27 Dez 2025, Sáb

Dom Bosco e o Sagrado Coração. Custodiar, reparar, amar

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Em 1886, às vésperas da consagração da nova Basílica do Sagrado Coração, no centro de Roma, o “Boletim Salesiano” quis preparar seus leitores – cooperadores, benfeitores, jovens, famílias – para um encontro vital com “o Coração transpassado que continua a amar”. Durante um ano inteiro, a revista apresentou aos olhos do mundo salesiano um verdadeiro “rosário” de meditações: cada número ligava um aspecto da devoção a uma urgência pastoral, educativa ou social que Dom Bosco – já exausto, mas muito lúcido – considerava estratégica para o futuro da Igreja e da sociedade italiana. Quase cento e quarenta anos depois, essa série continua sendo um pequeno tratado de espiritualidade do coração, escrito em tom simples, mas cheio de ardor, capaz de conjugar contemplação e prática. Apresentamos aqui uma leitura unificada desse percurso mensal, mostrando como a intuição salesiana ainda sabe falar aos dias de hoje.


Fevereiro – A guarda de honra: vigiar o Amor ferido
            O novo ano litúrgico se abre, no Boletim, com um convite surpreendente: não apenas adorar Jesus presente no sacrário, mas “fazer-lhe guarda” – um turno de uma hora escolhido livremente em que cada cristão, sem interromper as atividades cotidianas, torna-se sentinela amorosa que consola o Coração transpassado pela indiferença do carnaval. A ideia, nascida em Paray-le-Monial e florescida em muitas dioceses, torna-se um programa educativo: transformar o tempo em espaço de reparação, ensinar aos jovens que a fidelidade nasce de pequenos atos constantes, fazer do dia uma liturgia difundida. O voto associado – destinar o produto do Manual da Guarda de Honra à construção da Basílica romana – revela a lógica salesiana: contemplação que se traduz imediatamente em tijolos, porque a verdadeira oração edifica (literalmente) a casa de Deus.

Março – Caridade criativa: o cunho salesiano
            Na grande conferência de 8 de maio de 1884, o cardeal Parocchi sintetizou a missão salesiana em uma palavra: “caridade”. O Boletim retoma esse discurso para lembrar que a Igreja conquista o mundo mais com gestos de amor do que com disputas teóricas. Dom Bosco não funda escolas de elite, mas internatos populares; não tira os jovens do meio só para protegê-los, mas para devolvê-los à sociedade como cidadãos sólidos. É a caridade “segundo as exigências do século”: resposta ao materialismo não com polêmicas, mas com obras que mostram a força do Evangelho. Daí a urgência de um grande santuário dedicado ao Coração de Jesus: fazer sobressair no coração de Roma um sinal visível desse amor que educa e transforma.

Abril – Eucaristia: “obra-prima do Coração de Jesus”
            Para Dom Bosco, nada é mais urgente do que levar os cristãos de volta à comunhão frequente. O Boletim lembra que “não há catolicismo sem Nossa Senhora e sem a Eucaristia”. A mesa eucarística é “gênese da sociedade cristã”: dela nascem a fraternidade, a justiça, a pureza. Se a fé enfraquece, é preciso reacender o desejo do Pão vivo. Não por acaso São Francisco de Sales confiou às Visitandinas a missão de custodiar o Coração Eucarístico: a devoção ao Sagrado Coração não é um sentimento abstrato, mas um caminho concreto que conduz ao sacrário e daí se derrama pelas ruas. E é novamente o canteiro romano que serve de verificação: cada lira oferecida para a basílica torna-se um “tijolo espiritual” que consagra a Itália ao Coração que se doa.

Maio – O Coração de Jesus resplandece no Coração de Maria
            O mês mariano leva o Boletim a entrelaçar as duas grandes devoções: entre os dois Corações existe uma comunhão profunda, simbolizada pela imagem bíblica do “espelho”. O Coração Imaculado de Maria reflete a luz do Coração Divino, tornando-a suportável aos olhos humanos: quem não ousa olhar para o Sol, olha para o seu brilho refletido na Mãe. Culto de latria para o Coração de Jesus, de “hiperdulia” para o de Maria: distinção que evita os equívocos dos polemistas jansenistas de ontem e de hoje. O Boletim refuta as acusações de idolatria e convida os fiéis a um amor equilibrado, onde contemplação e missão se alimentam mutuamente: Maria introduz ao Filho e o Filho conduz à Mãe. Em vista da consagração do novo templo, pede-se que se unam as duas invocações que se erguem nas colinas de Roma e Turim: Sagrado Coração de Jesus e Maria Auxiliadora.

Junho – Consolações sobrenaturais: o amor operante na história
            Duzentos anos após a primeira consagração pública ao Sagrado Coração (Paray-le-Monial, 1686), o Boletim afirma que a devoção responde à doença do tempo: “arrefecimento da caridade por excesso de iniquidade”. O Coração de Jesus – Criador, Redentor, Glorificador – é apresentado como o centro de toda a história: da criação à Igreja, da Eucaristia à escatologia. Quem adora esse Coração entra num dinamismo que transforma a cultura e a política. Por isso, o Papa Leão XIII pediu a todos que concorressem ao santuário romano: monumento de reparação, mas também “barreira” contra a “torrente imunda” do erro moderno. É um apelo que soa atual: sem caridade ardente, a sociedade se desintegra.

Julho – Humildade: a fisionomia de Cristo e do cristão
            A meditação de verão escolhe a virtude mais negligenciada: a humildade, “joia transplantada pela mão de Deus no jardim da Igreja”. Dom Bosco, filho espiritual de São Francisco de Sales, sabe que a humildade é a porta das outras virtudes e o selo de todo verdadeiro apostolado: quem serve os jovens sem buscar visibilidade torna presente “o ocultamento de Jesus durante trinta anos”. O Boletim desmascara a soberba disfarçada de falsa modéstia e convida a cultivar uma dupla humildade: do intelecto, que se abre ao mistério, e da vontade, que obedece à verdade reconhecida. A devoção ao Sagrado Coração não é sentimentalismo: é escola de pensamento humilde e de ação concreta, capaz de construir a paz social porque tira do coração o veneno do orgulho.

Agosto – Mansidão: a força que desarma
            Depois da humildade, a mansidão: virtude que não é fraqueza, mas domínio de si mesmo, “o leão que gera mel”, diz o texto, remetendo ao enigma de Sansão. O Coração de Jesus se mostra manso ao acolher os pecadores, firme em defender o templo. Os leitores são convidados a imitar esse duplo movimento: doçura para com as pessoas, firmeza contra o erro. São Francisco de Sales volta a ser modelo: com um tom pacato, derramou rios de caridade na turbulenta Genebra, convertendo mais corações do que teriam conquistado as contendas acirradas. Em um século que “pecava por ser sem coração”, construir o santuário do Sagrado Coração significava erguer um ginásio de mansidão social – uma resposta evangélica ao desprezo e à violência verbal que já envenenavam o debate público.

Setembro – Pobreza e questão social: o Coração que reconcilia ricos e pobres
            O estrondo do conflito social, adverte o Boletim, ameaça “reduzir a escombros o edifício civil”. Estamos em plena “questão operária”: os socialistas agitam as massas, os capitais se concentram. Dom Bosco não nega a legitimidade da riqueza honesta, mas lembra que a verdadeira revolução começa no coração: o Coração de Jesus proclamou bem-aventurados os pobres e viveu em primeira pessoa a pobreza. O remédio passa por uma solidariedade evangélica alimentada pela oração e pela generosidade. Enquanto o templo romano não estiver concluído – escreve o jornal –, faltará o sinal visível da reconciliação. Nas décadas seguintes, a doutrina social da Igreja desenvolverá essas intuições; mas a semente já está aqui: a caridade não é esmola, é justiça que nasce de um coração transformado.

Outubro – Infância: sacramento da esperança
            “Ai daquele que escandalizar um destes pequeninos”: nos lábios de Jesus, o convite torna-se advertência. O Boletim recorda os horrores do mundo pagão contra as crianças e mostra como o cristianismo mudou a história, confiando aos pequenos um lugar central. Para Dom Bosco, a educação é um ato religioso: na escola e no oratório guarda-se o tesouro da Igreja futura. A bênção de Jesus às crianças, reproduzida nas primeiras páginas do jornal, é manifestação do Coração que “se aperta como um pai” e anuncia a vocação salesiana: fazer da juventude um “sacramento” que torna Deus presente na cidade. Escolas, colégios, laboratórios não são opcionais: são a maneira concreta de honrar o Coração de Jesus vivo nos jovens.

Novembro – Triunfos da Igreja: a humildade que vence a morte
            A liturgia recorda os santos e os defuntos; o Boletim medita sobre o “triunfo manso” de Jesus que entra em Jerusalém. A imagem torna-se chave de leitura da história da Igreja: sucessos e perseguições se alternam, mas a Igreja, como o Mestre, ressuscita sempre. Os leitores são convidados a não se deixarem paralisar pelo pessimismo: as sombras do momento (leis anticlericais, redução das ordens, propaganda maçônica) não apagam o dinamismo do Evangelho. O templo do Sagrado Coração, erguido entre hostilidades e pobreza, será o sinal tangível de que “a pedra selada foi removida”. Colaborar na sua construção significa apostar no futuro de Deus.

Dezembro – Bem-aventurança da dor: a Cruz acolhida pelo coração
            O ano termina com a mais paradoxal das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os que choram”. A dor, escândalo para a razão pagã, torna-se no Coração de Jesus caminho de redenção e fecundidade. O Boletim vê nesta lógica a chave para ler a crise contemporânea: sociedades fundadas no divertimento a todo custo produzem injustiça e desespero. Aceita em união com Cristo, porém, a dor transforma os corações, fortalece o caráter, estimula a solidariedade, liberta do medo. Até as pedras do santuário são “lágrimas transformadas em esperança”: pequenas ofertas, às vezes fruto de sacrifícios ocultos, que construirão um lugar de onde choverão, promete o jornal, “torrentes de castas delícias”.

Um legado profético
            Na montagem mensal do Boletim Salesiano de 1886, impressiona a pedagogia do crescendo: parte-se da pequena hora de guarda e chega-se à consagração da dor; do fiel individual ao canteiro nacional; do tabernáculo com torres do oratório aos baluartes do Esquilino. É um itinerário que entrelaça três eixos fundamentais:
            Contemplação – O Coração de Jesus é antes de tudo mistério a ser adorado: vigília, Eucaristia, reparação.
            Formação – Cada virtude (humildade, mansidão, pobreza) é proposta como remédio social, capaz de curar as feridas coletivas.
            Construção – A espiritualidade torna-se arquitetura: a basílica não é ornamento, mas laboratório de cidadania cristã.
            Sem forçar, podemos reconhecer aqui o pré-anúncio de temas que a Igreja desenvolverá ao longo do século XX: o apostolado dos leigos, a doutrina social, a centralidade da Eucaristia na missão, a proteção dos menores, a pastoral da dor. Dom Bosco e seus colaboradores captam os sinais dos tempos e respondem com a linguagem do coração.


            Em 14 de maio de 1887, quando Leão XIII consagrou a Basílica do Sagrado Coração, por meio de seu vigário Cardeal Lucido Maria Parocchi, dom Bosco – muito fraco para subir ao altar – assistiu escondido entre os fiéis. Naquele momento, todas as palavras do Boletim de 1886 tornaram-se pedra viva: a guarda de honra, a caridade educativa, a Eucaristia centro do mundo, a ternura de Maria, a pobreza reconciliadora, a bem-aventurança da dor. Hoje, essas páginas pedem um novo fôlego: cabe a nós, consagrados ou leigos, jovens ou idosos, continuar a vigília, erguer canteiros de esperança, aprender a geografia do coração. O programa continua o mesmo, simples e audacioso: custodiar, reparar, amar.


Na foto: Pintura do Sagrado Coração, colocada no altar-mor da Basílica do Sagrado Coração, em Roma. A obra foi encomendada por Dom Bosco e confiada ao pintor Francesco de Rohden (Roma, 15 de fevereiro de 1817 – 28 de dezembro de 1903).

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