviam se cumprido na pessoa de Jesus Cristo.
            Chegaram, entretanto, Silas e Timóteo de Bereia. Eles haviam partido para Atenas, onde souberam que Paulo já havia partido, e o alcançaram em Corinto. À sua chegada, Paulo se dedicou com mais coragem a pregar aos judeus; mas, à medida que a obstinação deles crescia a cada dia, Paulo, não podendo mais suportar tantas blasfêmias e tal abuso de graças, assim movido por Deus, anunciou-lhes iminentes os flagelos divinos com estas palavras: «O vosso sangue recaia sobre vós; eu sou inocente. Eis que me volto para os gentios, e doravante serei tudo para eles».
            Entre os judeus que blasfemavam contra Jesus Cristo, talvez houvesse alguns que trabalhavam na oficina de Áquila; por isso, o Apóstolo, a fim de evitar a companhia dos malignos, abandonou a casa dele e se transferiu para a casa de um certo Tito Justo, que havia sido recentemente convertido do paganismo à fé. Perto de Tito morava um certo Crispo, chefe da sinagoga. Este, instruído pelo Apóstolo, abraçou a fé com toda a sua família.
            As grandes ocupações de Paulo em Corinto não o fizeram esquecer seus amados fiéis de Tessalônica. Quando Timóteo chegou de lá, ele lhe contou grandes coisas sobre o fervor daqueles cristãos, sua grande caridade, a boa memória que conservavam dele e o ardente desejo de revê-lo. Não podendo Paulo ir pessoalmente, como desejava, escreveu-lhes uma carta, que se acredita ser a primeira carta escrita por São Paulo.
            Nesta carta, ele se alegra muito com os tessalonicenses por sua fé e caridade, depois os exorta a se guardarem das desordens sensuais e de toda fraude. E como a ociosidade é a fonte de todos os vícios, assim ele os encoraja a se dedicarem seriamente ao trabalho, considerando indigno de comer quem não quer trabalhar: Si quis non vult operari nec manducet. (Se alguém não quer trabalhar, também não coma). Conclui então lembrando-lhes o grande prêmio que Deus tem preparado no céu para o menor esforço suportado na vida presente por amor a Ele.
            Pouco depois desta carta, teve outras notícias dos mesmos fiéis de Tessalônica. Eles estavam grandemente inquietos por alguns impostores que andavam pregando iminente o juízo universal. O Apóstolo escreveu-lhes uma segunda carta, avisando-os para não se deixarem enganar por seus discursos falaciosos. Nota ser certo o dia do juízo universal, mas antes devem aparecer muitos sinais, entre os quais a pregação do Evangelho em toda a terra. Exorta-os a se manterem firmes nas tradições que lhes foram comunicadas por carta e de viva voz. Finalmente, recomenda-se às suas orações e insiste muito em fugir dos curiosos e dos ociosos, que são considerados como a peste da religião e da sociedade.
            Enquanto São Paulo confortava os fiéis de Tessalônica, surgiram contra ele tais perseguições que ele se teria decidido a fugir daquela cidade se não tivesse sido confortado por Deus com uma visão. Apareceu-lhe Jesus Cristo e lhe disse: «Não temas, eu estou contigo, ninguém poderá te fazer mal; nesta cidade é grande o número daqueles que por meio de ti se converterão à fé». Encorajado por tais palavras, o Apóstolo permaneceu em Corinto dezoito meses.
            A conversão de Sóstenes foi uma das que trouxe grande consolação à alma de Paulo. Ele sucedeu a Crispo na função de chefe da sinagoga. A conversão desses dois principais representantes de sua seita irritou ferozmente os judeus, e em seu furor pegaram o Apóstolo e o conduziram ao procônsul, acusando-o de ensinar uma religião contrária à dos judeus. Galião, tal é o nome daquele governador, ouvindo que se tratava de coisas de religião, não quis envolver-se como juiz. Limitou-se a responder assim: «Se se tratasse de alguma injustiça ou de algum crime público, eu os ouviria de bom grado; mas tratando-se de questões pertencentes à religião, decidam vocês mesmos, eu não pretendo julgar essas matérias». Aquele procônsul considerava que as questões e as diferenças relacionadas à religião deveriam ser discutidas pelos sacerdotes e não pelas autoridades civis, e por isso foi sábia sua resposta.
            Indignados os judeus com tal repulsa, se voltaram contra Sóstenes, incitaram também os ministros do tribunal a se unirem a eles para espancá-lo diante do mesmo Galião, sem que ele os proibisse. Sóstenes suportou com invicta paciência aquela afronta e, assim que foi libertado, uniu-se a Paulo e se tornou seu fiel companheiro em suas viagens.
            Vendo-se Paulo como por milagre libertado de tão grave tempestade, fez a Deus um voto em agradecimento. Esse voto era semelhante ao dos nazireus, o qual consistia particularmente em se abster por um determinado tempo do vinho e de qualquer outra coisa que embriagasse, e em deixar crescer os cabelos, o que entre os antigos era sinal de luto e de penitência. Quando estava para terminar o tempo do voto, deveria fazer um sacrifício no templo com várias cerimônias prescritas pela lei de Moisés.
            Cumprida uma parte de seu voto, São Paulo, em companhia de Áquila e Priscila, embarcou rumo a Éfeso, cidade da Ásia Menor. Segundo seu costume, Paulo foi visitar a sinagoga e disputou várias vezes com os judeus. Pacíficas foram essas disputas, aliás, os judeus o convidaram a ficar mais tempo; mas Paulo queria prosseguir sua viagem para se encontrar em Jerusalém e cumprir seu voto. Porém, prometeu àqueles fiéis que retornaria, e quase como garantia de seu retorno deixou com eles Áquila e Priscila. De Éfeso, São Paulo embarcou para a Palestina e chegou a Cesareia, onde, desembarcando, se encaminhou a pé para Jerusalém. Foi visitar os fiéis desta Igreja e, cumpridas as coisas para as quais havia empreendido a viagem, veio a Antioquia, onde se demorou por algum tempo.
            Tudo é digno de admiração neste grande Apóstolo. Notemos aqui somente uma coisa que ele recomenda calorosamente aos fiéis de Corinto. Para dar-lhes um importante aviso sobre como se manter firmes na fé, escreve: Itaque, fratres, state, et tenete traditiones quas didicistis sive per sermonem sive per epistolam nostram (Portanto, irmãos, ficai firmes e guardai cuidadosamente os ensinamentos que vos transmitimos, de viva voz ou por carta). Com essas palavras, São Paulo ordenava que se tivesse a mesma reverência pela palavra de Deus escrita e pela palavra de Deus transmitida por tradição, como ensina a Igreja Católica.

CAPÍTULO XIV. Apolo em Éfeso — O sacramento da Crisma — São Paulo opera muitos milagres — Caso de dois exorcistas judeus — Ano de Cristo 55

            São Paulo permaneceu algum tempo em Antioquia, mas vendo aqueles fiéis suficientemente providos de pastores sagrados, decidiu partir para visitar novamente os países onde já havia pregado. Esta é a quinta viagem de nosso santo Apóstolo. Ele foi à Galácia, ao Ponto, à Frígia e à Bitínia; depois, conforme a promessa feita, retornou a Éfeso, onde Áquila e Priscila o esperavam. Em todo lugar foi acolhido, como ele mesmo escreve, como um anjo de paz.
            Entre a partida e o retorno de Paulo a Éfeso, foi a esta cidade um judeu chamado Apolo. Ele era um homem eloquente e profundamente instruído nas Sagradas Escrituras. Adorava o Salvador e o pregava também com zelo, mas não conhecia outro batismo senão aquele pregado por São João Batista. Áquila e Priscila perceberam que ele tinha uma ideia muito confusa dos Mistérios da Fé e, chamando-o a si, o instruíram melhor na doutrina, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
            Desejoso de levar a palavra de salvação a outros povos, decidiu passar à Acaia, ou seja, à Grécia. Os efésios, que há algum tempo admiravam suas virtudes e começavam a amá-lo como pai, quiseram acompanhá-lo com uma carta em que elogiavam muito seu zelo e o recomendavam aos coríntios. Ele de fato fez muito bem àqueles cristãos. Quando o Apóstolo chegou a Éfeso, encontrou vários fiéis instruídos por Apolo e, querendo conhecer o estado dessas almas, perguntou se haviam recebido o Espírito Santo; ou seja, se haviam recebido o sacramento da Crisma, que se costumava administrar naqueles tempos após o batismo, e no qual se conferia a plenitude dos dons do Espírito Santo. Mas aquela boa gente respondeu: «Nós não sabemos nem mesmo que haja um Espírito Santo». Maravilhado o Apóstolo com tal resposta e, tendo entendido que haviam recebido apenas o batismo de São João Batista, ordenou que fossem novamente batizados com o batismo de Jesus Cristo, ou seja, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Depois disso, Paulo, impondo as mãos, administrou-lhes o sacramento da Crisma, e aqueles novos fiéis receberam não apenas os efeitos invisíveis da graça, mas também sinais particulares e manifestos da onipotência divina, o que os tornava capazes de falar fluentemente línguas que antes não entendiam, profetizando coisas futuras e interpretando as Sagradas Escrituras.
            São Paulo pregou por três meses na sinagoga, exortando os judeus a crerem em Jesus Cristo. Muitos creram, mas alguns, mostrando-se obstinados, blasfemavam até o santo nome de Jesus Cristo. Paulo, pela honra do Evangelho ridicularizado por esses ímpios e para fugir da companhia dos malignos, cessou de pregar na sinagoga, rompeu toda comunicação com eles e se retirou para a casa de um gentil cristão chamado Tiranos, que era professor. São Paulo fez daquela escola uma Igreja de Jesus Cristo, onde, pregando e explicando as verdades da fé, atraía gentios e judeus de todas as partes da Ásia.
            Deus ajudava sua obra confirmando com prodígios inauditos a doutrina pregada por seu servo. Os panos, os lenços e as faixas que haviam tocado o corpo de Paulo eram levados de um lado para o outro e colocados sobre os enfermos e os endemoninhados, e isso bastava para que imediatamente fugissem as doenças e os espíritos imundos. Foi esta uma maravilha nunca ouvida, e Deus quis certamente que tal fato fosse registrado na Bíblia para confundir aqueles que tanto investiram e ainda investem contra a veneração que os católicos prestam às sagradas relíquias. Talvez queiram eles condenar como superstição aqueles primeiros cristãos, que aplicavam sobre os doentes os lenços que haviam tocado o corpo de Paulo? Coisas que São Paulo nunca proibiu e que Deus demonstrava aprovar com milagres?
            A propósito da invocação do nome de Jesus Cristo para fazer milagres, ocorreu um fato muito curioso. Entre os efésios havia muitos que pretendiam expulsar os demônios dos corpos com certas palavras mágicas ou usando raízes de ervas ou perfumes. Mas seus resultados sempre eram pouco favoráveis. Também alguns exorcistas judeus, vendo que até as vestes de Paulo expulsavam os demônios, ficaram tomados de inveja e tentaram, como fazia São Paulo, usar o nome de Jesus Cristo para expulsar o demônio de um homem. «Eu te conjuro», iam dizendo, «e te ordeno que saias deste corpo pelo Jesus que é pregado por Paulo». O demônio, que sabia as coisas melhor do que eles, por boca do endemoninhado respondeu: «Eu conheço Jesus e sei também quem é Paulo; mas vocês são impostores. Que direito têm vocês sobre mim?» Dito isso, lançou-se sobre eles, espancou-os e os feriu de tal modo que dois deles mal puderam fugir, todos feridos e com as roupas rasgadas. Este fato estrepitoso, tendo-se divulgado por toda a cidade, causou grande temor, e ninguém mais ousava nomear o santo nome de Jesus Cristo senão com respeito e veneração.

CAPÍTULO XV. Sacramento da Confissão — Livros perversos queimados — Carta aos Coríntios — Revolta em honra da deusa Diana — Carta aos Gálatas — Ano de Cristo 56-57

            Deus, sempre misericordioso, sabe extrair o bem até mesmo dos próprios pecados. O fato dos dois exorcistas tão maltratados por aquele endemoninhado causou grande medo em todos os efésios, e tanto os judeus quanto os gentios apressaram-se a renunciar ao demônio e a abraçar a fé. Foi então que muitos daqueles que haviam crido vinham em grande número a confessar e a declarar o mal cometido em suas vidas para obter o perdão: “Vinham confessando e declarando seus atos”. Este é um claro testemunho da confissão sacramental ordenada pelo Salvador e praticada desde os tempos apostólicos.
            O primeiro fruto da confissão e do arrependimento daqueles fiéis foi afastar de si as ocasiões do pecado. Por isso, todos aqueles que possuíam livros perversos, ou seja, contrários aos bons costumes ou à religião, os entregavam para que fossem queimados. Tantos trouxeram que, fazendo um monte na praça, fizeram uma fogueira na presença de todo o povo, considerando melhor queimar aqueles livros na vida presente para evitar o fogo eterno do inferno. O valor daqueles livros formava uma soma que correspondia quase a cem mil francos. Ninguém, porém, tentou vendê-los, pois isso seria oferecer a outros a ocasião de fazer o mal, o que nunca é permitido. Enquanto essas coisas aconteciam, chegou de Corinto a Éfeso Apolo com outros, anunciando que haviam surgido discórdias entre aqueles fiéis. O santo Apóstolo esforçou-se para remediar a situação com uma carta, na qual recomenda a eles a unidade de fé, a obediência aos seus pastores, a caridade mútua e especialmente para com os pobres; incita os ricos a não prepararem banquetes luxuosos e a não abandonarem os pobres na miséria. Insiste, então, que cada um purifique sua consciência antes de se aproximar do Corpo e do Sangue de Jesus Cristo, dizendo: “Aquele que come aquele Corpo e bebe aquele Sangue indignamente, come seu próprio juízo e sua própria condenação”. Também havia acontecido que um jovem havia cometido grave pecado com sua madrasta. O santo, para fazer compreender o devido horror, ordenou que ele fosse separado por algum tempo dos outros fiéis para que voltasse a si mesmo. Este é um verdadeiro exemplo de excomunhão, como a Igreja Católica ainda pratica, quando por graves delitos excomunga, ou seja, declara separados dos outros aqueles cristãos que são culpados. Paulo enviou seu discípulo Tito para levar esta carta a Corinto. O fruto parece ter sido muito copioso.
            Ele estava em Éfeso quando se desencadeou contra ele uma terrível perseguição por obra de um ourives chamado Demétrio. Este fabricava pequenos templos de prata nos quais se colocava uma estatueta da deusa Diana, divindade venerada em Éfeso e em toda a Ásia. Isso lhe proporcionava comércio e grande lucro, pois a maior parte dos estrangeiros que vinham às festas de Diana levava consigo esses sinais de devoção. Demétrio era o principal artífice e com isso fornecia trabalho e sustento para as famílias de muitos operários.
            À medida que crescia o número de cristãos, diminuía o número de compradores das estatuetas de Diana. Assim, um dia, Demétrio reuniu um grande número de cidadãos e demonstrou como, não tendo eles outros meios de viver, Paulo os faria morrer de fome. “Pelo menos”, acrescentava, “não se tratasse apenas do nosso interesse privado; mas o templo da nossa grande deusa, tão celebrado em todo o mundo, está prestes a ser abandonado”. A essas palavras foi interrompido por mil vozes diferentes que gritavam com a mais furiosa confusão: “A grande Diana dos Efésios! A grande Diana dos Efésios!” Toda a cidade se agitou; correram gritando em busca de Paulo e, não conseguindo encontrá-lo imediatamente, arrastaram consigo dois de seus companheiros chamados Gaio e Aristarco. Um judeu chamado Alexandre quis falar. Mas assim que conseguiu abrir a boca, de todos os lados começaram a gritar com voz ainda mais alta: “A grande Diana dos Efésios! Quão grande é a Diana dos Efésios!” Este grito foi repetido por duas horas inteiras.
            Paulo queria avançar em meio ao tumulto para falar, mas alguns irmãos, sabendo que ele se exporia a morte certa, o impediram. Deus, porém, que tem nas mãos o coração dos homens, restaurou plena calma entre aquele povo de uma maneira inesperada. Um homem sábio, um simples secretário e, pelo que parece, amigo de Paulo, conseguiu acalmar aquele furor. Assim que pôde falar, disse: “E quem não sabe que a cidade de Éfeso tem uma devoção e um culto particular à grande Diana, filha de Júpiter? Sendo tal coisa acreditada por todos, vocês não devem se perturbar nem se apegar a tão temerário remédio, como se pudesse cair em dúvida tal devoção estabelecida por todos os séculos. Quanto a Gaio e Aristarco, direi que eles não estão convencidos de nenhuma blasfêmia contra Diana. Se Demétrio e seus companheiros têm algo contra eles, que levem a causa diante do tribunal. Se continuarmos com essas demonstrações públicas, seremos acusados de sedição”. Aquelas palavras acalmaram o tumulto e cada um voltou às suas ocupações.
            Após esse tumulto, Paulo queria partir imediatamente para a Macedônia, mas teve que adiar sua partida devido a algumas desordens ocorridas entre os fiéis da Galácia. Alguns falsos pregadores começaram a desacreditar São Paulo e suas pregações, afirmando que a doutrina dele era diferente da dos outros Apóstolos e que a circuncisão e as cerimônias da lei de Moisés eram absolutamente necessárias.
            O santo Apóstolo escreveu uma carta na qual demonstra a conformidade de doutrina entre ele e os Apóstolos; prova que muitas coisas da lei de Moisés não eram mais necessárias para a salvação; recomenda que se cuidem bem dos falsos pregadores e que se gloriem somente em Jesus, em cujo nome deseja paz e bênçãos.
            Enviada a carta aos fiéis da Galácia, ele partiu para a Macedônia após ter permanecido três anos em Éfeso, ou seja, do ano cinquenta e quatro ao ano cinquenta e sete de Jesus Cristo. Durante a estada de São Paulo em Éfeso, Deus lhe fez conhecer em espírito que o chamava para a Macedônia, para a Grécia, para Jerusalém e para Roma.

CAPÍTULO XVI. São Paulo retorna a Filipos — Segunda Carta aos fiéis de Corinto — Vai a esta cidade — Carta aos Romanos — Sua pregação prolongada em Trôade — Ressuscita um morto — Ano de Cristo 58

            Antes de partir de Éfeso, Paulo convocou os discípulos e, fazendo-lhes uma paterna exortação, os abraçou ternamente; depois, pôs-se em viagem para a Macedônia. Desejava permanecer algum tempo em Trôade, onde esperava encontrar seu discípulo Tito; mas, não o tendo encontrado e desejando saber logo o estado da Igreja de Corinto, partiu de Trôade, atravessou o Helesponto, que hoje se chama estreito de Dardanelos, e passou para a Macedônia, onde teve que sofrer muito pela fé.
            Mas Deus lhe preparou uma grande consolação com a chegada de Tito, que o alcançou na cidade de Filipos. Esse discípulo expôs ao santo Apóstolo como sua carta havia produzido efeitos salutares entre os cristãos de Corinto, que o nome de Paulo era caríssimo a todos e que cada um ardia de desejo de revê-lo em breve.
            Para dar vazão aos sentimentos paternais de seu coração, o Apóstolo escreveu de Filipos uma segunda carta na qual demonstra toda a ternura para com aqueles que se conservavam fiéis e repreende alguns que buscavam perverter a doutrina de Jesus Cristo. Tendo então entendido que aquele jovem, excomungado em sua primeira carta, havia se convertido sinceramente, e ouvindo de Tito que a dor o havia quase levado à desesperação, o santo Apóstolo recomendou que se tivesse consideração por ele, o absolveu da excomunhão e o restituiu à comunhão dos fiéis. Com a carta, recomendou muitas coisas a serem comunicadas por meio de Tito, que era o portador. Acompanharam Tito nesta viagem outros discípulos, entre os quais São Lucas, que há alguns anos era bispo de Filipos. São Paulo consagrou Santo Epafrodito bispo para aquela cidade e assim São Lucas tornou-se novamente companheiro do santo mestre nas fadigas do apostolado.
            Da Macedônia, Paulo dirigiu-se a Corinto, onde ordenou tudo o que dizia respeito à celebração dos santos mistérios, como havia prometido em sua primeira carta, o que deve ser entendido como aqueles ritos que em todas as Igrejas comumente se observam, como seria o jejum antes da Santa Comunhão e outras coisas semelhantes que dizem respeito à administração dos Sacramentos.
            O Apóstolo passou o inverno nesta cidade, esforçando-se para consolar seus filhos em Jesus Cristo, que não se cansavam de ouvi-lo e de admirar nele um zeloso pastor e um terno pai.
            De Corinto, estendeu também suas solicitações a outros povos e especialmente aos romanos, já convertidos à fé por São Pedro com anos de fadigas e de sofrimentos. Áquila, com outros amigos, tendo entendido que a perseguição havia cessado, havia retornado a Roma. Paulo soube deles que naquela metrópole do império haviam surgido dissensões entre gentios e judeus. Os gentios invectivavam os judeus por não terem correspondido aos benefícios recebidos de Deus, tendo ingrata e cruelmente crucificado o Salvador; os judeus, por sua vez, faziam invectivas aos gentios por terem seguido a idolatria e venerado as divindades mais infames. O santo Apóstolo escreveu sua famosa Carta aos Romanos, toda cheia de argumentos sublimes, que trata com aquela agudeza de espírito própria de um homem douto e santo, que escreve inspirado por Deus. Não é possível resumir sem risco de alterar seu sentido. Ela é a mais longa, a mais elegante de todas as outras e a mais cheia de erudição. Exorto-te, leitor, a lê-la atentamente, mas com as devidas interpretações que se costumam unir à Vulgata. Ela é a sexta carta de São Paulo e foi escrita da cidade de Corinto no ano 58 de Jesus Cristo. Mas, pelo grande respeito que em todo tempo se teve pela dignidade da Igreja de Roma, é considerada a primeira entre as catorze cartas deste santo Apóstolo. Nesta carta, São Paulo não fala de São Pedro, porque ele estava ocupado na fundação de outras Igrejas. Ela foi levada por uma diaconisa, ou seja, monja, chamada Febe, que o Apóstolo recomenda muito junto aos irmãos de Roma.
            Desejando São Paulo partir de Corinto para se dirigir a Jerusalém, soube que os judeus estudavam armar-lhe emboscadas ao longo do caminho; por isso, em vez de embarcar no porto de Cencreia para Jerusalém, Paulo voltou e continuou a viagem pela Macedônia. Acompanharam-no Sosípato, filho de Pirro de Bereia, Aristarco e Segundo de Tessalônica, Gaio de Derbe e Timóteo de Listra, Tíquico e Trófimo da Ásia. Estes vieram com ele até Filipos; depois, com exceção de Lucas, passaram a Trôade com a ordem de esperá-lo lá, enquanto ele se deteria nesta cidade até depois das festas pascais. Passada tal solenidade, Paulo e Lucas, em cinco dias de navegação, chegaram a Trôade e lá se detiveram sete dias.
            Aconteceu que, na véspera da partida de Paulo, era o primeiro dia da semana, ou seja, dia de domingo, em que os fiéis costumavam se reunir para ouvir a palavra de Deus e assistir aos sacrifícios divinos. Entre outras coisas, faziam a fração do pão, ou seja, celebravam a Santa Missa, à qual participavam os fiéis, recebendo o Corpo do Senhor sob a espécie do pão. Desde então, a Missa era considerada o ato mais sagrado e solene para a santificação do dia festivo.
            Paulo, que estava prestes a partir no dia seguinte, prolongou o discurso até altas horas da noite e, para iluminar o cenáculo, foram acesas muitas lâmpadas. O dia de domingo, a hora noturna, o cenáculo no terceiro andar da casa, as muitas lâmpadas acesas, atraíram uma imensa multidão de gente. Enquanto todos estavam atentos ao raciocínio de Paulo, um jovem chamado Êutico, ou por desejo de ver o Apóstolo ou para poder ouvi-lo melhor, subiu sobre uma janela e se sentou no peitoril. Agora, seja pelo calor que fazia, seja pela hora tardia ou talvez pelo cansaço, o fato é que aquele jovem adormeceu; e no sono, abandonando-se ao peso de seu próprio corpo, caiu no chão da rua. Ouve-se um lamento ressoar pela assembleia; correm e encontram o jovem sem vida.
            Paulo desce imediatamente, e, colocando-se com o corpo sobre o cadáver, o abençoa, o abraça e, com seu sopro ou, melhor, com a viva fé em Deus, o restitui à nova vida. Realizado este milagre, sem se importar com os aplausos que de todos os lados se faziam, subiu novamente ao cenáculo e continuou a pregar até a manhã.
            A grande solicitude dos fiéis de Trôade para assistir às sagradas funções deve servir de estímulo a todos os cristãos a santificar os dias festivos com obras de piedade, especialmente ouvindo devotamente a Santa Missa e escutando a palavra de Deus, mesmo com algum incômodo.

CAPÍTULO XVII. Pregação de São Paulo em Mileto — Sua viagem até Cesareia — Profecia de Ágabo — Ano de Cristo 58

            Terminada aquela reunião, que durou cerca de vinte e quatro horas, o incansável Apóstolo partiu com seus companheiros para Mitilene, nobre cidade da ilha de Lesbos. Daqui, prosseguindo a viagem, em poucos dias chegou a Mileto, cidade da Cária, província da Ásia Menor. O Apóstolo não quis parar em Éfeso para não ser obrigado por aqueles cristãos, que ternamente o amavam, a atrasar demais seu caminho. Ele se apressava com o objetivo de chegar a Jerusalém para a festa de Pentecostes. De Mileto, Paulo enviou recado a Éfeso para comunicar sua chegada aos bispos e aos sacerdotes daquela cidade e das províncias vizinhas, convidando-os a vir visitá-lo e também a conferenciar com ele sobre as coisas da fé, se fosse necessário. Vieram em grande número.
            Quando São Paulo se viu cercado por aqueles veneráveis pregadores do Evangelho, começou a expor-lhes as tribulações sofridas dia e noite pelas armadilhas dos judeus. «Agora vou a Jerusalém», dizia, «guiado pelo Espírito Santo, que, em todos os lugares por onde passo, me faz conhecer as cadeias e as tribulações que me aguardam naquela cidade. Mas nada disso me assusta, nem considero minha vida mais preciosa do que meu dever. Para mim, pouco importa viver ou morrer, desde que eu termine minha corrida dando glorioso testemunho do Evangelho que Jesus Cristo me confiou. Vocês não verão mais meu rosto, mas cuidem de vocês mesmos e de todo o rebanho, sobre o qual o Espírito Santo os constituiu bispos para governar a Igreja de Deus, adquirida por ele com seu precioso sangue». Então passou a avisá-los que, após sua partida, surgiriam lobos vorazes e homens perversos para corromper a doutrina de Jesus Cristo. Tendo dito essas palavras, todos se puseram de joelhos e rezaram juntos. Ninguém podia conter as lágrimas, e todos se lançavam ao pescoço de Paulo, imprimindo-lhe mil beijos. Estavam especialmente inconsoláveis por aquelas palavras de que não veriam mais seu rosto. Para desfrutar ainda alguns momentos de sua doce companhia, o acompanharam até o navio e não sem uma espécie de violência se separaram de seu querido mestre.
            Paulo, junto com seus companheiros, de Mileto passou para a ilha de Coo, muito renomada por um templo dos Gentios dedicado a Juno e a Esculápio. No dia seguinte chegaram a Rodes, ilha muito célebre especialmente por seu Colosso, que era uma estátua de extraordinária altura e grandeza. Daí vieram a Pátara, cidade capital da Lícia, muito renomada por um grande templo dedicado ao deus Apolo. Daqui navegaram até Tiro, onde o navio deveria descarregar sua carga.
            Tiro é a cidade principal da Fenícia, agora chamada Sur, às margens do Mediterrâneo. Assim que desembarcaram, encontraram alguns profetas que iam publicando os males que sobre o santo Apóstolo se abateriam em Jerusalém, e queriam dissuadi-lo daquela viagem. Mas ele, após sete dias, quis partir. Aqueles bons cristãos, com suas esposas e filhos, o acompanharam para fora da cidade, onde, dobrando os joelhos na praia, rezaram com ele. Então, trocando as mais cordiais saudações, embarcaram e foram acompanhados pelos olhares dos sidônios até que a distância do navio os tirou de vista. Chegando a Ptolemaida, pararam um dia para saudar e confortar aqueles cristãos na fé; continuando então seu caminho, chegaram a Cesareia.
            Ali, Paulo foi recebido com júbilo pelo diácono Filipe. Este santo discípulo, após ter pregado aos samaritanos, ao eunuco da rainha Candace e em muitas cidades da Palestina, havia fixado sua residência em Cesareia para cuidar daquelas almas que ele havia regenerado em Jesus Cristo.
            Veio naqueles tempos a Cesareia o profeta Ágabo e, indo visitar o santo Apóstolo, tirou-lhe do corpo o cinto e, amarrando-se com ele os pés e as mãos, disse: «Eis o que o Espírito Santo me diz abertamente: o homem a quem pertence este cinto será assim amarrado pelos judeus em Jerusalém».
            A profecia de Ágabo comoveu todos os presentes, pois os males que estavam preparados para o santo Apóstolo em Jerusalém se tornavam cada vez mais evidentes; por isso, os próprios companheiros de Paulo, chorando, lhe suplicavam para não ir. Mas Paulo corajosamente respondia: «Ah! Eu vos imploro, não choreis. Com essas vossas lágrimas não fazeis outra coisa senão aumentar a aflição do meu coração. Sabei que estou pronto não apenas a sofrer as cadeias, mas a enfrentar também a morte pelo nome de Jesus Cristo».
            Então todos, reconhecendo a vontade de Deus na firmeza do santo Apóstolo, disseram em uma só voz: «Seja feita a vontade do Senhor». Dito isso, partiram em direção a Jerusalém com um certo Menásson, que havia sido discípulo e seguidor de Jesus Cristo. Ele tinha residência fixa em Jerusalém e ia com eles para hospedá-los em sua casa.

CAPÍTULO XVIII. São Paulo se apresenta a São Tiago — Os judeus lhe tendem armadilhas — Fala ao povo — Repreende o sumo sacerdote — Ano de Cristo 59

            Estamos agora prontos para contar uma longa série de sofrimentos e perseguições que o santo Apóstolo suportou em quatro anos de prisão. Deus quis preparar seu servo para essas lutas fazendo-o conhecê-las muito antes; de fato, os males previstos causam menor espanto, e o homem está mais disposto a suportá-los. Chegando Paulo com seus companheiros a Jerusalém, foram recebidos pelos cristãos desta cidade com os sinais da maior benevolência. No dia seguinte, foram visitar o bispo da cidade, que era São Tiago, o Menor, junto ao qual também se haviam reunido os principais sacerdotes da diocese. Paulo contou as maravilhas que Deus havia operado por seu ministério entre os Gentios, pelo que todos agradeceram de coração ao Senhor.
            No entanto, apressaram-se em avisar Paulo do perigo que o ameaçava. «Muitos judeus», disseram-lhe, «se converteram à fé e vários deles são tenazes em relação à circuncisão e às cerimônias legais. Agora, sabendo-se que você dispensa os Gentios dessas observâncias, há um ódio terrível contra você. É necessário, portanto, que você demonstre não ser inimigo dos judeus. Faça assim: na ocasião em que quatro judeus devem cumprir um voto, você participará da função e pagará por eles as despesas que forem necessárias para esta solenidade».
            Paulo aderiu prontamente ao sábio conselho e participou daquela obra de piedade. Dirigiu-se ao templo e a função estava no final, quando alguns judeus vindos da Ásia incitaram o povo contra ele, gritando: «Socorro, israelitas, socorro! Este homem é aquele que vai por todo o mundo pregando contra o povo, contra a lei e contra este mesmo templo. Ele não hesitou em violar a santidade dele introduzindo Gentios dentro dele».
            Embora tais acusações fossem calúnias, toda a cidade se agitou e, fazendo-se um grande concurso de povo, prenderam São Paulo, arrastaram-no para fora do templo para matá-lo como blasfemo. Mas o ruído do tumulto chegou ao tribuno romano, que correu imediatamente com os guardas. Os sediciosos, vendo os guardas, cessaram de agredir Paulo e o entregaram ao tribuno, que, fazendo-o amarrar, ordenou que fosse conduzido à torre Antônia, que era uma fortaleza e um quartel de soldados próximo ao templo. Lísias, tal era o nome do tribuno, desejava saber o motivo daquele tumulto, mas nada pôde saber, porque os gritos e os clamores do povo abafavam toda voz. Enquanto Paulo subia os degraus da fortaleza, foi necessário que os soldados o carregassem nos braços para tirá-lo das mãos dos judeus, que, não podendo tê-lo em seu poder, gritavam: «Matem-no, tirem-no do mundo».
            Quando estava prestes a entrar na torre, falou assim em grego ao tribuno: «É-me permitido dizer uma palavra?» O tribuno se admirou de que ele falasse grego e lhe disse: «Você sabe grego? Não é você aquele egípcio que pouco antes incitou uma rebelião e conduziu consigo no deserto quatro mil assassinos?» «Não, certamente», respondeu Paulo, «eu sou judeu, cidadão de Tarso, cidade da Cilícia. Mas, por favor, me permite falar ao povo?» O que lhe foi concedido, Paulo, dos degraus da torre, levantou um pouco a mão sobrecarregada pelo peso das cadeias, fez sinal ao povo para que ficasse em silêncio e começou a expor o que dizia respeito à sua pátria, sua conversão e sua pregação, e como Deus o havia destinado a levar a fé entre os Gentios.
            O povo o ouviu em profundo silêncio até essas últimas palavras; mas quando ouviu falar dos Gentios, como agitado por mil fúrias, irrompeu em gritos desenfreados, e quem por indignação jogava ao chão suas vestes, quem espalhava no ar a poeira, e todos gritavam: «Este é indigno de viver, seja tirado do mundo!»
            O tribuno, que nada havia entendido do discurso de São Paulo, porque ele falara em língua hebraica, temendo que o povo chegasse a graves excessos, ordenou aos seus que levassem Paulo para a fortaleza, e depois o flagelassem e o submetessem à tortura para forçá-lo a revelar a causa da sedição. Mas Paulo, que sabia que ainda não havia chegado a hora em que deveria sofrer tais males por Jesus Cristo, voltou-se para o centurião encarregado de executar aquela ordem injusta e lhe disse: «Você acha que é lícito flagelar um cidadão romano, sem que seja condenado?» Ouvindo isso, o centurião correu até o tribuno dizendo: «O que você está prestes a fazer? Não sabe que este homem é cidadão romano?»
            O tribuno teve medo, porque havia feito Paulo ser amarrado, o que acarretava pena de morte. Ele mesmo foi até Paulo e lhe disse: «Você é realmente cidadão romano?» Ele respondeu: «Sou realmente». «Eu», acrescentou o tribuno, «adquiri a caro preço tal direito de cidadania romana». «E eu», replicou Paulo, «gozo dele por meu nascimento». Sabendo disso, fez suspender a ordem de submeter Paulo à tortura, e o próprio tribuno ficou apreensivo, e buscou outro meio para saber as acusações que os judeus faziam contra ele. Ordenou que no dia seguinte se reunissem o Sinédrio e todos os sacerdotes judeus; depois, mandando retirar as cadeias de Paulo, fez com que ele fosse trazido ao meio do conselho.
            O Apóstolo, fixando os olhos naquela assembleia, disse: «Eu, irmãos, até este dia tenho caminhado diante de Deus com boa consciência». Assim que ouviram essas palavras, o sumo sacerdote, de nome Ananias, ordenou a um dos presentes que desse a Paulo uma forte pancada. O Apóstolo não julgou que deveria tolerar tão grave injúria e, com a liberdade e o zelo que usavam os antigos profetas, disse: «Muralha caiada, Deus te ferirá, assim como você mandou me ferir, porque, fingindo julgar segundo a lei, me manda ferir contra a própria lei». Ouvindo essas palavras, todos se ressentiram: «Ei», disseram-lhe, «você tem a ousadia de insultar o sumo sacerdote?» «Perdoem-me, irmãos», respondeu Paulo, «eu não sabia que este era o príncipe dos sacerdotes, pois bem conheço a lei que proíbe maldizer o príncipe do povo».
            Paulo não havia reconhecido o sumo sacerdote ou porque ele não tinha as insígnias de seu grau, ou não falava e não agia com a dignidade que convinha a tal pessoa. Nem São Paulo amaldiçoava Ananias, mas previu os males que sobre ele cairiam, como de fato aconteceu. Para se livrar de alguma maneira das mãos de seus inimigos, Paulo uniu a simplicidade da pomba à prudência da serpente e, sabendo que a assembleia era composta de saduceus e fariseus, pensou em provocar divisão entre eles exclamando: «Eu, irmãos, sou fariseu, filho e aluno de fariseus. O motivo pelo qual sou chamado a julgamento é a minha esperança na ressurreição dos mortos». Essas palavras geraram graves dissensões entre os ouvintes; quem era contra Paulo, quem a favor dele.
            Entretanto, levantou-se um clamor que fazia temer graves desordens. O tribuno, temendo que os mais enfurecidos se lançassem contra Paulo e o despedaçassem, ordenou aos soldados que o tirassem de suas mãos e o reconduzissem à torre. Deus, porém, quis consolar seu servo pelo que havia sofrido naquele dia. À noite, lhe apareceu e lhe disse: «Anime-se: depois de me ter dado testemunho em Jerusalém, você fará o mesmo em Roma».

CAPÍTULO XIX. Quarenta Judeus se comprometem com um voto a matar São Paulo — Um de seus sobrinhos descobre a trama — É transferido para Cesareia — Ano de Cristo 59

            Os judeus, vendo que seu plano havia falhado, passaram a noite seguinte elaborando vários projetos. Quarenta deles tomaram a desesperada resolução de se comprometerem com um voto a não comer nem beber antes de terem matado Paulo. Após tramarem essa conspiração, foram até os príncipes dos sacerdotes e os anciãos, contando-lhes o propósito. «Para ter esse rebelde em nossas mãos», acrescentaram, «encontramos um caminho seguro; resta apenas que vocês nos ajudem. Façam saber ao tribuno, em nome do Sinédrio, que desejam examinar mais alguns pontos do caso de Paulo e que, portanto, o apresentem novamente amanhã. Ele certamente concordará com o pedido. Mas tenham certeza de que, antes que Paulo seja conduzido diante de vocês, nós o despedaçaremos com estas mãos». Os anciãos louvaram o plano e prometeram colaborar.
            Ou porque algum dos conspiradores não manteve o segredo, ou porque não se preocuparam em fechar a porta ao tramarem seu plano, é certo que foram descobertos. Um filho da irmã de Paulo soube de tudo e, correndo até a torre, conseguiu passar entre os guardas, apresentar-se ao tio e contar-lhe toda a trama. Paulo instruiu bem o sobrinho sobre como agir. Chamado então um oficial que estava de guarda, disse-lhe: «Peço que leve este jovem ao capitão; ele tem algo a comunicar».
            O centurião o levou ao capitão e disse: «Aquele Paulo que está na prisão me pediu para trazer este jovem a você, porque ele tem algo a lhe dizer». O capitão pegou o jovem pela mão e, levando-o para um lado, perguntou o que ele tinha a relatar. «Os judeus», respondeu, «se combinaram para pedir que você faça Paulo ser levado ao Sinédrio amanhã, sob o pretexto de querer examinar mais a fundo seu caso. Mas você não deve dar ouvidos a eles: saiba que estão armando uma emboscada e quarenta deles se comprometeram com um voto terrível a não comer nem beber até que o tenham matado. Agora estão prontos para agir, esperando apenas seu consentimento». «Muito bem», disse o capitão, «você fez bem em me contar essas coisas. Agora pode ir, mas não diga a ninguém que você me revelou isso».
            Dessa desesperada resolução, Lísias compreendeu que reter Paulo por mais tempo em Jerusalém equivalia a deixá-lo em perigo, do qual talvez não pudesse salvá-lo. Portanto, sem hesitar, chamou dois centuriões e disse-lhes: «Coloquem em ordem duzentos soldados de infantaria e outros tantos armados de lança, com setenta homens a cavalo, e acompanhem Paulo até Cesareia. Preparem também um cavalo para ele, para que seja levado lá são e salvo e se apresente ao governador Félix». O tribuno acompanhou Paulo com uma carta ao governador, que dizia:
            «Cláudio Lísias ao excelentíssimo governador Félix, saúde. Envio-lhe este homem que, preso pelos judeus, estava prestes a ser morto por eles. Ao chegar com meus soldados, o tirei das mãos deles, tendo sabido que é cidadão romano. Quis então me informar de qual crime era acusado, e o conduzi ao Sinédrio e descobri que era acusado por questões relacionadas à sua lei, mas sem nenhuma culpa que merecesse morte ou prisão. Mas, tendo-me sido informado que lhe armam uma trama de morte, decidi enviá-lo a você, convidando ao mesmo tempo seus acusadores a se apresentarem diante de seu tribunal para expor suas acusações contra ele. Passe bem».
            Em cumprimento das ordens recebidas, naquela mesma noite os soldados partiram com Paulo e o conduziram a Antipátride, cidade situada a meio caminho entre Jerusalém e Cesareia. Nesse ponto do percurso, não temendo mais ser atacados pelos judeus, mandaram de volta os quatrocentos soldados a Jerusalém, e Paulo, acompanhado apenas pelos setenta cavaleiros, chegou no dia seguinte a Cesareia.
            Assim Deus, da maneira mais simples, libertava seu Apóstolo de um grave perigo e fazia conhecer que os projetos dos homens sempre se tornam vãos quando são contrários à vontade divina.

CAPÍTULO XX. Paulo diante do governador — Seus acusadores e sua defesa — Ano de Cristo 59

            No dia seguinte, Paulo chegou a Cesareia e foi apresentado ao governador com a carta do capitão Lísias. Lida a carta, o governador chamou Paulo à parte e, sabendo que era de Tarso, disse-lhe: «Ouvirei você quando chegarem seus acusadores». Enquanto isso, mandou que fosse guardado na prisão de seu palácio.
            Os quarenta conspiradores, quando viram que o golpe havia falhado, ficaram atônitos. Pode-se acreditar que, sem se importar com o voto feito, se puseram a comer e beber para continuar sua trama. De acordo com o sumo sacerdote, com os anciãos e com um certo Tértulo, famoso orador, partiram em direção a Cesareia, aonde chegaram cinco dias após a chegada de Paulo. Todos se apresentaram diante do governador, e Tértulo começou a falar assim contra Paulo: «Encontramos este homem pestilento, que suscita revoltas entre todos os judeus do mundo. Ele é chefe da seita dos nazarenos. Tentou também profanar nosso templo, e nós o prendemos. Queríamos julgá-lo segundo nossa lei, mas interveio o capitão Lísias, que o tirou à força de nossas mãos. Ele ordenou que seus acusadores se apresentassem diante de você. Agora estamos aqui. Ao examiná-lo, você poderá verificar as culpas das quais o acusamos». O que Tértulo afirmara foi confirmado pelos judeus presentes.
            Paulo, tendo recebido do governador a oportunidade de responder, começou a se defender assim: «Pois, excelentíssimo Félix, há muitos anos você governa este país, certamente é capaz de conhecer as coisas que aqui aconteceram. De bom grado me defendo diante de você. Como pode verificar, não faz mais de doze dias que subi a Jerusalém para adorar. Neste breve tempo, ninguém pode dizer que me encontrou no templo ou nas sinagogas ou em outro lugar público ou privado discutindo com alguém, nem reunindo multidões ou fomentando desordens. Não podem provar nenhuma das acusações que me fazem. Mas confesso que sigo o Caminho que eles chamam de seita, servindo assim ao Deus de nossos pais, crendo em tudo que é conforme à Lei e está escrito nos Profetas. Tenho em Deus a mesma esperança que eles têm, de que haverá uma ressurreição dos justos e dos injustos. Por isso, também me esforço para ter sempre uma consciência irrepreensível diante de Deus e dos homens. Depois de muitos anos, vim trazer esmolas à minha nação e apresentar ofertas. Enquanto estava envolvido nesses rituais de purificação, sem multidão nem tumulto, alguns judeus da Ásia me encontraram no templo. Eles deveriam ter comparecido diante de você para me acusar, se tivessem algo contra mim. Ou que digam estes mesmos se encontraram alguma culpa em mim, quando compareci diante do Sinédrio, além desta única declaração que fiz em alta voz no meio deles: “É por causa da ressurreição dos mortos que sou julgado hoje diante de vocês”».
            Seus acusadores ficaram confusos e, olhando uns para os outros, não encontravam palavras a proferir. O próprio governador, já inclinado a favor dos cristãos, sabia que eles, longe de serem sediciosos, eram os mais dóceis e fiéis entre seus súditos. Mas não quis proferir sentença e reservou-se para ouvi-lo novamente quando o capitão Lísias viesse de Jerusalém a Cesareia. Enquanto isso, ordenou que Paulo fosse guardado, mas concedendo-lhe certa liberdade e permitindo que seus amigos o servissem.
            Algum tempo depois, o governador, talvez para agradar sua esposa, que era judia, fez vir Paulo à sua presença para ouvi-lo falar sobre religião. O Apóstolo expôs vividamente as verdades da fé, o rigor dos juízos que Deus reservará aos ímpios na outra vida, de tal forma que Félix, assustado e perturbado, disse: «Por agora basta; ouvirei você novamente quando tiver a oportunidade». Na verdade, ele o chamou mais vezes, mas não para se instruir na fé, mas esperando que Paulo lhe oferecesse dinheiro em troca da liberdade. Portanto, embora conhecesse a inocência de Paulo, manteve-o na prisão em Cesareia por dois anos. Assim fazem aqueles cristãos que, por ganho temporário ou para agradar aos homens, vendem a justiça e violam os mais sagrados deveres da consciência e da religião.

CAPÍTULO XXI. Paulo diante de Festo — Suas palavras ao rei Agripa — Ano de Cristo 60

            Já fazia dois anos que o santo Apóstolo estava preso, quando a Félix sucedeu outro governador chamado Festo. Três dias após assumir o cargo, o novo governador foi a Jerusalém e logo os chefes dos sacerdotes e os principais judeus se apresentaram a ele para renovar as acusações contra o santo Apóstolo. Pediram-lhe como um favor especial que levasse Paulo a Jerusalém para ser julgado no Sinédrio; mas na verdade tinham a intenção de assassiná-lo ao longo do caminho. Festo, talvez já avisado para não confiar neles, respondeu que em breve voltaria a Cesareia; «Aqueles entre vocês», disse, «que têm algo contra Paulo, venham comigo e ouvirei suas acusações».
            Após alguns dias, Festo voltou a Cesareia e com ele os judeus acusadores de Paulo. No dia seguinte, fez vir o santo Apóstolo diante de seu tribunal, e os judeus lhe fizeram muitas graves acusações, sem, no entanto, poderem prová-las. Paulo respondeu-lhes com poucas palavras, e seus acusadores silenciaram. No entanto, Festo, desejando conquistar a benevolência dos judeus, perguntou-lhe se queria ir a Jerusalém para ser julgado no Sinédrio, na sua presença. Percebendo Paulo que Festo se inclinava a entregá-lo nas mãos dos judeus, respondeu: «Estou diante do tribunal de César, onde devo ser julgado. Não cometi nenhum mal contra os judeus, como bem sabes. Se, portanto, sou culpado e cometi algo que merece a morte, não me recuso a morrer; mas se não há nada de verdadeiro nas acusações que estes fazem contra mim, ninguém tem o direito de me entregar a eles. Apelo a César». Este apelo do nosso Apóstolo era justo e conforme às leis romanas, pois o governador se mostrava disposto a entregar um cidadão romano, reconhecido inocente, ao poder dos judeus que queriam sua morte a todo custo. Os santos Padres refletem que não o desejo da vida, mas o bem da Igreja o levou a apelar a Roma, onde, por divina revelação, sabia quanto deveria trabalhar para a glória de Deus e a salvação das almas.
            Festo, após consultar seu conselho, respondeu: «Você apelou a César, a César irá».
            Não muitos dias depois, veio a Cesareia o rei Agripa, filho daquele Agripa que havia feito morrer São Tiago, o Maior, e aprisionado São Pedro. Ele veio com sua irmã Berenice para prestar as devidas homenagens ao novo governador da Judeia. Tendo-se detido vários dias, Festo falou-lhes do processo de Paulo. Agripa manifestou o desejo de ouvi-lo. Para agradá-lo, Festo fez preparar uma sala com grande pompa e, convidando à audiência os tribunos e outros magistrados, fez conduzir Paulo à presença de Agripa e Berenice. «Eis», disse Festo, «aquele homem contra quem recorreu a mim toda a multidão dos judeus, protestando com grandes clamores que não deveria mais viver. Eu, porém, não encontrei nele nada que mereça a morte. No entanto, tendo ele apelado ao tribunal do imperador, devo enviá-lo a Roma. Mas como não tenho nada certo para escrever ao nosso soberano, achei conveniente apresentá-lo diante de vocês e especialmente a ti, ó rei Agripa, para que, após interrogá-lo, me digam o que devo escrever, não me parecendo conveniente enviar um prisioneiro sem especificar as acusações contra ele».
            Agripa, dirigindo-se a Paulo, disse: «É-te permitido falar em tua defesa». Paulo começou a falar assim: «Considero-me feliz, ó rei Agripa, por poder hoje me defender diante de ti contra todas as acusações dos judeus, especialmente porque és experiente em todas as tradições e questões que os envolvem. Peço-te, portanto, que me ouças com paciência. Todos os judeus conhecem minha vida desde a juventude, passada entre meu povo e em Jerusalém. Sabem que vivi segundo a seita mais rigorosa da nossa religião, a dos fariseus. E agora sou chamado a julgamento por causa da esperança na promessa feita por Deus a nossos pais, aquela que nossas doze tribos esperam ver cumprida, servindo a Deus noite e dia. É por essa esperança, ó rei, que sou acusado pelos judeus. Por que é considerado inconcebível entre vocês que Deus ressuscite os mortos?
            Eu também considerava meu dever fazer muitas coisas contra o nome de Jesus Nazareno. Assim fiz em Jerusalém: obtive dos chefes dos sacerdotes a autorização para aprisionar muitos santos e, quando eram mortos, expressava meu voto. Frequentemente, indo de sinagoga em sinagoga, tentava forçá-los a blasfemar; e na minha fúria desenfreada os perseguia até nas cidades estrangeiras.
            Em tais circunstâncias, enquanto ia a Damasco com a autorização e o mandato dos chefes dos sacerdotes, ao meio-dia, ó rei, vi no caminho uma luz do céu, mais brilhante que o sol, que envolveu a mim e aqueles que estavam comigo. Todos caíram por terra e eu ouvi uma voz que me dizia em língua hebraica: “Saulo, Saulo, por que me persegues? É duro para ti recalcitrar contra o aguilhão”. Eu disse: “Quem és, Senhor?” E o Senhor respondeu: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Mas levanta-te e fica em pé; porque te apareci para constituir-te ministro e testemunha do que viste de mim e do que te mostrarei. Eu te livrarei do povo e dos gentios, aos quais te envio para abrir-lhes os olhos, a fim de que se convertam das trevas à luz e do poder de Satanás a Deus, e obtenham, mediante a fé em mim, a remissão dos pecados e a sorte entre os santificados”.
            Portanto, ó rei Agripa, não desobedeci à visão celestial; mas antes a aqueles de Damasco, depois a Jerusalém e em toda a Judeia, e finalmente aos gentios, anunciei que se arrependessem e se convertessem a Deus, fazendo obras dignas de arrependimento. Por isso os judeus, tendo-me capturado no templo, tentaram me matar. Mas, graças à ajuda de Deus, até este dia estou aqui a testemunhar diante dos pequenos e dos grandes, não dizendo outra coisa senão o que os profetas e Moisés declararam que deveria acontecer: que o Cristo haveria de sofrer e, como o primeiro entre os ressuscitados dos mortos, anunciaria a luz ao povo e aos gentios».
            Festo interrompeu o discurso do Apóstolo e em alta voz exclamou: «Tu estás louco, Paulo; a demasiada ciência te deixou louco». Ao que Paulo respondeu: «Não estou louco, excelentíssimo Festo, mas estou dizendo palavras de verdade e de bom senso. O rei, a quem falo com franqueza, conhece estas coisas; creio, de fato, que nada do que aconteceu lhe é desconhecido, pois não são fatos ocorridos em segredo. Crês tu nos profetas, ó rei Agripa? Sei que crês». Agripa disse a Paulo: «Ainda um pouco e me convences a me tornar cristão». E Paulo replicou: «Que Deus me conceda que, seja em pouco tempo, seja em muito, não só tu, mas também todos aqueles que hoje me ouvem se tornem tais como eu sou, exceto por estas cadeias».
            Então o rei, o governador, Berenice e os outros se levantaram e, retirando-se à parte, disseram uns aos outros: «Este homem não fez nada que mereça morte ou prisão». E Agripa disse a Festo: «Este homem poderia ter sido libertado, se não tivesse apelado a César».
            Assim, o discurso de Paulo, que deveria converter todos aqueles juízes, não serviu de nada, pois eles fecharam o coração às graças que Deus queria lhes conceder. Esta é uma imagem daqueles cristãos que ouvem a palavra de Deus, mas não se resolvem a colocar em prática as boas inspirações que às vezes sentem nascer no coração.

CAPÍTULO XXII. São Paulo é embarcado para Roma — Sofre uma terrível tempestade, da qual é salvo com seus companheiros — Ano de Jesus Cristo 60

            Quando Festo decidiu que Paulo seria conduzido a Roma por mar, ele, juntamente com muitos outros prisioneiros, foi confiado a um centurião chamado Júlio. Com ele estavam seus dois fiéis discípulos Aristarco e Lucas. Embarcaram em um navio proveniente de Adramítio, cidade marítima da Ásia. Costeando a Palestina, chegaram a Sidônia no dia seguinte. O centurião, que os acompanhava, logo percebeu que Paulo não era um homem comum e, admirando suas virtudes, começou a tratá-lo com respeito. Desembarcando em Sidônia, deu-lhe plena liberdade para visitar os amigos, permanecer com eles e receber algum sustento.
            De Sidônia navegaram ao longo das costas da ilha de Chipre e, como o vento estava um tanto contrário, atravessaram o mar da Cilícia e da Panfília, que é uma parte do Mediterrâneo, e chegaram a Mira, cidade da Lícia. Aqui o centurião, tendo encontrado um navio que de Alexandria ia para a Itália com carga de trigo, transferiu para ele seus passageiros. Mas navegando muito lentamente, tiveram grande dificuldade para chegar até a ilha de Creta, hoje chamada Cândia. Pararam em um lugar chamado Bons Portos, perto de Salmone, cidade daquela ilha.
            Sendo a estação muito avançada, Paulo, certamente inspirado por Deus, exortava os marinheiros a não se arriscarem a continuar a navegação em um tempo tão perigoso. Mas o piloto e o mestre do navio, não dando peso às palavras de Paulo, afirmavam que não havia nada a temer. Partiram, portanto, com a intenção de alcançar outro porto daquela ilha chamado Fenícia, esperando poder passar lá o inverno com mais segurança. Mas após um breve trecho, o navio foi sacudido por um forte vento, ao qual não podendo resistir, os navegantes se viram obrigados a abandonar a si mesmos e o navio à mercê das ondas. Chegando a Gavdos, uma ilhota pouco distante de Creta, perceberam que estavam próximos a um banco de areia e, temendo romper o navio contra ele, esforçaram-se para tomar outra direção. Mas a tempestade se intensificando cada vez mais e o navio se agitando cada vez mais, todos se encontraram em grande perigo. Jogaram ao mar as mercadorias, depois os móveis e os armamentos do navio para aliviá-lo. No entanto, após vários dias, não aparecendo mais nem sol nem estrelas e com a tempestade se intensificando, parecia perdida toda a esperança de salvação. A esses males se acrescentava que, ou pela náusea do mar em tempestade, ou pelo medo da morte, ninguém pensava em comer, o que era prejudicial, pois os marinheiros não tinham forças para governar o navio. Arrependeram-se então de não terem seguido o conselho de Paulo, mas era tarde.
            Paulo, vendo o desânimo entre os marinheiros e os passageiros, animado pela confiança em Deus, os confortou dizendo: «Irmãos, vocês deveriam ter acreditado em mim e não partir de Creta; assim teríamos evitado essas perdas e essas desgraças. No entanto, tenham coragem; acreditem em mim, em nome de Deus eu lhes asseguro que nenhum de nós se perderá; apenas o navio se despedaçará. Esta noite me apareceu o anjo do Senhor e me disse: “Não temas, Paulo, tu deves comparecer diante de César; e eis que Deus te concede a vida de todos aqueles que navegam contigo”. Portanto, tenham coragem, irmãos, tudo acontecerá como me foi dito».
            Entretanto, já se haviam passado quatorze dias desde que sofriam aquela tempestade, e cada um pensava estar sendo engolido pelas ondas a qualquer momento. Era meia-noite quando, na escuridão das trevas, pareceu aos marinheiros que se aproximavam da terra. Para se certificar, lançaram a sonda e encontraram vinte braças de profundidade, depois quinze. Temendo então acabar contra algum rochedo, lançaram quatro âncoras para parar o navio, aguardando a luz do dia que lhes mostrasse onde estavam.
            Nesse momento, os marinheiros tiveram a ideia de fugir do navio e tentar se salvar naquela terra que parecia próxima. Paulo, sempre guiado pela luz divina, dirigiu-se ao centurião e aos soldados dizendo: «Se estes não permanecerem a bordo, vocês não poderão ser salvos, porque Deus não quer ser tentado a fazer milagres». A essas palavras todos silenciaram e seguiram o conselho de Paulo. Ao amanhecer, o santo Apóstolo deu uma olhada àqueles que estavam no navio e, vendo-os todos exaustos pelas fadigas e esgotados pelo jejum, disse-lhes: «Irmãos, é o décimo quarto dia que, esperando uma melhora, não comeram nada. Agora eu lhes peço que não se deixem morrer por inanição. Já lhes assegurei, e ainda lhes asseguro, que nem um dos seus cabelos perecerá. Portanto, coragem». Dito isso, Paulo tomou pão, deu graças a Deus, partiu-o e, à vista de todos, começou a comer. Então todos se reanimaram e comeram juntos com ele; eram em número de 276 pessoas.
            Mas, continuando a fúria dos ventos e das ondas, foram forçados a jogar ao mar também o trigo que haviam guardado para seu uso. Feito dia, pareceram ver uma enseada e se esforçaram para levar o navio até lá e buscar salvação. Mas, empurrada pela força dos ventos, a nave encalhou em um banco de areia, começando a se romper e desintegrar. Vendo a água penetrar por várias fendas, os soldados queriam tomar o cruel partido de matar todos os prisioneiros, tanto para aliviar o navio quanto porque não fugissem após se salvarem a nado.
            Mas o centurião, que amava Paulo e queria salvá-lo, não aprovou tal conselho, mas ordenou que aqueles que sabiam nadar se jogassem ao mar para alcançar a terra; aos outros foi dito que se agarrassem a tábuas ou a destroços do navio; e assim chegaram todos sãos e salvos à costa.

CAPÍTULO XXIII. São Paulo na ilha de Malta — É libertado da mordida de uma víbora — É acolhido na casa de Públio, de quem cura o pai — Ano de Cristo 60

            Nem Paulo nem seus companheiros conheciam a terra em que haviam desembarcado após saírem das ondas. Informando-se com os primeiros habitantes que encontraram, souberam que aquele lugar se chamava Melita, hoje Malta, uma ilha do Mediterrâneo situada entre a África e a Sicília. Ao saber da grande quantidade de náufragos que haviam saído das ondas como tantos peixes, os ilhéus correram e, embora fossem bárbaros, se compadeceram ao vê-los tão cansados, exaustos e tremendo de frio. Para aquecê-los, acenderam uma grande fogueira.
            Paulo, sempre atento a exercer obras de caridade, foi buscar um feixe de ramos secos. Enquanto os colocava no fogo, uma víbora que estava entre eles, entorpecida pelo frio, despertada pelo calor, saltou e se agarrou à mão de Paulo. Aqueles bárbaros, vendo a serpente pendurada em sua mão, pensaram mal dele e diziam uns aos outros: “Este homem deve ser um assassino ou algum grande criminoso; escapou do mar, mas a vingança divina o atinge em terra”. Mas quão cautelosos devemos ser ao julgar temerariamente nosso próximo!
            Paulo, reavivando a fé em Jesus Cristo, que havia assegurado a seus Apóstolos que nem serpentes nem venenos lhes causariam dano, sacudiu a mão, lançou a víbora ao fogo e não sofreu nenhum mal. Aquela boa gente esperava que, entrando o veneno no sangue de Paulo, ele deveria inchar e cair morto após poucos instantes, como acontecia a quem tivesse a desgraça de ser mordido por aqueles animais. Esperaram por muito tempo e, vendo que nada lhe acontecia, mudaram de opinião e diziam que Paulo era um grande deus descido do céu. Talvez acreditassem que ele fosse Hércules, considerado deus e protetor de Malta. Segundo as lendas, Hércules, ainda criança, teria matado uma serpente, por isso chamado “ofiotoco”, ou seja, matador de serpentes.
            Deus confirmou este primeiro prodígio com outro ainda mais estrepitoso e permanente: de fato, foi retirada toda força venenosa das serpentes daquela ilha, de modo que, a partir daquela época, não se teve mais a temer a mordida das víboras. Que mais? Diz-se que a própria terra da ilha de Malta, levada para outros lugares, é um remédio seguro contra as mordidas das víboras e das serpentes.
            O governador da ilha, um príncipe chamado Públio, homem muito rico, ao saber do modo milagroso com que aqueles náufragos foram salvos das águas e informado, ou tendo sido testemunha, do milagre da víbora, mandou convidar Paulo e seus companheiros, que haviam chegado em número de 276. Recebeu-os em sua casa e os honrou por três dias, oferecendo-lhes alojamento e alimento às suas custas. Deus não deixou sem recompensa a liberalidade e cortesia de Públio. Ele tinha seu pai de cama, aflito por febre e grave diarreia que o haviam levado à beira da morte. Paulo foi ver o doente e, após lhe dirigir palavras de caridade e consolo, começou a orar. Levantando-se então, aproximou-se da cama, impôs as mãos sobre o enfermo que imediatamente se curou. Assim, o bom velho, livre de todo mal e plenamente restabelecido, correu para abraçar seu filho, bendizendo Paulo e o Deus que ele pregava. Públio, seu pai e sua família (assim assegura São João Crisóstomo), cheios de gratidão para com o grande Apóstolo, se fizeram instruir na fé e receberam o batismo das mãos de Paulo.
            Espalhada a notícia da cura milagrosa do pai de Públio, todos aqueles que estavam doentes ou tinham enfermos de qualquer doença iam ou se faziam levar aos pés de Paulo, e ele, abençoando-os em nome de Jesus Cristo, os mandava todos curados, bendizendo a Deus e crendo no Evangelho. Em pouco tempo, toda aquela ilha recebeu o batismo e, derrubados os templos dos ídolos, ergueram outros dedicados ao culto do verdadeiro Deus.

CAPÍTULO XXIV. Viagem de São Paulo de Malta a Siracusa — Pregação em Régio — Sua chegada a Roma — Ano de Cristo 60

            Os malteses estavam cheios de entusiasmo por Paulo e pela doutrina por ele pregada, tanto que, além de abraçar em massa a fé, competiam em fornecer a ele e a seus companheiros o que era necessário para o tempo que permaneceram em Malta e para a viagem até Roma. Paulo permaneceu em Malta três meses, devido ao inverno em que o mar não é navegável. Acredita-se comumente que nesse período ele tenha guiado Públio à perfeição cristã e que, antes de partir, o tenha ordenado bispo daquela ilha; o que certamente foi de grande consolação para aqueles fiéis.
            Chegando a primavera e decidida a partida para Roma, o centurião Júlio se acertou com um navio que de Alexandria ia em direção à Itália e que tinha como insígnia dois deuses chamados Castor e Pólux, que os idólatras acreditavam serem protetores da navegação. Com grande pesar dos malteses, embarcaram em direção à Sicília, uma ilha muito próxima à Itália, e favorecidos pelo vento chegaram rapidamente a Siracusa, cidade principal desta ilha. Aqui o Evangelho já havia sido pregado por São Pedro, que havia ordenado bispo São Marciano. Este digno pastor quis hospedar em sua casa o santo Apóstolo e fez-lhe celebrar os santos mistérios em uma gruta, com grande alegria sua e daqueles fiéis. Uma igreja muito antiga, que ainda existe hoje naquela cidade, é dedicada ao nosso santo Apóstolo, e acredita-se que tenha sido edificada sobre a própria gruta onde São Paulo havia pregado a palavra de Deus e celebrado os divinos mistérios.
            Partindo de Siracusa, contornaram a ilha da Sicília, passaram pelo porto de Messina e chegaram com seus companheiros a Régio, cidade e porto da Calábria, muito próximo à Sicília. Aqui pararam por um dia.
            Historiadores acreditados daquele país contam muitas coisas maravilhosas realizadas por São Paulo naquela breve estadia; entre estas escolhemos o seguinte fato. Os regianos, que eram idólatras, ao ouvirem que em seu porto havia aportado um navio com a insígnia de Castor e Pólux, muito honrados por eles, correram em massa para vê-lo. Paulo quis aproveitar aquela afluência para pregar Jesus Cristo, mas eles não queriam ouvi-lo. Então ele, movido pela fé naquele Jesus que por sua mão havia operado tantas maravilhas, tirou um pedaço de vela e disse: “Peço que me deixem falar pelo menos pelo tempo que este pedacinho de vela levar para se consumir”. Aceitaram a condição com risadas e se aquietaram.
            Paulo colocou aquele pavio sobre uma coluna de pedra situada à beira-mar. Imediatamente toda a coluna pegou fogo e apareceu uma grande chama, que lhe serviu de tocha ardente. Teve tempo abundante para ensiná-los, pois aqueles bárbaros, perplexos por tal milagre, ficaram ouvindo Paulo mansamente quanto ele quis falar; e ninguém se atreveu a perturbá-lo. A fé foi acolhida, e no local do milagre foi erguida uma magnífica igreja ao verdadeiro Deus. No altar-mor foi colocada aquela coluna e, para conservar a memória daquele prodígio, foi estabelecida uma solenidade com ofício próprio. Na missa se lê uma oração que se traduz assim: “Ó Deus, que à pregação do Apóstolo Paulo, fazendo brilhar milagrosamente uma coluna de pedra, vos dignastes instruir os povos de Régio com a luz da fé, concedei-nos, vos pedimos, merecer ter no céu como intercessor aquele que tivemos como pregador do Evangelho na terra” (Cesari. Atos dos Apóstolos, vol. 2).
            Após aquele dia, convidados por um tempo favorável, Paulo e seus companheiros embarcaram para Pozzuoli, cidade da Campânia distante nove milhas de Nápoles. Aqui foi grandemente consolado pelo encontro com vários que já haviam abraçado a fé, pregada a eles por São Pedro alguns anos antes.
            Aqueles bons cristãos também sentiram grande consolo e pediram a Paulo que permanecesse com eles sete dias. Paulo, obtendo licença do centurião, ficou aquele tempo e, em dia festivo, falou à numerosa assembleia daqueles fiéis.
            As notícias da chegada do grande Apóstolo na Itália já haviam chegado a Roma, e os fiéis daquela cidade, desejosos de conhecer pessoalmente o autor da famosa carta de Corinto, vieram encontrá-lo no Fórum de Ápio, hoje chamado Fossa Nova, que é uma cidade distante cerca de 50 milhas de Roma. Continuando o caminho, chegaram às Três Tabernas, lugar distante cerca de 30 milhas de Roma, onde encontrou muitos outros que haviam vindo até lá para lhe fazer uma acolhida festiva.
            Acompanhado por aquele grande número de fiéis, que não se cansavam de admirar aquele grande ministro de Jesus Cristo, ele chegou a Roma como se fosse conduzido em triunfo. Aqui a fé cristã, como foi dito, já havia sido pregada por São Pedro, que há dezoito anos mantinha aí a sede pontifícia.

CAPÍTULO XXV. Paulo fala aos Judeus e lhes prega Jesus Cristo — Progresso do Evangelho em Roma — Ano de Cristo 61

            Chegando a Roma, Paulo foi entregue ao prefeito do pretório, ou seja, ao general das guardas pretorianas, assim chamadas porque tinham a especial responsabilidade de guardar a pessoa do imperador. O nome daquele ilustre romano era Afrânio Burro, de quem a história faz menção muito honrosa.
            O centurião Júlio se preocupou em recomendar Paulo àquele prefeito, que o tratou com singularíssima benignidade. As cartas dos governadores Félix e Festo, que certamente deveriam ter feito conhecer a inocência de Paulo, e o bom testemunho prestado pelo centurião Júlio, o colocaram em boa luz e reverência perante Burro, que lhe deu plena liberdade de viver sozinho onde quisesse, com a condição de ser vigiado por um soldado quando saísse de casa. Paulo, porém, tinha sempre no braço uma corrente quando estava em casa; se saísse, a corrente que o prendia passava por trás para mantê-lo ligado ao soldado que o acompanhava, de modo que aquele soldado estava sempre atado a Paulo pela mesma corrente. O santo Apóstolo alugou uma casa, na qual se hospedou com seus companheiros, entre os quais são especialmente mencionados Lucas, Aristarco e Timóteo, aquele seu fiel discípulo de Listra.
            Três dias após sua chegada, ele mandou convidar os principais Judeus que moravam em Roma, pedindo-lhes que viessem até ele em sua hospedagem. Reunidos em bom número, ele lhes falou assim: “Não gostaria que o estado em que me vedes e as correntes com as quais estou preso vos causem uma má opinião sobre mim. Deus sabe que não fiz nada contra meu povo, nem contra os costumes e as leis da minha pátria. Fui acorrentado em Jerusalém e depois entregue aos romanos. Estes me examinaram e, não tendo encontrado em mim nada que merecesse castigo, queriam me mandar livre; mas, opondo-se fortemente os Judeus, fui forçado a apelar para César.”
            “Esta é a única razão pela qual fui conduzido a Roma. Não quero aqui acusar meus irmãos, mas desejo fazer-vos saber o motivo da minha vinda e, ao mesmo tempo, falar-vos do Messias e da ressurreição, que é justamente o motivo destas correntes. Sobre este assunto desejo muito poder abrir meu coração a vós”.
            A tais palavras, os Judeus responderam: “Na verdade, não nos chegaram cartas da Judeia, nem alguém veio nos relatar algo contra ti. Estamos também no vivo desejo de conhecer teus sentimentos, pois sabemos que a seita dos cristãos é contestada em todo o mundo”.
            Paulo aceitou de bom grado o convite e, marcando-lhes um dia, reuniu um grande número de Judeus em sua casa. Ele então começou a expor a doutrina de Jesus Cristo, a divindade de sua pessoa, a necessidade da fé nele, confirmando tudo com as palavras dos Profetas e de Moisés. Tal era o desejo de ouvir e tal a ansiedade de pregar, que o discurso de Paulo se prolongou da manhã até a noite. Entre os Judeus que o ouviam, muitos creram e abraçaram a fé, mas vários se opuseram fortemente a ele.
            O santo Apóstolo, vendo tanta obstinação por parte daqueles que deveriam ser os primeiros a crer, disse-lhes estas duras palavras: “Desta inflexível obstinação que vejo aqui entre vós em Roma, como também encontrei em todas as partes do mundo, a culpa é vossa. Esta vossa dureza já foi predita pelo profeta Isaías, quando disse: “Vai a este povo e dirás: Ouvireis com os ouvidos, mas não entendereis; vereis com os olhos, mas não compreendereis nada; porque o coração deste povo se endureceu, taparam os ouvidos e fecharam os olhos”.
            “Estejam certos”, prosseguia Paulo, “que a salvação que vós não quereis, Deus não a dará a vós; ao contrário, a levará aos Gentios, que a acolherão”.
            As palavras de Paulo foram quase inúteis para os Judeus. Eles partiram, continuando as disputas e as vãs discussões sobre o que ouviram, sem abrir o coração à graça que lhes era oferecida. Portanto, profundamente entristecido, Paulo se voltou para os Gentios, que com humildade de coração iam ouvi-lo e em grande número abraçavam a fé.
            O santo Apóstolo expressa ele mesmo a grande consolação pelo progresso que fazia o Evangelho durante sua prisão, escrevendo aos fiéis de Filipos: “Quando vós, irmãos, soubestes que eu estava preso em Roma, sentistes pena, não tanto por minha pessoa, quanto pela pregação do Evangelho. Sabei, portanto, que é bem ao contrário. Minhas correntes serviram à honra de Jesus Cristo e serviram para melhor fazê-lo conhecer não somente àqueles da cidade que vinham a mim para se instruírem na fé, mas também na corte e no palácio do próprio imperador. Sobre isso deveis alegrar-vos comigo e agradecer a Deus”.

CAPÍTULO XXVI. São Lucas — Os Filipenses enviam ajuda a São Paulo — Doença e cura de Epafrodito — Carta aos Filipenses — Conversão de Onésimo — Ano de Jesus Cristo 61

            Quanto temos dito até agora sobre as ações de São Paulo foi quase literalmente extraído do livro dos Atos dos Apóstolos, escrito por São Lucas. Este pregador do Evangelho continuou a ser fiel companheiro de São Paulo; ele pregou o Evangelho na Itália, na Dalmácia, na Macedônia e terminou a vida com o martírio em Patras, cidade da Acaia. Era médico, pintor e escultor. Existem muitas estátuas e pinturas da Bem-Aventurada Virgem veneradas em diferentes países que são atribuídas a São Lucas. Voltemos a São Paulo.
            Dois fatos são especialmente memoráveis na vida deste santo Apóstolo enquanto estava preso em Roma: um diz respeito aos fiéis de Filipos, o outro à conversão de Onésimo.
            Entre os muitos povos a quem o santo Apóstolo pregou o Evangelho, nenhum lhe deu maiores sinais de afeto do que os Filipenses. Eles já lhe haviam fornecido copiosas esmolas quando ele pregava em sua cidade, em Tessalônica e em Corinto.
            Quando souberam que Paulo estava preso em Roma, imaginaram que ele estivesse em necessidade; por isso, fizeram uma considerável coleta e, para que fosse mais cara e honrosa, a enviaram pelas mãos de Santo Epafrodito, seu bispo.
            Este santo prelado, ao chegar a Roma, encontrou Paulo que não só precisava de ajuda financeira, mas também de assistência pessoal, pois estava aflito por uma grave enfermidade causada pela prisão. Epafrodito se dedicou a servi-lo com tanta solicitude, caridade e fervor, que, tornando-se ele mesmo doente, estava à beira da morte. Mas Deus quis recompensar a caridade do santo e fazer com que não se acrescentasse aflição sobre aflição ao coração de Paulo, e lhe devolveu a saúde.
            Os Filipenses, ao saberem que Epafrodito estava mortalmente doente, ficaram imersos na mais profunda consternação. Por isso, Paulo achou por bem enviá-lo de volta a Filipos com uma carta, na qual explica o motivo que o levou a devolver-lhes Epafrodito, a quem chama de seu irmão, cooperador, colega e seu apóstolo. Ele os exorta, então, a recebê-lo com toda alegria e a honrar toda pessoa de semelhante mérito, que, à imitação dele, esteja pronta a dar a própria vida pelo serviço de Cristo. Ele também diz aos Filipenses que em breve enviaria Timóteo, para que lhe trouxesse notícias precisas daquela comunidade; afirma ainda que esperava ser libertado e poder vê-los mais uma vez.
            Epafrodito foi acolhido pelos Filipenses como um anjo enviado pelo Senhor, e a carta de Paulo encheu o coração daqueles fiéis da maior consolação.
            O outro fato que torna célebre a prisão de São Paulo foi a conversão de Onésimo, servo de Filêmon, rico cidadão de Colossos, cidade da Frígia. Este Filêmon havia sido conquistado para a fé por São Paulo e correspondeu tão bem à graça do Senhor que era considerado como modelo dos cristãos, e sua casa era chamada de igreja porque estava sempre aberta para as práticas de piedade e para o exercício da caridade em relação aos pobres. Ele tinha muitos escravos que o serviam, e entre eles um chamado Onésimo. Este, tendo-se dado infelizmente aos vícios, esperou a oportunidade de fugir, e roubando uma grande quantia de dinheiro do seu senhor, escapuliu-se para Roma. Lá, entregando-se à devassidão e a outros excessos, consumiu o dinheiro roubado e em breve se encontrou na mais profunda miséria. Por acaso, ouviu falar de São Paulo, que talvez tivesse visto e servido na casa de seu senhor. A caridade e benignidade do santo Apóstolo lhe inspiraram confiança, e decidiu se apresentar a ele. Foi e se lançou de joelhos aos seus pés, manifestou seu erro e o estado infeliz de sua alma, e se entregou completamente a ele. Paulo reconheceu naquele escravo um verdadeiro filho pródigo. Recebeu-o com bondade, como fazia com todos, e depois de fazê-lo conhecer a gravidade de sua falta e o infeliz estado de sua alma, dedicou-se a instruí-lo na fé. Quando viu nele as disposições necessárias para se tornar um bom cristão, batizou-o na mesma prisão. O bom Onésimo, após ter recebido a graça do batismo, permaneceu cheio de gratidão e afeto por seu pai e mestre, e começou a dar-lhe provas disso servindo-o lealmente nas necessidades de sua prisão. Paulo desejava mantê-lo ao seu lado, mas não queria fazê-lo sem a permissão de Filêmon. Pensou, portanto, em enviar o próprio Onésimo de volta ao seu senhor. E como ele não se atrevia a se apresentar a ele, Paulo quis acompanhá-lo com uma carta, dizendo-lhe: “Tome esta carta e vá ao seu senhor, e tenha certeza de que você obterá mais do que deseja”.

CAPÍTULO XXVII. Carta de São Paulo a Filêmon — Ano de Jesus Cristo 62

            A carta de São Paulo a Filêmon é a mais fácil e breve de suas cartas, e como pela beleza dos sentimentos pode servir de modelo a qualquer cristão, a oferecemos inteira ao benevolente leitor. É do seguinte teor:
                        “Paulo, prisioneiro do Cristo Jesus, e o irmão Timóteo, a Filêmon, nosso amado colaborador, à nossa querida irmã Ápia e a Arquipo, nosso companheiro de luta, e à igreja que se reúne em tua casa: para vós, graça e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.
                        Dou continuamente graças a meu Deus, fazendo menção de ti em minhas orações, pois ouço falar do teu amor e da tua fé, fé no Senhor Jesus e amor para com todos os santos. Que a tua comunhão na fé seja eficaz, fazendo-te conhecer todo o bem que somos capazes de realizar para o Cristo. De fato, tive grande alegria e consolação por causa do teu amor fraterno, pois reconfortaste o coração dos santos, irmão.  Por isso, embora em Cristo eu me sinta muito à vontade para te ordenar o que deves fazer, prefiro apelar ao teu amor. Eu, Paulo, na condição de idoso e, agora, também, prisioneiro do Cristo Jesus,
                        faço-te um pedido em favor do meu filho Onésimo, a quem gerei na prisão. Outrora, ele te foi inútil mas, agora, ele é útil a ti e a mim. Eu o estou mandando de volta a ti: ele é como o meu próprio coração. Gostaria de retê-lo junto de mim, para que, em teu lugar, ele me servisse, enquanto carrego estas correntes por causa do evangelho. Mas não quis fazer nada sem o teu acordo, para que o teu benefício não pareça forçado, e sim, espontâneo. Talvez Onésimo tenha sido afastado de ti por algum tempo, precisamente para que o recebas de volta para sempre: agora, não mais como escravo, mas muito mais do que isto, como irmão querido; querido especialmente por mim, e muito mais por ti, não só segundo a carne, mas sobretudo no Senhor!
                        Se, pois, me tens como companheiro, recebe-o como se fosse a mim mesmo. E se ele te deu algum prejuízo ou te deve alguma coisa, põe isso na minha conta. Eu, Paulo, o escrevo de próprio punho: sou eu que pagarei. Isto, para não te dizer que tu também tens uma dívida para comigo: a tua própria pessoa! Sim, irmão, que eu tire algum proveito de ti no Senhor: reconforta-me em Cristo!  Escrevo-te, contando com a tua obediência e sabendo que farás ainda mais do que peço. Ao mesmo tempo, prepara-me também um alojamento, pois espero que, graças às vossas orações, vos serei restituído.
                        Epafras, meu companheiro de prisão, em Cristo Jesus, te saúda; igualmente, Marcos, Aristarco, Demas e Lucas, meus colaboradores. A graça do Senhor Jesus Cristo esteja com o vosso espírito. Amém.”

            Epafras, de quem fala aqui São Paulo, havia sido convertido à fé por ele quando pregava na Frígia. Tornando-se depois apóstolo de sua pátria, foi feito bispo de Colossos. Foi a Roma para visitar São Paulo e foi preso com ele. Depois de ser libertado, voltou a governar sua Igreja de Colossos, onde concluiu a vida com a coroa do martírio.
            Marcos, de quem se fala aqui, é João Marcos, que depois de ter trabalhado muito com São Barnabé na pregação do Evangelho, uniu-se a São Paulo, reparando assim a fraqueza demonstrada quando abandonou São Paulo e São Barnabé para voltar para casa.
            Ao chegar Onésimo a Colossos, apresentou-se com a carta ao seu senhor, que o acolheu com a máxima amorosidade, contente por reaver não um escravo, mas um cristão. Ele lhe deu pleno perdão e, como da carta do santo Apóstolo havia entendido que Onésimo poderia prestar algum serviço, o enviou de volta a ele com mil saudações e bênçãos.
            Este servo se mostrou verdadeiramente fiel à vocação de cristão. São Paulo, vendo-o adornado das virtudes e da ciência necessária para ser um pregador do Evangelho, o ordenou sacerdote e mais tarde o consagrou bispo de Éfeso. Ele recebeu a coroa do martírio, e a Igreja católica faz memória dele no dia 16 de fevereiro.

CAPÍTULO XXVIII. São Paulo escreve aos Colossenses, aos Efésios e aos Hebreus — Ano de Cristo 62

            O zelo do nosso Apóstolo era incansável e, como suas correntes o mantinham em Roma, ele se esforçava para enviar seus discípulos ou escrever cartas onde quer que conhecesse a necessidade. Entre outras coisas, foi-lhe relatado que em Colossos, onde habitava Filêmon, surgiram questões devido a alguns falsos pregadores que queriam obrigar à circuncisão e às cerimônias legais todos os gentios que aderiam à fé. Além disso, haviam introduzido um culto supersticioso dos anjos. Paulo, como Apóstolo dos Gentios, informado dessas perigosas novidades, escreveu uma carta que deve ser lida integralmente para se apreciar a beleza e a sublimidade dos sentimentos. Merecem, porém, ser notadas as palavras que dizem respeito à tradição: “As coisas”, ele diz, “mais importantes para mim, serão ditas a vocês verbalmente por Tíquico e Onésimo, que para tal fim estão sendo enviados a vocês”. Essas palavras demonstram como o Apóstolo tinha coisas de grande importância não escritas, mas que enviava para comunicar verbalmente na forma de tradição.
            Uma coisa que causou não leve inquietação ao nosso Apóstolo foram as notícias de Éfeso. Quando se encontrava em Mileto e convocou os principais pastores, havia dito a eles que, devido aos males que deveria suportar, acreditava que não veriam mais seu rosto. Isso deixou aqueles afeiçoados fiéis na maior consternação. O santo Apóstolo, ciente da tristeza que afligia os efésios, escreveu uma carta para consolá-los.
            Entre outras coisas, recomenda considerar Jesus Cristo como cabeça da Igreja e manter-se unido a ele na pessoa de seus Apóstolos. Recomenda calorosamente que se mantenham longe de certos pecados que não devem ser nem mesmo nomeados entre os cristãos: “A fornicação”, ele diz, “a impureza e a avareza não sejam nem mesmo nomeadas entre vocês” (capítulo 5, versículo 5).
            Dirigindo-se então aos jovens, diz estas afetuosas palavras: “Filhos, eu vos recomendo no Senhor, sede obedientes a vossos pais, porque é coisa justa. Honra teu pai e tua mãe, diz o Senhor. Se observares este mandamento, serás feliz e viverás longamente sobre a terra”.
            Depois fala assim aos pais: “E vocês, pais, não irritem seus filhos, mas os criem na disciplina e na instrução do Senhor. Vocês, servos, obedeçam a seus senhores como a Cristo, não para serem vistos pelos homens, mas como servos de Cristo, fazendo a vontade de Deus de coração. Vocês, patrões, façam o mesmo para com eles, deixando de lado as ameaças, sabendo que o Senhor deles e o seu está nos céus, e que junto dele não há preferência de pessoas”.
            Esta carta foi levada a Éfeso por Tíquico, aquele fiel discípulo que, com Onésimo, havia levado a carta escrita aos Colossenses.
            De Roma, ele também escreveu sua carta aos Hebreus, ou seja, aos judeus da Palestina convertidos à fé. Seu objetivo era consolá-los e preveni-los contra as seduções de alguns outros judeus. Demonstra como os sacrifícios, as profecias e a antiga lei se realizaram em Jesus Cristo e que a ele somente se deve render honra e glória por todos os séculos. Insiste para que permaneçam constantemente unidos ao Salvador pela fé, sem a qual ninguém pode agradar a Deus; mas enfatiza que essa fé não justifica sem as obras.

CAPÍTULO XXIX. São Paulo é libertado — Martírio de São Tiago, o Menor — Ano de Cristo 63

            Já se haviam passado quatro anos desde que o santo Apóstolo estava preso: dois os passou em Cesareia e dois em Roma. Nero o havia feito comparecer diante de seu tribunal e reconhecido sua inocência; mas, fosse por ódio à religião cristã ou pela indiferença daquele cruel imperador, continuou a enviar Paulo de volta à prisão. Finalmente, resolveu conceder-lhe plena liberdade. Comumente se atribui essa decisão aos grandes remorsos que aquele tirano sentia pelas atrocidades cometidas. Ele chegou até a mandar assassinar sua mãe. Após tais crimes, sentia os mais agudos remorsos, pois os homens, por mais ímpios que sejam, não podem deixar de sentir em si os tormentos da consciência.
            Nero, portanto, para apaziguar de alguma forma sua alma, pensou em realizar algumas boas obras e, entre outras, conceder a liberdade a Paulo. Assim, feito senhor de si mesmo, o grande Apóstolo usou da liberdade para levar com maior ardor a luz do Evangelho a outras nações mais remotas.
            Talvez alguém se pergunte o que os judeus de Jerusalém fizeram quando viram Paulo retirado de suas mãos. Direi em breve. Eles dirigiram toda a sua fúria contra São Tiago, chamado o Menor, bispo daquela cidade. O governador Festo havia morrido; seu sucessor ainda não havia assumido o cargo. Os judeus aproveitaram aquela ocasião para se apresentar em massa ao sumo sacerdote, chamado Anano, filho daquele Anás e cunhado de Caifás, que haviam feito condenar o Salvador.
            Decididos a fazê-lo condenar, temiam grandemente o povo que o amava como um terno pai e se espelhava em suas virtudes; era chamado por todos de o Justo. A história nos diz que ele orava com tal assiduidade que a pele de seus joelhos havia se tornado como a de um camelo. Não bebia vinho nem outras bebidas embriagantes; era rigoroso no jejum, moderado na alimentação, na bebida e no vestir-se. Tudo que era supérfluo doava aos pobres.
            Apesar dessas belas qualidades, aqueles obstinados encontraram um modo de dar à sentença pelo menos uma aparência de justiça com uma astúcia digna deles. De acordo com o sumo sacerdote, os saduceus, os fariseus e os escribas organizaram um tumulto e correram até Tiago, dizendo entre mil gritos: “Você deve imediatamente tirar do erro este inumerável povo, que acredita que Jesus é o Messias prometido. Como você é chamado o Justo, todos acreditam em você; portanto, suba ao topo deste templo, para que todos possam vê-lo e ouvi-lo, e dê testemunho da verdade”.
            Assim, o conduziram a uma alta varanda do lado de fora do templo e, quando o viram lá em cima, exclamaram fingindo: “Ó homem justo, diga-nos o que se deve crer sobre Jesus crucificado”. O lugar não poderia ser mais solene. Ou renegar a fé, ou, pronunciando uma palavra a favor de Jesus Cristo, ser imediatamente condenado à morte. Mas o zelo do santo Apóstolo soube tirar todo o proveito daquela ocasião.
            “E por que”, exclamou em alta voz, “por que me interrogam sobre Jesus, Filho do homem e ao mesmo tempo Filho de Deus? Em vão fingem colocar em dúvida minha fé neste verdadeiro Redentor. Eu declaro diante de vocês que ele está no céu, assentado à direita de Deus Onipotente, de onde virá a julgar todo o mundo”. Muitos creram em Jesus Cristo e, na simplicidade de seus corações, começaram a exclamar: “Glória ao Filho de Davi”.
            Os judeus, frustrados em suas expectativas, começaram a gritar furiosamente: “Ele blasfemou! Que seja imediatamente lançado e morto”. Correram logo e o empurraram para baixo na laje da praça.
            Não morreu instantaneamente e, conseguindo se levantar, ajoelhou-se e, a exemplo do Salvador, invocava a divina misericórdia sobre seus inimigos, dizendo: “Perdoa-os, Senhor, porque não sabem o que fazem”.
            Então, os furiosos inimigos, instigados pelo pontífice, lhe lançaram uma chuva de pedras até que um, dando-lhe um golpe de maça na cabeça, o estendeu morto. Muitos fiéis foram trucidados junto a este Apóstolo, sempre pela mesma causa, ou seja, em ódio ao cristianismo (cf. Eusébio, História Eclesiástica).

CAPÍTULO XXX. Outras viagens de São Paulo — Escreve a Timóteo e a Tito — Seu retorno a Roma — Ano de Cristo 68

            Liberado das correntes da prisão, São Paulo dirigiu-se para aqueles lugares onde tinha intenção de ir. Foi, portanto, à Judeia visitar os judeus, mas ficou pouco, pois aqueles obstinados já estavam reacendendo a primitiva perseguição. Foi a Colossos, conforme a promessa feita a Filêmon. Dirigiu-se a Creta, onde pregou o Evangelho e onde ordenou Tito como bispo daquela ilha. Retornou à Ásia para visitar as Igrejas de Trôade, Icônio, Listra, Mileto, Corinto, Nicópolis e Filipos. Desta cidade, escreveu uma carta ao seu Timóteo, que havia ordenado bispo de Éfeso.
            Nesta carta, o Apóstolo lhe dá diversas regras para a consagração dos bispos e sacerdotes e para o exercício de muitas coisas relacionadas à disciplina eclesiástica. Quase ao mesmo tempo, escreveu uma carta a Tito, bispo de Creta, dando-lhe quase os mesmos conselhos dados a Timóteo e convidando-o a vir logo vê-lo.
            Acredita-se comumente que ele tenha ido pregar na Espanha e em muitos outros lugares. Empregou cinco anos em missões e fadigas apostólicas. Mas os fatos particulares dessas viagens, as conversões operadas por sua causa nos vários países, não nos são conhecidos. Dizemos apenas com Santo Anselmo que “o santo Apóstolo correu do Mar Vermelho até o Oceano, levando em toda parte a luz da verdade. Ele foi como o sol que ilumina todo o mundo do Oriente ao Ocidente, de modo que foram mais o mundo e os povos a faltar a Paulo, do que Paulo a faltar a algum dos homens. Esta é a medida de seu zelo e de sua caridade”.
            Enquanto Paulo estava ocupado nas fadigas do apostolado, soube que em Roma havia estourado uma feroz perseguição sob o império de Nero. Paulo imediatamente imaginou a grave necessidade de sustentar a fé em tais ocasiões e tomou imediatamente o caminho para Roma.
            Chegando à Itália, encontrou por toda parte publicados os editais de Nero contra os fiéis. Sentia os crimes e as calúnias que lhes eram imputadas; via por toda parte cruzes, fogueiras e outros tipos de suplícios preparados para os confessores da fé, e isso dobrava em Paulo o desejo de estar logo entre aqueles fiéis. Assim que chegou, como quem oferecia a Deus a si mesmo, começou a pregar nas praças públicas, nas sinagogas, tanto para os gentios quanto para os judeus. A estes últimos, que quase sempre se mostraram obstinados, pregava o iminente cumprimento das profecias do Salvador, que previam a destruição da cidade e do templo de Jerusalém com a dispersão de toda aquela nação. Sugeriu, porém, um meio para evitar os flagelos divinos: converter-se de coração e reconhecer seu Salvador naquele Jesus que haviam crucificado.
            Aos gentios pregava a bondade e a misericórdia de Deus, que os convidava à penitência; por isso, exortava a abandonar o pecado, a mortificar as paixões e a abraçar o Evangelho. A tal pregação, confirmada por contínuos milagres, os ouvintes vinham em massa pedir o batismo. Assim, a Igreja, perseguida com ferro, fogo e mil terrores, aparecia mais bela e florescente e aumentava a cada dia o número de seus eleitos.
            O que mais dizer? São Paulo levou seu zelo e sua caridade a tal ponto que conseguiu ganhar um certo Próculo, intendente do palácio imperial, e a própria esposa do imperador. Estes abraçaram com ardor a fé e morreram mártires.

CAPÍTULO XXXI. São Paulo é novamente aprisionado — Escreve a segunda carta a Timóteo — Seu martírio — Ano de Cristo 69-70

            Com São Paulo, também veio a Roma São Pedro, que há 25 anos aí mantinha a sede da cristandade. Ele também havia ido a outros lugares pregar a fé e, ao ser informado da perseguição levantada contra os cristãos, voltou imediatamente a Roma. Trabalharam em comum acordo os dois príncipes dos Apóstolos até que Nero, irritado pelas conversões que haviam sido feitas em sua corte e mais ainda pela morte ignominiosa que coube ao mago Simão (como narrado na vida de São Pedro), ordenou que fossem procurados com o máximo rigor São Pedro e São Paulo e conduzidos à prisão Mamertina, aos pés do monte Capitolino. Nero tinha em mente fazer conduzir os dois Apóstolos ao suplício imediatamente, mas foi desviado por assuntos políticos e por uma conspiração tramada contra ele. Além disso, havia deliberado tornar glorioso seu nome cortando o istmo de Corinto, uma língua de terra larga cerca de nove milhas. Esta empreitada não pôde ser realizada, mas deixou um ano de tempo a Paulo para ganhar ainda mais almas para Jesus Cristo.
            Ele conseguiu converter muitos prisioneiros, alguns guardas e outros personagens de destaque, que por desejo de se instruírem ou por curiosidade iam ouvi-lo, pois São Paulo durante sua prisão podia ser livremente visitado e escrevia cartas onde conhecia a necessidade. É da prisão de Roma que escreveu a segunda carta a Timóteo.
            Nesta carta, o Apóstolo anuncia próxima sua morte, demonstra vivo desejo de que o mesmo Timóteo vá até ele para assisti-lo, estando quase abandonado por todos. Esta carta pode ser chamada de testamento de São Paulo; e, entre muitas coisas, fornece também uma das maiores provas a favor da tradição. “O que você ouviu de mim”, lhe diz, “procure transmitir a homens fiéis e capazes de ensiná-lo a outros depois de você”. Dessas palavras aprendemos que, além da doutrina escrita, existem outras verdades não menos úteis e certas que devem ser transmitidas oralmente, em forma de tradição, com uma sucessão ininterrupta por todos os tempos futuros.
            Dá então muitos conselhos úteis a Timóteo para a disciplina da Igreja, para reconhecer várias heresias que estavam se espalhando entre os cristãos. E, para mitigar a ferida que a notícia de sua iminente morte lhe causaria, o encoraja assim: “Não te entristeças por mim, antes, se me queres bem, alegra-te no Senhor. Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé. Agora não me resta senão receber a coroa de justiça que o Senhor, justo juiz, me entregará naquele dia, quando, tendo oferecido em sacrifício a minha vida, me apresentarei a ele. Tal coroa não será dada apenas a mim, mas a todos aqueles que, com boas obras, se preparam para recebê-la em sua vinda”.
            Paulo teve em sua prisão um conforto de um certo Onésiforo. Este, tendo vindo a Roma e sabendo que Paulo, seu antigo mestre e pai em Jesus Cristo, estava na prisão, foi visitá-lo e se ofereceu para servi-lo. O Apóstolo sentiu grande consolação por uma tão terna caridade e, escrevendo a Timóteo, faz muitos elogios a ele e ora a Deus por ele.
            “Que Deus”, lhe escreve, “tenha misericórdia da família de Onésiforo, que muitas vezes me confortou e não se envergonhou de minhas correntes; ao contrário, vindo a Roma, me procurou com solicitude e me encontrou. O Senhor lhe conceda encontrar misericórdia diante dele naquele dia. E você sabe bem quantos serviços me prestou em Éfeso”.
            Entretanto, Nero voltou de Corinto todo irritado porque a empreitada do istmo não havia sido bem-sucedida. Ele se pôs com ainda mais raiva a perseguir os cristãos; e seu primeiro ato foi fazer executar a sentença de morte contra São Paulo. Antes de tudo, foi espancado com varas, e ainda se mostra em Roma a coluna à qual estava atado quando sofreu aquela flagelação. É verdade que com isso perdia o privilégio de cidadania romana, mas adquiria o direito de cidadão do céu; por isso sentia a maior alegria em se assemelhar ao seu divino Mestre. Esta flagelação era o prelúdio de ser depois decapitado.
            Paulo foi condenado à morte porque havia ultrajado os deuses; por este único título era permitido cortar a cabeça de um cidadão romano. Que bela culpa! Ser considerado ímpio porque, em vez de adorar pedras e demônios, se quer adorar o único Deus verdadeiro e seu Filho Jesus Cristo. Deus já lhe havia revelado o dia e a hora de sua morte; por isso sentia uma alegria já toda celestial. Exclamava: Cupio dissolvi et esse cum Christo (Desejo ser solto deste corpo para estar com Cristo). Finalmente, uma turba de capangas o tirou da prisão e o conduziu para fora de Roma pela porta que se chama Ostiense, fazendo-o caminhar em direção a um pântano ao longo do Tibre; chegaram a um lugar chamado Águas Sálvias, cerca de três milhas distante de Roma.
            Contam que uma matrona, chamada Plautila, esposa de um senador romano, vendo o santo Apóstolo maltratado no corpo e conduzido à morte, começou a chorar copiosamente. São Paulo a consolou dizendo: “Não chore, deixarei uma lembrança minha que será muito querida para você. Dê-me seu véu”. Ela lhe deu. Com este véu, vendaram os olhos ao santo antes de ser decapitado. E, por ordem do santo, uma pessoa piedosa o restituiu ensanguentado a Plautila, que o conservou como relíquia.
            Chegando Paulo ao lugar do suplício, dobrou os joelhos e, com o rosto voltado para o céu, recomendou a Deus sua alma e a Igreja; depois inclinou a cabeça e recebeu o golpe da espada que lhe cortou a cabeça do tronco. Sua alma voou para encontrar aquele Jesus que há tanto tempo desejava ver.
            Os anjos o acolheram e o introduziram entre imenso júbilo para participar da felicidade do céu. É certo que o primeiro a quem ele deve agradecer foi Santo Estêvão, a quem, depois de Jesus, era devedor de sua conversão e de sua salvação.

CAPÍTULO XXXII. Sepultamento de São Paulo — Maravilhas realizadas junto ao seu túmulo — Basílica a ele dedicada

            No dia em que São Paulo foi executado fora de Roma, nas Águas Sálvias, foi o mesmo em que São Pedro obteve a palma do martírio aos pés do monte Vaticano, no dia 29 de junho, tendo São Paulo 65 anos de idade. Barônio, que é chamado de pai da história eclesiástica, conta como da cabeça de São Paulo, assim que foi cortada do corpo, jorrou leite em vez de sangue. Dois soldados, ao ver tal milagre, se converteram a Jesus Cristo. Sua cabeça, então, ao cair ao chão, deu três saltos, e onde tocou o solo brotaram três fontes de água viva. Para conservar a memória desse glorioso acontecimento, foi erguida uma igreja cujas paredes cercam essas fontes, que ainda hoje são chamadas Fontes de São Paulo (cf. F. Barônio, ano 69-70).
            Muitos viajantes (cf. Cesário e Tillemont) foram ao local para serem testemunhas desse fato e nos asseguram que aquelas três fontes que viram e provaram têm um sabor como de leite. Naqueles primeiros tempos, havia uma grande solicitude dos cristãos para recolher e sepultar os corpos daqueles que davam a vida pela fé. Duas mulheres, chamadas uma Basilissa e a outra Anastácia, estudaram a maneira e o tempo para recuperar o cadáver do santo Apóstolo e, à noite, o sepultaram a duas milhas do local onde ele havia sofrido o martírio, a uma milha de Roma. Nero, através de seus espiões, soube da obra daquelas piedosas mulheres e isso foi suficiente para que as fizesse morrer, cortando-lhes as mãos, os pés e depois a cabeça.
            Embora os Gentios soubessem que o corpo de Paulo havia sido sepultado pelos fiéis, nunca puderam saber o local exato. Isso era conhecido apenas pelos cristãos, que o mantinham em segredo como o tesouro mais precioso e lhe prestavam a maior honra possível. Mas a estima que os fiéis tinham por aquelas relíquias chegou a tal ponto que alguns mercadores do Oriente, que vieram a Roma, tentaram roubá-las e levá-las para seu país. Secretamente, desenterraram-nas nas catacumbas, a duas milhas de Roma, esperando o momento propício para transportá-las. Mas no ato de realizar seu plano, levantou-se uma horrível tempestade com relâmpagos e trovões terríveis, de modo que foram forçados a abandonar a empreitada. Sabendo disso, os cristãos de Roma foram buscar o corpo de Paulo e o trouxeram de volta ao seu primeiro local ao longo da via Ostiense.
            Na época de Constantino, o Grande, foi edificada uma basílica magnífica em honra e sobre o sepulcro do nosso Apóstolo. Em todos os tempos, reis e imperadores, esquecendo-se de sua grandeza, cheios de temor e veneração, foram a esse sepulcro para beijar a caixa que guarda os ossos do santo Apóstolo.
            Os próprios Romanos Pontífices não se aproximavam, nem se aproximam, do local de seu sepultamento se não cheios de veneração, e nunca permitiram que alguém retirasse uma partícula daqueles ossos veneráveis. Vários príncipes e reis fizeram insistentes pedidos, mas nenhum Papa julgou poder atendê-los. Essa grande reverência era muito aumentada pelos contínuos milagres que se realizavam junto a esse sepulcro. São Gregório Magno relata muitos e assegura que ninguém entrava naquele templo para rezar sem tremer. Aqueles que ousassem profaná-lo ou tentassem levar até mesmo uma pequena partícula eram punidos por Deus com manifesta vingança.
            Gregório XI foi o primeiro que, em uma calamidade pública, quase forçado pelas orações e insistências do povo de Roma, tomou a cabeça do Santo, levantou-a bem alto, mostrou-a à multidão que chorava de ternura e devoção e, imediatamente, a recolocou de onde a havia retirado.
            Agora, a cabeça deste grande Apóstolo está na igreja de São João de Latrão; o resto do corpo sempre foi conservado na basílica de São Paulo fora dos muros, ao longo da via Ostiense, a uma milha de Roma.
            Até suas correntes foram objeto de devoção entre os fiéis cristãos. Pelo contato daqueles ferros gloriosos se realizaram muitos milagres, e as mais importantes personalidades do mundo sempre consideraram uma relíquia preciosa poder ter um pouco de limalha delas.

CAPÍTULO XXXIII. Retrato de São Paulo — Imagem de seu espírito — Conclusão

            Para que permaneça mais bem impressa a devoção a este príncipe dos Apóstolos, é útil dar uma ideia de sua aparência física e de seu espírito.
            Paulo não tinha uma aparência muito atraente, como ele mesmo afirma. Era de estatura pequena, de constituição forte e robusta, e deu prova disso com as longas e graves fadigas que suportou em sua carreira, sem nunca ter estado doente, exceto pelos males causados pelas correntes e pela prisão. Somente no final de seus dias caminhava um pouco curvado. Tinha o rosto claro, a cabeça pequena e quase totalmente calva, o que denotava um caráter sanguíneo e ardente. Tinha a testa ampla, sobrancelhas negras e baixas, nariz aquilino, barba longa e espessa. Mas seus olhos eram extremamente vivos e brilhantes, com um ar doce que temperava o ímpeto de seus olhares. Este é o retrato de sua aparência física.
            Mas o que dizer de seu espírito? Conhecemos isso por seus próprios escritos. Tinha um intelecto agudo e sublime, ânimo nobre, coração generoso. Tal era sua coragem e firmeza que extraía força e vigor das próprias dificuldades e perigos. Era muito experiente na ciência da religião judaica. Era profundamente erudito nas Sagradas Escrituras e tal ciência, ajudada pelos esclarecimentos do Espírito Santo e pela caridade de Jesus Cristo, o tornou aquele grande Apóstolo que foi apelidado de Doutor dos Gentios. São João Crisóstomo, devotíssimo de nosso santo, desejava grandemente poder ver São Paulo do púlpito, porque, dizia, os maiores oradores da antiguidade pareceriam lânguidos e frios em comparação a ele. Não é necessário dizer mais sobre suas virtudes, pois o que temos exposto até agora não é outra coisa senão uma tecelagem das virtudes heroicas que ele fez brilhar em todo lugar, em todo tempo e com todo tipo de pessoas.
            Para concluir o que foi dito sobre este grande santo, merece ser notada uma virtude que ele fez brilhar acima de todas as outras: a caridade para com o próximo e o amor a Deus. Ele desafiava todas as criaturas a separá-lo do amor de seu divino Mestre. “Quem me separará”, exclamava, “do amor de Jesus Cristo? Talvez as tribulações ou as angústias, ou a fome, ou a nudez, ou os perigos, ou as perseguições? Não, certamente. Estou persuadido de que nem a morte nem a vida, nem anjos nem principados, nem potências, nem coisas presentes nem futuras, nem qualquer criatura poderá nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor”. Este é o caráter do verdadeiro cristão: estar disposto a perder tudo, a sofrer tudo, em vez de dizer ou fazer a menor coisa contrária ao amor de Deus.
            São Paulo passou mais de trinta anos de sua vida como inimigo de Jesus Cristo; mas assim que foi iluminado por sua graça celeste, entregou-se totalmente a ele, e nunca mais se separou dele. Depois, empregou mais de trinta e seis anos nas mais austeras penitências, nas mais duras fadigas, e isso para glorificar aquele Jesus que havia perseguido.
            Cristão leitor, talvez você que lê e eu que escrevo tenhamos passado uma parte da vida ofendendo ao Senhor! Mas não percamos a coragem: ainda há tempo para nós; a misericórdia de Deus nos espera.
            Mas não adiemos a conversão, porque se esperarmos até amanhã para resolver as coisas da alma, corremos o grave risco de não ter mais tempo. São Paulo trabalhou trinta e seis anos a serviço do Senhor; agora, há 1800 anos, goza da imensa glória do céu e a gozará por todos os séculos. A mesma felicidade está preparada também para nós, desde que nos entreguemos a Deus enquanto temos tempo e perseveremos no santo serviço até o fim. É nada o que se sofre neste mundo, mas é eterno o que gozaremos no outro. Assim nos assegura o próprio São Paulo.

Terceira edição
Livraria Salesiana Editora
1899
Propriedade do editor
S. Pier d’Arena, Escola Tipográfica Salesiana
Colégio São Vicente de Paulo
(N. 1267 — M)




Vida de São José, esposo de Maria Santíssima, pai putativo de Jesus Cristo (3/3)

(continuação do artigo anterior)

Capítulo XX. Morte de São José. – Sua sepultura.
Nunc dimittis servum tuum Domine, secundum verbum tuum in pace, quia viderunt oculi mei salutare tuum. (Agora, Senhor, segundo a tua promessa, deixa teu servo ir em paz, porque meus olhos viram a tua salvação. – Lc 2,29)

            Quando chegou o último momento, José fez um esforço supremo para se levantar e adorar aquele que os homens consideravam seu filho, mas que José sabia ser seu Senhor e Deus. Ele queria se lançar a seus pés e pedir a remissão de seus pecados. Mas Jesus não permitiu que ele se ajoelhasse e o recebeu em seus braços. Assim, apoiando sua venerável cabeça no peito divino de Jesus, com os lábios perto daquele adorável coração, José expirou, dando aos homens um exemplo final de fé e humildade. Era o décimo nono dia de março, do ano de Roma 777, o vigésimo quinto desde o nascimento do Salvador.
            Jesus e Maria choraram sobre o corpo frio de José e mantiveram a vigília de luto dos mortos ao seu lado. O próprio Jesus lavou esse corpo virginal, fechou os olhos e cruzou as mãos sobre o peito; depois o abençoou para preservá-lo da corrupção da sepultura e colocou os anjos do Paraíso para guardá-lo.
            Os funerais do pobre trabalhador foram tão modestos quanto havia sido toda a sua vida. Mas, se assim pareciam à face da terra, eram de tão grande honra que certamente não poderiam se vangloriar os mais gloriosos imperadores do mundo, já que o Rei e a Rainha do Céu, Jesus e Maria, estavam presentes junto ao augusto corpo. O corpo de José foi colocado para descansar no sepulcro de seus pais, no vale de Josafá, entre o monte Sião e o monte das Oliveiras.

Capítulo XXI. Poder de São José no céu. Razões para nossa confiança.
Ite ad Joseph. (Dirigi-vos a José [e fazei o que ele vos disser]. – Gn 41,55)

            Nem sempre a glória e o poder dos justos sobre a terra são a medida certa do mérito de sua santidade; mas não é o caso da glória e do poder com que são revestidos no céu, onde cada um é recompensado de acordo com suas obras. Quanto mais santos eles forem aos olhos de Deus, mais serão elevados a um grau sublime de poder e autoridade.
Uma vez estabelecido esse princípio, não devemos acreditar que, entre os bem-aventurados que são objeto de nosso culto religioso, São José seja, depois de Maria, o mais poderoso de todos junto a Deus, e aquele que mais justamente merece nossa confiança e nossas homenagens? De fato, quantos privilégios gloriosos o distinguem de outros santos e devem inspirar em nós uma profunda e terna veneração por ele!
            O filho de Deus, que escolheu José como seu pai, para recompensar todos os seus serviços e dar-lhe em troca as demonstrações do mais terno amor durante sua vida mortal, não o ama menos no céu do que o amou sobre a terra. Feliz por ter toda a eternidade para compensar seu amado pai por tudo o que fez por ele na vida presente, com tão ardente zelo, tão inviolável fidelidade e tão profunda humildade. Isso faz com que o divino Salvador esteja sempre disposto a ouvir favoravelmente todas as suas orações e a satisfazer todos os seus desejos.
            Encontramos nos privilégios e favores com os quais foi cumulado o antigo José, que era apenas uma sombra de nosso verdadeiro José, uma figura do crédito onipotente desfrutado no céu pelo santo esposo de Maria.
            A fim de recompensar os serviços que havia recebido de José, filho de Jacó, o faraó estabeleceu-o como administrador geral de sua casa, senhor de todas as suas posses, desejando que todas as coisas fossem feitas de acordo com suas ordens. Depois de tê-lo estabelecido como vice-rei do Egito, ele lhe deu o selo de sua autoridade real e lhe deu plenos poderes para conceder todos os favores que desejasse. Ele ordenou que fosse chamado de salvador do mundo, para que seus súditos pudessem reconhecer que a ele deviam sua salvação; em suma, ele enviou a José todos os que vinham pedir qualquer favor, para que pudessem obtê-lo de sua autoridade e mostrar-lhe sua gratidão: Ite ad Ioseph, et quidquid dixerit vobis, facite – Gn 41,55. Ide a José, fazei tudo o que ele vos disser e recebei dele tudo o que ele vos der.
            Mas quanto mais maravilhosos e capazes de nos inspirar uma confiança ilimitada são os privilégios do casto esposo de Maria, o pai adotivo do Salvador! Não se trata de um rei da terra como o Faraó, mas é Deus Todo-Poderoso que desejou cumular esse novo José com seus favores. Ele começa estabelecendo-o como mestre e venerável chefe da Sagrada Família; ele quer que tudo lhe obedeça e lhe esteja sujeito, até mesmo seu próprio filho, igual a ele em todas as coisas. Ele o torna seu vice-rei, querendo que ele represente sua adorável pessoa a ponto de lhe dar o privilégio de levar seu nome e de ser chamado de pai de seu unigênito. Ele coloca esse filho em suas mãos, para que saibamos que ele lhe dá poder ilimitado para realizar toda graça. Observe como ele torna conhecido no evangelho, para toda a Terra e em todas as épocas, que São José é o pai do rei dos reis: Erant pater et mater eius mirantes [o pai e a mãe ficavam admirados] – Lc 2,33. Ele deseja que ele seja chamado de Salvador do mundo, pois alimentou e preservou aquele que é a salvação de todos os homens. Por fim, ele nos adverte que, se desejarmos graças e favores, devemos nos dirigir a José: Ite ad Ioseph, pois é ele quem tem todo o poder junto do Rei dos reis para obter tudo o que ele pede.
            A santa Igreja reconhece esse poder soberano de José, pois pede por sua intercessão o que não poderia obter por si mesma: Ut quod possibilitas nostra non obtinet, eius nobis intercessione donetur.
            Certos santos, diz o doutor angélico, receberam de Deus o poder de nos ajudar em certas necessidades particulares; mas o crédito de São José não tem limite; estende-se a todas as necessidades, e todos aqueles que recorrem a ele com confiança têm a certeza de serem prontamente atendidos. Santa Teresa nos declara que nunca pediu nada a Deus por intercessão de São José que não obtivesse rapidamente: e o testemunho dessa santa vale mais do que mil outros, pois se baseia na experiência cotidiana de seus favores. Os outros santos gozam, é verdade, de grande crédito no céu; mas eles intercedem como servos e não mandam como senhores. José, que viu Jesus e Maria submetidos a ele, pode, sem dúvida, obter tudo o que quiser do rei, seu filho, e da rainha, sua esposa. Ele tem crédito ilimitado com um e com a outra, e, como diz Gerson, ele ordena em vez de implorar: Non impetrat, sed imperat. São Bernardino de Sena, diz que Jesus quer continuar no céu a dar a São José a prova de seu respeito filial, obedecendo a todos os seus desejos: Dum pater orat natum, velut imperium reputatur[o que um pai pede a um filho é como se fosse uma ordem].
            De fato, o que Jesus Cristo poderia negar a José, que nunca lhe negou nada em toda a sua vida? Na sua vocação, Moisés não era mais do que o líder e condutor do povo de Israel; e, no entanto, ele se apresentava a Deus com tanta autoridade que, quando orava em nome daquele povo rebelde e incorrigível, sua oração parecia se tornar uma ordem, que de certa forma prendia as mãos da majestade divina e a reduzia a ser quase incapaz de castigar os culpados, até que ele os libertasse: Dimitte me, ut irascatur furor meus contro eos et deleam eos [Deixa que a minha ira se inflame contra eles e eu os extermine]. (Êxodo 32,10).
            Mas quanto maior virtude e poder não terá a oração que José dirige por nós ao soberano juiz, de quem foi guia e pai adotivo? Pois se é verdade, como diz São Bernardo, que Jesus Cristo, que é nosso advogado junto ao Pai, lhe apresenta suas sagradas chagas e o adorável sangue que derramou por nossa salvação, se Maria, por sua vez, apresenta a seu Filho único o seio que o gerou e alimentou, não podemos acrescentar que São José mostra ao Filho e à Mãe as mãos que tanto trabalharam por eles e o suor que derramou para ganhar seu sustento sobre a terra? E se Deus Pai nada pode negar a seu amado Filho quando lhe roga por suas sagradas chagas, nem o Filho nada pode negar a sua santíssima Mãe quando lhe suplica pelas entranhas que o geraram, não somos obrigados a crer que nem o Filho, nem a Mãe, que se tornou a dispensadora das graças que Jesus Cristo mereceu, nada podem negar a São José quando lhes roga por tudo o que fez por eles nos trinta anos de sua vida?
            Imaginemos que nosso santo protetor dirige essa comovente oração a Jesus Cristo, seu Filho adotivo, por nós: “Ó meu divino Filho, dignai-vos derramar vossas mais abundantes graças sobre meus servos fiéis; eu vos peço pelo doce nome de pai com o qual tantas vezes me honrastes, por estes braços que vos acolheram e o aqueceram em vosso nascimento, que vos levaram ao Egito para salvar-vos da ira de Herodes; peço-vos por aqueles olhos cujas lágrimas enxuguei, por aquele sangue precioso que recolhi em vossa circuncisão; pelos trabalhos e fadigas que suportei com tanto contentamento para nutrir vossa infância e nutrir-vos em vossa juventude…” Jesus, tão cheio de caridade, poderia resistir a tal oração? E se está escrito, diz São Bernardo, que ele faz a vontade daqueles que o temem, como pode negar-se a fazer a vontade daquele que o serviu e alimentou com tanta fidelidade, com tanto amor? Si voluntatem timentium se faciet; quomodo voluntatem nutrientis se non faciet? (Um escritor piedoso em seus comentários sobre o Salmo 144,19).
            Mas o que deve redobrar nossa confiança em São José é sua inefável caridade para conosco. Fazendo-se seu filho, Jesus colocou em seu coração um amor mais terno do que o do melhor dos pais.
            Não nos tornamos seus filhos, enquanto Jesus Cristo é nosso irmão e Maria, sua casta esposa, é nossa mãe cheia de misericórdia?
            Voltemo-nos, portanto, para São José com uma confiança viva e plena. Sua oração, unida à de Maria e apresentada a Deus em nome da adorável infância de Jesus Cristo, não pode ser recusada, mas deve obter tudo o que pedir.
            O poder de São José é ilimitado; ele se estende a todas as necessidades da nossa alma e do nosso corpo.
            Depois de três anos de uma doença violenta e contínua, que não a deixava sem descanso e sem esperança de cura, Santa Teresa recorreu a São José; e ele logo lhe obteve a saúde.
            É principalmente em nossa última hora, quando a vida está prestes a nos deixar como um falso amigo, quando o inferno redobrará seus esforços para raptar nossa alma na passagem para a eternidade, é nesse momento decisivo para nossa salvação que São José nos assistirá de maneira muito especial, se formos fiéis em honrá-lo e orar a ele em vida. O divino Salvador, para recompensá-lo por tê-lo salvado da morte, livrando-o da ira de Herodes, deu-lhe o privilégio especial de resgatar das armadilhas do demônio e da morte eterna os moribundos que se colocaram sob sua proteção.
            É por isso que ele é invocado com Maria em todo o mundo católico como o santo padroeiro da boa morte. Oh! Como seríamos felizes se pudéssemos morrer como tantos servos fiéis de Deus, pronunciando os nomes onipotentes de Jesus, Maria e José. O Filho de Deus, diz o Venerável Bernardo de Bustis, tendo as chaves do paraíso, deu uma a Maria e outra a José, para que pudessem introduzir todos os seus fiéis servos no lugar de refrigério, luz e paz.

Capítulo XXII. Propagação do culto e instituição da festa de 19 de março e do Patrocínio de São José.
Qui custos est domini sui glorificabitur. (Quem vela por seu senhor, por ele será honrado – Pr 27,18)

            Assim como a Divina Providência decretou que São José morresse antes que Jesus se manifestasse publicamente como o Salvador da humanidade, também decretou que o culto a esse santo não se espalhasse antes que a fé católica se espalhasse universalmente pelo mundo. De fato, a exaltação desse santo nos primeiros dias do cristianismo parecia perigosa para a fé ainda fraca do povo. Era muito apropriado que a dignidade de Jesus Cristo fosse inculcada no fato de ele ter nascido de uma virgem pelo poder do Espírito Santo; ora, apresentar a memória de São José, o esposo de Maria, teria ofuscado essa crença dogmática em algumas mentes fracas, ainda não esclarecidas sobre os milagres do poder divino. Além disso, era importante, naqueles séculos de batalha, tornar o principal objeto de veneração os heróis sagrados que haviam derramado seu sangue pelo martírio para defender a fé.
            Quando, pois, a fé estava consolidada entre o povo e foram elevados à honra dos altares, muitos santos que haviam edificado a Igreja com o esplendor de suas virtudes sem passar pelos tormentos, logo pareceu mais adequado que um santo do qual o próprio Evangelho fazia tão amplo elogio não fosse deixado em silêncio. Por isso, além da festa de todos os antepassados de Cristo (que foram justos), celebrada no domingo anterior ao Natal, os gregos consagraram o domingo que se estende nessa oitava ao culto de São José, esposo de Maria, do santo profeta Davi e de São Tiago, primo do Senhor.
            No calendário dos Coptas, em 20 de julho, há menção a São José, e alguns acreditam que 4 de julho foi o dia da morte de nosso santo.
            Na Igreja latina, portanto, o culto a São José remonta à antiguidade dos primeiros séculos, como mostram os martirológios muito antigos do mosteiro de São Maximino de Tréveris e de Eusébio. A ordem dos frades mendicantes foi a primeira a celebrar o ofício, como pode ser visto em seus breviários. Seu exemplo foi seguido no século XIV pelos franciscanos e dominicanos por meio do trabalho de Alberto Magno, que foi o professor de Santo Tomás de Aquino.
            No final do século XV, as igrejas de Milão e Toulouse também o introduziram em sua liturgia, até que a Sé Apostólica estendeu seu culto a todo o mundo católico em 1522. Pio V, Urbano VIII e Sisto IV aperfeiçoaram seu ofício.
            A princesa Isabela Clara Eugenia da Espanha, herdeira do espírito de Santa Teresa, que era muito devota de São José, indo para a Bélgica, obteve que fosse instituída uma festa de preceito em 19 de março na cidade de Bruxelas em homenagem a esse santo; seu culto se espalhou para as províncias vizinhas, onde ele foi proclamado e venerado sob o título de preservador da paz e protetor da Boêmia. Essa festa começou na Boêmia no ano de 1655.
            Uma parte do manto com o qual São José envolveu o Santo Menino Jesus é mantida em Roma na Igreja de Santa Cecília em Trastevere, onde também é mantido o cajado que esse santo carregava durante a viagem. A outra parte está guardada na igreja de Santa Anastácia, na mesma cidade.
            De acordo com o que as testemunhas nos transmitiram, esse manto é de cor amarelada. Uma parte dele foi dada como presente pelo Cardeal Ginetti aos Padres Carmelitas Descalços de Antuérpia; é guardada em uma caixa magnífica, sob três chaves, e é exibida para veneração pública todos os anos no Natal.
            Entre os sumos pontífices que contribuíram com sua autoridade para promover o culto a esse santo está Sisto IV, que foi o primeiro a estabelecer a festa no final do século XV. São Pio V formulou o ofício no Breviário Romano. Gregório XV e Urbano VIII se esforçaram com decretos especiais para reavivar o fervor em relação a esse santo que parecia ter diminuído entre alguns povos. Até que o Sumo Pontífice Inocêncio X, atendendo aos pedidos de muitas igrejas da cristandade, e também desejoso de promover a glória do santíssimo esposo de Maria e, assim, tornar seu patrocínio mais eficaz para a religião, estendeu sua solenidade a todo o mundo católico.
            A festa de São José foi, portanto, fixada para o dia 19 de março, que se acredita piedosamente ter sido o dia de sua abençoada morte (contra a opinião de alguns que acreditam que isso tenha ocorrido no dia 4 de julho).
            Como essa festa sempre cai no período da Quaresma, ela não poderia ser celebrada em um domingo, já que todos os domingos da Quaresma são privilegiados: portanto, muitas vezes ela teria passado despercebida se a engenhosa piedade dos fiéis não tivesse encontrado uma maneira de compensá-la de outra forma.
            Desde 1621, a Ordem dos Carmelitas Descalços reconhece solenemente São José como padroeiro e pai universal de todos os carmelitas. José como patrono e pai universal de seu Instituto, consagrando um dos domingos após a Páscoa para celebrar sua solenidade sob o título de Patrocínio de São José. A pedido fervoroso da própria Ordem e de muitas Igrejas da cristandade, a Sagrada Congregação dos Ritos, por decreto de 1680, fixou essa solenidade no terceiro domingo após a Páscoa. Muitas Igrejas do mundo católico logo adotaram espontaneamente essa festa. A Companhia de Jesus, os Redentoristas, os Passionistas e a Sociedade de Maria a celebram com sua própria oitava e ofício sob o rito duplo de primeira classe.
            A Sagrada Congregação dos Ritos finalmente estendeu essa festa a toda a Igreja universal, a fim de encorajar e animar cada vez mais a piedade dos fiéis para com esse grande santo, com um decreto de 10 de setembro de 1847, a pedido do Eminentíssimo Cardeal Patrizi.
            Se alguma vez houve tempos calamitosos para a Igreja de Jesus Cristo, se alguma vez a fé católica dirigiu suas orações ao céu para implorar um protetor, estes são infelizmente os dias atuais. Nossa santa religião, agredida em seus princípios mais sacrossantos, vê numerosos filhos arrancados com cruel indiferença de seu seio materno para se entregarem loucamente aos braços da incredulidade e da impiedade e, tornando-se apóstolos escandalosos da impiedade, desviarem tantos de seus irmãos e, assim, dilacerarem o coração daquela mãe amorosa que os nutriu. Pois bem, enquanto a devoção a São José atrairia bênçãos copiosas sobre as famílias de seus devotos, ela obteria para a desolada esposa de Jesus Cristo o patrocínio mais eficaz de um santo que, assim como foi capaz de preservar a ilesa vida de Jesus pela perseguição de Herodes, saberá como preservar a fé ilesa de seus filhos na perseguição que o inferno lhe move. Como o primeiro José, filho de Jacó, foi capaz de manter a abundância para o povo do Egito durante sete anos de carestia, o verdadeiro José, o mais feliz administrador dos tesouros celestiais, saberá manter no povo cristão aquela fé santíssima para cujo estabelecimento desceu à terra aquele Deus, do qual ele foi preceptor e guardião durante trinta anos.

Sete alegrias e sete dores de São José.

Indulgência concedida por Pio IX aos fiéis que recitarem essa coroa, que pode servir como prática para a novena do santo.

                        Pio IX, o Papa atual, ampliou as concessões de seus predecessores, especialmente as de Gregório XVI. Concedeu aos fiéis de ambos os sexos a indulgência plenária, também aplicável às almas do Purgatório, a todos os que rezarem as preces, chamadas comumente as sete alegrias e sete dores de São José, durante sete domingos consecutivos, em qualquer época do ano. Além disso, são condições para lucrar esta indulgência: confessar-se e comungar, visitar uma igreja ou oratório público e rezar nas intenções do Santo Padre, o Papa.
            Para aqueles que não sabem ler, ou que não podem ir a qualquer Igreja onde essas preces são rezadas publicamente, o mesmo Pontífice concedeu idêntica indulgência plenária, desde que, ao visitarem a referida Igreja, rezem sete Pai Nossos, Ave Marias e Glórias em honra do santo Patriarca e cumpram as demais condições prescritas.

Coroa das Sete Dores e Alegrias de São José

            1. Ó Esposo puríssimo de Maria Santíssima, glorioso São José, assim como foi grande a amargura do vosso coração na perplexidade de abandonardes vossa castíssima Esposa, assim foi inexplicável a vossa alegria, quando pelo Anjo vos foi revelado o soberano mistério da Encarnação.
            Por esta vossa dor e por esta alegria, rogamos a graça de consolardes agora e nas extremas dores, a nossa alma com a alegria de uma boa morte semelhante à vossa entre Jesus e Maria.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            2. Ó felicíssimo Patriarca, glorioso São José, que fostes escolhido para o cargo de pai adotivo do Verbo humanado, a dor que sentistes ao ver Jesus Menino nascer em tanta pobreza o Deus Menino, que se transformou em júbilo celeste ao escutardes a angélica melodia, ao verdes a glória daquela brilhantíssima, noite.
            Por esta vossa dor e por esta vossa alegria, suplicamos a graça de nos alcançardes que depois da jornada desta vida, passemos a ouvir os angélicos louvores e a gozar os resplendores da glória celeste.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            3. Ó obedientíssimo executor das divinas leis, glorioso São José, o sangue preciosíssimo que na circuncisão o Redentor Menino derramou vos transpassou o coração, mas o nome de Jesus o reanimou, enchendo-o de contentamento.
            Por esta vossa dor e por este vosso gozo, alcançai-nos que, sendo arrancados de nós os vícios nesta vida, com o nome de Jesus no coração e na boca, expiremos cheios de júbilo.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            4. Ó fidelíssimo santo, que também tivestes parte nos mistérios de nossa redenção, glorioso São José, se a profecia de Simeão a respeito do que Jesus e Maria tinham de sofrer vos causou mortal angústia, também vos encheu de sumo gozo pela salvação e gloriosa ressurreição que igualmente predisse teria de resultar para inumeráveis almas.
            Por esta vossa dor e por este vosso gozo, obtende-nos que sejamos daqueles que, pelos méritos de Jesus e pela intercessão da Virgem sua Mãe, hão de ressuscitar gloriosamente.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            5. Ó vigilantíssimo guardião, íntimo familiar do Filho de Deus encarnado, glorioso São José, quanto penastes para alimentar e servir o Filho do Altíssimo, particularmente na fuga que com ele fizestes para o Egito! Mas, qual não foi também o vosso gozo terdes sempre convosco o próprio Deus e por verdes cair por terra os ídolos do Egito.
            Por esta vossa dor e por este vosso gozo, alcançai-nos que, expelindo longe de nós o tirano do inferno, especialmente com a fuga das ocasiões perigosas, sejam derrubados de nossos corações todos os ídolos de afetos terrenos e que, inteiramente empregados no serviço de Jesus e de Maria, somente para eles vivamos e felizmente morramos.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            6. Ó Anjo da terra, glorioso São José, que, cheio de admiração, vistes o Rei do céu submisso às vossas ordens, se a vossa consolação, ao reconduzi-lo do Egito, foi transtornada pelo temor de Arquelau, sossegado pelo Anjo, permanecestes alegre em Nazaré com Jesus e Maria.
            Por esta vossa dor e por este vosso gozo, alcançai-nos que, desocupado o nosso coração de vãos temores, gozemos paz de consciência, vivamos seguros com Jesus e Maria e também entre eles morramos.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            7. Ó exemplar de toda santidade, glorioso São José, perdestes sem culpa vossa o Menino Jesus e com aflição o procurastes por três dias, até que com sumo júbilo gozastes de vossa vida, achando-o no templo entre os doutores.
            Por esta vossa dor e por este vosso gozo suplicamos, com o coração nos lábios, que interponhais o vosso valimento para que nunca percamos Jesus por culpa grave; mas se, por desgraça o perdermos, com tão contínua dor o procuremos e o achemos favorável, especialmente em nossa morte, para passarmos a gozá-lo no céu e lá cantarmos convoco eternamente suas divinas misericórdias.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

Antífona. Jesus estava prestes a completar trinta anos de idade e acreditava-se que era filho de José.
            V. Rogai por nós, São José.
            R. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

Oremos.

            Ó Deus, que por uma inefável providência vos dignastes escolher o bem-aventurado São José para esposo de vossa Mãe Santíssima, concedei-nos que aquele mesmo que na terra veneramos como protetor, mereçamos ter no céu como nosso intercessor. Vós que viveis e reinais por todos os séculos dos séculos.
            R. Amém.

Outra oração a São José
            Deus vos salve, ó José, cheio de graça; Jesus e Maria estão convosco; sois bendito entre os homens, e bendito é o fruto do ventre de vossa esposa Maria. São José, pai putativo de Jesus, esposo virgem de Maria, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Assim seja.

Coletado entre os autores mais credenciados, com a novena em preparação à festa do Santo.
Tipografia do Oratório de São Francisco de Sales, Turim, 1867.
P. JOÃO BOSCO

Com permissão eclesiástica.

***

Hoje a Igreja concede indulgência (Enchiridion Indulgentiarum n.19) para orações em honra de São José:
“Uma indulgência parcial é concedida aos fiéis que invocam São José, Esposo da Bem-Aventurada Virgem Maria, com uma oração legitimamente aprovada (por exemplo, A vós, São José).

A vós, São José, recorremos em nossa tribulação e, depois de ter implorado o auxílio ele vossa santíssima esposa, cheios de confiança solicitamos também o vosso patrocínio. Por esse laço sagrado de caridade que vos uniu à Virgem, Imaculada Mãe de Deus, e pelo amor paternal que tivestes ao Menino Jesus, ardentemente suplicamos que lanceis um olhar benigno sobre a herança que Jesus Cristo conquistou com seu sangue, e nos socorrais em nossas necessidades com o vosso auxílio e poder. Protegei, ó guarda providente da divina família, o povo eleito de Jesus Cristo. Afastai para longe de nós, ó pai amantíssimo, a peste do erro e do vício. Assisti-nos do alto do céu, ó nosso fortíssimo sustentáculo, na luta contra o poder das trevas, e assim como outrora salvastes da morte a vida ameaçada do Menino Jesus, assim também defendei agora a Santa Igreja de Deus das ciladas de seus inimigos e de toda a adversidade.

Amparai a cada um de nós com o vosso constante patrocínio, a fim de que, a vosso exemplo e sustentados com o vosso auxílio, possamos viver virtuosamente, morrer piedosamente e obter no céu a eterna bem-aventurança.
Amém.

(Papa Leão XIII, Oração a São José, encíclica Quamquam pluries)




Vida de São José, esposo de Maria Santíssima, pai putativo de Jesus Cristo (2/3)

(continuação do artigo anterior)

Capítulo IX. A circuncisão.
Et vocavit nomen eius Iesum. (E lhe pôs o nome de Jesus – Mt 1,25)

            No oitavo dia após o nascimento, os filhos de Israel deveriam ser circuncidados, conforme o mandamento expresso de Deus dado a Abraão, para que houvesse um sinal que lembrasse ao povo a aliança que Deus havia feito com eles.
            Maria e José entendiam muito bem que esse sinal não era necessário para Jesus. Esse serviço doloroso era uma punição adequada aos pecadores, e seu objetivo era eliminar o pecado original. Ora, sendo Jesus o santo por excelência, a fonte de toda santidade, não carregava consigo nenhum pecado que precisasse de remissão. Além disso, ele tinha vindo ao mundo por meio de uma concepção milagrosa e não precisava se submeter a nenhuma das leis que pertenciam aos homens. No entanto, Maria e José, sabendo que Jesus não viera para violar a lei, mas para cumpri-la; que viera para dar aos homens o exemplo de perfeita obediência, disposto a sofrer tudo o que a glória do Pai Celestial e a salvação da humanidade exigiriam dele, não hesitaram em realizar a dolorosa cerimônia com o Menino Divino.
            José, o santo Patriarca, é o ministro e sacerdote desse rito sagrado. Aqui está ele, com os olhos marejados de lágrimas, dizendo a Maria: “Maria, agora é o momento em que estamos prestes a realizar neste seu filho abençoado o sinal de nosso pai Abraão. Fico com o coração apertado ao pensar em você. Eu ferir esta carne imaculada! Eu tirar o primeiro sangue desse cordeiro de Deus; se você abrisse a boca, ó meu filho, e me dissesse que não quer a ferida, como eu jogaria essa faca para longe de mim e me alegraria por você não a querer! Mas vejo que você me pede esse sacrifício; que você quer sofrer. Sim, ó doce menino, nós sofreremos: você em sua carne mais pura; Maria e eu em nossos corações”.
            Enquanto isso, José havia realizado o doloroso ofício de oferecer a Deus o primeiro sangue em expiação pelos pecados dos homens. Então, com Maria chorosa e cheia de angústia pela aflição de seu Filho, ele repetiu: “Jesus é o Seu nome, pois Ele deve salvar Seu povo de seus pecados: vocabis nomen eius Iesum; ipse enim salvum faciet populum suum a peccatis eorum. – cf. Mt 1,25 “Ó nome santíssimo, ó nome que está acima de todo nome, como é oportuno que sejas pronunciado pela primeira vez neste momento! Deus quis que o menino fosse chamado Jesus quando começaria a derramar sangue, pois se ele era e seria o Salvador, foi precisamente em virtude e por causa de seu sangue, por meio do qual ele entrou uma vez no Santo dos Santos e, pelo sacrifício de todo o seu ser, consumou a Redenção de Israel e do mundo inteiro.
            José foi o grande e nobre ministro da circuncisão, por meio da qual o Filho de Deus recebeu seu próprio nome. José recebeu o relato do anjo; José foi o primeiro dentre os homens a pronunciá-lo; e, ao pronunciá-lo, fez com que todos os anjos se curvassem e os demônios fossem tomados por um pavor extraordinário, mesmo sem entender o motivo, caindo em adoração e escondendo-se nas profundezas do inferno. Grande dignidade de José! É grande a obrigação de reverência que lhe devemos, pois ele foi o primeiro a chamar o Filho de Deus de Redentor e o primeiro a cooperar com o santo ministério da circuncisão para torná-Lo nosso Redentor.

Capítulo X. Jesus adorado pelos Magos. A Purificação.
Reges Tharsis et insulae munera offerent, Reges Arabum et Saba dona adducent. (Os reis de Társis e das ilhas vão trazer-lhe ofertas, os reis da Arábia e de Sabá vão pagar-lhe tributo. – Sl 71(72),10)

            Aquele Deus que havia descido à Terra para fazer da casa de Israel e dos povos dispersos uma só família queria os representantes de um e de outro ao redor de seu berço. Os simples e os humildes tinham preferência em estar perto de Jesus; além disso, os grandes e os sábios da terra não deveriam ser excluídos. Depois dos pastores próximos, do silêncio de sua gruta em Belém, Jesus movia uma estrela do céu para reconduzir os adoradores distantes.
            Uma tradição, popular em todo o Oriente e registrada na Bíblia, anunciava que um menino nasceria no Ocidente, que mudaria a face do mundo, e que uma nova estrela apareceria ao mesmo tempo para marcar esse evento. Na época do nascimento do Salvador, havia no Extremo Oriente alguns príncipes comumente chamados de três Reis Magos, dotados de uma ciência extraordinária.
            Profundamente versados em ciências astronômicas, esses três reis magos aguardavam ansiosamente o aparecimento da nova estrela que lhes anunciaria o nascimento do menino maravilhoso.
            Certa noite, enquanto observavam atentamente os céus, uma estrela de magnitude incomum pareceu se destacar da abóbada celeste, como se quisesse descer sobre a Terra.
            Reconhecendo com esse sinal que o momento havia chegado, eles partiram apressadamente e, guiados novamente pela estrela, chegaram a Jerusalém. A fama de sua chegada e, acima de tudo, a causa que os levou, perturbou o coração do invejoso Herodes. Esse príncipe cruel fez com que os magos fossem até ele e lhes disse: “Informem-se exatamente sobre esse menino e, assim que vocês o encontrarem, voltem para me avisar, para que eu também possa ir e adorá-lo”. Tendo os doutores da lei indicado que o Cristo nasceria em Belém, os magos saíram de Jerusalém, sempre precedidos pela misteriosa estrela. Não demorou muito para que chegassem a Belém; a estrela parou sobre a gruta onde estava o Messias. Os magos entraram, prostraram-se aos pés do menino e o adoraram.
            Depois, abrindo os cofres de madeiras preciosas que haviam trazido, ofereceram-lhe ouro, como para o reconhecerem como rei, incenso, como Deus, e mirra, como homem mortal.
            Avisados então por um anjo sobre os verdadeiros desígnios de Herodes, sem passar por Jerusalém, eles voltaram diretamente para seus países.
            O quadragésimo dia do nascimento do Santo Menino estava se aproximando: a lei de Moisés prescrevia que todo primogênito deveria ser levado ao templo para ser oferecido a Deus e assim consagrado, e a mãe deveria ser purificada. José, na companhia de Jesus e Maria, dirigiu-se a Jerusalém para realizar a cerimônia prescrita. Ele ofereceu duas pombas como sacrifício e pagou cinco siclos de prata. Depois de inscreverem o filho nas tabelas do censo e pagarem o tributo, o santo casal voltou para a Galileia, para Nazaré, sua cidade.

Capítulo XI. O triste anúncio. – A matança dos inocentes. – A sagrada família parte para o Egito.
Surge, accipe puerum et matrem eius et fuge in Aegyptum et esto ibi usque dum dicam tibi. (O anjo do Senhor disse a José: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise”. – cf. Mt 2,13)

Vox in excelso audita est lamentationis, luctus, et fletus Rachel plorantis filios suos, et nolentis consolari super eis quia non sunt. (Um clamor se ouve em Ramá, de lamento, de choro e de amargura. É Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada porque eles já não existem. – Jr 31,15)

            A tranquilidade da sagrada família não seria de longa duração. Assim que José retornou à casa pobre em Nazaré, um anjo do Senhor apareceu-lhe em um sonho e lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo”.
            E isso era a pura verdade. O cruel Herodes, enganado pelos magos e furioso por ter perdido uma oportunidade tão boa, a fim de se livrar daquele que ele considerava um concorrente ao trono, concebeu o projeto infernal de mandar matar todas as crianças do sexo masculino com menos de dois anos de idade. Essa ordem abominável foi executada.
            Um grande rio de sangue correu pela Galileia. Então, o que Jeremias havia predito se tornou realidade: “Um clamor se ouve em Ramá, de lamento, de choro, de amargura. É Raquel que chora seus filhos e recusa ser consolada, porque eles já não existem!”. Esses pobres inocentes, cruelmente assassinados, foram os primeiros mártires da divindade de Jesus Cristo.
            José reconheceu a voz do anjo, mas não se permitiu qualquer reflexão sobre a partida apressada que tiveram que fazer, sobre as dificuldades de uma viagem tão longa e perigosa. Ele deve ter se lamentado de ter deixado seu pobre lar para atravessar os desertos e buscar asilo em um país que não conhecia. Sem esperar pelo dia de amanhã, no momento em que o anjo desapareceu, ele se levantou e correu para acordar Maria. Maria preparou apressadamente uma pequena provisão de roupas e mantimentos para levarem com eles. Enquanto isso, José preparou a jumenta, e eles partiram sem lamentação de sua cidade para obedecer à ordem de Deus. Aqui está, portanto, um pobre ancião, que torna vãs as horríveis conspirações do tirano da Galileia; é a ele que Deus confia o cuidado de Jesus e Maria.

Capítulo XII. Viagem desastrosa – Uma tradição.
Si persequentur vos in civitate ista, fugite in aliam. (Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra – Mt 10,23).

            Dois caminhos se apresentavam ao viajante que desejava ir ao Egito por terra. Uma delas passava por desertos povoados por animais ferozes, e os caminhos eram incômodos, longos e pouco movimentados. O outro passava por um local pouco frequentado, mas os habitantes do lugar eram muito hostis aos judeus. José, que temia especialmente os homens nessa fuga precipitada, escolheu o primeiro desses dois caminhos como o mais escondido.
            Tendo partido de Nazaré no mais escuro da noite, os cautelosos viajantes, cujo itinerário exigia que passassem primeiro por Jerusalém, percorreram os caminhos mais tristes e tortuosos por algum tempo. Quando era necessário atravessar alguma grande estrada, José, deixando Jesus e sua mãe no abrigo de uma rocha, observava o caminho para se certificar de que a saída não era guardada pelos soldados de Herodes. Tranquilizado por essa precaução, voltava para buscar seu precioso tesouro, e a sagrada família continuava sua jornada, entre ravinas e colinas. De vez em quando, faziam uma breve parada à beira de um riacho claro e, depois de uma refeição frugal, descansavam um pouco do esforço da viagem. Quando a noite chegava, era hora de se resignar a dormir sob o céu aberto. José tirou o manto e cobriu Jesus e Maria com ele para preservá-los da umidade da noite. Então, amanhã, ao amanhecer, a árdua jornada começaria novamente. Os santos viajantes, depois de passarem pela pequena cidade de Anata, seguiram para o lado de Ramla para descer às planícies da Síria, onde agora estariam livres das armadilhas de seus ferozes perseguidores. Contra seu costume, eles continuaram caminhando, apesar de já estar anoitecendo, a fim de chegarem mais cedo a um lugar seguro. José estava como que sondando o chão à frente dos outros. Maria, toda trêmula por causa dessa corrida noturna, lançava seus olhares inquietos para as profundezas dos vales e as sinuosidades das rochas. De repente, em uma curva, um grupo de homens armados apareceu para interceptar seu caminho. Era um bando de bandidos que estava assolando a região, cuja fama assustadora se estendia até bem longe. José prendeu a montaria de Maria e orou ao Senhor em silêncio, pois qualquer resistência era impossível. No máximo, alguém poderia ter a esperança de salvar a própria vida. O líder dos bandidos se separou de seus companheiros e avançou em direção a José para ver com quem tinha que lidar. A visão daquele velho sem armas, daquela criancinha dormindo no peito da mãe, tocou o coração sanguinário do bandido. Longe de fazer-lhes qualquer mal, ele estendeu a mão a José, oferecendo hospitalidade a ele e à sua família. Esse líder se chamava Dimas. A tradição nos diz que, trinta anos depois, ele foi preso por soldados e condenado a ser crucificado. Ele foi colocado na cruz do Calvário ao lado de Jesus, e é o mesmo que conhecemos pelo nome de bom ladrão.

Capítulo XIII. Chegada ao Egito – Prodígios ocorridos em sua entrada nessa terra – Aldeia de Matari – Moradia da Sagrada Família.
Ecce ascendet Dominus super nubem levem et commovebuntur simulacra Aegypti. (Vede o Senhor, montado em nuvem veloz, invadindo o Egito! […] e vacilam os deuses do Egito. – Is 19,1)

            Assim que amanheceu, os fugitivos, agradecendo aos bandidos que haviam se tornado seus anfitriões, retomaram sua jornada cheia de perigos. Diz-se que Maria, ao partir, disse estas palavras ao líder daqueles bandidos: “O que você fez por esta criança, um dia será amplamente recompensado”. Depois de passar por Belém e Gaza, José e Maria desceram para a Síria e, tendo encontrado uma caravana que partia para o Egito, juntaram-se a ela. Desse momento até o fim da viagem, eles não viram nada à sua frente além de um imenso deserto de areia, cuja aridez era interrompida apenas em raros intervalos por alguns oásis, ou seja, alguns trechos de terra fértil e verdejante. O cansaço deles foi redobrado durante a corrida por essas planícies ardentes pelo calor do sol. A comida era escassa, e muitas vezes faltava água. Quantas noites José, que era velho e pobre, foi empurrado para trás quando tentou se aproximar da fonte em que a caravana havia parado para matar a sede!
            Finalmente, após dois meses de uma jornada muito difícil, os viajantes entraram no Egito. De acordo com Sozomeno, desde o momento em que a Sagrada Família tocou essa terra antiga, as árvores baixaram seus galhos para adorar o Filho de Deus; os animais ferozes se reuniram ali, esquecendo seus instintos; e os pássaros cantaram em coro os louvores do Messias. De fato, se acreditarmos no que nos é dito por autores confiáveis, todos os ídolos da província, reconhecendo o vencedor do paganismo, caíram em pedaços. Assim, as palavras do profeta Isaías foram literalmente cumpridas quando ele disse: “Vede o Senhor, montado em nuvem veloz, invadindo o Egito! À sua presença, vacilam os deuses do Egito”.
            José e Maria, desejosos de chegar logo ao fim de sua jornada, não fizeram mais do que passar por Heliópolis, consagrada ao culto do sol, para ir a Matari, onde pretendiam descansar de suas canseiras.
            Matari é uma bela vila sombreada por sicômoros, a cerca de duas léguas do Cairo, a capital do Egito. José pretendia se estabelecer ali. Mas esse ainda não era o fim de seus problemas. Ele precisava buscar acomodação. Os egípcios não eram nada hospitaleiros, de modo que a sagrada família foi forçada a se abrigar por alguns dias no tronco de uma grande e velha árvore. Finalmente, após uma longa busca, José encontrou um cômodo modesto, no qual colocou Jesus e Maria.
            Essa casa, que ainda pode ser vista no Egito, era uma espécie de caverna, com seis metros de comprimento e três metros de largura. Também não havia janelas; a luz tinha de entrar pela porta. As paredes eram de um tipo de barro preto e sujo, cuja idade trazia a marca da miséria. À direita havia uma pequena cisterna, da qual José tirava água para o serviço da família.

Capítulo XIV. Dores. – Consolação e fim do exílio.
Cum ipso sum in tribulatione. (Perto dele estarei na desgraça – Sl 90(91),15).

            Assim que entrou nessa nova moradia, José retomou seu trabalho normal. Começou a mobiliar a casa: uma pequena mesa, algumas cadeiras, um banco, tudo obra de suas mãos. Depois, foi de porta em porta procurando trabalho para sustentar sua pequena família. Sem dúvida, ele sofreu muitas rejeições e passou por muitos desprezos humilhantes! Ele era pobre e desconhecido, e isso foi suficiente para que seu trabalho fosse recusado. Por sua vez, Maria, embora tivesse mil cuidados com seu Filho, corajosamente se entregou ao trabalho, ocupando uma parte da noite para compensar os ganhos pequenos e insuficientes de seu esposo. No entanto, em meio a suas tristezas, quanta consolação para José! Foi para Jesus que ele trabalhou, e o pão que o menino divino comeu foi ele que o adquiriu com o suor de seu rosto. E quando ele voltava à noite, exausto e oprimido pelo calor, Jesus sorria ao vê-lo chegar e o acariciava com suas mãozinhas. Muitas vezes, com o preço das privações que impunha a si mesmo, José conseguia obter algumas economias, e que alegria ele sentia por poder usá-las para suavizar a condição do menino divino! Ora eram algumas tâmaras, ora alguns brinquedos adequados para sua idade, que o piedoso carpinteiro trouxe para o Salvador dos homens. Oh, como eram doces as emoções do bom velhinho ao contemplar o rosto radiante de Jesus! Quando chegava o sábado, dia de descanso e consagrado ao Senhor, José tomava a criança pela mão e guiava seus primeiros passos com uma solicitude verdadeiramente paternal.
            Enquanto isso, o tirano que reinava sobre Israel morreu. Deus, cujo braço todo-poderoso sempre pune os culpados, enviou-lhe uma doença cruel, que rapidamente o levou à sepultura. Traído por seu próprio filho, comido vivo por vermes, Herodes morreu, levando consigo o ódio dos judeus e a maldição da posteridade.

Capítulo XV. O novo anúncio. – Retorno à Judeia. – Uma tradição relatada por São Boaventura.
Ex Aegypto vocavi filium meum. (Do Egito chamei o meu filho. – Os 11,1)

            Há sete anos José estava no Egito, quando o Anjo do Senhor, o mensageiro ordinário da vontade do Céu, apareceu-lhe novamente durante o sono e disse-lhe: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois já morreram aqueles que queriam matar o menino”. Sempre atento à voz de Deus, José vendeu sua casa e seus móveis e organizou tudo para partir. Em vão os egípcios, encantados com a bondade de José e a gentileza de Maria, fizeram pedidos sinceros para retê-lo. Em vão lhe prometeram a abundância de tudo o que era necessário para a vida, José foi inflexível. As lembranças de sua infância, os amigos que tinha na Judeia, a atmosfera pura de sua terra natal, falavam muito mais ao seu coração do que a beleza do Egito. Além disso, Deus havia falado, e nada mais era necessário para que José decidisse retornar à terra de seus antepassados.
            Alguns historiadores são da opinião de que a sagrada família fez parte da viagem por mar, porque levava menos tempo e eles tinham um grande desejo de rever sua terra natal em breve. Assim que desembarcaram em Ascalônia, José soube que Arquelau havia sucedido seu pai Herodes no trono. Essa era uma nova fonte de inquietação para José. O anjo não lhe havia dito em que parte da Judeia ele deveria se estabelecer. Ele deveria fazer isso em Jerusalém, na Galileia ou na Samaria? José, cheio de ansiedade, orou ao Senhor para que lhe enviasse seu mensageiro celestial durante a noite. O anjo ordenou que ele fugisse de Arquelau e se retirasse para a Galileia. José, então, não teve mais o que temer e tomou calmamente o caminho de Nazaré, que havia abandonado sete anos antes.
            Que nossos dedicados leitores não se arrependam de ouvir o seráfico Doutor São Boaventura sobre esse ponto da história: “Eles estavam no ato de partir: e José foi primeiro com os homens, e sua mãe foi com as mulheres (que tinham vindo, elas e eles, como amigos da sagrada família para acompanhá-los durante um trecho do caminho). E quando estavam fora da porta, José fez com que os homens voltassem e não os deixou mais acompanhá-lo. Então alguns daqueles bons homens, compadecidos da pobreza deles, chamaram o Menino e lhe deram algum dinheiro para as despesas. O Menino tinha vergonha de recebê-los; mas, por causa da pobreza, estendeu a mão e recebeu o dinheiro com vergonha e agradeceu. E o mesmo fizeram outras pessoas. Aquelas honradas matronas o chamaram novamente e fizeram o mesmo; a mãe não ficou menos envergonhada do que a criança, mas ainda assim agradeceu humildemente.”
            Tendo se despedido daquela companhia cordial e renovado seus agradecimentos e saudações, a sagrada família voltou seus passos em direção à Judeia.

Capítulo XVI. Chegada de José a Nazaré. – Vida doméstica com Jesus e Maria.
Constituit eum dominum domus suae. (Fez dele o chefe da sua casa – Sl 104(105),20)

            Os dias de exílio finalmente haviam terminado. José pôde ver novamente sua terra natal, que lhe trouxe as melhores lembranças. Seria preciso amar o próprio país como os judeus o amavam naquela época para entender as doces impressões que encheram a alma de José, quando a visão de Nazaré apareceu ao longe. O humilde patriarca acelerou o passo da montaria de Maria, e eles logo chegaram às ruas estreitas de sua querida cidade.
            Os nazarenos, que não sabiam a causa da partida do piedoso trabalhador, viram seu retorno com alegria. Os chefes de família vieram dar as boas-vindas a José e apertar a mão do velho, cuja cabeça tinha encanecido longe de sua terra natal. As filhas saudaram a humilde Virgem, cuja graça era ainda maior pelo cuidado com que ela cercava seu filho divino. O amado Jesus viu os meninos de sua idade se aproximarem dele e, pela primeira vez, ouviu a língua de seus antepassados em vez da amarga língua do exílio.
            Mas o tempo e o abandono haviam reduzido a pobre casa de José a um péssimo estado. A grama selvagem havia crescido sobre as paredes, e os cupins haviam se apossado dos velhos móveis da sagrada família.
            Algumas das terras ao redor da casa foram vendidas e, com seu preço, foram comprados os utensílios domésticos mais necessários. Os parcos recursos do casal foram empregados nas compras mais indispensáveis. José ficou sem nada além de sua oficina e de seus braços. Mas a estima que todos sentiam pelo santo homem, a confiança que as pessoas tinham em sua boa fé e em sua capacidade, fez com que, pouco a pouco, o trabalho e os clientes voltassem para ele, e o corajoso carpinteiro logo retomou seu trabalho habitual. Ele havia envelhecido em seu trabalho, mas seu braço ainda era forte, e seu ardor ainda aumentava depois de ter sido encarregado de alimentar o Salvador da humanidade.
            Jesus estava crescendo em idade e sabedoria. Da mesma forma que José guiou seus primeiros passos, quando ele ainda era uma criança, ele também deu a Jesus seu primeiro conhecimento do trabalho. Ele segurou sua mãozinha e a orientou, ensinando-o a desenhar linhas e a manusear a plaina. Ele ensinou a Jesus as dificuldades e a prática do ofício. E o Criador do mundo permitiu-se ser guiado por seu servo fiel, que ele havia escolhido como pai!
            José, que era assíduo nos ofícios do templo sagrado, assim como era diligente nos deveres de seu trabalho; observava estritamente a lei de Moisés e a religião de seus antepassados. Assim, ele nunca era visto trabalhando em um dia festivo, pois havia entendido que um dia por semana nunca é demais para orar ao Senhor e agradecer-lhe por seus favores. Todos os anos, nas três grandes festas judaicas, Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos, ele ia ao templo em Jerusalém na companhia de Maria. Normalmente, ele deixava Jesus em Nazaré, porque se cansaria demais pela longa viagem; e sempre costumava pedir a um de seus vizinhos para que tomasse conta da criança na ausência de seus pais.

Capítulo XVII. Jesus vai com Maria, sua mãe, e São José para celebrar a Páscoa em Jerusalém. – Ele se perdeu e foi encontrado depois de três dias.
Fili, quid fecisti nobis sic? Ecce pater tuus et ego dolentes quaerebamus te. Quid est quod me quaerebatis? Nesciebatis quia in his quae Patris mei sunt oportet me esse? (Filho, por que agiste assim conosco? Olha, teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura! Ele respondeu: Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devo estar naquilo que é de meu Pai? – Lc 2,48-49)

            Quando Jesus completou doze anos de idade e a festa da Páscoa estava se aproximando, José e Maria o consideraram forte o suficiente para suportar a viagem e o levaram consigo para Jerusalém. Eles ficaram cerca de sete dias na cidade santa para celebrar a Páscoa e realizar os sacrifícios ordenados pela lei.
            Quando a festa da Páscoa terminou, eles retomaram a estrada de volta para Nazaré, em meio a seus parentes e amigos. A caravana era muito numerosa. Na simplicidade de seus costumes, as famílias da mesma cidade ou aldeia voltavam para suas casas em alegres grupos, nos quais os velhos conversavam seriamente com os velhos, as mulheres com as mulheres, enquanto os meninos corriam e brincavam juntos pelo caminho. Assim, José, não vendo Jesus perto de si, acreditava que ele estava com sua mãe ou com os meninos de sua idade, como era natural. Maria também andava entre suas companheiras, igualmente convencida de que o menino estava seguindo os outros. Quando chegou a noite, a caravana parou na pequena cidade de Machmas para passar a noite. José foi procurar Maria, mas qual não foi a surpresa e a tristeza deles quando perguntaram um ao outro onde estava Jesus? Nem um nem o outro o tinham visto depois de sair do templo; os meninos, por sua vez, não podiam dar notícias dele. Ele não estava com eles.
            Imediatamente José e Maria, apesar do cansaço, partiram novamente para Jerusalém. Pálidos e inquietos, eles refizeram o caminho que já haviam percorrido naquele mesmo dia. Os arredores ecoavam com seus gritos de pesar; José chamava por Jesus, mas ele não respondia. Ao amanhecer, chegaram a Jerusalém, onde, segundo o evangelho, passaram três dias inteiros procurando seu amado filho. Como o coração de José sofreu com isso! E quanto ele teve de se repreender por um momento de distração! Finalmente, no final do terceiro dia, esses pais desolados entraram no templo, mais para invocar a luz do alto do que com a esperança de encontrar Jesus ali. Mas qual não foi a surpresa e a admiração deles ao ver o menino divino no meio dos doutores, maravilhados com a sabedoria de suas conversas, com as perguntas e respostas que ele lhes dava! Maria, cheia de alegria por ter encontrado seu filho, não pôde, no entanto, deixar de expressar-lhe a inquietação que a afligia: “Filho, por que agiste assim conosco? Olha, teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura!” Ele respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devo estar naquilo que é de meu Pai?” O evangelho acrescenta que José e Maria não entenderam imediatamente essa resposta. Felizes por terem encontrado Jesus, eles voltaram tranquilamente para sua pequena casa em Nazaré.

Capítulo XVIII. Continuação da vida doméstica da sagrada família.
Et erat subditus illis. (E Jesus lhes era obediente. – Lc 2,51)

            Depois de relatar os principais atos da vida de Jesus até a idade de doze anos, neste ponto o santo Evangelho conclui toda a vida privada de Jesus até a idade de trinta anos com estas breves palavras: “Jesus era obediente a Maria e José, et erat subditus illis”. Essas palavras, embora ocultem de nossos olhos a glória de Jesus, revelam num aspecto magnífico a grandeza de José. Se o educador de um príncipe ocupa uma dignidade honrosa no estado, qual deve ser a dignidade de José, enquanto lhe foi confiada a educação do Filho de Deus! Jesus, cuja força havia crescido com o passar dos anos, tornou-se aluno de José. Ele o acompanhou em seus dias de trabalho e, sob sua orientação, aprendeu o ofício de carpinteiro. São Cipriano, bispo de Cartago, escreveu por volta do ano 250 da era cristã que os arados feitos pelas mãos do Salvador ainda eram guardados com veneração. Sem dúvida, foi José quem forneceu o modelo e quem dirigiu a mão do Criador de todas as coisas em sua oficina.
            Jesus queria dar aos homens o exemplo de obediência, mesmo nas menores circunstâncias da vida. Assim, em Nazaré, ainda pode ser visto um poço onde José enviava o menino divino para tirar água para as necessidades da família.
            Não temos detalhes sobre esses anos laboriosos que José passou em Nazaré com Jesus e Maria. O que podemos dizer, sem medo de nos enganarmos, é que José trabalhou incansavelmente para ganhar seu pão. A única distração que ele se permitia era conversar bem e frequentemente com o Salvador, cujas palavras permaneceram profundamente gravadas em seu coração.
            Aos olhos dos homens, Jesus passava por filho de José. E esse, cuja humildade era tão grande quanto sua obediência, guardava dentro de si o mistério que deveria proteger com sua presença. “José”, diz Bossuet, “via Jesus e ficava em silêncio; ele o apreciava e calava; contentava-se apenas com Deus, sem compartilhar sua glória com os homens. Ele cumpriu sua vocação, pois assim como os apóstolos eram ministros de Jesus Cristo conhecido, José era o ministro e companheiro de sua vida oculta”.

Capítulo XIX. Últimos dias de São José. Sua preciosa agonia.
O nimis felix, nimis o beatus Cuius extremam vigiles ad horam Christus et Virgo simul astiterunt Ore sereno! (Ó alma piedosa e feliz, que, no último momento de teu exílio, desfrutaste ao lado de Jesus e Maria o belo semblante. – A Santa Igreja no ofício de São José).

            José estava chegando ao seu octogésimo ano, e Jesus não tardaria a deixar sua casa para receber o batismo de João Batista, quando Deus chamou seu fiel servo para si. Trabalhos e fadigas de todos os tipos haviam desgastado o robusto estado de espírito de José, e ele mesmo sentiu que seu fim estava próximo. Afinal de contas, sua missão na Terra estava concluída, e era justo que ele finalmente recebesse a recompensa que suas virtudes mereciam.
            Por um favor muito especial, um anjo veio avisá-lo de que sua morte se aproximava. Ele estava pronto para comparecer diante de Deus. Toda a sua vida tinha sido apenas uma série de atos de obediência à vontade divina e ele pouco se importava com a vida, pois era uma questão de obedecer a Deus que o chamava para a vida feliz. De acordo com o testemunho unânime da tradição, José não morreu em sofrimentos agudos da doença. Ele morreu suavemente, como uma chama cujo alimento acabou.
            Deitado em seu leito de morte, com Jesus e Maria ao seu lado, José ficou arrebatado em êxtase por vinte e quatro horas. Seus olhos então viram claramente as verdades que sua fé havia acreditado até então sem entender. Ele penetrou no mistério de Deus feito homem e na grandeza da missão que Deus havia confiado a ele, um pobre mortal. Ele testemunhou em espírito as tristezas da paixão do Salvador. Quando acordou, seu rosto estava iluminado e como que transfigurado por uma beleza celestial. Um perfume delicioso encheu o quarto em que ele estava deitado e também se espalhou do lado de fora, anunciando assim aos vizinhos do santo homem que sua alma pura e bela estava prestes a passar para um mundo melhor.
            Em uma família de almas pobres e simples que se amam com aquele amor puro e cordial que dificilmente pode ser encontrado no seio da grandeza e da abundância, quando essas pessoas desfrutaram os anos de peregrinação em santa união e que, assim como compartilhavam as alegrias domésticas, também compartilhavam as tristezas santificadas pelo conforto religioso, se acontecer de essa bela paz ser obscurecida pela separação de um membro querido, oh, como o coração se sente angustiado com a separação!
            Jesus tinha como Deus um pai no céu que lhe comunicou sua substância e natureza divinas desde toda a eternidade, fazendo com que a glória celestial de sua pessoa na Terra fosse eterna (embora velada por restos mortais); Maria teve Jesus na Terra que encheu seu coração de paraíso. Quem, no entanto, negaria que Jesus e Maria, estando agora perto do Patriarca moribundo e deixando até mesmo a ternura de seus corações à mercê da natureza, não sofreram por terem que se separar temporariamente de seu fiel companheiro na Terra? Maria não podia esquecer os sacrifícios, as dores, as dificuldades que José teve de sofrer por ela nas dolorosas viagens a Belém e ao Egito. É verdade que José, por estar continuamente em sua companhia, era compensado pelo que sofria; mas se isso era um argumento de conforto para alguém, não era uma razão que dispensava o terno coração da outra de um sentimento de gratidão. José a havia servido não apenas com todo o afeto de um esposo, mas também com toda a fidelidade de um servo e a humildade de um discípulo, venerando nela a Rainha do céu, a Mãe de Deus. Ora, Maria certamente não havia deixado passar despercebidos tantos sinais de veneração, obediência e estima, e não podia deixar de sentir profunda e verdadeira gratidão por José.
            E Jesus, que em matéria de amor certamente não deveria ser inferior a nenhum deles, uma vez que havia disposto nos decretos de sua divina Providência que José deveria ser seu guardião e protetor na Terra, uma vez que essa proteção também teve de custar a José tantos sofrimentos e trabalhos, Jesus também deve ter sentido em seu coração mais amoroso os mais doces sentimentos de grata lembrança. Ao contemplar aqueles braços magros dispostos em cruz sobre seu peito cansado, ele se lembrou de quantas vezes eles se abriram para abraçá-lo quando ele estava chorando em Belém, como trabalharam para levá-lo ao Egito, como se desgastaram no trabalho para manter-lhe o pão da vida. Quantas vezes aqueles lábios queridos se aproximaram reverentemente para lhe imprimir beijos amorosos ou para aquecer seus membros enrijecidos no inverno; e aqueles olhos, que estavam prestes a se fechar à luz do dia, quantas vezes se abriram para chorar, honrando os sofrimentos dele e de Maria, quando ela teve de contemplá-lo fugindo para o Egito, mas especialmente quando por três dias ela o chorou perdido em Jerusalém. Essas evidências de amor inabalável certamente não foram esquecidas por Jesus naqueles últimos momentos da vida de José. Por isso, imagino que Maria e Jesus, na expansão do paraíso naquelas últimas horas da vida de José, também tenham honrado, como no túmulo de seu amigo Lázaro, com o derramamento das mais puras lágrimas, aquele último adeus solene. Ah, sim, José tinha o paraíso diante de seus olhos! Ele virou o olhar para um lado e viu a aparência de Maria, segurou as mãos santíssimas dela, recebeu seus últimos cuidados e ouviu suas palavras de consolo. Voltou os olhos para o outro lado e encontrou o olhar majestoso e onipotente de Jesus, e sentiu as mãos divinas segurando sua cabeça, enxugando seu suor e recolhendo de seus lábios consolos, ações de graças, bênçãos e promessas. E me parece que Maria estava dizendo: “José, você está nos deixando; você terminou a peregrinação do exílio, você me precederá em sua paz, descendo primeiro ao seio de nosso pai Abraão; oh, José, como sou grata pela doce companhia que você me fez, pelos bons exemplos que me deu, pelo cuidado que teve comigo e com minhas coisas e pelos sofrimentos mais dolorosos que sofreu por minha causa! Oh, você está me deixando, mas viverá sempre em minha memória e em meu coração. Tenha coragem, José, quoniam appropinquat redemptio nostra [porque se aproxima a nossa redenção]”. E parece-me que Jesus disse: “Meu José, você morre, mas eu também morrerei e, se eu morrer, você deve estimar a morte e amá-la como uma recompensa. José, curto é o tempo de escuridão e expectativa. Diga isso a Abraão e Isaque, que ansiavam por me ver e não pudeeram; diga isso àqueles que esperaram muitos anos por minha vinda naquela escuridão e fale-lhes da libertação vindoura; diga isso a Noé, a José, a Davi, a Judite, a Jeremias, a Ezequiel, a todos os Pais que precisam esperar mais três anos, e então a Hóstia e o Sacrifício serão consumidos e a iniquidade do mundo será eliminada. Enquanto isso, após esse curto período de tempo, você será revivido, glorioso e belo, e comigo, mais glorioso e mais belo, você se elevará na embriaguez do triunfo. Fique feliz, querido guardião da minha vida, você foi bom e generoso comigo, mas ninguém pode me vencer em gratidão.” A Santa Igreja expressa os últimos cuidados amorosos de Jesus e Maria para com São José com estas palavras: “Cuius extremas vigiles ad horas Christus et Mater simul astiterunt ore sereno.” Nas últimas horas de São José, com um semblante sereno, Jesus e Maria o assistiram com a mais amorosa vigilância.

(continua)




Vida de São José, esposo de Maria Santíssima, pai putativo de Jesus Cristo (1/3)

São José é patrono da Igreja e também copatrono da Congregação Salesiana. Desde o início, Dom Bosco quis associá-lo como protetor da nascente obra em favor dos jovens. Certo de sua poderosa intercessão, quis difundir seu culto e escreveu uma vida com esse objetivo, mais para instruir do que para meditar. Desejamos apresentar a seguir.

Prefácio

            Em uma época em que a devoção ao glorioso pai putativo de Jesus, São José, parece ser tão universal, acreditamos que não seria fora de propósito para nossos leitores se fosse publicado hoje um fascículo sobre a vida desse santo.
            As dificuldades encontradas para localizar os fatos particulares da vida desse santo nos escritos antigos também não devem diminuir em nada nossa estima e veneração por ele; pelo contrário, no silêncio sagrado com que sua vida é cercada, encontramos algo misterioso e grandioso. São José recebeu de Deus uma missão totalmente oposta à dos apóstolos (Bossuet). Estes últimos deviam tornar Jesus conhecido; José devia mantê-lo escondido; eles deviam ser tochas que o mostravam ao mundo, aquele um véu que o cobria. Então, José não era para si mesmo, mas para Jesus Cristo.
            Portanto, estava na economia da Divina Providência que São José se mantivesse oculto, mostrando-se apenas quando era necessário para autenticar a legitimidade do casamento com Maria e para eliminar qualquer suspeita a respeito de Jesus. Mas, embora não possamos penetrar no santuário do coração de José e admirar as maravilhas que Deus realizou ali, argumentamos que, para a glória de seu protegido divino, para a glória de sua esposa celestial, José teve de reunir em si mesmo um monte de graças e dons celestiais.
            Uma vez que a verdadeira perfeição cristã consiste em parecer tão grande diante de Deus quanto o menor diante dos homens, São José, que passou sua vida na mais humilde obscuridade, é capaz de fornecer o modelo daquelas virtudes que são como a flor da santidade, a santidade interior, de modo que o que Davi escreveu sobre a esposa sagrada pode ser dito muito bem de São José: Omnis gloria eius filia Regis ab intus [Toda a glória da filha do Rei está no interior] (Sl 44(45),14).
            São José é universalmente reconhecido e invocado como protetor dos moribundos, e isso por três razões: 1º pelo amoroso império que adquiriu sobre o Coração de Jesus, juiz dos vivos e dos mortos e seu filho putativo; 2º pelo extraordinário poder que Jesus Cristo lhe concedeu para vencer os demônios que assaltam os moribundos, e isso em recompensa pelo fato de o santo tê-lo salvado uma vez das armadilhas de Herodes; 3º pela sublime honra que José gozou ao ser assistido na hora da morte por Jesus e Maria. Que novo motivo importante há para que nos inflamemos em sua devoção?
            Ansiosos, portanto, por fornecer aos nossos leitores as principais características da vida de São José, procuramos entre as obras já publicadas algumas que servissem a esse propósito. Muitas delas já foram publicadas há alguns anos, mas ou porque eram muito volumosas ou muito estranhas em sua sublimidade ao estilo popular, ou porque careciam de dados históricos e foram escritas com o objetivo de servir como meditação em vez de instrução, elas não se adequavam ao nosso propósito. Aqui, portanto, reunimos do Evangelho e de alguns dos autores mais abalizados as principais informações sobre a vida desse santo, com algumas reflexões apropriadas dos santos Padres.
            Esperamos que a veracidade da narrativa, a simplicidade do estilo e a autenticidade das informações tornem agradável esse pequeno esforço. Se a leitura deste livreto servir para conseguir mais um devoto para o casto esposo de Maria, já estaremos muito satisfeitos.

Capítulo I. Nascimento de São José. Seu lugar de origem.
Ioseph, autem, cum esset iustus (São José era um homem justo – cf. Mt 1,19)

            A cerca de duas léguas [9,7 km] de Jerusalém, no cume de uma colina, cujo solo avermelhado está repleto de olivais, fica uma pequena cidade famosa para sempre por causa do nascimento do menino Jesus, a cidade de Belém, de onde a família de Davi tirou sua origem. Nessa pequena cidade, por volta do ano 3950 do mundo, nasceu aquele que, nos elevados desígnios de Deus, se tornaria o guardião da virgindade de Maria e o pai putativo do Salvador da humanidade.
            Seus pais lhe deram o nome de José, que significa aumento, como se quisessem nos dar a entender que ele foi enriquecido com os dons de Deus e generosamente preenchido com todas as virtudes desde o seu nascimento.
            Dois evangelistas relataram a genealogia de José. Seu pai tinha o nome de Jacó, de acordo com São Mateus (Mt 1,16), e de acordo com São Lucas, ele se chamava Heli (Lc 3,23); mas a opinião mais comum e mais antiga é a que nos foi transmitida por Júlio Africano, que escreveu no final do segundo século da era cristã. Fiel ao que lhe foi dito pelos próprios parentes do Salvador, ele nos conta que Jacó e Eli eram irmãos, e que Eli morreu sem filhos, Jacó casou-se com sua viúva, conforme prescrito pela lei de Moisés, e desse casamento nasceu José.
            Da linhagem real de Davi, descendente de Zorobabel, que trouxe o povo de Deus de volta do cativeiro da Babilônia, os pais de José estavam longe do antigo esplendor de seus ancestrais em termos de riqueza temporal. De acordo com a tradição, seu pai era um pobre trabalhador que ganhava seu sustento diário com o suor de seu rosto. Mas Deus, que não olha para a glória que é desfrutada diante dos homens, mas para o mérito da virtude aos seus próprios olhos, escolheu-o para ser o guardião da Palavra que desceu sobre a Terra. Além disso, a profissão de artesão, que em si mesma não tem nada de vergonhosa, era muito honrada entre o povo de Israel. De fato, todo israelita era um artesão, porque todo pai de família, independentemente de sua fortuna e da altura de sua posição, era obrigado a fazer com que seu filho aprendesse um ofício, a menos que, segundo a lei, ele quisesse torná-lo um ladrão.
            Pouco sabemos sobre a infância e a juventude de José. Da mesma forma que o garimpeiro, para encontrar o ouro que fará sua fortuna, é obrigado a lavar a areia do rio a fim de extrair dela o metal precioso que é encontrado apenas em partículas muito pequenas, também somos obrigados a procurar no Evangelho as poucas palavras que o Espírito Santo deixou espalhadas aqui e ali sobre José. Mas, assim como o garimpeiro, ao lavar seu ouro, dá a ele todo o seu esplendor, refletindo sobre as palavras do Evangelho, achamos apropriado a São José o mais belo elogio que pode ser dado a uma criatura. O livro sagrado se contenta em nos dizer que ele era um homem justo. Oh, palavra admirável que, por si só, expressa muito mais do que discursos inteiros! José era um homem justo e, em virtude dessa justiça, ele deveria ser julgado digno do sublime ministério de pai putativo de Jesus.
            Seus piedosos pais tiveram o cuidado de educá-lo na prática austera dos deveres da religião judaica. Sabendo o quanto a educação precoce influencia o futuro das crianças, eles se esforçaram para fazer com que ele amasse e praticasse a virtude logo que sua jovem inteligência fosse capaz de apreciá-la. Além disso, se é verdade que a beleza moral se reflete no exterior, bastava olhar para a querida pessoa de José para ler em suas feições a candura de sua alma. De acordo com autores autorizados, seu rosto, sua testa, seus olhos e todo o seu corpo exalavam a mais doce pureza e faziam com que ele se assemelhasse a um anjo descido sobre a terra.

(“Havia em José um exaltado recato, uma modéstia, uma suprema prudência; era excelente em piedade para com Deus e brilhava com uma maravilhosa beleza de corpo.” Eusébio de Cesareia, lib. 7 De praep. Evang. apud Engelgr. in Serm. s. Joseph).

Capítulo II. A juventude de José – Mudança para Jerusalém – Voto de castidade.
Bonum est viro cum portaverit iugum ab adolescentia sua. (É uma coisa boa para um homem ter carregado o jugo desde a adolescência. – cf. Lm 3,27)

            Assim que suas forças lhe permitiram, José ajudou seu pai em seu trabalho. Ele aprendeu o ofício de marceneiro, que, segundo a tradição, era também o ofício de seu pai. Quanta aplicação, quanta docilidade ele teve de usar em todas as lições que recebeu de seu pai!
            Seu aprendizado terminou exatamente quando Deus permitiu que seus pais lhe fossem tirados pela morte. Ele lamentou aqueles que haviam cuidado de sua infância, mas suportou essa dura provação com a resignação de um homem que sabe que nem tudo termina nesta vida mortal e que os justos são recompensados em um mundo melhor. Agora que não era mais retido em Belém, ele vendeu sua pequena propriedade e foi se estabelecer em Jerusalém. Ele esperava encontrar mais trabalho lá do que em sua cidade natal. Por outro lado, ele se aproximou do templo, onde sua piedade o atraía continuamente.
            Lá, José passou os melhores anos de sua vida entre o trabalho e a oração. Dotado de uma probidade perfeita, ele não tentava ganhar mais do que seu trabalho merecia, ele mesmo estabelecia o preço com uma boa fé admirável, e seus clientes nunca se sentiam tentados a pechinchar no preço, porque conheciam sua honestidade. Embora estivesse totalmente concentrado em seu trabalho, nunca permitiu que seus pensamentos se afastassem de Deus. Ah! Se alguém pudesse aprender com José essa preciosa arte de trabalhar e orar ao mesmo tempo, sem dúvida obteria o dobro do lucro; assim, garantiria a vida eterna ao ganhar o pão de cada dia com muito mais satisfação e lucro!
            De acordo com as tradições mais respeitáveis, José pertencia à seita dos essênios, uma seita religiosa que existia na Judeia na época em que foi conquistada pelos romanos. Os essênios professavam maior austeridade do que os outros judeus. Suas principais ocupações eram o estudo da lei divina e a prática do trabalho e da caridade e, em geral, eram admirados pela santidade de suas vidas. José, cuja alma pura abominava a mais leve impureza, havia se juntado a uma classe do povo cujas regras correspondiam tão bem às aspirações de seu coração; ele havia até mesmo, como diz o venerável Beda, feito um voto formal de castidade perpétua. E o que nos confirma nessa crença é a afirmação de São Jerônimo, que nos diz que José nunca se importou com o casamento antes de se tornar esposo de Maria.
            Por esse caminho obscuro e oculto, José se preparou, sem saber, para a sublime missão que Deus havia reservado para ele. Sem nenhuma ambição além de cumprir fielmente a vontade divina, ele vivia longe do barulho do mundo, dividindo seu tempo entre o trabalho e a oração. Assim tinha sido sua juventude, assim também, em sua opinião, era seu desejo passar a velhice. Mas Deus, que ama os humildes, tinha outros cuidados para com seu servo fiel.

Capítulo III. O casamento de São José.
Faciamus ei adiutorium simile sibi. (Façamos para ele uma auxiliar que lhe corresponda. – cf. Gn 2,18)

            José estava entrando em seu quinquagésimo ano de vida quando Deus o tirou da vida pacífica que levava em Jerusalém. Havia no templo uma jovem virgem consagrada ao Senhor desde a infância por seus pais.
            Da linhagem de Davi, ela era filha dos dois santos anciãos Joaquim e Ana, e seu nome era Maria. Seu pai e sua mãe haviam morrido há muitos anos, e o ônus de sua educação foi deixado inteiramente a cargo dos sacerdotes de Israel. Quando ela atingiu a idade de catorze anos, a idade fixada pela lei para o casamento de jovens donzelas, o Sumo Sacerdote teve o cuidado de conseguir para Maria um noivo digno de seu nascimento e de sua alta virtude. Mas um obstáculo se apresentou: Maria havia feito um voto de virgindade ao Senhor.
            Ela respondeu respeitosamente que, como havia feito o voto de virgindade, não poderia quebrar sua promessa para se casar. Essa resposta deixou as ideias do Sumo Sacerdote muito desconcertadas.
            Sem saber como conciliar o respeito devido aos votos feitos a Deus com o costume mosaico que impunha o casamento a todas as moças de Israel, ele reuniu os anciãos e consultou o Senhor ao pé do tabernáculo da aliança. Tendo recebido as inspirações do Céu e convencido de que algo extraordinário estava oculto nessa questão, o Sumo Sacerdote resolveu convocar os muitos parentes de Maria, a fim de escolher entre eles aquele que deveria ser o feliz noivo da abençoada Virgem.
            Portanto, todos os membros solteiros da família de Davi foram convocados ao templo. José, embora mais velho, estava com eles. O sumo sacerdote anunciou-lhes que se tratava de lançar sortes para dar um noivo a Maria, e que a escolha seria feita pelo Senhor, e ordenou que todos estivessem no templo sagrado no dia seguinte com uma vara de amendoeira. A vara seria colocada sobre o altar, e aquele cuja vara tivesse florescido seria o favorito do Altíssimo para ser o consorte da Virgem.
            No dia seguinte, uma grande multidão de jovens foi ao templo com seus ramos de amendoeira, e José foi com eles; mas, seja por espírito de humildade ou por causa do voto de virgindade que havia feito, em vez de apresentar seu ramo, ele o escondeu sob o manto. Todos os outros ramos foram colocados sobre a mesa, os jovens saíram com o coração cheio de esperança, e José ficou em silêncio e se reuniu com eles. O templo estava fechado e o sumo sacerdote adiou a reunião para amanhã. O novo sol mal havia nascido, e os jovens já estavam impacientes para saber seu destino.
            Quando chegou a hora marcada, as portas sagradas se abriram e o pontífice apareceu. Todos se aglomeraram para ver o resultado. Nenhuma vara havia florescido.
            O sumo sacerdote prostrou-se com o rosto em terra diante do Senhor e o questionou sobre sua vontade e se, por causa de sua falta de fé ou porque ele não havia entendido sua voz, o sinal prometido não havia aparecido nos ramos. E Deus respondeu que o sinal prometido não havia se concretizado porque, entre aquelas hastes tenras, faltava o galho daquele que era desejado do céu; que ele buscasse e visse o sinal cumprido. Logo foi feita uma busca pela pessoa que havia roubado o galho.
            O silêncio, o rubor casto que corou as faces de José, rapidamente revelou seu segredo. Conduzido diante do santo pontífice, ele confessou a verdade, mas o sacerdote vislumbrou o mistério e, levando José à parte, perguntou-lhe por que havia desobedecido assim.
            José respondeu humildemente que há muito tempo tinha em mente manter esse perigo longe de si mesmo, que há muito tempo estava decidido em seu coração a não se casar com nenhuma moça, e que lhe parecia que o próprio Deus o havia confortado em seu santo propósito, e que ele mesmo era indigno demais de uma moça tão santa como ele sabia que Maria era; portanto, ela deveria ser entregue a outro que fosse mais santo e mais rico.
            Então, o sacerdote começou a admirar o santo conselho de Deus e sem mais disse a José: “Tenha coragem, filho, deite seu ramo como os outros e aguarde o julgamento divino. Certamente, se ele o eleger, você encontrará em Maria tanta santidade e perfeição acima de todas as outras donzelas que não precisará usar orações para persuadi-la de seu propósito. Pelo contrário, ela mesma lhe pedirá o que você deseja e o chamará de irmão, guardião, testemunha, esposo, mas jamais de marido.
            José, seguro da vontade do Senhor pelas palavras do Sumo Pontífice, depôs seu ramo com os outros e retirou-se em santo recolhimento para orar.
            No dia seguinte, a reunião em torno do Sumo Sacerdote estava novamente formada, e eis que no ramo de José havia flores brancas e espessas com folhas macias e tenras.
            O sumo sacerdote mostrou tudo aos jovens reunidos e anunciou-lhes que Deus havia escolhido José, filho de Jacó, para esposo de Maria, filha de Joaquim, ambos da casa e da família de Davi. Ao mesmo tempo, ouviu-se uma voz que dizia: “Ó meu fiel servo José! A ti está reservada a honra de desposar Maria, a mais pura de todas as criaturas; obedece a tudo ao que ela te disser”.
            José e Maria, reconhecendo a voz do Espírito Santo, aceitaram essa decisão e consentiram em um casamento que não prejudicaria a virgindade deles.
            De acordo com São Jerônimo, o casamento foi celebrado no mesmo dia com a maior simplicidade.

Uma tradição da História do Carmelo nos diz que, entre os jovens reunidos para essa ocasião, havia um rapaz bonito, nobre e animado que aspirava ardentemente à mão de Maria. Quando viu o ramo de José florescer e suas esperanças se dissiparem, ele ficou atônito e atordoado. Mas naquele tumulto de afeto, o Espírito Santo desceu dentro dele e subitamente mudou seu coração. Ele ergueu o rosto, sacudiu o ramo inútil e com um fogo incomum e disse: “Eu não era para ela. Ela não era para mim. E eu nunca serei de outra. Serei de Deus”. Ele quebrou o ramo e o jogou para longe de si mesmo, dizendo: “Leve com você todo pensamento de casamento. Para o Carmelo, para o Carmelo com os filhos de Elias. Lá eu terei a paz que até agora seria impossível para mim na cidade.” Dito isso, ele foi para o Carmelo e pediu para ser aceito também entre os filhos dos Profetas. Ele foi aceito, progrediu rapidamente em espírito e virtude e tornou-se profeta. Ele é aquele Ágabo que previu as cadeias e a prisão do Apóstolo São Paulo. Antes de todos, ele fundou um santuário para Maria no Monte Carmelo. A santa Igreja celebra sua memória em seus registros, e os filhos do Carmelo o têm como irmão.

            José, segurando a mão da humilde Virgem Maria, se apresentou diante dos sacerdotes acompanhado de algumas testemunhas. O modesto artesão ofereceu a Maria um anel de ouro, adornado com uma pedra ametista, símbolo da fidelidade virginal, e ao mesmo tempo dirigiu-lhe as palavras sacramentais: “Se você consente em se tornar minha noiva, aceite este penhor”. Ao aceitá-lo, Maria ficou solenemente ligada a José, embora as cerimônias de casamento ainda não tivessem sido realizadas.
            Esse anel oferecido por José a Maria ainda está preservado na Itália, na cidade de Perugia, à qual, após muitas vicissitudes e controvérsias, foi finalmente concedido pelo Papa Inocêncio VIII em 1486.

Capítulo IV. José retorna a Nazaré com sua noiva.
Erant cor unum et anima una. (Eram um só coração e uma só alma. – At 4,32)

            Depois de celebrar os esponsais, Maria retornou a Nazaré, sua cidade natal, com sete virgens que o sumo sacerdote lhe havia concedido como companheiras.
            Ela deveria aguardar a cerimônia de casamento em oração e preparar seu modesto enxoval de casamento. São José permaneceu em Jerusalém para preparar sua casa e providenciar tudo para a celebração do casamento.
            Depois de alguns meses, de acordo com os costumes da nação judaica, foram celebradas as cerimônias que se seguiriam aos esponsais. Embora ambos fossem pobres, José e Maria deram a essa celebração toda a pompa que seus recursos limitados permitiam. Maria, então, deixou sua casa em Nazaré e foi morar com o esposo em Jerusalém, onde o casamento seria realizado.
            Uma antiga tradição nos conta que Maria chegou a Jerusalém em uma noite fria de inverno e que a lua brilhava com seus raios prateados sobre a cidade.
            José foi ao encontro de sua jovem companheira nos portões da cidade sagrada, seguido por uma longa procissão de parentes, cada um segurando uma tocha. A procissão nupcial levou o casal à casa de José, onde o banquete de casamento havia sido preparado por ele.
            Quando entraram no salão de banquetes e os convidados tomaram seus lugares à mesa, o patriarca aproximou-se da Virgem Santa: “Você será como minha mãe”, disse-lhe ele, “e eu a respeitarei como o próprio altar do Deus vivo”. A partir de então, diz um escritor erudito, eles não eram mais, aos olhos da lei religiosa, do que irmão e irmã em casamento, embora sua união fosse integralmente preservada. José não ficou muito tempo em Jerusalém após as cerimônias de casamento; os dois santos casais deixaram a cidade santa para ir a Nazaré, para a modesta casa que Maria havia herdado de seus pais.
            Nazaré, cujo nome hebraico significa flor dos campos, é uma bela cidadezinha, pitorescamente situada na encosta de uma colina no final do vale de Esdrelon. Foi, portanto, nessa agradável cidade que José e Maria passaram a morar.
            A casa da Virgem consistia em dois cômodos principais, um dos quais servia como oficina de José e o outro era para Maria. A oficina, onde José trabalhava, consistia em um cômodo baixo, com três ou quatro metros de largura e outros tantos de comprimento. Ali se viam as ferramentas necessárias para sua profissão, distribuídas de forma organizada. Quanto à madeira de que ele precisava, uma parte ficava na oficina e a outra do lado de fora, permitindo que o santo trabalhador trabalhasse ao ar livre durante grande parte do ano.
            Na frente da casa havia, de acordo com o costume oriental, um banco de pedra sombreado por esteiras de palmeiras, onde o viajante podia descansar seus membros cansados e se proteger dos raios escaldantes do sol.
            A vida que esses cônjuges privilegiados levavam era muito simples. Maria cuidava da limpeza de sua pobre residência, trabalhava com suas próprias mãos suas roupas e consertava as roupas de seu esposo. Quanto a José, ora fazia uma mesa para as necessidades da casa, ora carroças, ora cangas para os vizinhos que lhe haviam encomendado; ora, com seu braço ainda vigoroso, subia à montanha para cortar os altos sicômoros e os terebintos negros que seriam usados para a construção das cabanas que ele erguia no vale.
            Sempre assíduo ao trabalho, com frequência o sol já se tinha posto há tempo, quando ele entrava em casa para a pequena refeição da noite, que sua jovem e virtuosa companheira certamente não o deixava esperando. Na verdade, ela mesma enxugava sua fronte encharcada de suor, lhe apresentava a água morna que havia aquecido para lavar seus pés e servia-lhe a ceia frugal que restauraria as forças. Essa ceia consistia principalmente em pequenos pães de cevada, laticínios, frutas e alguns legumes. Então, tendo já anoitecido, um sono reparador preparava nosso santo Patriarca para retomar suas ocupações diárias pela manhã. Essa vida, ao mesmo tempo laboriosa e doce, havia durado cerca de dois meses, quando chegou a hora marcada pela Providência para a encarnação do Verbo divino.

Capítulo V. A Anunciação de Maria Santíssima
Ecce ancilla Domini; fiat mihi secundum verbum tuum. (Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra. – Lc 1,38)

            Certo dia, José tinha ido trabalhar em um vilarejo vizinho. Maria estava sozinha em casa e, de acordo com seu costume, estava orando enquanto fiava o linho. De repente, um anjo do Senhor, o arcanjo Gabriel, desceu à pobre casa, todo resplandecente com os raios da glória celestial, e saudou a humilde Virgem, dizendo-lhe: “Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo”. Esse elogio inesperado produziu uma profunda perturbação na alma de Maria. Para tranquilizá-la, o Anjo disse: “Não tenhas medo, Maria. Encontraste graça junto de Deus. Conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. Ele será grande; será chamado Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai. Ele reinará para sempre sobre a descendência de Jacó, e o seu reino não terá fim.” Maria então perguntou ao anjo: “Como acontecerá isso, se eu não conheço homem?”
            Ela não sabia conciliar sua promessa de virgindade com o título de Mãe de Deus. Mas o Anjo lhe respondeu: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso aquele que vai nascer será chamado santo, Filho de Deus”. E para dar prova da onipotência de Deus, o arcanjo Gabriel acrescentou: “Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na sua velhice. Este já é o sexto mês daquela que era chamada estéril, pois para Deus nada é impossível”.
            Diante dessas palavras divinas, a humilde Maria não encontrou mais nada a dizer a não ser: “Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra”. E o anjo retirou-se de junto dela; o mistério dos mistérios estava cumprido. A Palavra de Deus havia se encarnado para a salvação da humanidade.
            Ao anoitecer, quando José voltou na hora habitual, depois de terminar seu trabalho, Maria não lhe contou nada sobre o milagre do qual havia sido objeto.
            Ela se contentou em anunciar-lhe a gravidez de sua prima Isabel e, como desejava visitá-la, como esposa submissa, pediu permissão a José para empreender a viagem, que era realmente longa e cansativa. Ele não tinha nada a lhe recusar, e ela partiu na companhia de alguns parentes. Acredita-se que José não pôde acompanhá-la até a casa de sua prima, pois tinha seus compromissos em Nazaré.

Capítulo VI. A inquietação de José – É tranquilizado por um anjo.
Ioseph, fili David, noli timere accipere Mariam coniugem tuam, quod enim in ea natum est, de Spiritu Sancto est. (José, filho de Davi, não tenhas receio de receber Maria, tua esposa; o que nela foi gerado vem do Espírito Santo. – Mt 1,20)

            Santa Isabel vivia nas montanhas da Judeia, em uma pequena cidade chamada Hebron, a 113 km de Nazaré. Não vamos acompanhar Maria em sua jornada; basta sabermos que Maria ficou cerca de três meses com sua prima.
            Mas o retorno de Maria preparava a José uma provação que seria o prelúdio de muitas outras. Ele não demorou a perceber que Maria estava em estado de gravidez e, portanto, era atormentado por ansiedades mortais. A lei o autorizava a acusar sua noiva perante os sacerdotes e cobri-la de desonra eterna; mas tal medida era repugnante para a bondade de seu coração e para a alta estima que ele tinha por Maria até então. Nessa incerteza, ele resolveu abandoná-la e se expatriar, a fim de lançar exclusivamente sobre si mesmo toda a odiosidade de tal separação. De fato, ele já havia feito os preparativos para a partida, quando um anjo desceu do céu para tranquilizá-lo:
            “José, filho de Davi”, disse-lhe o mensageiro celestial, “não tenhas receio de receber Maria, tua esposa; o que nela foi gerado vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e tu lhe porás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados”.
            A partir de então, José, completamente tranquilo, concebeu a mais alta veneração por sua casta noiva; ele viu nela o tabernáculo vivo do Altíssimo, e seus cuidados foram mais ternos e respeitosos.

Capítulo VII. Edito de César Augusto. – O censo. – Viagem de Maria e José a Belém.
Tamquam aurum in fornace probavit electos Dominus. (O Senhor provou os eleitos como o ouro na fornalha – cf. Sb 3,6).

            Estava se aproximando o tempo em que o Messias prometido às nações finalmente iria aparecer no mundo. O Império Romano havia então atingido o auge de sua grandeza.
            César Augusto, ao assumir o poder supremo, realizou aquela unidade que, de acordo com os desígnios da Providência, deveria servir para a propagação do Evangelho. Sob seu reinado, todas as guerras cessaram, e o Templo de Jano estava fechado (era costume em Roma naquela época manter o Templo de Jano aberto durante a guerra e fechá-lo em tempos de paz). Em seu orgulho, o imperador romano queria saber o número de seus súditos e, para isso, ordenou um censo geral em todo o império.
            Cada cidadão tinha de registrar-se a si mesmo e a toda a sua família em sua cidade natal. José, portanto, teve de deixar sua casa pobre para obedecer às ordens do imperador; e como ele era da linhagem de Davi, e essa ilustre família vinha de Belém, ele teve de ir até lá para efetuar o recenseamento.
            Em uma manhã triste e nebulosa do mês de dezembro do ano 752 do ano de Roma, José e Maria deixaram sua pobre casa em Nazaré para ir a Belém, aonde a obediência devida às ordens do soberano os chamava. Seus preparativos para a partida não foram longos. José colocou algumas roupas em um saco, preparou a calma e mansa cavalgadura que devia levar Maria, que já estava no nono mês de gravidez, e envolveu-se em seu grande manto. Em seguida, os dois santos viajantes deixaram Nazaré acompanhados pelas felicitações de seus parentes e amigos. O santo patriarca, com seu cajado de viagem em uma das mãos, segurava com a outra o freio da jumenta em que sua esposa estava montada.
            Depois de quatro ou cinco dias de caminhada, eles viram Belém de longe. O dia estava começando a amanhecer quando entraram na cidade. A montaria de Maria estava cansada; além disso, Maria precisava muito de descanso, por isso José saiu rapidamente em busca de hospedagem. Ele percorreu todas as estalagens de Belém, mas seus passos foram inúteis. O censo geral havia atraído uma multidão extraordinária para lá, e todas as estalagens estavam cheias de forasteiros. Em vão José foi de porta em porta pedindo abrigo para sua noiva exausta, porque as portas permaneceram fechadas.

Capítulo VIII. Maria e José se refugiam em uma pobre gruta. – Nascimento do Salvador do mundo. – Jesus é adorado pelos pastores.
Et Verbum caro factum est. (E o Verbo se fez carne – Jo 1,14).

            Um tanto desanimados pela falta de hospitalidade, José e Maria deixaram Belém na esperança de encontrar no campo o asilo que a cidade lhes havia recusado. Eles chegaram a uma gruta abandonada, que servia de abrigo para os pastores e seus rebanhos à noite e em dias de mau tempo. Havia um pouco de palha no chão, e uma cavidade na rocha também servia como banco para descanso e uma manjedoura para os animais. Os dois viajantes entraram na caverna para descansar do cansaço da viagem e aquecer os membros que estavam enrijecidos pelo frio do inverno. Nesse abrigo miserável, longe dos olhares dos homens, Maria deu ao mundo o Messias prometido aos nossos primeiros pais. Era meia-noite, José adorou o menino divino, envolveu-a em panos e colocou-o na manjedoura. Ele foi o primeiro dos homens a quem coube a incomparável honra de oferecer homenagem a Deus, que havia descido à Terra para redimir os pecados da humanidade.
            Alguns pastores estavam cuidando de seus rebanhos na região rural próxima. Um anjo do Senhor apareceu e anunciou-lhes as boas novas do nascimento do Salvador. Ao mesmo tempo, ouviram-se coros celestiais repetindo: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”. Esses homens simples não hesitaram em seguir a voz do anjo e disseram a si mesmos: “Vamos a Belém e vejamos o que aconteceu”. E, sem mais delongas, entraram na gruta e adoraram o menino divino.

(continua)




As profecias de Dom Bosco e os reis da Itália

“A família daqueles que roubam a Deus não chega à quarta geração”.

            Morreu há poucos dias o pretendente ao trono da Itália, Vítor Emanuel de Saboia (n. 12.02.1937 – † 03.02.2024), o quinto descendente do primeiro rei da Itália, Vítor Emanuel II de Saboia. Ele foi sepultado na cripta da Basílica de Superga, em Turim, onde se encontram dezenas de outros restos mortais da Casa de Saboia. Esse evento nos faz lembrar outros sonhos de Dom Bosco que se tornaram realidade.

            Em novembro de 1854, estava sendo preparada uma lei sobre o confisco das propriedades eclesiásticas e a supressão dos conventos. Para ser válida, ela precisava ser sancionada pelo rei da Itália, Vítor Emanuel II de Saboia. No final daquele mês de novembro, Dom Bosco teve dois sonhos que se tornaram realidade como profecias a respeito do rei e de sua família. Vamos relembrar os fatos com o P. Lemoyne.

Dom Bosco, então, desejava dissipar uma nuvem ameaçadora que escurecia cada vez mais a Casa Real.
Ele teve um sonho numa noite, no final de novembro. Parecia-lhe estar no pórtico central do Oratório, construído então apenas pela metade, perto da bomba hidráulica fixada na parede da casa Pinardi. Estava rodeado por padres e clérigos: de repente, viu um servente da corte, avançando no meio do pátio, com seu uniforme vermelho, com um passo apressado em sua direção, e parecia-lhe gritar:
            – Grande notícia!
            Dom Bosco perguntou:
            – E qual é?
            – Anuncie: Grande funeral na Corte! Grande funeral na Corte!
Dom Bosco, a essa inesperada aparição, a esse grito, ficou petrificado, e o servente repetiu:
– “Grande funeral na Corte!” – Dom Bosco queria então pedir-lhe uma explicação de seu anúncio fúnebre, mas ele tinha desaparecido. Dom Bosco, ao acordar, como estivesse fora de si, mas compreendendo o mistério daquela aparição, pegou a caneta e preparou imediatamente uma carta para Vítor Emanuel, revelando o que havia sido anunciado, e simplesmente contando o sonho.
[…]
… era saber o que Dom Bosco escreveu ao rei, especialmente porque sabiam o que ele estava pensando quanto à usurpação dos bens eclesiásticos. Dom Bosco não os deixou na dúvida e comentou o que escreveu ao rei, para que não permitisse a apresentação da nefasta lei. Em seguida contou o sonho, concluindo: “Esse sonho deixou-me mal e cansado”. Ele estava pensativo e exclamava de quando em quando: “Quem sabe?… Quem sabe?… Rezemos!”
Surpresos, os clérigos começaram a conversar, perguntando-se caso alguém tinha ouvido que no palácio real havia algum nobre doente. Mas todos eles concluíram não saber de nada. Dom Bosco, no entanto, tendo chamado o Clérigo Ângelo Sávio, entregou-lhe uma carta e disse-lhe: – “Copia, e anuncia ao Rei: Grande funeral na Corte!” E o Clérigo Sávio escreveu. Mas o Rei, como Dom Bosco ficou sabendo por meio de seus confidentes empregados no palácio, leu a carta com indiferença e não a levou em consideração.
Cinco dias depois daquele sonho, Dom Bosco, dormindo, à noite, sonhou novamente. Pareceu-lhe estar à mesa de seu quarto, escrevendo, quando ouviu o patear de um cavalo no pátio. De repente, vê escancarar-se a porta e aparecer o servente com sua roupa vermelha, e chegando na metade da sala, gritou:
“Anuncia: não um grande funeral na Corte, mas grandes funerais na Corte!” E repetiu essas palavras duas vezes. Então retirou-se com passos rápidos e fechou a porta atrás dele. Dom Bosco quis saber, quis interrogá-lo e pedir-lhe explicações. Logo levantou-se da mesa, correu para a sacada e viu o servente no pátio montado no cavalo. Chamou-o, perguntou-lhe por que ele tinha vindo para repetir-lhe aquele anúncio. Mas o servente gritou: “Grandes funerais na Corte!” E desapareceu. Quando amanheceu, o próprio Dom Bosco dirigiu ao Rei outra carta, em que contou o segundo sonho e concluiu dizendo a Sua Majestade “que pensasse em organizar-se a fim de evitar os castigos ameaçados, enquanto implorava-lhe que evitasse aquela lei a qualquer custo.
À noite, depois do jantar, Dom Bosco falou no meio de seus clérigos: “Sabem que tenho uma coisa ainda mais estranha para contar-lhes além daquela do outro dia?” – E contou o que viu à noite. Então os clérigos, mais surpresos que antes, perguntavam-se o que esses anúncios de morte indicariam. E pode-se imaginar a ansiedade deles na espera de se verificarem essas previsões.
Para o Clérigo Cagliero e alguns outros, revelou abertamente serem aquelas ameaças de castigo que o Senhor fez a quem mais danos e males causou à Igreja e outros estavam sendo preparados. Naqueles dias, permaneceu triste e repetindo frequentemente: “Essa lei atrairá sérias desgraças à Casa do Soberano”. Dizia essas coisas a seus alunos para estimulá-los a rezar pelo rei e para interceder pela misericórdia do Senhor para que evitasse a dispersão de tantos religiosos e a perda de tantas vocações.
Enquanto isso, o Rei confiou essas cartas ao Marquês Fassati, que, depois de lê-las, voltou ao Oratório e disse a Dom Bosco: “Oh! O senhor acha que essa é a maneira de colocar de cabeça para baixo toda a Corte? O rei ficou mais do que impressionado e perturbado! … Aliás, se enfureceu.”
E Dom Bosco respondeu-lhe: – “Mas se o que foi escrito for verdade? Lamento ter causado esses transtornos para o meu Soberano. Mas, enfim, trata-se do seu bem e da Igreja.”
Os avisos de Dom Bosco não foram ouvidos. Em 28 de novembro de 1854, o Ministro chanceler, Urbano Rattazzi, apresentou aos deputados um projeto de lei para a supressão dos conventos. O Conde Camillo di Cavour, Ministro das Finanças, estava determinado a aprová-lo a qualquer custo. Esses senhores estabeleceram como princípio indiscutível e inquestionável que, fora do grande corpo civil, não haveria e não poderia haver uma sociedade superior a ele e independente dele. O estado é tudo e, portanto, nenhuma entidade moral, nem mesmo a Igreja Católica, pode subsistir juridicamente sem o consentimento e o reconhecimento da autoridade civil. Portanto, tal autoridade, não reconhecendo na Igreja Universal o domínio dos bens eclesiásticos, e atribuindo esse domínio a cada grupo das corporações religiosas, apoiaria serem estas criação de soberania cível e que sua existência seria modificada ou extinta pela vontade da mesma soberania, e o Estado, herdeiro de toda personalidade civil que não tem sucessão, tornar-se-ia único e absoluto proprietário de todos os seus bens, assim que fossem suprimidas. Erro grosseiro, porque tais patrimônios, caso uma Congregação Religiosa deixasse de existir, não ficariam sem proprietário, e deveriam ser devolvidos à Igreja de Jesus Cristo, representada pelo Sumo Pontífice, por mais que os exaltados do Estado persistissem em negá-lo. (MB V, 176-180 – MBp V, 161-164)
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            O fato de que essas advertências vinham do céu também é confirmado por uma carta escrita quatro anos antes, em 9 de abril de 1850, que a mãe do rei, a rainha-mãe Maria Teresa, viúva de Carlos Alberto, havia endereçado a seu filho, o rei Vítor Emanuel II de Saboia.

Deus te recompensará, te abençoará, mas quem sabe quantos castigos, quantos flagelos Deus trará sobre ti, tua família e teu país se sancionares [a lei Siccardi sobre a abolição do foro eclesiástico]. Pensa qual seria a tua dor se o Senhor deixasse gravemente doente ou mesmo se levasse a tua querida Adelaide, a quem tu, com santa razão, tanto amas, ou a tua Chichina (Clotilde) ou o teu Beto (Umberto). E se pudesses ver dentro do meu coração o quanto estou aflita, angustiada e assustada pelo medo de que sanciones essa lei por causa das muitas desgraças que, tenho certeza, ela nos trará se for feita sem a permissão do Santo Padre. Talvez o teu coração, que é realmente bom e sensível, e que sempre amaste tanto a tua pobre Mãezinha, se deixaria enternecer. (Antonio Monti, Nuova Antologia, 1º de janeiro de 1936, p. 65; MB XVII, 898).

            Mas o rei não deu importância a esses avisos e as consequências não demoraram a chegar. As negociações para a aprovação continuaram e as profecias também se cumpriram:
            – em 12 de janeiro de 1855, Maria Teresa, a Rainha Mãe, morreu aos 53 anos de idade;
            – em 20 de janeiro de 1855, a Rainha Maria Adelaide faleceu, aos 33 anos;
            – em 11 de fevereiro de 1855, o príncipe Ferdinando, irmão do rei, morreu aos 32 anos de idade;
            – em 17 de maio de 1855, o filho do rei, o príncipe Vítor Emanuel Leopoldo Maria Eugênio, morreu com apenas 4 meses de idade.

            Dom Bosco continuou a advertir, publicando a carta de fundação de Altacomba (Hautecombe) com uma exposição de todas as maldições infligidas àqueles que ousassem destruir ou usurpar os bens da Abadia de Altacomba, inseridas naquele documento pelos antigos duques de Saboia para proteger esse lugar, onde estão sepultados dezenas de ilustres antepassados da Casa de Saboia.
E também continuou publicando, em abril de 1855, nas “Letture Cattoliche” (Leituras Católicas), um panfleto escrito pelo Barão Nilinse intitulado: Os bens da Igreja, como são roubados e quais são as consequências; com breve apêndice sobre os fatos do Piemonte. No frontispício estava escrito: Como?! Ninguém pode violar a casa de uma pessoa particular, e tu tens a audácia de colocar a mão sobre a casa do Senhor! Santo Ambrósio. Nesse escrito, foi mostrado que não apenas os espoliadores da Igreja e das Ordens Religiosas, mas até mesmo suas famílias eram quase sempre afetadas, cumprindo assim o terrível ditado: A família de quem rouba de Deus não chega à quarta geração! (MB V, 233-234).

            No dia 29 de maio, Vítor Emanuel II assinou a lei Rattazzi, que confiscava as propriedades eclesiásticas e suprimia as corporações religiosas, sem levar em conta o que Dom Bosco havia previsto e o luto que havia atingido sua família desde janeiro… sem saber que ele também estava assinando o destino da família real.

            De fato, também aqui a profecia se tornou realidade, como vemos.
            – O Rei Vítor Emanuel II de Saboia (nascido em 14.03.1820 – † 09.01.1878), reinou de 17.03.1861 a 09.01.1878, morreu com apenas 58 anos de idade;
            – O Rei Umberto I (n. 14.03.1844 – † 29.07.1900), filho do rei Vítor Emanuel II de Saboia, reinou de 10.01.1878 a 29.07.1900, foi morto em Monza aos 56 anos de idade;
            – O Rei Vítor Emmanuel III (n. 11.11.1869 – † 28.12.1947), neto do rei Vítor Emmanuel II de Saboia, reinou de 30.07.1900 a 09.05.1946, foi forçado a abdicar em 9 de maio de 1946 e morreu um ano depois;
            – O Rei Umberto II (n. 15.09.1904 – † 18.03.1983), o último rei da Itália, reinou de 10.05.1946 a 18.06.1946, bisneto de Vítor Emanuel II (a quarta geração), foi forçado a abdicar depois de apenas 35 dias de seu reinado, após o referendo institucional de 2 de junho do mesmo ano. Ele morreu em 18 de março de 1983, em Genebra, e foi sepultado na Abadia de Altacomba…

            Alguns interpretam esses acontecimentos como meras coincidências, porque não podem negar os fatos; mas aqueles que conhecem a ação de Deus sabem que, em sua misericórdia, ele sempre adverte, de uma forma ou de outra, sobre as graves consequências que certas decisões de grande importância, que afetam o destino do mundo e da Igreja, podem ter.
            Lembremos apenas o fim da vida do homem mais sábio da Terra, o rei Salomão.
Quando Salomão ficou velho, suas mulheres desviaram-lhe o coração para outros deuses; seu coração já não pertencia integralmente ao Senhor, seu Deus, como o do seu pai Davi.
Salomão prestou culto a Astarte, deusa dos sidônios, e a Melcom, ídolo dos amonitas.
Ele fez o que desagrada ao Senhor e não lhe foi inteiramente fiel como seu pai Davi.

Foi assim que Salomão construiu um santuário para Camos, ídolo de Moab, no monte que está defronte de Jerusalém, e para Melcom, ídolo dos amonitas.
Fez o mesmo para todas as suas mulheres estrangeiras, as quais queimavam incenso e ofereciam sacrifícios a seus deuses.
Então, o Senhor irritou-se contra Salomão, porque seu coração se tinha desviado do Senhor, Deus de Israel, embora este lhe havia aparecido duas vezes, proibindo-lhe expressamente seguir a outros deuses – mas ele não observou a ordem do Senhor.
O Senhor disse, pois, a Salomão: “Já que procedeste assim e não guardaste a minha aliança, nem as Leis que te prescrevi, vou tirar de ti o reino e dá-lo a um de teus servos. (1Rs 11,4-11).

            Basta ler a história com atenção, tanto a sagrada quanto a profana….




Sagrada Família de Nazaré

Todos os anos celebramos a Sagrada Família de Nazaré no último domingo do ano. Mas muitas vezes nos esquecemos de que celebramos com pompa os fatos mais pobres e delicados dessa Família. Obrigada a dar à luz em uma caverna, perseguida de imediato, tendo que emigrar em meio a tantos perigos para um país estrangeiro para sobreviver, e isso com um bebê e sem nenhum recurso. Mas tudo foi um evento de graça, permitido por Deus, o Pai, e anunciado nas Escrituras.
Vamos ler a bela história que o próprio Dom Bosco contou aos meninos de sua época.

A triste anunciação. – O massacre dos inocentes. – A sagrada família partiu para o Egito.
O anjo do Senhor disse a José: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo”. Mt 2,13.
“Um clamor se ouve em Ramá, de lamento, de choro, de amargura. É Raquel que chora seus filhos e recusa ser consolada, porque eles já não existem!” Jr 31,15.

            A tranquilidade da sagrada família [após o nascimento de Jesus] não seria de longa duração. Assim que José retornou à casa pobre em Nazaré, um anjo do Senhor apareceu a ele em um sonho e lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo”.
            E isso era a pura verdade. O cruel Herodes, enganado pelos magos e furioso por ter perdido uma oportunidade tão boa, a fim de se livrar daquele que ele considerava um concorrente ao trono, concebeu o projeto infernal de mandar matar todas as crianças do sexo masculino com menos de dois anos de idade. Essa ordem abominável foi executada.
            Um grande rio de sangue correu pela Galileia. Então, o que Jeremias havia predito se tornou realidade: “Um clamor se ouve em Ramá, de lamento, de choro, de amargura. É Raquel que chora seus filhos e recusa ser consolada, porque eles já não existem!”. Esses pobres inocentes, cruelmente assassinados, foram os primeiros mártires da divindade de Jesus Cristo.
            José reconheceu a voz do anjo, mas não se permitiu qualquer reflexão sobre a partida apressada que tiveram que fazer, sobre as dificuldades de uma viagem tão longa e perigosa. Ele deve ter se lamentado de ter deixado seu pobre lar para atravessar os desertos e buscar asilo em um país que não conhecia. Sem esperar pelo dia de amanhã, no momento em que o anjo desapareceu, ele se levantou e correu para acordar Maria. Maria preparou apressadamente uma pequena provisão de roupas e mantimentos para levarem com eles. Enquanto isso, José preparou a jumenta, e eles partiram sem lamentação da cidade para obedecer à ordem de Deus. Aqui está, portanto, um pobre ancião, que torna vãs as horríveis conspirações do tirano da Galileia; é a ele que Deus confia o cuidado de Jesus e Maria.

Viagem desastrosa – Uma tradição.
Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra. Mt 10,23.

            Dois caminhos se apresentavam ao viajante que desejava ir ao Egito por terra. Uma delas passava por desertos povoados por animais ferozes, e os caminhos eram incômodos, longos e pouco movimentados. O outro passava por um país pouco visitado, mas os habitantes do lugar eram muito hostis aos judeus. José, que temia especialmente os homens nessa fuga precipitada, escolheu o primeiro desses dois caminhos como o mais escondido.
            Tendo partido de Nazaré no mais escuro da noite, os cautelosos viajantes, cujo itinerário exigia que passassem primeiro por Jerusalém, percorreram os caminhos mais tristes e tortuosos por algum tempo. Quando era necessário atravessar alguma grande estrada, José, deixando Jesus e sua mãe no abrigo de uma rocha, observava o caminho para se certificar de que a saída não era guardada pelos soldados de Herodes. Tranquilizado por essa precaução, voltava para buscar seu precioso tesouro, e a sagrada família continuava sua jornada, entre ravinas e colinas. De vez em quando, faziam uma breve parada à beira de um riacho claro e, depois de uma refeição frugal, descansavam um pouco do esforço da viagem. Quando a noite chegava, era hora de se resignar a dormir sob o céu aberto. José tirou o manto e cobriu Jesus e Maria com ele para preservá-los da umidade da noite. Então, amanhã, ao amanhecer, a árdua jornada começaria novamente. Os santos viajantes, depois de passarem pela pequena cidade de Anata, seguiram para o lado de Ramla para descer às planícies da Síria, onde agora estariam livres das armadilhas de seus ferozes perseguidores. Contra seu costume, eles continuaram caminhando, apesar de já estar anoitecendo, a fim de chegarem mais cedo a um lugar seguro. José estava quase sondando o chão à frente dos outros. Maria, toda trêmula por causa dessa corrida noturna, lançava seus olhares inquietos para as profundezas dos vales e as sinuosidades das rochas. De repente, em uma curva, um grupo de homens armados apareceu para interceptar seu caminho. Era um bando de bandidos que estava assolando a região, cuja fama assustadora se estendia até bem longe. José prendeu a montaria de Maria e orou ao Senhor em silêncio, pois qualquer resistência era impossível. No máximo, alguém poderia ter a esperança de salvar a própria vida. O líder dos bandidos se separou de seus companheiros e avançou em direção a José para ver com quem tinha que lidar. A visão daquele velho sem armas, daquela criancinha dormindo no peito da mãe, tocou o coração sanguinário do bandido. Longe de fazer-lhes qualquer mal, ele estendeu a mão a José, oferecendo hospitalidade a ele e à sua família. Esse líder se chamava Dimas. A tradição nos diz que, trinta anos depois, ele foi preso por soldados e condenado a ser crucificado. Ele foi colocado na cruz do Calvário ao lado de Jesus, e é o mesmo que conhecemos pelo nome de bom ladrão.

Chegada ao Egito – Prodígios que ocorreram na entrada deles nessa terra – Aldeia de Matari – Moradia da Sagrada Família.
“Vede o Senhor, montado em nuvem veloz, invadindo o Egito! À sua presença, vacilam os deuses do Egito”. Is 19,1.

            Assim que amanheceu, os fugitivos, agradecendo aos bandidos que haviam se tornado seus anfitriões, retomaram sua jornada cheia de perigos. Diz-se que Maria, ao partir, disse estas palavras ao líder daqueles bandidos: “O que você fez por esta criança, um dia será amplamente recompensado”. Depois de passar por Belém e Gaza, José e Maria desceram para a Síria e, tendo encontrado uma caravana que partia para o Egito, juntaram-se a ela. Desse momento até o fim da viagem, eles não viram nada à sua frente além de um imenso deserto de areia, cuja aridez era interrompida apenas em raros intervalos por alguns oásis, ou seja, alguns trechos de terra fértil e verdejante. O cansaço deles foi redobrado durante a corrida por essas planícies ardentes pelo calor do sol. A comida era escassa, e muitas vezes faltava água. Quantas noites José, que era velho e pobre, foi empurrado para trás quando tentou se aproximar da fonte em que a caravana havia parado para matar a sede!
            Finalmente, após dois meses de uma jornada muito difícil, os viajantes entraram no Egito. De acordo com Sozomeno, desde o momento em que a Sagrada Família tocou essa terra antiga, as árvores baixaram seus galhos para adorar o Filho de Deus; os animais ferozes se reuniram ali, esquecendo seus instintos; e os pássaros cantaram em coro os louvores do Messias. De fato, se acreditarmos no que nos é dito por autores confiáveis, todos os ídolos da província, reconhecendo o vencedor do paganismo, caíram em pedaços. Assim, as palavras do profeta Isaías foram literalmente cumpridas quando ele disse: “Vede o Senhor, montado em nuvem veloz, invadindo o Egito! À sua presença, vacilam os deuses do Egito”.
            José e Maria, desejosos de chegar logo ao fim de sua jornada, não fizeram mais do que passar por Heliópolis, consagrada ao culto do sol, para ir a Matari, onde pretendiam descansar de suas canseiras.
            Matari é uma bela vila sombreada por sicômoros, a cerca de duas léguas do Cairo, a capital do Egito. José pretendia se estabelecer ali. Mas esse ainda não era o fim de seus problemas. Ele precisava buscar acomodação. Os egípcios não eram nada hospitaleiros, de modo que a sagrada família foi forçada a se abrigar por alguns dias no tronco de uma grande árvore velha. Finalmente, após uma longa busca, José encontrou um cômodo modesto, no qual colocou Jesus e Maria.
            Essa casa, que ainda pode ser vista no Egito, era uma espécie de caverna, com seis metros de comprimento e três metros de largura. Também não havia janelas; a luz tinha de entrar pela porta. As paredes eram de um tipo de barro preto e sujo, cuja idade trazia a marca da miséria. À direita havia uma pequena cisterna, da qual José tirava água para o serviço da família.

Dores. – Consolação e fim do exílio.
Com ele estou na tribulação. Sl 90,15.

            Assim que entrou nessa nova moradia, José retomou seu trabalho normal. Começou a mobiliar a casa: uma pequena mesa, algumas cadeiras, um banco, tudo obra de suas mãos. Depois, foi de porta em porta procurando trabalho para sustentar sua pequena família. Sem dúvida, ele sofreu muitas rejeições e passou por muitos desprezos humilhantes! Ele era pobre e desconhecido, e isso foi suficiente para que seu trabalho fosse recusado. Por sua vez, Maria, embora tivesse mil cuidados com seu Filho, corajosamente se entregou ao trabalho, ocupando uma parte da noite para compensar os ganhos pequenos e insuficientes de seu marido. No entanto, em meio a suas tristezas, quanta consolação para José! Foi para Jesus que ele trabalhou, e o pão que a criança divina comeu foi ele quem o comprou com o suor de seu rosto. E quando ele voltava à noite, exausto e oprimido pelo calor, Jesus sorria ao vê-lo chegar e o acariciava com suas mãozinhas. Muitas vezes, com o preço das privações que impunha a si mesmo, José conseguia obter algumas economias, e que alegria ele sentia por poder usá-las para suavizar a condição da criança divina! Ora eram algumas tâmaras, ora alguns brinquedos adequados para sua idade, que o piedoso carpinteiro trouxe para o Salvador dos homens. Oh, como eram doces as emoções do bom velhinho ao contemplar o rosto radiante de Jesus! Quando chegava o sábado, dia de descanso e consagrado ao Senhor, José tomava a criança pela mão e guiava seus primeiros passos com uma solicitude verdadeiramente paternal.
            Enquanto isso, o tirano que reinava sobre Israel morreu. Deus, cujo braço todo-poderoso sempre pune os culpados, enviou-lhe uma doença cruel, que rapidamente o levou à sepultura. Traído por seu próprio filho, comido vivo por vermes, Herodes morreu, levando consigo o ódio dos judeus e a maldição da posteridade.

O novo anúncio. – Retorno à Judeia. – Uma tradição relatada por São Boaventura.
Do Egito chamei o meu filho de volta. (Os 11,1).

            Há sete anos José estava no Egito, quando o Anjo do Senhor, o mensageiro ordinário da vontade do Céu, apareceu-lhe novamente durante o sono e disse-lhe: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois já morreram aqueles que queriam matar o menino”. Sempre atento à voz de Deus, José vendeu sua casa e seus móveis e organizou tudo para partir. Em vão os egípcios, encantados com a bondade de José e a gentileza de Maria, fizeram pedidos sinceros para retê-lo. Em vão lhe prometeram a abundância de tudo o que era necessário para a vida, José foi inflexível. As lembranças de sua infância, os amigos que tinha na Judeia, a atmosfera pura de sua terra natal, falavam muito mais ao seu coração do que a beleza do Egito. Além disso, Deus havia falado, e nada mais era necessário para que José decidisse retornar à terra de seus antepassados.
            Alguns historiadores são da opinião de que a sagrada família fez parte da viagem por mar, porque levava menos tempo e eles tinham um grande desejo de rever sua terra natal em breve. Assim que desembarcaram na Ascalônia, José soube que Arquelau havia sucedido seu pai Herodes no trono. Essa era uma nova fonte de inquietação para José. O anjo não lhe havia dito em que parte da Judeia ele deveria se estabelecer. Ele deveria fazer isso em Jerusalém, na Galileia ou em Samaria? José, cheio de ansiedade, orou ao Senhor para que lhe enviasse seu mensageiro celestial durante a noite. O anjo ordenou que ele fugisse de Arquelau e se retirasse para a Galileia. José, então, não teve mais o que temer e tomou calmamente o caminho de Nazaré, que havia abandonado sete anos antes.
            Que nossos dedicados leitores não se arrependam de ouvir o seráfico Doutor São Boaventura sobre esse ponto da história: “Eles estavam no ato de partir: e José foi primeiro com os homens, e sua mãe foi com as mulheres (que tinham vindo, elas e eles, como amigos da sagrada família para acompanhá-los durante um trecho do caminho). E quando estavam fora da porta, José fez com que os homens voltassem e não os deixou mais acompanhá-lo. Então alguns daqueles bons homens, compadecidos da pobreza deles, chamaram o Menino e lhe deram algum dinheiro para as despesas. O Menino tinha vergonha de recebê-los; mas, por causa da pobreza, estendeu a mão e recebeu o dinheiro com vergonha e agradeceu. E o mesmo fizeram outras pessoas. Aquelas honradas matronas o chamaram novamente e fizeram o mesmo; a mãe não ficou menos envergonhada do que a criança, mas ainda assim agradeceu humildemente.”
            Tendo se despedido daquela companhia cordial e renovado seus agradecimentos e saudações, a sagrada família voltou seus passos em direção à Judeia.




O horário dos trens

Conheci um homem que sabia de cor o horário das ferrovias, porque a única coisa que lhe dava alegria eram as ferrovias. Ele passava todo o seu tempo na estação, observando como os trens chegavam e partiam. Ele olhava maravilhado para os vagões, para a força das locomotivas, para o tamanho das rodas; ele observava maravilhado os fiscais que subiam para os vagões e o chefe da estação.
Conhecia cada trem, sabia de onde vinha, para onde ia, quando chegaria a um determinado lugar e que trens partiam daquele lugar e quando chegariam.
Sabia o número dos trens, sabia em que dia eles viajavam, se tinham um vagão-restaurante, se esperavam ou não pelas conexões. Ele sabia quais trens têm vagões de correio e quanto custa uma passagem para Frauenfeld, para Olten, para Niederbipp ou para qualquer outro lugar.
Ele não ia ao bar, não ia ao cinema, não ia passear, não tinha nem bicicleta, nem rádio ou televisão, não lia jornais ou livros; se recebesse cartas, também não as leria. Para fazer essas coisas lhe faltava tempo, porque passava seus dias na estação, e só quando o horário da ferrovia mudasse, em maio e em outubro, é que ele não seria visto por algumas semanas.
Sentava-se em casa à sua mesa e aprendia tudo de cor, lia o novo horário desde a primeira página até a última, prestava atenção às mudanças e ficava feliz quando não havia. Aconteceu que alguém lhe perguntou a hora da partida de um trem. Então ele ficou com o rosto radiante e quis saber exatamente qual era o destino da viagem. E aquele que lhe tinha pedido a informação certamente perdeu o trem, porque não o deixou ir; não se contentou em indicar a hora, falou também o número do trem, o número de vagões, as possíveis conexões, todos os horários de partida. Explicou que se podia ir a Paris naquele trem, onde era preciso descer e a que horas se chegaria. Ele não entendia que as pessoas não estavam interessadas em tudo aquilo. No entanto, se alguém o deixasse ali e saísse antes que ele tivesse listado todos os seus conhecimentos, ele se zangava, o insultava e gritava com ele:
– O senhor não entende nada de ferrovias!
Pessoalmente, ele nunca embarcou num trem.
Isso não faria sentido, dizia ele, porque já sabia de antemão a que horas o trem estaria chegando (Peter Bichsel).

Muitas pessoas (e entre elas muitos estudiosos ilustres) sabem tudo sobre a Bíblia, até a exegese dos versículos menores e mais escondidos, e também o significado das palavras mais difíceis, e até mesmo o que o escritor sagrado realmente quis dizer, mesmo que parecesse o contrário.
Mas eles não transformam nada do que está escrito na Bíblia em sua vida pessoal.