A pastora, as ovelhas e os cordeiros (1867)

No trecho a seguir, Dom Bosco, fundador do Oratório de Valdocco, conta aos seus jovens um sonho que teve entre 29 e 30 de maio de 1867 e narrou na noite do Domingo da Santíssima Trindade. Numa planície sem fim, rebanhos e cordeiros tornam-se alegoria do mundo e dos jovens: prados exuberantes ou desertos áridos figuram a graça e o pecado; chifres e feridas denunciam escândalo e desonra; o número “3” prenuncia três fomes – espiritual, moral, material – que ameaçam quem se afasta de Deus. Do relato brota o apelo urgente do santo: guardar a inocência, voltar à graça com a penitência, para que cada jovem possa revestir-se das flores da pureza e participar da alegria prometida pelo bom Pastor.

No domingo da Santíssima Trindade, 16 de junho, em que Dom Bosco há vinte e seis anos atrás tinha celebrado sua primeira missa, os jovens estavam na expectativa do sonho, cuja narração havia sido anunciada no dia 13. Seu ardente desejo era o bem espiritual da grei, e sua norma, as admoestações e as promessas do livro dos Provérbios, 27, 23-25: Diligentes agnosce vultum pecoris tui, tuosque greges considera: non enim habebis iugiter potestatem: sed corona tribuetur in generationem et generationem. Aperta sunt prata, et apparuerunt herbae virentes, et collecta sunt foena de montibus (Com diligência reconhece o aspecto das tuas ovelhas e dá atenção aos teus rebanhos, pois nem sempre poderás fazê-lo e a coroa não passa de geração a geração! Roçaram-se os prados, apareceu a erva verde e foi recolhido o feno dos montes)… Nas suas orações pedia para conhecer bem as ovelhas, para ter a graça de vigiar com atenção, e garantir-lhes a guarda também após sua morte, vê-las providas de fácil e conveniente alimento espiritual e material. Então, depois das orações da noite, Dom Bosco falou assim:

Numa das últimas noites do mês de Maria, estando na cama e não conseguindo dormir, pensando nos meus queridos jovens, dizia para mim mesmo:
– Que bom se pudesse sonhar algo que fosse para o bem deles! Fiquei algum tempo refletindo e resolvi:
– Sim, agora eu quero sonhar em favor de meus jovens.
E eis que adormeci. Mal peguei no sono, me vi numa imensa planície cheia de infinita quantidade de grandes ovelhas, as quais, divididas em rebanhos, pastavam em prados extensos a perder de vista. Quis me aproximar delas e pus-me a procurar o pastor, cheio de espanto em imaginar que pudesse existir alguém no mundo dono de tantas ovelhas. Procurei por pouco tempo e me vi diante de um pastor apoiado em seu cajado.
Apressei-me a interrogá-lo, perguntando-lhe:
– A quem pertence este rebanho tão numeroso?
O pastor não respondeu. Repeti a pergunta; então me falou:
– Que interesse tem o senhor em saber?
– E por que – acrescentei – me responde desta maneira?
– Está bem, este rebanho é de seu dono.
– De seu dono? Isso eu já sabia – falei para mim mesmo. Porém continuei em voz alta:
– Quem é esse dono?
– Não se incomode – respondeu-me o pastor – sabê-lo-á.
Então, andando com ele por aquele vale, pus-me a examinar o rebanho, por todos os lugares por onde vagava. Em certos locais, o vale estava coberto por rica vegetação, com árvores que estendiam grandes copas com agradáveis sombras e gramados novíssimos nos quais belas e vigorosas ovelhas pastavam. Em outras partes a planície era estéril, arenosa, cheia de pedras com espinheiros sem folhas, gramíneas amareladas, não existindo sequer um fio de capim verde. Apesar disso, também aqui outras ovelhas pastavam, mas com miserável aparência.
Eu pedia que meu guia me explicasse várias coisas a respeito de seu rebanho. Sem nada me responder às minhas perguntas, me disse:
– Você não é destinado para elas. Não pense nestas. Vou conduzi-lo ao rebanho do qual você deve cuidar.
– Mas você, quem é?
– Sou o dono. Venha comigo para observar lá, daquele lado.
Conduziu-me a outro lugar da planície onde havia milhares e milhares somente de cordeirinhos. Eram tão numerosos que não dava para contá-los. Eram tão magros que mal e mal podiam andar. O campo estava seco, árido e arenoso; não se via um fiapo de capim verde, um regato. Somente algum raminho ressequido e moitas secas. Toda pastagem havia sido destruída pelos próprios cordeirinhos.
Notava-se à primeira vista que esses coitados cordeirinhos, cobertos de feridas, tinham sofrido muito, continuavam sofrendo. Coisa estranha! Cada um tinha dois chifres compridos e grossos na testa, como se fossem carneiros velhos. Na ponta dos chifres havia um apêndice em forma de “S”. Maravilhado, fiquei perplexo com este estranho apêndice. Não entendia porque esses cordeirinhos já tinham chifres tão compridos e grossos e tivessem destruído tão rapidamente toda a pastagem.
– Como se explica isto? – Falei ao pastor. – Esses cordeirinhos são tão pequenos e já com chifres assim?
– Olhe – respondeu-me; – observe.
Observando com mais atenção, vi que esses cordeirinhos carregavam enigmaticamente muitos números “3” estampados em todas as partes do corpo: no lombo, na cabeça, no focinho, nas orelhas, no nariz, nas pernas, nos cascos.
– Mas, o que isto significa? – Exclamei. – Não entendo nada.
– Como não entende? – Disse-me o pastor. – Então ouça e compreenderá tudo. Esta enorme planície é o mundo. Os locais revestidos de ervas, a palavra de Deus e sua graça. Os locais estéreis e áridos são onde não se ouve a palavra de Deus, procurando-se somente os prazeres do mundo. As ovelhas são os adultos; os cordeirinhos são os jovens; para estes Deus enviou Dom Bosco. Este ângulo da planície que você vê é o Oratório; os cordeirinhos aí reunidos são os seus meninos. Este lugar árido significa o estado de pecado. Os chifres significam a desonra. A letra “S” quer dizer scandalo (escândalo). Com o mau exemplo se dirigem para a ruína. No meio desses cordeirinhos há alguns com os chifres quebrados; foram escandalosos, e agora pararam de dar escândalo. O número “3” significa que carregam o castigo da culpa. Quer dizer que sofrerão três grandes carências: carência espiritual, moral, material. 1º A carência de auxílios espirituais; pedirão esta ajuda, e não a terão. 2º Carência da palavra de Deus. 3º Carência de pão material. O fato de os cordeirinhos terem comido tudo, quer dizer que nada mais lhes resta senão a desonra. O número “3” são as três ausências. Esse espetáculo mostra também os sofrimentos de muitos jovens no meio do mundo. No Oratório não falta pão material, também para os que seriam indignos.
Enquanto eu ouvia e observava tudo como que esquecido, nova maravilha
aparece. Todos os cordeirinhos mudam de aparência.
Ergueram-se sobre as patas traseiras ficando altos e tomando a forma de outros tantos jovens do Oratório. Aproximei-me para ver se conhecia algum. Todos eram alunos do Oratório. Muitos deles nunca os tinha visto, porém, todos afirmavam serem filhos do nosso Oratório. Entre os que eu não conhecia havia alguns poucos que presentemente estão no Oratório. São os que nunca se apresentam a Dom Bosco, que nunca vão buscar conselho com ele, os que fogem dele. Numa palavra, aqueles que Dom Bosco não conhece ainda! Entretanto, a maioria dos desconhecidos era dos que não foram nem estão ainda no Oratório.
Enquanto, com pena, observava essa multidão, quem me acompanhava tomou-me pela mão e me disse: – Venha comigo e verá outras coisas. – Conduziu-
-me a um canto remoto do vale, circundado por pequenas colinas, cercado por uma sebe de plantas viçosas, onde havia um grande prado verdejante, o mais agradável que se pode imaginar, cheio de toda espécie de ervas aromáticas, disseminado de flores campestres, com viçosas moitas e correntes de águas límpidas. Aqui encontrei outro imenso número de filhos, todos alegres, os quais com flores tinham-se feito ou estavam fazendo linda roupagem.
– Você tem ao menos esses que lhe dão grande satisfação.
– Quem são? – Perguntei.
– São os que estão na graça de Deus.
Ah, posso dizer que nunca vi coisas e pessoas tão bonitas e esplêndidas. Nem podia imaginar tais resplendores. É inútil que eu queira descrevê-los, pois seria impossível falar sem estar vendo. Porém, estava reservado um espetáculo mais surpreendente. Enquanto observava com grande alegria esses jovens, e entre eles via muitos que não conhecia ainda, meu guia acrescentou:
– Venha, venha comigo, e lhe mostrarei algo que lhe fará grande alegria e consolação maior. – Conduziu-me a outro campo completamente tomado das mais raras e perfumadas flores nunca vistas. Seu aspecto era como um jardim principesco. Aqui se via uma quantidade não tão grande de jovens, entretanto de extraordinária formosura e esplendor de maneira a fazer desaparecer os que há pouco eu tinha admirado. Alguns desses já estão aqui no Oratório, outros virão mais tarde.
O pastor me falou:
– Esses são os que conservam o lindo lírio da pureza. Estão ainda vestidos com a estola da inocência.
Olhava extático. Quase todos tinham na cabeça um coroa de flores indescritivelmente lindas. Estas flores eram formadas de outras minúsculas flores de surpreendente delicadeza. As cores eram de encantadora vivacidade e variedade, mais de mil cores numa única flor. Numa só flor se viam mil flores. Uma veste de deslumbrante brancura lhes descia até aos pés, também toda tecida de guirlandas de flores, semelhantes às da coroa. A luz que saía dessas flores revestia toda a pessoa e espelhava nela toda a alegria. As flores se refletiam umas nas outras, aqueles das coroas naquelas das guirlandas, reverberando cada uma os raios emitidos pelas outras. Um raio de uma cor, quebrando-se com raio de outra cor, formava outros novos raios, diferentes, brilhantes. Assim, de cada raio eram reproduzidos outros novos raios, de forma que eu nunca teria podido imaginar que no céu houvesse tantos variados encantos. Isto não é tudo. Os raios e as flores da coroa de uns se refletiam nas flores e nos raios da coroa de todos os outros: igualmente as guirlandas e o esplendor da veste de um refletiam-se nas guirlandas e vestes dos outros. E depois, os esplendores do rosto de um jovem, ricocheteando, se fundiam com os do rosto dos companheiros, de modo que, reverberando sobre todos aqueles rostinhos inocentes e redondos, produziam luz tão forte que ofuscava a visão e impedia de fixar o olhar.
Desta forma, em um só se concentravam as belezas de todos os outros companheiros com inefável harmonia de luz! Era a afortunada glória dos santos. Não há imagem humana para descrever, nem que seja fracamente, como estava belo cada um dos jovens no meio do oceano de esplendores. Entre estes observei alguns em particular, que hoje estão no Oratório. Tenho certeza que se pudessem contemplar ao menos um décimo de sua beleza atual, estariam prontos a sofrer o fogo, a se deixar cortar em pedaços, enfim, a ir ao encontro do mais atroz martírio para não perdê-la.
Assim que pude me recuperar deste espetáculo celeste, voltei-me para o pastor e disse:
– Então, entre tantos, meus jovens, são tão poucos os inocentes? São tão poucos os que nunca perderam a graça de Deus?
O pastor respondeu:
– Como? Não lhe parece bastante este elevado número? De mais, os que tiveram a desgraça de perder o lindo lírio da pureza, e com este a inocência, podem ainda seguir seus companheiros na penitência. O senhor vê lá? Naquele campo se encontram ainda muitas flores. Pois bem, eles podem fazer-se uma coroa e uma veste belíssima e acompanhar ainda os inocentes na glória.
– Sugira-me ainda alguma coisa para eu falar aos meus jovens – disse eu.
– Repita a seus jovens, que se soubessem como são belas a inocência e a pureza aos olhos de Deus, estariam prontos a fazer qualquer sacrifício para conservá-la. Diga-lhes que criem coragem para praticar esta virtude cândida, que supera as outras em beleza e esplendor. Pois os castos são os que crescunt tanquam lilia in conspectu Domini (Crescem como lírios na presença do Senhor).
Então quis me dirigir para o meio daqueles meus caríssimos, tão singularmente coroados, mas tropecei no terreno e, acordando, estava na cama.
Meus filhos, vocês são todos inocentes? Talvez alguns de vocês sejam. A estes dirijo minhas palavras. Não percam, por caridade, esta virtude de valor inestimável! É uma riqueza que tem o mesmo valor do Paraíso, o mesmo valor de Deus! Se vocês tivessem visto como eram belos esses jovens com suas flores. O conjunto desse espetáculo era tal que eu daria qualquer coisa do mundo para usufruir ainda dessa vista; mais, se fosse pintor, consideraria uma grande graça conseguir pintar de alguma maneira o que vi. Se soubessem como é a beleza de um inocente, se sujeitariam a qualquer grande esforço, até à morte, para conservar o tesouro da inocência.
O número dos que tinham voltado à graça, apesar de me terem dado contentamento, contudo eu esperava que fosse mais alto. Fiquei maravilhado ao ver que alguns que aqui na aparência parecem bons jovens, lá tinham os chifres compridos e grossos…

Dom Bosco encerrou com calorosa exortação para aqueles que tinham perdido a inocência, a fim de que se esforçassem com toda a vontade a recuperar a graça por meio da penitência.
Dois dias depois, em 18 de junho, subia à cátedra e explicava um pouco o sonho.

Não haveria necessidade de explicar o sonho, porém repetirei o que já falei. A grande planície é o mundo e também os lugares e a região de onde foram chamados para cá todos os nossos jovens. O lugar onde estavam os cordeirinhos é o Oratório. Os cordeirinhos são todos os jovens que estiveram, presentemente estão e estarão no Oratório. Os três prados nesse lugar, o árido, o verdejante, o florido, significam a situação de pecado, o estado de graça e o estado de inocência. Os chifres dos cordeirinhos são os escândalos dados no passado. Havia os que tinham os chifres quebrados; estes foram escandalosos, agora, porém, pararam de dar escândalo. Os enigmas “3”, estampados em cima de cada cordeirinho, são como aprendi do pastor, três castigos que o Senhor enviará para os jovens: 1 º Carência de auxílios espirituais. 2º Carência moral, isto é, falta de instrução religiosa e da palavra de Deus. 3º Carência material, quer dizer, falta de alimento. Os jovens reluzentes são os que estão na graça de Deus, sobretudo os que ainda conservam a inocência batismal e a bela virtude da pureza. Que glória os aguarda!
Disponhamo-nos, então, caros jovens, corajosamente a praticar a virtude.
Quem não está na graça de Deus coloque-se de boa vontade e, depois, com todas as suas forças e a ajuda de Deus, persevere até a morte. Se nem todos pudermos estar na companhia dos inocentes fazendo coroa ao Cordeiro Imaculado, Jesus, ao menos possamos segui-lo depois deles.
Um me perguntou se ele estava entre os inocentes, e eu lhe disse que não; que tinha os chifres, mas quebrados. Perguntou-me ainda se estava com feridas; respondi-lhe que sim.
– E o que significam essas feridas? – Acrescentou.
Respondi: – Não tenha medo. Estão tratadas, desaparecerão. Essas feridas agora não são mais de desonra, como as cicatrizes não trazem desonra a quem esteve no combate. Este, apesar de tantas feridas, perseguição e esforços do inimigo, soube vencer e conseguir a vitória. São, portanto, cicatrizes de honra!… Mas, tem mais honra quem, lutando no meio dos inimigos, fica sem nenhuma ferida. Sua incolumidade provoca a maravilha em todos.

Ao explicar este sonho, Dom Bosco afirmou que não levará muito tempo até que esses três males se façam sentir: – Peste, fome e falta de meios para trazer-nos o bem.
Acrescentou que não passarão três meses sem que aconteça algo de particular.
Este sonho produziu impressão nos jovens, com os frutos obtidos como tantas outras exposições similares.
(MB IT VIII 839-845 / MB PT VIII 903-909)




Ninguém assustava as galinhas (1876)

Ambientada em janeiro de 1876, a peça apresenta um dos mais sugestivos “sonhos” de Dom Bosco, instrumento predileto com que o santo turinense sacudia e guiava os jovens do Oratório. A visão se abre para uma planície interminável onde fervilham os trabalhos dos semeadores: o trigo, símbolo da Palavra de Deus, só germinará se protegido. Mas galinhas vorazes caem sobre a semente e, enquanto os camponeses cantam versículos evangélicos, os clérigos encarregados da custódia permanecem mudos ou distraídos, deixando que tudo se perca. A cena, animada por diálogos argutos e citações bíblicas, torna-se parábola da murmuração que apaga o fruto da pregação e advertência à vigilância ativa. Com tons ao mesmo tempo paternos e severos, Dom Bosco transforma o elemento fantástico em lição moral incisiva.

Na segunda metade de janeiro o Servo de Deus teve um sonho simbólico do qual falou com alguns Salesianos. P. Barberis pediu-lhe para contá-lo em público porque os seus sonhos agradavam muito aos jovens, faziam-lhes muito bem e os afeiçoava ao Oratório.
– Sim, isso é verdade, respondeu o Beato, fazem bem e são ouvidos com avidez; o único prejudicado sou eu, pois precisaria ter pulmões de ferro. Bem se pode dizer que no Oratório não há sequer um que não se sinta emocionado com tais narrações, pois na maioria das vezes esses sonhos impressionam a todos e cada um quer saber em que situação o tenha visto, o que deva fazer, que significado tenha isto ou aquilo. E eu fico aflito dia e noite. Se depois quero despertar o desejo das confissões gerais, não tenho outra coisa a fazer senão narrar um sonho. Escute, faça uma coisa. Domingo irei falar aos jovens e você interrompe-me em público. Eu então contarei o sonho.
No dia 23 de janeiro, após as orações da noite, ele subiu na cátedra. O seu rosto, radiante de alegria, manifestava, como sempre, a própria alegria de encontrar-se entre seus filhos. Após um pouco de silêncio, P. Barberis pediu para falar e perguntou:
– Desculpe, senhor Dom Bosco, permite-me fazer-lhe uma pergunta?
– Pois não, diga.
– Ouvi dizer que nestas noites passadas, teve um sonho de semeadura, com semeador, com galinhas e que já o contou ao clérigo Calvi. Poderia fazer o favor de contá-lo também a nós? Isso nos daria muito prazer.
– Curioso! – disse Dom Bosco em tom de bronca. E então explodiu uma gargalhada geral.
– Não importa, sabe, que me chame de curioso; contanto que nos conte o sonho. E com este meu pedido creio interpretar a vontade de todos os jovens que certamente o ouvirão com muito gosto.
– Se é assim, eu o conto. Não queria dizer nada porque há coisas que se referem a vários de vocês em particular e algumas também para você, que fazem arder um pouco as orelhas; mas já que me pediram, eu contarei.
– Mas, eh!, senhor Dom Bosco, se há alguma paulada para mim, poupe-a aqui em público.
– Eu contarei as coisas como as sonhei, cada um tome a sua parte. Mas antes de tudo é preciso que cada um tenha em mente que os sonhos me acontecem dormindo e dormindo não se pensa; por isso, se há algo de bom, alguma advertência a tomar, se tome. Além disso, ninguém fique preocupado. Disse que sonhando eu de noite dormia, porque alguns sonham também de dia e algumas vezes até mesmo estando acordados e com não leve incômodo dos professores para os quais tornam-se estudantes que importunam.

Parecia-me estar longe daqui e encontrar-me em Castelnuovo d’Asti, minha terra. Diante de mim, havia uma grande extensão de terra, situada em uma vasta e bela planície; mas aquele terreno não era nosso e não sabia de quem era.
Naquele campo vi muitos que trabalhavam com pás, enxadas e outros instrumentos. Havia um que arava, quem semeava o grão, quem aplainava a terra, quem fazia outras coisas. Havia aqui e lá chefes escolhidos para dirigir os trabalhos e, entre esses, parecia-me estar também eu. Coros de camponeses estavam em outro lugar cantando. Eu observava maravilhado e não sabia dar-me conta daquele lugar. Dizia a mim mesmo: – Mas, com que finalidade estas pessoas trabalham tanto? E respondia a mim mesmo: – Para prover o pão de cada dia aos meus jovens. E era realmente uma maravilha ver como aqueles bons agricultores não desistiam sequer um instante do trabalho e sem cessar continuavam no seu trabalho com um ardor contínuo e com a mesma constância. Só alguns estavam rindo e brincando entre eles.
Enquanto eu contemplava tão belo quadro, olho ao meu redor e vejo que me rodeavam alguns padres e muitos dos meus clérigos, alguns próximos e outros a uma certa distância. Dizia comigo mesmo: – Mas eu sonho; os meus clérigos estão em Turim, aqui, ao invés, estamos em Castelnuovo. E depois, como pode ser isso? Eu estou com roupa de inverno da cabeça aos pés, somente ontem eu estava com tanto frio e agora aqui se semeia o grão. Eu me tocava as mãos e caminhava e dizia: – Mas realmente não estou sonhando, este é um campo real; este clérigo aqui é o clérigo A… em pessoa; este outro é o clérigo B. E depois, como no sonho eu poderia ver esta coisa e aquela outra?
Nesse meio tempo, vi ali perto mais à parte, um velho que aparentemente se mostrava muito benévolo e sensato, prudente, atento a observar-me e aos outros. Aproximei-me dele e lhe perguntei: – Diga-me, bravo homem, escute-me! Que é isso que eu vejo e não compreendo nada? Onde estamos aqui? Quem são esses trabalhadores? De quem é este campo?
– Oh, respondeu-me aquele homem; belas perguntas a serem feitas! É um padre e não sabe estas coisas?
– Mas por isso diga-me! Você acredita que eu sonho ou que esteja acordado? Pois me parece sonhar e não me parecem possíveis as coisas que vejo.
– Possibilíssimas, antes, reais e me parece que o senhor esteja bem desperto. Não se percebe? Fala, ri, brinca.
– E no entanto há alguns, eu acrescentei, que no sonho parecem falar, escutar, agir, como se estivessem acordados.
– Mas não; deixe de lado tudo isso. O senhor está aqui com corpo e alma.
– Seja pois assim; e se eu despertar, diga-me, então, de quem é este campo.
– O senhor estudou latim; qual é o primeiro nome da segunda declinação que estudou no Donato? Sabe-o ainda?
– Eh, claro que sei; mas o que tem a ver isso com a minha pergunta?
– Tem a ver e muitíssimo. Diga, pois, qual é o primeiro nome que se estuda na segunda declinação.
– É Dominus.
– E como é o genitivo?
– Domini!
– Bravo, bem, Domini; este campo é pois Domini, do Senhor.
– Ah! Agora começo a compreender alguma coisa! – exclamei.
Estava maravilhado pela conclusão obtida daquele bom velho. No momento vi várias pessoas chegando com sacos de grãos para semear e um grupo de camponeses cantava: Exit, qui seminat, seminare semem suum (O semeador saiu a semear a sua semente – Lc 8,5).
A mim parecia um pecado jogar fora aquela semente e fazê-las morrer enterrada. Era tão belo aquele grão! Não seria melhor, dizia comigo mesmo, não seria melhor triturá-lo e fazer dele pão ou massa? – Mas depois pensava: – Quem não semeia não recolhe. Se não se lança a semente e essa não apodrece, o que se recolherá depois?
Naquele instante vejo sair de todas as partes uma multidão de galinhas e irem para a semeadura bicar todo grão que outros espalhavam.
E aquele grupo de cantores continuava o seu canto: Venerunt aves caeli, sustulerunt frumentum e reliquerunt zizaniam (Vieram as aves do céu, pegaram o trigo e deixaram a cizânia – cf. Mt 12,43).
Dou uma olhada ao redor e observo aqueles clérigos que estavam comigo. Um com as mãos entrelaçadas estava olhando com fria indiferença; outro tagarelava com os colegas, outros se abraçavam; outros olhavam o céu, outros riam daquele quadro, outros continuavam tranquilamente o seu recreio e os seus jogos, outros terminavam algum trabalho seu; mas ninguém espantava as galinhas para fazê-las ir embora. Eu me dirijo a eles muito magoado e, chamando cada um pelo nome, dizia: – Mas o que fazem? Não veem aquelas galinhas comendo todo o grão? Não veem que destroem a boa semente, fazem desaparecer as esperanças destes bons lavradores? O que colherão depois? Por que estão assim calados? Por que não gritam, por que não as fazem ir embora?
Mas os clérigos encolhiam os ombros, olhavam-me e nada diziam. Alguns nem sequer se viraram: não cuidavam antes daquele campo nem cuidarão depois que eu ralhei.
Vocês são todos insensatos! – eu continuava. As galinhas já estão todas com o papo cheio. Vocês não poderiam bater as mãos e fazer assim? E, no entanto, eu batia as mãos encontrando-me em uma verdadeira confusão, pois de nada adiantavam as minhas palavras. Então alguns se puseram a afugentar as galinhas, mas eu repetia comigo mesmo: – Eh, sim! Agora que todo o grão foi comigo, se espantam as galinhas!
Naquele momento me surpreendeu o ouvido o canto daquele grupo de lavradores os quais cantavam assim: Canes muti nescientes latrare (São cães mudos incapazes de ladrar – cf. Is 56,10).
Então me dirigi àquele bom velho e, entre estupefato e indignado, disse-lhe: – Vamos lá! Dê-me uma explicação do que vejo; eu não entendo nada disso. O que é aquela semente que se lança por terra?
– Oh, amigo! Semen est verbum Dei (A semente é a Palavra de Deus – Lc 8,11).
– Mas o que quer dizer isso, pois vejo que lá as galinhas a comem?
O velho, mudando o tom de voz, prosseguiu:
– Oh! Se quer uma explicação mais completa eu lha dou. O campo é a vinha do Senhor, da qual se fala no Evangelho, e se pode também entender do coração do homem. Os cultivadores são os operários evangélicos que, especialmente com a pregação, semeiam a Palavra de Deus. Esta palavra produziria muito fruto naquele coração, terreno bem preparado. Mas quê? Vêm os pássaros do céu e a levam embora.
– O que significam esses pássaros?
– Quer que eu lhe diga o que indicam? Indicam as murmurações. Ouvida aquela pregação que traria efeito, vai-se com os colegas. Um faz o comentário sobre um gesto, em voz alta, durante uma palavra do pregador, e então se perde todo o fruto da pregação. Um outro culpa o pregador por algum defeito físico ou intelectual, um terceiro ri do seu italiano, e todo o fruto da pregação fica perdido. O mesmo deve-se dizer de uma boa leitura cujo bem fica impedido por uma murmuração. As murmurações são tanto piores, pois geralmente são secretas, ocultas e ali vivem e crescem onde nada mais podemos esperar. O grão, ainda que seja num campo não muito cultivado, todavia nasce, cresce, alcança uma boa altura e produz fruto. Quando num campo, há pouco semeado, vem um temporal, então ele se torna chão batido e não produz mais tanto fruto, mas ainda produz. Se também a semeadura não for tão boa, no entanto crescerá: trará pouco fruto, mas o trará. Ao invés, quando as galinhas ou os pássaros bicam as sementes, não tem mais jeito: o campo não produz mais nada; não traz fruto de qualidade. Do mesmo modo, se às pregações, aos conselhos, aos bons propósitos houver por trás alguma outra coisa como distração, tentação etc., haverá menos fruto; mas quando há murmuração, o falar mal ou coisa semelhante, aqui não há o pouco que permanece, mas há logo o tudo que é levado embora. E a quem compete bater palmas, insistir, ralhar, vigiar, para que estas murmurações, estas más conversas não aconteçam? O senhor o sabe!
– Mas o que faziam esses clérigos? – eu lhe perguntei. Não podiam eles impedir tanto mal?
– Não impediram nada, ele prosseguiu. Alguns estavam observando como estátuas mudas, outros não olhavam, não pensavam, não viam e ali estavam com os braços cruzados, outros não tinham a coragem para impedir esse mal; alguns poucos, porém, se uniam também aos murmuradores, tomavam parte nas suas maledicências, faziam o papel de destruidores da Palavra de Deus. Você que é padre insista sobre isto: prega, exorta, fala, não tenha medo de jamais falar demais; e todos saibam que criticar quem prega, quem exorta, quem dá bom conselho é o que provoca a parte maior do mal. E o ficar calado quando se vê alguma desordem e não impedi-la, especialmente quem poderia ou deveria, isto é, em resumo, tornar-se cúmplice do mal alheio.
Eu, ciente de tudo por essas palavras, queria ainda olhar, observar esta e aquela coisa, repreender os clérigos, estimulá-los a cumprir o próprio dever. E eles já se mexiam e procuravam afugentar as galinhas. Mas eu, tendo dado alguns passos, tropecei num rastelo, destinado a aplainar a terra, deixado naquele campo, e acordei. Agora deixemos de lado tudo e vamos à moral. P. Barberis, o que nos diz a respeito deste sonho?
– Digo, respondeu P. Barberis, que é uma boa surra e um golpe a quem toca.
– Está certo, retomou Dom Bosco, é uma lição que precisa fazer-nos bem; e tenham em mente isto, meus queridos jovens, evitar entre vocês de qualquer maneira a murmuração, como um mal extraordinário, fugindo dela como se foge da peste, e não só evitá-la vocês, mas com toda força procurar fazer com os outros a evitem. Algumas vezes santos conselhos, ótimas obras não fazem o bem, que leva a impedir uma murmuração e qualquer palavra que possa prejudicar a outros. Armemo-nos de coragem e combatamo-la com franqueza. Não há pior desgraça do que a de fazer perder a palavra de Deus. E basta um mote, basta uma brincadeira.
Contei-lhes um sonho ocorrido já em várias noites, mas nesta noite passada tive um outro que agora desejo narrar-lhes. Ainda não é muito tarde; são apenas as nove eu posso expô-lo a vocês. Contudo procurarei não demorar.
Pareceu-me, então, encontrar-me num lugar que agora não me lembro mais qual fosse; eu não estava mais em Castelnuovo, mas parece-me que nem mesmo estivesse no Oratório. Veio alguém apressadamente me chamar: – Dom Bosco, venha! Dom Bosco, venha!
– Mas qual é o motivo de tanta pressa? – eu respondi.
– Está sabendo das coisas acontecidas?
– Eu não entendo o que você quer dizer: explique-me claramente, respondi ansioso.
– Não sabe, Dom Bosco, que tal jovem tão bom, tão animado, está gravemente enfermo, aliás, moribundo?
– Eu duvido que você queira brincar comigo, lhe disse: porque exatamente esta manhã falei e passeei com o mesmo jovem que você agora me diz estar moribundo.
– Ah, Dom Bosco! Eu não o estou enganando e me julgo na obrigação de narrar-lhe a pura verdade. Aquele jovem tem grande necessidade do senhor e deseja vê-lo e falar-lhe pela última vez. Mas venha logo porque senão não chega em tempo.
Eu, sem saber o lugar, fui apressadamente atrás daquele tal. Chego em um lugar e vejo gente triste e chorando que me diz:  Ajude-nos logo, por favor, porque está nas últimas.
– Mas o que aconteceu? – respondo. Fui levado em um quarto onde vejo deitado um jovem muito pálido no rosto, com uma cor quase cadavérica, com uma tosse e um estertor que o sufocava e mal permitia que ele falasse.
– Mas você não é o fulano de tal? – eu lhe disse:
– Sim, sou o tal.
– Como está?
– Estou mal!
– E como é que agora o vejo neste estado? Você não estava andando tranquilo sob os pórticos ontem e esta manhã?
– Sim, respondeu o jovem, ontem e esta manhã passeava sob os pórticos; mas agora faça depressa que eu tenho necessidade de confessar-me; vejo que me resta muito pouco tempo.
– Não se aflija, não se aflija; você confessou-se há poucos dias.
– É verdade e me parece não havia nenhuma falta grave no meu coração; todavia desejo receber a santa absolvição antes de apresentar-me ao Divino Juiz.
Eu ouvi a sua confissão. Mas observei que piorava visivelmente e um catarro estava para sufocá-lo. – Mas aqui é preciso agir rápido, digo comigo mesmo, se quiser que receba ainda o santo viático e o óleo santo. Antes, o viático não poderá mais recebê-lo, seja porque requer mais tempo para os preparativos, seja porque a tosse poderia impedi-lo de engolir. Depressa, o óleo santo!
Assim dizendo, saio do quarto e mando imediatamente um homem pegar a bolsa com os óleos santos. Os jovens que estavam na sala me perguntavam:
– Mas está realmente em perigo? Está mesmo moribundo, como se está dizendo?
– Infelizmente! – eu respondia. Não vê que a respiração se lhe torna cada vez mais lenta e o catarro o sufoca?
– Mas será melhor trazer-lhe também o viático e assim fortalecido mandá-lo nos braços de Maria.
Mas enquanto eu me apressava preparando o necessário, ouço um voz. – Expirou!
Entro de novo no quarto e encontro o enfermo com os olhos arregalados; não respira mais; está morto.
– Está morto? – perguntei para aqueles dois que o assistiam.
– Está morto, responderam-me. Está morto.
– Mas como vai, assim tão depressa? Diga-me: não é esse o fulano?
– Sim, é o fulano.
– Não posso acreditar! Ainda ontem passeava comigo sob os pórticos.
– Ontem passeava e agora está morto, me replicaram.
– Felizmente era um jovem bom! – exclamei. E dizia aos jovens que estavam ao meu redor: – Veem, veem? Este não pôde nem mesmo receber o viático e a extrema unção. Agradeçamos, porém, ao Senhor que lhe deu tempo para confessar-se. Este jovem era bom, frequentava bastante os sacramentos, e esperamos que tenha ido para uma vida feliz, ou ao menos no purgatório. Mas se tocasse um pouco a outros o mesmo destino, o que seria agora de alguns?
Dito isso, colocamo-nos todos de joelhos e rezamos um De profundis pela alma do pobre falecido.
Enquanto eu ia para o quarto, vejo chegar Ferraris [Coadjutor João Antônio Ferraris, livreiro] da livraria, o qual todo aflito, me diz:
– Sabe, Dom Bosco, o que aconteceu?
– Eh, infelizmente já sei! Morreu o tal! – respondo.
– Não é isso que eu quero dizer; há outros dois mortos.
– Como? Quem?
– O sicrano e o beltrano.
– Mas quando? Não compreendo.
– Sim, dois outros que morreram antes que o senhor chegasse.
– E por que não me chamou?
– Faltou tempo. Mas o senhor sabe dizer-me quando este aqui morreu?
– Morreu agora, respondi.
– O senhor sabe que dia é hoje e de que mês? – continuou Ferraris.
– Claro que sei: hoje é 22 de janeiro, segundo dia da novena de São Francisco de Sales.
– Não, disse Ferraris. O senhor se engana, Dom Bosco; veja bem. – Eu ergo os olhos para o calendário e vejo: 26 de maio.
– Mas esta é boa! – exclamei. Estamos em janeiro e eu bem consciente de como estou vestido; não se veste assim em maio; em maio o aquecedor não estaria ligado.
            – Eu não sei o que dizer-lhe ou que explicação dar-lhe, mas agora estamos no dia 26 de maio.
– Mas se apenas ontem faleceu este nosso companheiro e estávamos em janeiro.
– Engana-se, insistiu Ferraris; estávamos no tempo pascal.
– Mais uma você acrescenta e ainda maior!
– Tempo pascal, sem dúvida; estávamos no tempo pascal, e ele teve mais sorte de morrer na Páscoa do que os outros dois, que morreram no mês de Maria.
– Você está zombando de mim, eu lhe disse. Explique-se melhor, do contrário eu não o entendo.
– Eu não estou zombando, em absoluto. A coisa é assim. Se depois quiser saber mais, e que eu me explique melhor, eis! Esteja atento!
– Abri os braços, depois bati as duas mãos uma contra a outra bem forte. E despertei. Então exclamei: – Oh, que sorte! Não é realidade, mas um sonho. Que medo que eu tive!
Eis o sonho que tive na noite passada. Vocês deem a ele a importância que quiserem. Eu mesmo não quero dar-lhe fé totalmente. Hoje, porém, quis ver se aqueles que me pareceram mortos no sonho estavam vivos ainda, e os vi sãos e fortes. Certamente não convém que eu diga e não direi quem são aqueles. Todavia estarei de olho sobre os dois; se for necessário algum conselho para viver bem, lhes darei, e os prepararei fazendo vistas largas sem que percebam; porque assim, se lhes ocorresse morrer, a morte não os encontre despreparados. Mas ninguém fique falando: Será este, será aquele. Cada um pense em si.
E não fiquem preocupados com isso. O efeito que deve surtir em vocês é simplesmente o que nos sugere o Divino Salvador no Evangelho: Estote parati, quia, qua hora non putatis, filius hominis veniet (Estejam preparados porque o Filho do homem virá na hora em que não pensais – Lc 12,4). É esta uma importante advertência que nos faz o Senhor, meus queridos jovens. Estejam sempre preparados porque na hora em que menos esperamos pode vir a morte, e aquele que não estiver preparado para morrer bem, corre o grave risco de morrer mal. Eu procuro estar preparado o melhor que posso e vocês façam o mesmo, a fim de que a qualquer hora que agrade ao Senhor chamar-nos, possamos estar prontos para passar à eternidade. Boa noite!

As palavras de Dom Bosco eram ouvidas sempre em religioso silêncio, mas quando ele falava destas coisas extraordinárias, entre as centenas de meninos que lotavam o lugar, não se ouvia um rumor de tosse nem a mais leve roçadura dos pés. A forte impressão durava semanas e meses; e com a impressão aconteciam mudanças radicais no comportamento de alguns endiabrados. Fazia-se depois fila ao redor do confessionário de Dom Bosco. Não vinha à cabeça de ninguém supor que ele inventasse aquelas narrativas para assustar e melhorar a vida dos jovens, porque os anúncios de mortes próximas tornavam-se realidade sempre e certos estados de consciência vistos em sonhos correspondiam à realidade.
Mas o temor produzido por tão lúgubres prognósticos não era uma angústia opressora? Não parece. Apresentavam-se muitas possibilidades e hipóteses a uma multidão de mais de oitocentos jovens a fim de que cada um pudesse preocupar-se disso. Além do mais, a persuasão realmente difundida, que quem morria no Oratório ia certamente para o Paraíso, e que Dom Bosco preparava os designados sem assustá-los, contribuía para expulsar todo temor do espírito. Por outro lado, sabe-se bem quão grande é a volubilidade juvenil, num instante a fantasia dos jovens é atingida e abalada; mas depois aquela lembrança se liberta bem depressa de qualquer preocupação. É o que nos atestavam unânimes os sobreviventes daqueles tempos.
Tendo os jovens ido dormir, alguns coirmãos que rodeavam o Beato cobriam-no de perguntas para saber se algum deles estava entre aqueles que deviam morrer. O Servo de Deus, sorrindo conforme o seu costume e girando a cabeça, repetia:
– Já, já! Virei dizer-lhes quem é, com perigo de fazer alguém morrer antes do tempo!
Visto que ali não se tirava nada, perguntaram-lhe se no primeiro sonho havia também clérigos fazendo parte das galinhas, que se entregassem à murmuração. Dom Bosco, que passeava, parou, olhou para os interlocutores e deu um risinho como para dizer: – Eh! Alguém sim; mas poucos, e não acrescentou nada mais. – Então lhe pediram que dissesse ao menos se eles estavam entre os cães mudos; o Beato se firmou nos princípios gerais, observando que era preciso estar atentos para evitar e fazer evitar as murmurações e em geral todas as desordens, especialmente as más conversas. – Ai do padre e do clérigo, disse, o qual, encarregado da vigilância, vê as desordens, e não as impede! Desejo que se saiba e se lembrem que com a palavra “murmurações” eu não entendo apenas o cortar a casaca pelas costas, mas toda conversa, todo gracejo, toda palavra que possa diminuir em um colega o fruto da Palavra de Deus ouvida. Em geral, entendo dizer que é um grande mal calar-se, quando se conhece alguma desordem, não a impedindo ou não procurando que a impeça quem de direito.
Um mais ousado fez ao Servo de Deus uma pergunta um tanto arriscada.
– E P. Barberis, por que entra no sonho? O senhor disse que havia também para ele, e o próprio P. Barberis parecia esperar para si uma boa paulada. – P. Barberis estava presente. Inicialmente Dom Bosco acenava a não querer responder. Mas depois, permanecendo ao seu lado apenas alguns padres e mostrando-se P. Barberis satisfeito que ele revelasse o segredo, o Beato disse:
– Eh! P. Barberis não prega suficientemente sobre este ponto; não insiste quanto é preciso sobre este assunto. – P. Barberis confirmou que nem no ano anterior nem no ano em curso jamais se tinha fixado de propósito sobre aqueles temas aos seus noviços; gostou muito da observação e pendurou-a na orelha para o futuro.
Dito isto, subiram as escadas e todos, após beijar a mão de Dom Bosco, se afastaram e foram dormir. Todos, menos P. Barberis que, conforme o costume, acompanhou-o até a porta do seu quarto. Dom Bosco, vendo que ainda era cedo e pressentindo que não poderia dormir, porque fortemente impressionado pelas coisas expostas, contra o seu hábito costumeiro, fez P. Barberis entrar em seu aposento, dizendo:
– Já que ainda temos tempo podemos dar dois passos num vai-e-vem pela sala.
Assim continuou a discorrer por uma meia hora. Disse então outras coisas: – Eu, no sonho, vi todos e vi o estado em que cada um se encontrava; se galinha, se cão mudo, se no número daqueles que avisados se puseram mãos à obra ou não se moveram. Sirvo-me desta doutrina confessando, exortando em público até ver que produzam o bem. No início não dava muita importância a esses sonhos; mas percebi que na maior parte das vezes são mais eficazes que as pregações; antes, para alguns são mais eficazes do que um curso de Exercícios Espirituais, por isso sirvo-me deles. E por que não? Lê-se na Sagrada Escritura: Probate spiritus: quod bonum est tenete (Examinai vossas almas; guardai o que é bom – cf. 1Ts 5,21). Vejo que valem, vejo que agradam, e por que mantê-los secretos? Antes, vejo que contribuem para afeiçoar muitos à Congregação.
– Experimentei eu mesmo, interrompeu P. Barberis, quão úteis são esses sonhos e quão salutares. Mesmo narrados alhures, fazem bem. Onde Dom Bosco é conhecido, pode-se dizer que são sonhos que ele teve; onde não é conhecido, pode-se apresentar como semelhança. Oh, se se pudesse fazer disso uma antologia, expondo-lhes em forma de semelhanças! Seriam procurados e lidos por crianças e por adultos, por jovens e por idosos, com vantagem para suas almas.
– Já, já! Fariam bem, estou intimamente convicto disso.
– Mas, talvez, lamentou P. Barberis, ninguém os recolheu por escrito.
– Eu, retomou Dom Bosco, não tenho tempo e de muitas coisas não me lembro mais.
– Aquilo de que me lembro, replicou P. Barberis, são os sonhos que se referiam aos progressos da Congregação, ao estender-se do manto de Nossa Senhora.
– Ah, sim! – exclamou o Beato. E acenou a várias visões deste gênero. Tomando depois um ar mais sério e meio conturbado, prosseguiu:
– Quando penso na minha responsabilidade na posição em que me encontro, tremo inteiramente… Que contas tremendas deverei prestar a Deus por todas as graças que nos concede para o bom andamento da nossa Congregação!
(MBp XII, 36-48)

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A décima colina (1864)

O sonho da “Décima Colina”, narrado por Dom Bosco em outubro de 1864, é uma das páginas mais sugestivas da tradição salesiana. Nele, o santo se encontra em um vale imenso cheio de jovens: alguns já no Oratório, outros ainda a serem encontrados. Guiado por uma voz misteriosa, ele deve conduzi-los por uma escarpa íngreme e depois por dez colinas, símbolo dos dez mandamentos, em direção a uma luz que prefigura o Paraíso. O carro da Inocência, as hostes penitenciais e a música celestial desenham um afresco educativo: mostram a dificuldade de preservar a pureza, o valor do arrependimento e o papel insubstituível dos educadores. Com essa visão profética, Dom Bosco antecipa a expansão mundial de sua obra e o compromisso de acompanhar cada jovem no caminho da salvação.

            Dom Bosco tinha tido um sonho na noite anterior. Ao mesmo tempo um menino, chamado C… E…, de Casale Monferrato, teve o mesmo sonho, parecendo-lhe estar com Dom Bosco e conversar com ele. Quando acordou ficou muito impressionado e foi contar o sonho ao seu professor, que o exortou a contar tudo a Dom Bosco. O menino foi procurá-lo e se encontrou com o próprio, que descia a escada e soube que ele também estava à sua procura para lhe relatar a mesma coisa.
            Pareceu a Dom Bosco estar num vale enorme repleto de milhares de garotos, mas tão numerosos que ele não acreditava poder encontrar tantos no mundo inteiro. Entre estes ele podia reconhecer todos aqueles que foram e que estão agora no Oratório. Todos os outros eram talvez aqueles que virão mais tarde. No meio dos jovens, podiam-se ver os padres e os clérigos da casa.
            Uma escarpada muito alta fechava um lado daquele vale. Enquanto Dom Bosco pensava o que poderia fazer com todos estes jovens, “uma voz” lhe disse:
            – Está vendo aquela escarpada? Pois bem, precisa que você e os seus jovens alcancem o topo.
            Então Dom Bosco ordenou àquela multidão de jovens de se dirigir até o ponto indicado. Os jovens foram correndo e iniciaram a subir pela escarpada. Os padres da casa também correram e subiam ajudando os jovens: Levantavam os que caíam e carregavam os que, cansados, não aguentavam mais. P. Rua, com as mangas arregaçadas, trabalhava mais que todos e, até agarrando os meninos de dois em dois, lançava-os até o cume da escarpada, onde caíam em pé e corriam alegremente a brincar. P. Cagliero e P. Francesia corriam no meio dos meninos gritando:
            – Coragem, continuem; continuem, coragem.
            Em pouco tempo aquela multidão de jovens chegou no topo da escarpada; também Dom Bosco tinha chegado e disse: – E agora, o que vamos fazer?
            – E a “voz” continuou:
            – Você deve ultrapassar com os seus jovens estas dez colinas que estão à sua frente, uma após a outra.
            – Mas como é que vão conseguir aguentar uma caminhada tão longa, estes garotos tão pequenos e delicados?
            Foi-lhe respondido: – Quem não puder andar com suas próprias pernas será carregado.
            E eis, de fato, na extremidade da colina aparecer uma magnífica carruagem. Impossível descrever a beleza daquela carruagem, mas vou tentar. Era triangular e tinha três rodas que se movimentavam em todos os sentidos. Nos três cantos havia três hastes cujas extremidades se encontravam num mesmo ponto por cima da mesma carruagem, formando como que um pináculo de caramanchão. Sobre este ponto de união se levantava um magnífico estandarte sobre o qual estava escrito em caracteres cubitais: Innocentia (Inocência). Havia uma faixa ao redor da carruagem com a escrita: Adjutorio Dei Altissimi Patris et Filii et Spiritus Sancti (Com a ajuda do Deus Altíssimo Pai e Filho e Espírito Santo).
            A carruagem, que era de grande esplendor, por causa do ouro e pedras preciosas, veio até o meio dos jovens. Dada a ordem, muito meninos subiram na carruagem. Seu número era de quinhentos. Quinhentos apenas eram ainda inocentes, no meio a tantos milhares de jovens.
            Dispostos estes na carruagem, Dom Bosco pensava por qual caminho deveria ir, quando viu abrir-se à sua frente uma estrada ampla e bonita, mas cheia de espinhos. Apareceram então, de repente, seis jovens, já falecidos no Oratório, vestidos de branco, carregando outra belíssima bandeira onde estava escrito: Poenitentia (Penitência). Estes se puseram à frente daquelas legiões de jovens que deviam seguir o caminho a pé. Então foi dado o sinal da partida. Muitos padres puseram-se no timão da carruagem, que, dirigida por eles, começou a se mover. Os seis meninos, vestidos de branco, seguem-no. Atrás deles vinha a multidão. Os garotos que estavam na carruagem entoaram o Laudate pueri Dominum (Louvai, meninos, ao Senhor – Sl 112,1) com uma melodia magnífica e inexprimível.
            Dom Bosco caminhava encantado com aquela música celestial, quando se lembrou de olhar atrás para ver se todos os jovens o acompanhavam. Mas, oh, doloroso espetáculo! Muitos tinham ficado no vale, muitos voltaram atrás. Dom Bosco, agitado por dor inexprimível, decidiu voltar atrás para tentar convencer aqueles jovens levianos e ajudá-los a segui-lo. Mas foi-lhe decididamente negado.
            Exclamou ele: – Mas aqueles coitados vão se perder.
            Foi-lhe respondido:
            – Pior para eles: eles foram chamados como os outros e não quiseram acompanhá-lo. A estrada a ser percorrida, eles a viram e isso basta.
            Dom Bosco queria replicar; pediu, suplicou: inútil.
            Foi-lhe dito: – A obediência é para você também! – E teve que continuar o caminho.
            Nem tinha ainda suavizado esta dor, quando um outro acidente aconteceu. Muitos dos que estavam na carruagem, aos poucos, foram caindo por terra. De quinhentos, ficaram apenas 150 debaixo do estandarte da inocência.
            O coração de Dom Bosco partia-se por tanta angústia. Ele esperava que o que estava acontecendo fosse um sonho, fazia de tudo para acordar, mas infelizmente tudo aquilo era a triste realidade. Batia palmas e ouvia o som delas; gemia e ouvia seus gemidos ecoarem pelo quarto; queria fazer sumir aquele terrível fantasma, mas não podia.
            Neste ponto, narrando o sonho, exclamava: – Meus queridos jovens! Eu conheci e vi os que ficaram no vale, os que voltaram ou caíram da carruagem! Eu reconheci a todos vocês. Mas tenho a certeza de que farei de tudo para salvá-los. Muitos de vocês, convidados por mim para se confessar, não acataram o meu chamado! Pelo amor de Deus, salvem suas almas.
            Muitos dos garotos que tinham caído da carruagem foram aos poucos se juntar entre os que caminhavam atrás da segunda bandeira. E a música da carruagem continuava tão suave que aos poucos fez esquecer a dor que Dom Bosco sentia. Sete colinas já estavam ultrapassadas e, chegando aquelas legiões na oitava, entraram num maravilhoso povoado, onde pararam para descansar um pouco. As casas daquele lugar eram de uma riqueza e beleza indescritível.
            Dom Bosco, falando aos jovens sobre este lugar, acrescentou:
            – Vou dizer para vocês o que Santa Teresa afirmou das coisas do Paraíso: são coisas que ao se falar se degradam, porque são tão belas que é inútil esforçar-se para descrevê-las. Por isso digo-lhes só que os portais das casas pareciam um conjunto de ouro, cristal e diamante que surpreendia, enchia os olhos e infundia muita alegria. Os campos estavam cheios de árvores carregadas ao mesmo tempo de flores, botões, fruta madura e fruta verde. Era uma visão maravilhosa.
            Os jovens espalharam-se pelo povoado daqui e dali, uns para uma coisa, outros para outra, pois grande era a curiosidade deles e o desejo de provar daquela fruta.
            Foi nesta vila que aquele jovem de Casale se encontrou com Dom Bosco e conversou longamente com ele. Dom Bosco e o menino lembravam perfeitamente as perguntas feitas e as respostas. Singular combinação de dois sonhos.
            Dom Bosco neste ponto teve mais uma estranha surpresa. Os seus jovens apareceram-lhe, de repente, de idade avançada, curvos, desdentados, cheios de rugas no rosto, cabelos brancos, claudicantes, apoiados em bengalas. Ficou admirado com esta metamorfose, mas a “voz” lhe disse:
            – Você se admira; mas saiba que não são poucas horas desde que saiu do vale, mas já se passaram anos e anos. Foi aquela música que lhe fez parecer curto o caminho. Como prova, olhe a sua fisionomia e verá o que estou lhe dizendo.  – E foi apresentado a Dom Bosco um espelho. Ele olhou-se no espelho e viu que o seu aspecto era de um homem idoso, com o rosto cheio de rugas e com poucos dentes e estragados.
            A comitiva, entretanto, retomou o caminho, e os jovens de vez em quando pediam para parar a fim de olhar aquelas coisas novas. Mas Dom Bosco lhes dizia: – Em frente, em frente; nós não precisamos de nada; não temos fome, nem sede, portanto em frente.
            (Lá no fundo, distante, sobre a décima colina despontava uma luz que ia sempre aumentando, como que saída de um portal). Recomeçou, então, o canto, mas tão bonito que só mesmo no Paraíso se poderia ouvir coisa igual e deleitar-se. Não era música de instrumentos, nem parecia de vozes humanas. Era uma música impossível de descrever; e tamanha foi a alegria que invadiu a alma de Dom Bosco que acordou e se viu em sua cama.
            Dom Bosco, então, explicou o sonho:
            – O vale é o mundo. A escarpada são os obstáculos para afastar-se dele. A carruagem, vocês já entenderam. As turmas dos jovens a pé são os que, perdida a inocência, arrependeram-se de suas faltas.
            Dom Bosco acrescentou ainda que as dez colinas representavam os dez mandamentos da lei de Deus, cuja observância leva à vida eterna.
            Enfim, anunciou que, se fosse necessário, estaria disposto a revelar em particular a alguns jovens o que faziam naquele sonho; se ficaram no vale ou se caíram da carruagem.
            Descido do estrado, o aluno Antônio Ferraris aproximou-se dele e contou, estando nós presentes e entendendo perfeitamente o que ele dizia, como na noite anterior ele sonhou de estar com sua querida mãe, que lhe perguntou se por ocasião da Páscoa viria para casa de férias. Dom Bosco respondeu-lhe que antes da Páscoa estaria no Paraíso. Em seguida o jovem, em confiança, baixinho, falou algumas outras coisas ao ouvido de Dom Bosco. Antônio Ferraris faleceu no dia 16 de março de 1865.
            Colocamos logo por escrito o sonho, e na mesma noite de 22 de outubro de 1864, no final, acrescentamos a seguinte nota: “Eu tenho certeza de que Dom Bosco, pelas suas explicações, procurou encobrir o que o sonho tem de mais surpreendente, pelo menos por alguma circunstância. Aquela dos dez mandamentos não me convence. A oitava colina onde Dom Bosco parou, e se viu no espelho muito mais idoso, eu creio que indique o fim de sua vida, que deveria acontecer depois dos setenta anos. O futuro dirá”.
            Este futuro é agora, tempo que passou e confirmou a nossa opinião. O sonho indicava a Dom Bosco a duração de seu viver. Vamos confrontar com esse o da Roda, que a gente só pôde conhecer alguns anos depois. Os giros da Roda correspondem a uma dezena de anos; e assim, também, parece que tenha o mesmo espaço de tempo o proceder de colina em colina. Cada um das colinas corresponde a dez anos, de modo que elas significam cem anos, o máximo da vida de um homem. Agora, nós vemos Dom Bosco, menino de dez anos, iniciar sua missão entre os colegas dos Becchi e, assim, iniciar sua viagem; percorre todas as sete colinas, isto é, sete dezenas, portanto, a sua idade chega a setenta anos; sobe na oitava colina e aqui faz uma parada: vê casas e campos maravilhosos, isto é, a sua Congregação (Pia Sociedade), tornada grande e cheia de frutos pela infinita bondade de Deus. É ainda longo o caminho a percorrer na oitava colina, e retoma a viagem; mas não chega à nona colina, pois ele acordou. Assim ele não viveu a oitava dezena de anos, vindo a falecer aos 72 anos e cinco meses.
            O que diz o leitor sobre isso? Vou acrescentar que, na noite seguinte, tendo Dom Bosco perguntado nosso parecer sobre o sonho, respondi que o sonho não dizia respeito somente aos jovens, mas indicava a expansão da Congregação (Pia Sociedade) em todo o mundo.
            – Que nada – retrucou um dos nossos irmãos; temos já o Colégio de Mirabello e de Lanzo e talvez vamos ter mais alguns outros no Piemonte. O que quer mais?
            – Não! O sonho nos aponta outros destinos.
            E Dom Bosco aprovava, sorrindo, a nossa certeza.
(MBp VII, 820-826)




Os cordeirinhos e a tempestade de verão (1878)

O relato onírico que se segue, narrado por Dom Bosco na noite de 24 de outubro de 1878, é muito mais do que um simples entretenimento noturno para os jovens do Oratório. Através da delicada imagem dos cordeirinhos surpreendidos por uma violenta tempestade de verão, o santo educador traça uma alegoria vívida das férias escolares: um tempo aparentemente despreocupado, mas carregado de perigos espirituais. O prado convidativo representa o mundo exterior, o granizo simboliza as tentações, enquanto o jardim protegido alude à segurança oferecida pela vida de graça, pelos sacramentos e pela comunidade educativa. Neste sonho, que se torna catequese, Dom Bosco lembra aos seus meninos — e a nós — a urgência de vigiar, recorrer à ajuda divina e apoiar-se mutuamente para voltar íntegros à vida cotidiana.

            Da partida para as férias e do retorno, nenhuma novidade neste ano, se não fosse um sonho em torno dos efeitos que as férias costumam produzir. Dom Bosco narrou-o na noite de 24 de outubro. Assim que fez seu anúncio, viram-se manifestações gerais de júbilo.
            Estou feliz em ver meu exército armado contra diabolum (contra o demônio). Essa expressão, embora latina, também é entendida por Cottino [ajudante no refeitório, que se gabava de ser poeta]. Tantas coisas gostaria de dizer-lhes, sendo a primeira vez que lhes falo depois das férias; mas por enquanto quero contar-lhes um sonho. Sabem que os sonhos são feitos dormindo e que não se deve acreditar neles; mas se não há mal em não acreditar, às vezes não há mal em acreditar e pode até servir como instrução, como, por exemplo, este.
            Eu estava em Lanzo no primeiro turno de exercícios espirituais e dormia quando, como eu disse, tive um sonho. Encontrei-me num lugar onde não sabia qual região fosse, mas era perto de uma cidade onde se estendia um jardim, e próximo a este jardim um vasto prado. Estava na companhia de alguns amigos que me convidaram para entrar no jardim. Entro e vejo muito cordeiros que pulavam, corriam, davam cambalhotas, segundo seu costume. Quando eis que uma porta se abre no gramado e os cordeiros saem para pastar.
            Muitos, no entanto, não se importam em sair, mas param no jardim; e iam aqui e ali cortando um pouco de grama, e assim pastavam, embora não houvesse capim em abundância como fora no prado, aonde chegara o maior número. – Quero ver o que esses cordeirinhos fazem lá fora, – eu disse. Fomos ao prado e vimo-los pastando em paz. E eis que o céu se escurece rapidamente, raios e trovões seguem e uma tempestade se aproxima.
            – O que será desses cordeirinhos, se pegam a tempestade? – eu ia falando. Vamos nos retirar em lugar seguro. – E comecei a chamá-los. Então eu de um lado e os meus companheiros espalhados em lugares diferentes, tentamos empurrá-los para a porta do jardim. Mas eles não queriam saber de entrar; corre aqui, foge de lá, eh, sim! Os cordeirinhos tinham pernas melhores que as nossas. Enquanto isso, gotas grossas começaram a cair, então veio a chuva e eu não conseguia reunir aquele rebanho. Uma ou duas ovelhinhas entraram no jardim, mas todas as outras, e estavam em grande quantidade, permaneceram no prado. – Bem, eu disse, se elas não querem vir, pior para elas! No entanto, nós nos retiramos. – E fomos para o jardim.
            Lá havia uma fonte sobre a qual estava escrito em grandes letras: Fons signatus, fonte selada. Estava coberta e eis que se abre; a água se eleva e se divide em forma de arco-íris, mas parecido a uma abóbada como esse pórtico.
            Enquanto isso, os raios se tornaram mais frequentes, o trovão mais ruidoso e o granizo começou a cair. Nós, com todos os cordeiros que estavam no jardim, nos abrigamos e nos reunimos embaixo daquela abóbada maravilhosa e a água e o granizo não penetravam ali.
            – Mas o que é isso? – eu perguntava aos amigos. O que acontecerá com os pobrezinhos do lado de fora?
            – Verá! – responderam-me. Olhe na testa desses cordeiros; o que vê? – Observei e vi que na testa de cada um desses animais estava escrito o nome de um jovem do Oratório.
            – O que é isso? – perguntei.
            – Verá, verá!
            Enquanto isso, eu não conseguia mais me conter e queria sair para ver o que faziam aqueles pobres cordeiros que tinham ficado de fora. – Vou recolher os que morreram e enviá-los para o Oratório, pensava eu. – Saindo fora daquele arco, eu também peguei a chuva; e vi aquelas pobres criaturinhas caídas no chão que, enquanto se moviam, tentavam se levantar e ir em direção ao jardim; mas não podiam andar. Eu abri a porta, levantei minha voz; mas seus esforços foram inúteis. A chuva e o granizo os machucavam tanto e continuavam a maltratá-los, que dava pena: um ficara ferido na cabeça, outro na mandíbula, outro num olho, ou numa perna, outros em outras partes do corpo.
            Depois de algum tempo a tempestade cessou. – Olhe, me disse aquele que estava ao meu lado; olhe na testa desses cordeiros. – Observei e li em cada fronte o nome de um jovem do Oratório. – Mah! – eu disse; conheço o jovem que tem esse nome e não acho que é um cordeiro.
            Verá, verá, foi-me respondido. – Em seguida, um vaso de ouro com uma tampa de prata foi-me apresentado, e me foi dito: – Toque nas feridas dessas criaturas depois de molhar a mão nesse unguento e imediatamente as feridas sararão.
            Eu me coloco a chamá-las:
             – Brr, brr! – e elas não se mexem. Repito a chamada; nada: tento aproximar-me de uma e ela se afasta. – Não quer? Pior para você, exclamei. Vou para outra. – E vou, mas mesmo essa me escapa. A quantas me aproximava para ungi-las e curá-las, muitas fugiam de mim. Eu as seguia, mas repetia esse jogo inutilmente. Por fim, cheguei a uma que, coitadinha, tinha os olhos fora das órbitas e tão surrada que dava pena. Toquei-a com a mão e ela sarou e pulou para o jardim.
            Então muitas outras ovelhas, tendo visto isto, não mais tiveram repugnância e permitiram ser tocadas, curadas e entraram no jardim. Mas muitas e geralmente as mais feridas ficaram de fora, nem foi possível abordá-las.
            – Se não querem curar-se, pior para elas! Mas não sei como posso levá-las de volta para o jardim.
            – Deixe isso, disse-me um dos amigos que estavam comigo; elas virão, elas virão.
            – Vamos ver! – eu disse, e recoloquei o vaso de ouro lá onde estava antes e voltei ao jardim. Este tinha-se mudado e li sobre a entrada: Oratório. Assim que entrei, eis que aqueles cordeiros que não queriam vir, se aproximam, entram furtivamente e correm para se esconder aqui e ali; e nem mesmo então consegui abordar algum. Havia também vários que, não tendo recebido de bom grado o unguento, esse convertera-se em veneno e, em vez de curá-los, exacerbava suas feridas.
            – Olhe! Vê aquele estandarte? – disse-me um amigo.
            – Virei e vi uma grande bandeira abanar, e podia-se ler nela uma palavra em grandes letras: Férias. – Sim, estou vendo, respondi.
            – Eis o efeito das férias, explicou quem estava me acompanhando, estando eu fora de mim pela dor daquele espetáculo. Os meus jovens deixam o Oratório para ir de férias, com boa vontade para alimentar-se da palavra de Deus e para se manterem bons: mas depois vem a tempestade, que são as tentações; então a chuva, que são os assaltos do diabo; enfim, o granizo cai e é quando os coitados caem em culpa. Alguns ainda se recuperam com a confissão, mas outros não usam bem este sacramento, ou não o frequentam. Tenha isso em mente e nunca se canse de dizer aos seus jovens que as férias são uma grande tempestade para suas almas.
            Observava eu esses cordeiros e via em alguns feridas mortais; e estava tentando encontrar uma maneira de curá-los, quando P. Scappini, que fizera barulho, levantando-se no quarto ao lado, me acordou.
            Este é o sonho, e embora seja um sonho, tem um significado que não prejudicará aqueles que nele prestarão atenção. Também posso dizer que notei alguns nomes entre os muitos cordeiros do sonho e, comparando-os com os jovens, vi que estes se comportavam exatamente como aconteceu no sonho. Seja qual for o caso, devemos nesta novena dos Santos corresponder à bondade de Deus que quer usar de misericórdia e com uma boa confissão purgar as feridas de nossa consciência. Devemos, então, todos concordar em lutar conta o demônio e com a ajuda de Deus sairemos vitoriosos desta batalha e iremos receber o prêmio da vitória no Paraíso.
            Este sonho deve ter tido uma grande influência no início do novo ano escolar; de fato, na novena da Imaculada, as coisas estavam progredindo tão bem, que Dom Bosco expressou sua satisfação dizendo: – Os jovens estão agora no ponto em que, nos últimos anos, mal chegavam em fevereiro. – Na festa da Imaculada Conceição esses viram renovar-se a bela função de despedida da quarta expedição de missionários.
(MB XIII 761-764 / MB PT XIII, 661-665)




Dom Bosco assiste a uma reunião de demônios (1884)

As páginas a seguir nos levam ao cerne da experiência mística de São João Bosco, através de dois sonhos vívidos que ele teve entre setembro e dezembro de 1884. No primeiro, o Santo atravessa a planície em direção a Castelnuovo com um personagem misterioso e reflete sobre a escassez de padres, advertindo que apenas trabalho incansável, humildade e moralidade podem fazer florescer vocações autênticas. No segundo ciclo onírico, Bosco assiste a um concílio infernal: demônios monstruosos conspiram para aniquilar a nascente Congregação Salesiana, espalhando gula, avidez por riquezas, liberdade sem obediência e orgulho intelectual. Entre presságios de morte, ameaças internas e sinais da Providência, esses sonhos se tornam um espelho dramático das lutas espirituais que aguardam todo educador e a Igreja inteira, oferecendo ao mesmo tempo advertências severas e esperanças luminosas.

            Ricos em ensinamentos são dois sonhos que ele teve em setembro e dezembro.

            O primeiro, ocorrido na noite de 29 para 30 de setembro, é uma lição para os sacerdotes. Parecia que ele estava indo em direção a Castelnuovo, atravessando uma planície; um venerável sacerdote, cujo nome ele disse não se lembrar mais, estava caminhando ao seu lado. O discurso tratava sobre os sacerdotes. – Trabalho, trabalho, trabalho! diziam eles. Esse deveria ser o objetivo e a glória dos sacerdotes. Nunca se cansem de trabalhar. Então, quantas almas seriam salvas! Quantas coisas seriam feitas para a glória de Deus! Ah, se o missionário realmente agisse como missionário, se o pároco realmente atuasse como pároco, quantas maravilhas de santidade brilhariam por todos os lados! Mas, infelizmente, muitos têm medo de trabalhar e preferem seu próprio conforto…
            Raciocinando dessa forma entre si, chegaram a um lugar chamado Filippelli. Então Dom Bosco começou a lamentar a falta de sacerdotes em nossos dias.
            – É verdade, replicou o outro, há uma escassez de sacerdotes; mas se todos os sacerdotes agissem como sacerdotes, haveria um número suficiente deles. Alguns não fazem nada mais do que servir como um padre de família; outros, por timidez, ficam ociosos, enquanto que se se lançassem ao ministério, se fizessem o exame de confissão, preencheriam um grande vazio nas fileiras da Igreja… Deus distribui as vocações de acordo com a necessidade. Quando veio o recrutamento militar dos clérigos, todos ficaram assustados, como se ninguém mais fosse se tornar padre; mas quando as fantasias se acalmaram, viu-se que as vocações estavam crescendo em vez de diminuir.
            – E agora, perguntou Dom Bosco, o que se deve fazer para promover as vocações entre os jovens?
            – Nada mais, respondeu seu companheiro, do que cultivar zelosamente a moralidade entre eles. A moralidade é a sementeira das vocações.
            – E o que os padres devem fazer de modo especial para garantir que sua vocação dê frutos?
            – Presbyter discat domum suam regere et sanctificare. (O sacerdote deve aprender a governar e santificar sua casa). Que cada um seja um exemplo de santidade em sua própria família e paróquia. Que não seja desordenado com a gula, que não se envolva em cuidados temporais… Que primeiro seja um modelo em casa e depois será o primeiro fora dela.
            Num certo ponto do caminho, aquele sacerdote perguntou a Dom Bosco para onde ia; Dom Bosco indicou Castelnuovo. Ele então o deixou seguir em frente e permaneceu com um grupo de pessoas estavam diante dele. Depois de alguns passos, Dom Bosco acordou. Nesse sonho, podemos ver uma lembrança das antigas caminhadas por esses lugares.

Prediz a morte de salesianos
            O segundo sonho se refere à Congregação e adverte sobre os perigos que poderiam ameaçar sua existência. Na verdade, mais do que um sonho, é uma discussão que se desdobra em uma sucessão de sonhos.
            Na noite de 1º de dezembro, o clérigo Viglietti foi acordado por gritos lancinantes vindos do quarto de Dom Bosco. Ele imediatamente pulou da cama e ficou ouvindo. Dom Bosco, com uma voz sufocada pelos soluços, gritou:
            – Ai de mim! Ai de mim! Socorro! Socorro!
            Viglietti entrou sem mais delongas:
            – Oh, Dom Bosco, disse ele, está se sentindo mal?
            – Oh, Viglietti! respondeu ele, acordando. Não, não estou doente; mas ele nem conseguia respirar. Mas basta isso: volte para a cama tranquilamente e durma.
            De manhã, quando Viglietti, como de costume, lhe trouxe o café depois da missa, ele começou a dizer:
            – Oh, Viglietti! Eu não aguento mais; meu estômago está todo revirado por causa da gritaria desta noite. Estou tendo sonhos há quatro noites seguidas, que me obrigam a gritar e me deixam exausto. Há quatro noites, vi uma longa fila de salesianos, todos indo um após o outro, cada um carregando um bastão, no topo do qual havia uma placa e, na placa, um número impresso. Em um deles, estava escrito 73, em outro, 30, em um terceiro, 62 e assim por diante. Depois que muitos passaram, a lua apareceu no céu, na qual, à medida que um salesiano aparecia, podia-se ver um número nunca maior que 12, e atrás dele vinham muitos pontos pretos. Todos os salesianos que eu tinha visto foram e sentaram-se cada um em um túmulo preparado.
            E aqui está a explicação dada para esse espetáculo. O número nos cartazes era o número de anos de vida destinados a cada um; o aparecimento da lua em várias formas e fases indicava o último mês de vida; os pontos pretos eram os dias do mês em que morreriam. Às vezes, ele via um número cada vez maior de pessoas reunidas em grupos: eram aquelas que morreriam juntas, no mesmo dia. Se ele quisesse narrar detalhadamente todos os incidentes e circunstâncias, ele garantiu que teria levado pelo menos dez dias inteiros.

Assiste a um conselho de demônios
            Três noites atrás, continuou ele, sonhei novamente. Vou lhe contar em poucas palavras. Parecia-me que eu estava em um grande salão, onde demônios em grande número estavam realizando uma conferência e discutindo como exterminar a Congregação Salesiana. Eles se pareciam com leões, tigres, cobras e outras feras; mas sua figura era como que indeterminada e se aproximava mais da figura humana. Pareciam sombras, que ora se abaixavam, ora se levantavam, encolhiam-se e esticavam-se, como muitos corpos fariam se tivessem uma luz atrás de si, carregada de um lado ou de outro, ora abaixada até o chão, ora levantada. Mas aquela fantasmagoria era assustadora.
            Ora, eis que um dos demônios avançou e abriu a sessão. Para destruir a Pia Sociedade, ele propôs um meio: a gula. Ele mostrou as consequências desse vício: inércia para o bem, corrupção da moral, escândalo, falta de espírito de sacrifício, falta de cuidado com os jovens… Mas outro demônio lhe respondeu:
            – Este meio não é geral e eficaz; nem todos os membros podem ser atacados com ele de uma só vez, porque a mesa dos religiosos será sempre frugal e o vinho comedido: a regra fixa sua comida ordinária: os Superiores vigiam para evitar a desordem. Aqueles que às vezes exageram no comer e no beber, em vez de escandalizar, causariam antes repulsa. Não, essa não é a arma para combater os Salesianos; proporei outro meio, que será mais eficaz e atingirá melhor nosso objetivo: o amor às riquezas. Em uma Congregação religiosa, quando o amor às riquezas está envolvido, o amor ao conforto também está envolvido, procura-se de todas as maneiras criar um pecúlio, o vínculo da caridade é quebrado, cada um pensa em si mesmo, os pobres são negligenciados para cuidar apenas daqueles que são afortunados, a Congregação é roubada…
            Ele queria continuar, mas um terceiro demônio surgiu.
            – Mas que gula! exclamou ele. Mas que riquezas! Entre os Salesianos, o amor às riquezas pode vencer poucos. Os Salesianos são todos pobres; têm poucas oportunidades de adquirir um pecúlio. Em geral, portanto, são assim constituídos e suas necessidades para tantos jovens e para tantas casas são tão imensas que qualquer soma, mesmo grande, seria consumida. Não é possível que eles acumulem bens. Mas eu tenho um meio infalível de conquistar a Sociedade Salesiana para nós, que é a liberdade. Induzir os Salesianos a desprezar as Regras, a rejeitar certos encargos como pesados e desonrosos, levá-los a afastar-se de seus Superiores com opiniões diferentes, a ir para casa sob o pretexto de convites e coisas do gênero.
            Enquanto os demônios falavam, Dom Bosco pensava: – Estou atento, sabe, ao que vocês estão dizendo. Falem, falem, para que eu possa desmascarar suas tramas.
            Enquanto isso, um quarto demônio deu um pulo e gritou:
            – Qual o quê! Suas armas são fracas! Os Superiores saberão restringir essa liberdade, expulsarão das casas qualquer um que se atreva a se mostrar rebelde às Regras. Alguns podem se deixar levar pelo amor à liberdade, mas a grande maioria se manterá fiel ao seu dever. Eu tenho um meio adequado para arruinar tudo desde os alicerces; um meio tal que os Salesianos dificilmente poderão perceber: será realmente um desgaste fatal. Ouçam-me com atenção. Persuadi-los de que o fato de serem instruídos é o que deve constituir sua principal glória. Portanto, induzi-los a estudar muito para si mesmos, para adquirir fama, e a não praticar o que aprendem, a não fazer uso da ciência em benefício dos outros. Daí a arrogância em suas maneiras para com os ignorantes e os pobres, preguiça no ministério sagrado. Não mais oratórios festivos, não mais catecismos para crianças, não mais escolas primárias para instruir os meninos pobres e abandonados, não mais longas horas no confessionário. Eles apenas pregariam, mas de forma rara e comedida e estéril, porque seria feita por orgulho, a fim de obter o louvor dos homens e não para salvar almas.
            Sua proposta foi recebida com aplausos gerais. Então Dom Bosco vislumbrou o dia em que os Salesianos poderiam se dar ao luxo de acreditar que o bem da Congregação e sua honra deveriam consistir apenas no conhecimento, e temia que não só agissem dessa maneira, mas também pregassem em voz alta que deveriam agir assim.
            Também desta vez Dom Bosco estava em um canto da sala, ouvindo e observando tudo, quando um dos demônios o descobriu e, aos gritos, apontou-o para os outros. Com esse grito, todos correram para ele, gritando:
            – Nós vamos acabar com isso! Era uma confusão infernal de fantasmas, que o golpeavam, agarravam-no pelos braços e pelo corpo todo, e ele gritou: Me soltem! Socorro! – Finalmente, ele acordou com o estômago revirado de tanto gritar.

Leões, tigres e monstros vestidos de cordeiros
            Na noite seguinte, ele percebeu que o demônio havia atacado os Salesianos em seu ponto mais essencial, levando-os a transgredir as Regras. Entre eles, estavam diante dele, distintamente, os que as observavam e os que não as observavam.
            Na última noite, o sonho foi assustador. Dom Bosco viu um grande rebanho de cordeiros e ovelhas que representavam o mesmo número de salesianos. Ele se aproximou, tentando acariciar os cordeiros; mas percebeu que a lã deles, em vez de ser lã de cordeiro, servia apenas de cobertura, escondendo leões, tigres, cães raivosos, porcos, panteras, ursos, e cada um tinha um monstro feio e feroz em seus flancos. No meio do rebanho estavam alguns poucos reunidos em conselho. Dom Bosco, sem perceber, aproximou-se deles para ouvir o que diziam: estavam planejando como destruir a Congregação Salesiana. Um deles disse:
            – Temos de massacrar os Salesianos.
            E outro acrescentava zombeteiro:
            – Devemos estrangulá-los.
            Mas, no melhor momento, um deles viu Dom Bosco por perto, ouvindo. Ele deu o alarme e todos gritaram em uma só voz que deveriam começar por Dom Bosco. Dito isso, correram para ele como se quisessem estrangulá-lo. Nesse momento, ele deu o grito que acordou Viglietti. Outra coisa, além da violência diabólica, oprimia então seu espírito: ele tinha visto um grande cartaz sobre aquele rebanho, onde se lia: BESTIIS COMPARATI SUNT (são comparados a feras). Tendo dito isso, ele abaixou a cabeça e chorou.
            Viglietti pegou sua mão e a apertou ao coração:
            – Ah! Dom Bosco, disse-lhe ele, seremos sempre filhos fiéis e bons para o senhor, não é verdade, com a ajuda de Deus?
            – Caro Viglietti, respondeu ele, acalme-se e prepare-se para ver os acontecimentos. Eu mal mencionei esses sonhos para você; se eu tivesse que lhe contar tudo em detalhes, eu precisaria ainda de muito mais tempo. Quantas coisas eu vi! Há alguns em nossas casas que nunca mais farão a novena do Santo Natal. Ah, se eu pudesse falar com os jovens, se eu tivesse forças para me divertir com eles, se eu pudesse percorrer as casas, fazer o que eu costumava fazer, revelar a cada um o estado de sua consciência, como eu o vi no sonho, e dizer a algumas pessoas: Quebre o gelo, faça uma boa confissão uma vez! Elas responderiam: Mas eu já fiz uma boa confissão! Em vez disso, eu poderia responder, dizendo-lhes o que eles mantiveram em silêncio para que não ousassem abrir a boca novamente. Até mesmo alguns Salesianos, se eu conseguisse falar com eles, veriam a necessidade de corrigir seus caminhos, fazendo confissões novamente. Vi aqueles que observavam as Regras e aqueles que não as observavam. Vi muitos jovens que iam para São Benigno, tornavam-se Salesianos e depois desertavam. Desertarão também alguns que já são Salesianos. Haverá aqueles que desejarão, acima de tudo, a ciência que infla, que busca os elogios dos homens e que os faz desprezar os conselhos daqueles que eles acreditam ser inferiores a eles em termos de conhecimento…
            Entrelaçadas a esses pensamentos angustiantes estavam consolações providenciais, que alegraram seu coração. Na noite de 3 de dezembro, o bispo do Pará, o país central no sonho das Missões, chegou ao Oratório. E no dia seguinte ele disse a Viglietti:
            – Como é grande a Providência! Ouça e depois diga se não estamos protegidos por Deus. No mesmo dia, uma senhora de Marselha, que desejava rever seu irmão religioso em Paris, feliz por ter obtido uma graça de Nossa Senhora, trouxe mil francos para o Padre Álbera. O P. Ronchail está em situação difícil e precisa absolutamente de quatro mil francos; uma senhora escreveu hoje a Dom Bosco para colocar quatro mil francos à sua disposição. O P. Dalmazzo não sabe mais onde aonde ir para conseguir dinheiro; hoje uma senhora doou uma soma muito considerável para a igreja do Sagrado Coração. – E, em 7 de dezembro, houve a alegria da ordenação de Dom Cagliero. Todos esses fatos foram ainda mais encorajadores porque eram sinais visíveis da mão de Deus na obra de seu Servo.
(MB XVII 383-389)




São Francisco de Sales o ensina. Futuro sobre as vocações (1879)

No sonho profético que Dom Bosco relata em 9 de maio de 1879, São Francisco de Sales aparece como um mestre atencioso e entrega ao Fundador um livrinho cheio de advertências para noviços, professos, diretores e superiores. A visão é dominada por duas batalhas épicas: jovens e guerreiros primeiro, depois homens armados e monstros, enquanto o estandarte de “Maria Auxilium Christianorum” garante a vitória a quem o segue. Os sobreviventes partem para o Oriente, Norte e Sul, prefigurando a expansão missionária salesiana. As palavras do Santo insistem na obediência, castidade, caridade educativa, amor ao trabalho e temperança, colunas indispensáveis para que a Congregação cresça, resista às provações e deixe aos filhos uma herança de santidade operosa. Termina com um caixão, um severo chamado à vigilância e à oração.

            Seja o que for desse sonho [cura de doença dos olhos com suco de chicória], o Beato teve outro dos costumeiros, que ele narrou no dia 09 de maio. Nele viu as lutas renhidas que os chamados à Congregação deveriam enfrentar; recebeu uma série de vários conselhos para todos os seus e alguns para o futuro.

            Grande e longa batalha de jovens contra guerreiros de diferentes fisionomias, formas diversas, com armas estranhas. No fim sobraram poucos sobreviventes.
            Outra batalha mais renhida e horrível aconteceu entre monstros gigantescos contra homens de alta estatura bem armados e bem treinados. Estes tinham um estandarte alto e largo, no centro o qual estavam pintadas em ouro estas palavras: Maria Auxilium Christianorum. (Maria Auxílio dos Cristãos). A luta foi longa e sanguinolenta. Contudo, os que seguiam o estandarte ficaram como que invulneráveis, tornando-se donos de vastíssima planície. A estes agregaram-se jovens que sobreviveram à batalha anterior, formando juntos como que um exército, tendo cada um como arma o santíssimo crucifixo na mão direita, na esquerda um pequeno estandarte de Maria Auxiliadora, feito como foi falado acima.
            Os novos soldados realizaram muitas manobras nessa ampla planície; depois se separaram e foram uma parte para o Oriente, uns poucos para o Norte, muitos para o Sul.
            Desaparecidos estes, as mesmas batalhas aconteceram novamente, as mesmas manobras e partidas para as mesmas direções.
            Conheci alguns das primeiras lutas. Os que vieram depois me eram desconhecidos, mas eles mostravam conhecer-me e me dirigiam muitas perguntas.
            Houve depois uma chuva de pequenas chamas esplendentes que pareciam de fogo com cores variadas. Trovejou, depois o céu ficou sereno, e encontrei-me numa agradabilíssimo jardim. Um homem com a fisionomia de São Francisco de Sales ofereceu-me um livreto sem dizer palavra. Perguntei quem era.
            – Leia o livro – foi a resposta.
            Abri o livro, mas era difícil lê-lo. Pude, porém, perceber essas precisas palavras:
Aos noviços: – Obediência em tudo. Com a obediência merecerão as bênçãos do Senhor e a simpatia os homens. Com a diligência combaterão e vencerão as insídias dos inimigos espirituais.
Aos professos: – Guardar ciosamente a virtude da castidade. Amar o bom nome dos irmãos e promover a dignidade da Congregação.
Aos diretores: – Todo cuidado, todo esforço para observar e fazer observar as regras pelas quais cada um se consagrou a Deus.
Para o superior: – Holocausto absoluto para ganhar Deus para si e seus súditos.
            Muitas outras coisas estavam impressas nesse livro, mas não pude mais ler, pois o papel ficou azul como a tinta.
            – Quem é o senhor? – Perguntei novamente; e esse homem, que me fitava com olhar sereno, me respondeu:
            – Meu nome é conhecido de todos os bons e fui enviado para comunicar algumas coisas futuras.
            – Quais?
            – As que estão expostas e as que me perguntará.
            – O que devo fazer para promover as vocações?
            – Os salesianos terão muitas vocações com seu comportamento exemplar, tratando os alunos com muita caridade e insistindo na frequência à comunhão.
            – O que é preciso observar na aceitação dos noviços?
            – Excluir os preguiçosos e os glutões.
            – Ao aceitar para os votos?
            – Vigiar se há garantia quanto à castidade.
            – Como fazer para mais bem conservar o bom espírito em nossas casas?
            – Escrever, visitar, acolher e tratar com bondade; e isto frequentemente por parte dos superiores.
            – Como devemos nos regular quanto às missões?
            – Enviar indivíduos seguros na moralidade; chamar a atenção dos que deixarem perceber dúvida grave; cuidar e cultivar as vocações indígenas.
            – Nossa Congregação vai bem?
            – Qui justus est justificetur adhuc. Non progredi est regredi. Qui perseveraverit, salvus erit (Que o justo continue praticando a justiça. Não progredir é retroceder. Quem perseverar será salvo – Ap 22,11; Mt 10,22).
            – Vai crescer muito?
            – Enquanto os superiores exercerem sua função, crescerá e ninguém poderá impedir sua propagação.
            – Durará muito tempo?
            – A Congregação de vocês durará enquanto os sócios amarem o trabalho e a temperança. Se faltar uma destas duas colunas, o edifício de vocês cairá, esmagando superiores, inferiores e seus seguidores.
            Nesse instante apareceram quatro indivíduos carregando um caixão de defunto. Vieram em minha direção.
            – Para quem é isto? – eu falei.
            – Para você!
            – Já?
            – Não pergunte. Somente pense que é mortal.
            – O que querem dizer-me com este caixão?
            – Que deve fazer cumprir durante a vida o que deseja que seus filhos devam praticar depois de você. Esta é a herança, o testamento que deve deixar a seus filhos; mas deve prepará-lo e deixá-lo bem completo e bem praticado.
            – Haverá mais flores ou espinhos?
            – Haverá muitas rosas, muitas consolações; mas há iminentes espinhos pungentíssimos, causando em todos amargura profunda e tristeza. Há necessidade de rezar muito.
            – Iremos a Roma?
            – Sim, mas devagar, com a maior prudência e com refinada cautela.
            – Será iminente o fim de minha vida mortal?
            – Não se preocupe com isso. Você tem as regras, tem os livros; faça o que a outros ensina. Vigie.
            Queria perguntar mais, porém houve um tremendo trovão com relâmpagos e raios, enquanto alguns homens, melhor falando, horríveis monstros se lançaram contra mim para me despedaçar. Nesse momento negra escuridão tirou-me a visão de tudo. Achei que tinha morrido, e comecei a gritar como louco. Acordei e me vi ainda vivo. Eram quatro horas e quarenta e cinco da manhã.
            Se houver alguma coisa de bom, aceitemos.
            Em tudo haja honra e glória a Deus por todos os séculos dos séculos.
(MBp XIV, 102-104)

Foto na página de rosto. São Francisco de Sales. Anônimo. Sacristia da Catedral de Chieri




Presentes dos jovens a Maria (1865)

No sonho narrado por Dom Bosco na Crônica do Oratório, datado de 30 de maio, a devoção mariana converte-se num vívido juízo simbólico sobre os jovens do Oratório: um cortejo de jovens apresenta-se, cada qual com um dom, diante de um altar esplendidamente adornado para a Virgem. Um anjo, guardião da comunidade, acolhe ou rejeita as oferendas, desvendando-lhes o significado moral – flores perfumadas ou murchas, espinhos de desobediência, animais que personificam vícios graves como a impureza, o roubo e o escândalo. No âmago da visão, ecoa a mensagem educativa de Dom Bosco: humildade, obediência e castidade são os três pilares para se merecer a coroa de rosas de Maria.

            O Servo de Deus se consolava com a devoção a Maria Santíssima, honrada no mês de maio pela comunidade inteira de maneira especial. De suas pequenas falas à noite, a Crônica tem-nos conservado somente aquela do dia 30 do mês, que, entretanto, é de enorme preciosidade.

30 de maio

            Vi um grande altar dedicado a Maria, magnificamente decorado. Vi todos os jovens do Oratório, que em procissão se dirigiam para ele. Cantavam os louvores à Virgem Celeste, mas nem todos do mesmo modo, ainda que cantassem o mesmo hino. Muitos cantavam verdadeiramente bem e com precisão de ritmo, alguns mais forte outros mais suave. Outros cantavam com vozes péssimas e roucas. Uns destoavam. Havia os que avançavam silenciosos e saíam da fila. Uns bocejavam e pareciam enjoados; uns se empurravam e riam entre si. Todos também levavam seus presentes para oferecer a Maria. Todos tinham um ramalhete de flores, uns grandes e outros menores, diferentes um do outro. Quem tinha rosas, quem cravos, outro, violetas etc. Alguns levavam à Virgem presentes de fato estranhos: um a cabeça de um porco, outro um gato, quem um prato de sapos, quem um coelho, outro um cordeiro e outras ofertas.
            Um belo jovem estava na frente do altar, o qual, se observado com atenção se via que tinha asas nas costas. Talvez fosse o Anjo da Guarda do Oratório. À medida que os jovens chegavam, ele pegava as ofertas e as colocava sobre o altar.
            Os primeiros ofereceram magníficos buquês de flores; o anjo, sem nada dizer, os colocou no altar. Muitos outros trouxeram seus ramalhetes. O anjo os olhou, mandou desmanchar o ramalhete, fez tirar algumas flores que estavam estragadas, jogando-as fora e, refeito o ramalhete, o colocou sobre o altar. A outros que tinham flores bonitas, mas sem aroma, como seriam as dálias, as camélias etc., o anjo as fez jogar fora, pois Maria quer a realidade e não as aparências. E assim, refeito o ramalhete, o anjo o ofereceu à Virgem. Dentre as flores, muitas tinham espinhos, poucos ou muitos. Outras tinham pregos, e o anjo retirou estes e aqueles.
            Chegou, então, aquele trazia o porco, e o anjo lhe disse: – Tem coragem de oferecer a Maria este presente? Sabe o que significa o porco? Significa o vício feio da impureza. Maria que é toda pura não pode aceitar este dom. Retire-se, portanto, pois você não é digno de ficar na frente dela.
            Aproximaram-se os que tinham um gato. O anjo lhes disse: – Vocês também ousam trazer a Maria estes presentes? Sabem o que significa o gato? Simboliza o roubo, e vocês o oferecem à Virgem? São ladrões os que pegam dinheiro, coisas, livros dos companheiros; os que roubam comida do Oratório; que estragam as roupas por despeito, e desperdiçam o dinheiro dos pais porque não estudam. – E fez que estes também se retirassem à parte.
            Vieram os que tinham os pratos com sapos, e o anjo, indignado, disse: – Os sapos significam os vergonhosos pecados de escândalo, e vocês vêm para oferecê-los à Vigem? Voltem; retirem-se com os outros indignos. – Retiraram-se confusos.
            Alguns vinham com um punhal cravado no coração. Este punhal significava os sacrilégios. O anjo lhes disse: – Vocês não percebem que estão com a morte na alma? Que se estão com vida, é por misericórdia especial de Deus? De outra maneira estariam perdidos. Por favor, façam arrancar esse punhal! – E estes também foram rejeitados.
            Aos poucos todos os jovens se aproximaram. Há quem ofereceu cordeiros, coelhos, peixes, nozes, uva etc., etc. O anjo aceitou tudo e tudo colocou sobre o altar. E, após ter separados os jovens bons dos maus, mandou todos, dos quais foram aceitos os presentes a Maria, fazerem fila diante do altar. Os que tinham sido postos à parte, foram, para minha dor, muito mais numerosos do que acreditava.
            Apareceram, então, de um e de outro lado do altar, outros dois anjos. Seguravam duas riquíssimas cestas cheias de coroas feitas de rosas estupendas. Essas rosas não eram propriamente rosas da terra, mas sim, eram como que artificiais, símbolos da imortalidade.
            E o Anjo da Guarda pegou uma por uma daquelas coroas, e coroou todos os jovens que estavam enfileirados diante do altar. Entre as coroas havia umas maiores e outras menores, mas todas de admirável beleza. Notem que não estavam presentes somente os jovens atualmente da casa, mas também muitos outros que eu nunca vi. Pois bem, aconteceu uma coisa maravilhosa! Havia jovens de fisionomia tão feia que quase causavam nojo e repugnância. As estes couberam as coroas mais bonitas, significando que um exterior tão feio era suprido pelo presente, a virtude da castidade em grau eminente. Muitos se distinguiam por outras virtudes, como obediência, humildade, amor a Deus, e todos, de acordo com a grandeza destas virtudes, recebiam coroas correspondentes. E o anjo lhes disse:
            – Maria hoje quis que vocês fossem coroados com tão belas rosas. Recordem-se, contudo, de continuar de forma que não lhes sejam tiradas. Os meios para conservá-las são três. Pratiquem: 1º a humildade; 2º a obediência; 3º a castidade. Três virtudes que os farão sempre aceitos por Maria e, um dia, os tornarão dignos de receber uma coroa infinitamente mais linda do que estas.
            Então os jovens começaram a entoar diante do altar o Ave, Maris Stella (Ave, estrela do mar).
            E, tendo cantado a primeira estrofe, se movimentaram para retornar em procissão como tinham vindo, cantando o hino: Lodate Maria! Suas vozes eram tão fortes que eu fiquei espantado e maravilhado. Segui-os ainda por alguns instantes, voltando para ver os jovens separados pelo anjo. Porém não os vi mais.
            Meus caros! Sei quem foi coroado e quem o anjo expulsou. Di-lo-ei aos interessados, a fim de que procurem levar à Virgem presentes que ela se digne aceitar.
            Enquanto isso, algumas observações. – A primeira: Todos levavam flores à Virgem; havia flores de todos os tipos. Porém, observei que todos, quem mais quem menos, no meio das flores tinham espinhos. Pensei e pensei o que significariam aqueles espinhos, e descobri que realmente significavam a desobediência. Conservar dinheiro sem autorização e sem querer entregá-lo ao Prefeito [ecônomo]; solicitar permissão para ir a um lugar e depois ir num outro; ir para a aula quando os outros lá já se encontram há algum tempo; preparar saladas e outras comidas às escondidas; ir aos dormitórios dos outros quando é absolutamente proibido, qualquer que seja o motivo que possam ter; levantar-se tarde de manhã; deixar as práticas de piedade prescritas; conversar quando é tempo de fazer silêncio; comprar livros sem os mostrar; enviar sem licença cartas por meio de terceiros, para que não sejam vistas, e recebê-las usando o mesmo expediente; fazer contratos de compra e venda um com o outro. Eis o que significam os espinhos. Muitos de vocês perguntarão: é então pecado transgredir as regras da casa? Pensei seriamente nesta questão; respondo-lhes absolutamente, sim. Não lhes digo se grave ou leve: as circunstâncias dirão, mas é pecado. Alguém me dirá: mas na lei de Deus não está que devemos obedecer às regras da casa! Ouçam: está nos mandamentos: – honra pai e mãe! Sabem o que significam estas palavras pai e mãe? Referem-se também a quem lhes faz as vezes. Não está também escrito na sagrada escritura: oboedite praepositis vestris (Obedecei aos vossos dirigentes – Hb 13,17)? Se vocês têm de obedecer, é natural que eles têm de mandar. Eis a origem das regras de um Oratório, e eis se são obrigatórias ou não.
            Segunda observação: – Alguns tinham pregos no meio de suas flores, pregos que tinham servido para pregar o Senhor Jesus. E como? Sempre se começa pelas pequenas coisas e depois se chega às grandes. Aquele um queria ter dinheiro para satisfazer seus caprichos, portanto, para gastá-lo à sua maneira, não quis entregá-lo; depois começou a roubar livros de aula e terminou por furtar dinheiro e coisas dos colegas. Esse outro queria satisfazer a gula, e por isso garrafas etc., depois se permitiu licenças, em suma, caiu em pecado mortal. Eis como se acharam pregos naqueles ramalhetes; eis como o bom Jesus foi crucificado. O apóstolo diz que os pecados colocam de novo o Salvador na Cruz: Rursus crucifigentes filium Dei (Crucificam novamente o Filho e Deus – Hb 6,6).
            Terceira observação. – Muitos jovens tinham, entre as flores frescas e odoríferas, também flores murchas e podres, ou flores bonitas, mas sem aroma. Aquelas significavam as obras boas, mas feitas em pecado mortal, obras que não ajudam a aumentar seus merecimentos. As flores sem aroma são as obras realizadas por objetivos humanos, por ambição, somente para agradar aos professores e aos superiores. Então o anjo os censurava por ousarem levar semelhantes ofertas a Maria, e os mandava de volta para refazer o ramalhete. Eles se retiravam, o desfaziam, tiravam as flores estragadas e, depois, ajeitadas de novo as flores, as amarravam como antes, e as levavam ao anjo que, então, as aceitava e as colocava na mesa. Estes ao voltar não seguiam nenhuma ordem de fila, mas mal estavam prontos, quem antes, quem depois, cada um trazia de volta seu ramalhete e ia se colocar com aqueles que deviam receber a coroa.
            Neste sonho eu vi tudo o que foi e o que será de meus jovens. Para muitos já o disse. Aos outros, di-lo-ei. Por enquanto, procurem que esta Virgem Celeste sempre receba de vocês presentes que nunca tenham de ser recusados.
(MBp VIII, 157-161)

Foto de abertura: Carlo Acutis durante uma visita ao Santuário Mariano de Fátima.




Propósitos ineficazes: caminho para o inferno (1873)

São João Bosco relata em uma “boa noite” o resultado de uma longa súplica à Madonna Auxiliadora: compreender a causa principal da condenação eterna. A resposta, recebida em sonhos repetidos, é chocante em sua simplicidade: a falta de uma firme e concreta resolução ao final da Confissão. Sem uma decisão sincera de mudar de vida, até mesmo o sacramento se torna estéril e os pecados se repetem.

            Uma advertência solene: Por que tantos jovens se perdem?… Porque não fazem bons propósitos quando se confessam.

            Na noite de 31 de maio de 1873, após as orações, ao dar a boa-noite aos jovens, o Santo fez esta importante declaração, dizendo que ela era “o resultado de suas pobres orações” e “que ela vinha de Deus!”

            Durante todo o tempo da novena de Maria Auxiliadora, aliás, durante todo o mês de maio, na Missa e nas outras orações, pedi a Deus e a Nossa Senhora a graça de conhecer um pouco o que é que leva mais pessoas para o inferno.           Agora não digo se isso vem diretamente de Deus ou não. Só posso dizer que quase todas as noites eu sonhei que a razão principal era a falta de propósitos firmes na Confissão. Assim, parecia-me ver jovens que saíam da igreja para se confessar e, no entanto, tinham dois chifres. Eu dizia a mim mesmo:
            – Como isso é possível? – Ah! Isso provém da ineficácia dos propósitos feitos na Confissão!
            Este é motivo pelo qual tantos jovens vão se confessar, até mesmo com frequência, mas não se emendam nunca, confessam sempre as mesmas coisas. Há alguns (falo de forma hipotética, não me sirvo em nada da Confissão, porque há o segredo) que no princípio do ano tomaram um propósito e agora têm ainda o mesmo propósito. Outros murmuravam no princípio do ano e continuam sempre com as mesmas faltas.
            Eu julguei que podia dizer-lhes essas coisas porque este é o resultado das pobres orações de Dom Bosco, e vem de Deus.

            A respeito deste sonho não forneceu em público outros detalhes, mas sem dúvida serviu-se dele privadamente para encorajar e advertir. Para nós também, o pouco que disse e a forma como disse continua sendo uma grave advertência a ser lembrada com frequência aos jovens.
(MBp X, 62-63)




A pureza e os meios para conservá-la (1884)

Neste sonho de Dom Bosco aparece um jardim paradisíaco: uma encosta verde, árvores enfeitadas e, no centro, um imenso tapete cândido adornado com inscrições bíblicas que exaltam a pureza. À beira estão sentadas duas meninas de doze anos, vestidas de branco com cintos vermelhos e coroas de flores: personificam a Inocência e a Penitência. Com voz suave, dialogam sobre o valor da inocência batismal, sobre os perigos que a ameaçam e sobre os sacrifícios necessários para guardá-la: oração, mortificação, obediência, pureza dos sentidos.

            Ele teve a impressão de ter diante de si uma imensa e encantadora ribanceira verdejante, de suave declive e toda nivelada. Ao pé, esse prado formava como um degrau bastante baixo, do qual se saltava para a estradinha onde estava Dom Bosco. Parecia um Paraíso terrestre esplendidamente iluminado por uma luz mais pura e mais viva do que a do sol. Estava todo coberto de ervas verdejantes salpicadas de mil motivos de flores e sombreado por um número grandíssimo de árvores que, entrelaçando-se com os ramos, as estendiam como amplos festões.
            No meio do jardim, até a borda dele, estendia-se um tapete de um candor mágico, mas tão brilhante que ofuscava a vista; tinha mais de uma milha de largura. Apresentava a magnificência de um estado real. Como ornamento na faixa que corria ao longo da borda, tinha várias inscrições e caracteres de ouro. De um lado lia-se: Beati immaculati in via, qui ambulant in lege Domini (Felizes os que procedem com retidão, os que caminham lei do Senhor. – Sl 118,1). Do outro lado: Non privabit bonis eos, qui ambulant in innocentia (Não recusa o bem a quem caminha com retidão. – Sl 83,12). No terceiro lado: Non confundentur in tempore malo: in diebus famis saturabuntur (No tempo da calamidade não serão confundidos, nos dias de fome serão saciados. – Sl 37,19). No quarto: Novit Dominus dies immaculatorum et haereditas eorum in aeternum erit (O Senhor conhece os dias dos inocentes, eterna será sua herança. – Sl 37,18).
            Nos quatro cantos do tapete, em torno de uma magnífica rosácea, estavam quatro outras inscrições: Cum simplicibus sermocinatio eius (Reserva a sua amizade aos íntegros. – Pr 3,32). – Proteget gradientes simpliciter (Será um escudo para os que caminham com integridade. – Pr 2,7) – Qui ambulant simpliciter, ambulant confidenter (Quem vive com integridade anda seguro. – Pr 10,9) – Voluntas eius in iis, qui simpliciter ambulant (O seu agrado está nos que andam com integridade. – Pr 11,20).
            No meio do tapete, esta última inscrição: Qui ambulant simpliciter, salvus erit (Quem vive com integridade será salvo. – Pr 28,18).
            No meio da ribanceira, na borda superior do tapete branco, erguia-se um estandarte branquíssimo sobre o qual também se lia em caracteres de ouro: Fili mi, tu semper mecum es et omnia mea tua sunt (Filho, tu estás sempre comigo e tudo que é meu é teu. – Lc 15,31).
            Se Dom Bosco estava maravilhado ao ver aquele jardim, muito mais atraíam sua atenção duas graciosas donzelas de cerca de doze anos, sentadas na borda do tapete onde a ribanceira formava um degrau. Uma modéstia celestial emanava de todo o seu gracioso comportamento. De seus olhos constantemente fixos no alto transparecia não apenas uma ingênua simplicidade de pomba, mas irradiava uma vivacidade de amor puríssimo, uma alegria de felicidade celestial. Sua fronte aberta e serena parecia a sede da candura e da sinceridade, em seus lábios serpenteava um doce e encantador sorriso. Seus traços manifestavam um coração terno e ardente. Seus graciosos movimentos davam uma tal aura de grandeza e nobreza sobrenatural que contrastava com sua juventude.
            Um vestido branquíssimo descia até seus pés, sobre o qual não se via nem mancha, nem dobras, e nem mesmo um grão de poeira. Os quadris estavam cingidos com um cinto vermelho flamejante com bordas de ouro. Sobre este destacava-se um friso como um laço composto de lírios, violetas e rosas. Um laço semelhante, como se fosse um colar, usavam no pescoço, composto das mesmas flores, mas de forma diferente. Como braceletes, tinham nos pulsos uma fitinha de margaridinhas brancas. Todas essas coisas e essas flores tinham formas, cores, belezas que é impossível descrever. Todas as pedras mais preciosas do mundo, incrustadas com a arte mais requintada, pareceriam lama em comparação.
            Os calçados branquíssimos eram bordados com fita também branca com filetes de ouro, que fazia um bonito nó no meio. Branco também com pequenos fios de ouro era o cordão com o qual estavam amarrados.
            Sua longa cabeleira era presa por uma coroa, que cingia a fronte, e tão densa que fazia ondas sob a coroa e, caindo sobre os ombros, terminava enrolada em cachos.
            Elas haviam começado um diálogo: ora se alternavam falando, ora se interrogavam e ora exclamavam. Ora ambas estavam sentadas; ora uma só estava sentada e a outra em pé; e ora passeavam. Não saíam, porém, nunca daquele tapete branco e não tocavam nem na grama nem nas flores. Dom Bosco, em seu sonho, estava como espectador. Nem ele dirigiu palavras àquelas donzelas, nem as donzelas perceberam sua presença, e uma dizia com um acento suavíssimo:
            – O que é a inocência? O estado afortunado da graça santificante conservada pela constante e exata observância da lei divina.
            E a outra donzela, com voz não menos doce:
            – E a pureza conservada da inocência é fonte e origem de toda ciência e de toda virtude.
            A primeira:
            – Que bilho, que glória, que esplendor de virtude viver bem entre os maus, e entre os malignos conservar a candura da inocência e a suavidade dos costumes.
            A segunda levantou-se e, parando perto da companheira:
            – Bem-aventurado aquele jovem que não segue os conselhos dos ímpios e não se coloca no caminho dos pecadores, mas seu deleite é a lei do Senhor, que ele medita dia e noite. E ele será como árvore plantada junto à torrente das águas da graça do Senhor, que dará a seu tempo o fruto copioso de boas obras: ao soprar do vento não cairá dele folha de santas intenções e de mérito, e tudo o que fizer terá próspero efeito, e cada circunstância da vida cooperará para aumentar seu prêmio. – Assim dizendo, apontava para as árvores do jardim carregadas de frutos belíssimos que espalhavam pelo ar um perfume delicioso, enquanto pequenos riachos limpidíssimos que ora corriam entre duas margens floridas, ora caíam de pequenas cachoeiras, e ora formavam lagoas, banhavam seus troncos, com um murmúrio que parecia o som misterioso de música distante.
            A primeira donzela replicou:
            – Ele é como um lírio entre espinhos que Deus colhe em seu jardim para colocá-lo como ornamento sobre seu coração; e pode dizer ao seu Senhor: O meu Amado pertence a mim e eu a ele: porque ele se nutre entre os lírios. – Assim dizendo, apontava para um grande número de lírios belíssimos que erguiam a cabeça branca entre as ervas e as outras flores, enquanto mostrava ao longe uma altíssima cerca verdejante que cercava todo o jardim. Esta era densa de espinhos e atrás dela viam-se vagar como sombras monstros repugnantes que tentavam penetrar no jardim, mas eram impedidos pelos espinhos daquela cerca.
            – É verdade! Quanta verdade há em tuas palavras! acrescentou a segunda. Bem-aventurado aquele jovem que for encontrado sem culpa! Mas quem será este e lhe daremos louvor? Porque ele fez coisas maravilhosas em sua vida. Ele foi encontrado perfeito e terá glória eterna. Ele poderia pecar e não pecou; fazer o mal e não o fez. Por isso os bens dele estão estabelecidos no Senhor e suas boas obras serão celebradas por todas as congregações dos Santos.
            – E na terra, que glória Deus lhes reserva! Ele os chamará, lhes fará um lugar em seu santuário, os fará ministros de seus mistérios, e um nome eterno lhes dará que nunca perecerá, concluiu a primeira.
            A segunda levantou-se e exclamou:
            – Quem pode descrever a beleza de um inocente? Esta alma está vestida esplendidamente como uma de nós, ornada com a estola branca do santo Batismo. Seu pescoço, seus braços brilham com gemas divinas, tem no dedo o anel da aliança com Deus. Ela caminha leve em sua jornada para a eternidade. Apresenta-se diante dela um caminho repleto de estrelas… É tabernáculo vivo do Espírito Santo. Com o sangue de Jesus que corre em suas veias e ruboriza suas faces e seus lábios, com a Santíssima Trindade no coração imaculado, envia ao seu redor torrentes de luz que a vestem no fulgor do sol. Do alto chovem nuvens de flores celestiais que enchem o ar. Todo ao redor se espalham as suaves harmonias dos anjos que fazem eco à sua oração. Maria Santíssima está ao seu lado pronta a defendê-la. O céu está aberto para ela. Ela se faz espetáculo às imensas legiões dos Santos e dos Espíritos bem-aventurados, que a convidam agitando suas palmas. Deus, entre os inacessíveis fulgores de seu trono de glória, com a mão direita lhe aponta o trono que lhe preparou, enquanto com a esquerda segura a esplêndida coroa que deverá coroá-la para sempre. O inocente é o desejo, a alegria, o aplauso do paraíso. E em seu rosto está esculpida uma alegria inefável. É filho de Deus. Deus é seu Pai. O paraíso é sua herança. Ele está continuamente com Deus. Vê-o, ama-o, serve-o, possui-o, goza dele, tem um raio das delícias celestiais: está em posse de todos os tesouros, de todas as graças, de todos os segredos, de todos os dons e de todas as suas perfeições e de todo o próprio Deus.
            – E é por isso que a inocência nos Santos do Antigo Testamento, nos Santos do Novo, e especialmente nos Mártires se apresenta tão gloriosa. Oh Inocência, quão bela és! Tentada, cresces em perfeição; humilhada, te elevas mais sublime; combatida, triunfas; morta, voas à coroa. Tu és livre na escravidão, tranquila e segura nos perigos, alegre entre as correntes. Os poderosos se inclinam a ti, os príncipes te acolhem, os grandes te buscam. Os bons te obedecem, os malignos te invejam, os rivais te imitam, os adversários sucumbem. E tu sempre conseguirás ser vitoriosa, mesmo quando os homens te condenarem injustamente!
            As duas donzelas fizeram um instante de pausa, como para respirar após um desabafo tão acalorado e então se tomaram pelas mãos e se olharam:
            – Oh, se os jovens soubessem que precioso tesouro é a inocência, como desde o princípio de suas vidas guardariam zelosamente a estola do santo batismo! Mas, infelizmente, não refletem e não pensam o que significa maculá-la. A inocência é um líquido preciosíssimo.
            – Mas está fechado em um vaso de frágil barro e, se não for levado com grande cautela, quebra-se com toda facilidade.
            – A inocência é uma gema preciosíssima.
            – Mas se não se conhece o valor, perde-se e com facilidade se transforma em objeto vil.
            – A inocência é um espelho de ouro que retrata as semelhanças de Deus.
            – Mas basta um pouco de ar úmido para manchá-lo e é preciso mantê-lo envolto em um véu.
            – A inocência é um lírio.
            – Mas o único toque de uma mão áspera o estraga.
            – A inocência é uma veste casta. Omni tempore sint vestimenta tua candida (Que tuas roupas sejam sempre bem cuidadas. Ecl 9,8).
            – Mas uma única mancha basta para deturpá-la; portanto é preciso caminhar com grande precaução.
            – A inocência e a integridade permanecem violadas se forem manchadas por uma única mancha e perdem o tesouro de sua graça.
            – Basta um único pecado mortal.
            – E, uma vez perdida, está perdida para sempre.
            – Que desgraça tantas inocências que se perdem a cada dia! Quando um jovem cai em pecado, o paraíso se fecha: a Virgem Santíssima e o Anjo da guarda desaparecem, cessam as músicas, a luz se eclipsa. Deus não está mais em seu coração, se desvanece o caminho estrelado que ele percorria, cai e permanece em um único ponto como uma ilha no meio do mar, um mar de fogo que se estende até o extremo horizonte da eternidade, que se afunda até a profundidade do caos. Sobre sua cabeça, no céu, relampejam, ameaçadoras, as chamas da divina justiça. Satanás se lançou perto dele, carregou-o de correntes, colocou um pé sobre o pescoço dele e, com a horrenda face levantada, gritou: Venci. Teu filho é meu escravo. Não é mais teu… Acabou para ele a alegria. Se a justiça de Deus, naquele momento, lhe retirar aquele único ponto sobre o qual está, fica perdido para sempre.
            – Ele pode ressurgir! A misericórdia de Deus é infinita. Uma boa confissão lhe devolverá a graça e o título de filho de Deus.
            – Mas não mais a inocência! E quais consequências lhe restarão do primeiro pecado! Ele conhece o mal que antes não conhecia; sentirá terríveis as más inclinações; sentirá a enorme dívida que contraiu com a divina justiça, sentir-se-á mais fraco nas batalhas espirituais. Experimentará o que antes não experimentava: vergonha, tristeza, remorso.
            – E pensar que antes se dizia dele: Deixai que os pequeninos venham a mim. Eles serão como os anjos de Deus no céu. Filho, dá-me o teu coração.
            – Ah, um crime espantoso cometem aqueles desgraçados dos quais é culpa se uma criança perde a inocência. Disse Jesus: Quem escandalizar algum destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe seria que lhe pendurassem ao pescoço uma pedra de moinho e que fosse submerso no profundo do mar. Ai do mundo por causa dos escândalos. Não é possível impedir os escândalos, mas ai daquele por cuja culpa vem o escândalo. Cuidai-vos de desprezar alguns destes pequenos, pois eu vos digo que os seus anjos nos céus veem continuamente o rosto de meu Pai que está nos Céus e pedem vingança.
            – Desgraçados deles! Mas não menos infelizes aqueles que se deixam roubar a inocência.
            E aqui ambas começaram a passear; o tema de seu discurso era qual seria o meio para conservar a inocência.
            Uma dizia:
            – É um grande erro que têm na cabeça os jovens, que a penitência deve ser praticada apenas por quem é pecador. A penitência é necessária também para conservar a inocência. Se São Luís não tivesse feito penitência, teria certamente caído em pecado mortal. Isso deveria ser pregado, inculcado, ensinado continuamente aos jovens. Tantos outros conservariam a inocência, enquanto agora são tão poucos!
            – É o que diz o Apóstolo. Levamos nós sempre por toda parte a mortificação de Jesus Cristo em nosso corpo, para que a vida de Jesus se manifeste em nossos corpos.
            – E Jesus santo, imaculado, inocente passou sua vida em privações e dores.
            – Assim Maria Santíssima, assim todos os Santos.
            – E foi para dar exemplo a todos os jovens. Diz São Paulo: Se viverdes segundo a carne, morrereis; se, porém, pelo espírito, mortificardes as ações da carne, vivereis.
            – Portanto, sem penitência não se pode conservar a inocência!
            – E, no entanto, muitos gostariam de conservar a inocência e viver em liberdade.
            – Tolos! Não está escrito: Foi arrebatado, para que a malícia não alterasse seu espírito e a sedução não induzisse sua alma ao erro? Por isso, o fascínio da vaidade obscurece o bem e a vertigem da concupiscência subverte a alma inocente. Portanto, os inocentes têm dois inimigos: as máximas distorcidas e os discursos ímpios dos maus, e a concupiscência. Não diz o Senhor que a morte em tenra idade é prêmio para o inocente, para tirá-lo das lutas? “Porque ele agradou a Deus, foi amado por ele e, porque vivia entre os pecadores, foi transportado para outro lugar. Consumido em breve tempo, completou uma longa carreira. Pois a alma dele era preciosa para Deus, por isso Ele se apressou em tirá-lo do meio das iniquidades. Foi arrebatado para que a malícia não alterasse seu espírito, e a sedução não induzisse sua alma ao erro”.
            – Felizes os meninos se abraçarem a cruz da penitência e, com firme propósito, disserem com Jó: Donec deficiam, non recedam ab innocentia mea (Enquanto eu respirar, não me apartarei da minha inocência. – Jó 27,5).
            – Portanto, mortificação para superar o tédio que eles sentem na oração.
            – E está escrito: Psallam et intelligam in via immaculata. Quando venies ad me? (Vou seguir o caminho da inocência: quando virás a mim? – Sl 100,2). Petite et accipietis (Pedi e recebereis. – Jo 16,24). Pater Noster! (Pai nosso!).
            – Mortificação na inteligência, humilhando-se, obedecendo aos Superiores e às regras.
            – E está escrito também: Si mei non fuerint dominati, tunc immaculatus ero et emundabor a delicto maximo (Também do orgulho salva teu servo, para que não me domine; então serei irrepreensível e imune do grande pecado. – Sl 18,14). E isso é a soberba. Deus resiste aos soberbos e dá graça aos humildes. Quem se humilha será exaltado, quem se exalta será humilhado. Obedeçam aos seus superiores.
            – Mortificação em sempre dizer a verdade, em expor os próprios defeitos e os perigos em que alguém pode se encontrar. Então sempre terá conselho, especialmente do confessor.
            – Pro anima tua ne confundaris dicere verum – por amor da tua alma, não te envergonhes de dizer a verdade (cf. Eclo 4,24). Porque há uma vergonha que traz consigo o pecado, e há uma vergonha que traz consigo a glória e a graça.
            – Mortificação no coração, freando seus impulsos inconscientes, amando a todos por amor de Deus e afastando-se resolutamente de quem percebemos que está tentando nossa inocência.
            – Jesus disse isto. Se a tua mão ou o teu pé te serve de escândalo, corta-os e lança-os longe de ti: é melhor para ti entrar na vida com um pé ou uma mão a menos, do que com ambas as mãos e ambos os pés ser lançado no fogo eterno. E se o teu olho te serve de escândalo, arranca-o e lança-o longe de ti; é melhor para ti entrar na vida com um só olho do que com dois olhos ser lançado no fogo do inferno.
            – Mortificação em suportar corajosa e francamente as zombarias do respeito humano. Exacuerunt, ut gladium, linguas suas: intenderunt arcum, rem amaram, ut sagittent in occultis immaculatum (Afiam sua língua como espada, lançam como flechas palavras amargas, para ferir às ocultas o inocente. – Sl 63,4-5).
            – E vencerão este maligno que zomba temendo ser descoberto pelos Superiores, pensando nas terríveis palavras de Jesus: Quem se envergonhar de mim e das minhas palavras, o Filho do homem se envergonhará dele quando vier com a sua majestade e a do Pai e dos santos Anjos.
            – Mortificação nos olhos, no olhar, nas leituras, fugindo de toda leitura má ou inconveniente.
            – Um ponto essencial. Fiz pacto com meus olhos de não pensar nem mesmo em uma virgem. E nos salmos: Volta os olhos para que não vejam a vaidade.
            – Mortificação do ouvido e não ouvir discursos maus, ou melosos, ou ímpios.
            – Lê-se no Eclesiástico: Saepi aures tuas spinis, linguam nequam non audire (Eclo 28,28). Cerca os teus ouvidos com espinhos e não queiras ouvir a língua perversa.
            – Mortificação ao falar: não se deixar vencer pela curiosidade.
            – Está também escrito: Toma cuidado para que não venhas a escorregar com a língua e não caias à vista dos inimigos que te espreitam, e tua queda não seja incurável nem mortal. (Eclo 28,25-26).
            – Mortificação da gula: não comer, não beber demais.
            – O excesso de comida, o excesso de bebida trouxe o dilúvio universal sobre o mundo e o fogo sobre Sodoma e Gomorra, e mil castigos sobre o povo hebreu.
            – Mortificar-se, em suma, em sofrer o que nos acontece ao longo do dia, frio, calor, e não buscar nossas satisfações. Mortificai vossos membros terrenos (cf. Cl 3,5).
            – Lembrar-se do que Jesus impôs: Si quis vult post me venire, abneget semetipsum et tollat crucem suam quotidie et sequatur me (Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia e siga-me. – Lc 9,23).
            – E Deus mesmo, com sua mão providente, cinge de cruzes e espinhos seus inocentes, como fez com Jó, José, Tobias e outros Santos. Quia acceptus eras Deo, necesse fuit, ut tentatio probaret te (Porque eras aceito por Deus, foi necessário que a tentação te provasse. – cf. Tb 12,13).
            – O caminho do inocente tem suas provas, seus sacrifícios, mas tem a força na Comunhão, porque quem comunga frequentemente tem a vida eterna, está em Jesus e Jesus nele. Ele vive da mesma vida de Jesus, será ressuscitado por ele no último dia. Este é o trigo dos eleitos, o vinho que faz germinar os virgens. Parasti in conspectu meo mensam adversus eos, qui tribulant me. (Diante de mim, preparas uma mesa aos olhos de meus inimigos. – Sl 23,5). Cadent a latere tuo mille et decem millia a dextris tuis, ad te autem non appropinquabunt (Cairão mil ao teu lado e dez mil à tua direita, mas nada te poderá atingir. – Sl 91,7).
            – E a Virgem dulcíssima amada por ele é sua Mãe. Ego mater pulchrae dilectionis et timoris et agnitionis et sanctae spei. In me gratia omnis (para conhecer) viae et veritatis; in me omnis spes vitae et virtutis. (Sou a mãe do belo amor e do temor, do conhecimento e da santa esperança. Em mim está toda a graça do caminho e da verdade. – Eclo 24,24-25). Ego diligentes me diligo (Amo aqueles que me amam. – Pr 8,17). Qui elucidant me, vitam aeternam habebunt (Os que me tornam conhecida terão a vida eterna. – Eclo 24,31). Terribilis, ut castrorum acies ordinata (terrível como um exército em linha de batalha. – Ct 6,4).
            As duas donzelas então se voltaram e subiam lentamente a encosta. E uma exclamava:
            – A salvação dos justos vem do Senhor, é ele o seu refúgio no tempo da desgraça. O Senhor os ajuda e os livra; livra-os dos ímpios e os salva, pois nele buscam refúgio. (Sl 36,39-40).
            – E a outra prosseguia:
            – Deus me cingiu de robustez e o caminho que eu trilho torna-se imaculado.
            Chegando as duas donzelas em meio àquele magnífico tapete, se voltaram.
            – Sim, gritou uma, a inocência coroada pela penitência é a rainha de todas as virtudes.
            E a outra exclamou também:
            – Quão gloriosa e bela é a geração casta! A memória dela é imortal e é conhecida diante de Deus e diante dos homens. O povo a imita quando ela está presente, e a deseja quando ela partiu para o céu, e, coroada, triunfa na eternidade, vencendo o prêmio das lutas castas. E que triunfo! E que alegria! E que glória em apresentar a Deus imaculada a estola do santo batismo após tantas lutas entre os aplausos, os cânticos, o fulgor dos exércitos celestiais!
            Enquanto assim falavam do prêmio que está preparado para a inocência conservada pela penitência, Dom Bosco viu aparecer esquadrões de anjos que, descendo, pousavam sobre aquele tapete branco. E se uniam àquelas duas donzelas, ocupando o lugar do meio. Era uma grande multidão. E cantavam: Benedictus Deus et Pater Domini Nostri Jesu Christi, qui benedixit nos in omni benedictione spirituali in coelestibus in Christo; qui elegit nos in ipso ante mundi constitutionem, ut essemus sancti et immaculati in conspectu eius in charitate et praedestinavit nos in adoptionem per Jesum Christum (Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda bênção espiritual nos céus, em Cristo. Nele, Deus nos escolheu antes da fundação do mundo, para sermos santos e íntegros diante dele, no amor. Ele nos predestinou à adoção como filhos, por obra de Jesus Cristo. – Ef 1,3-5). As duas meninas então começaram a cantar um hino maravilhoso, mas com tais palavras e tais notas que apenas aqueles anjos que estavam mais próximos do centro podiam modular. Os outros também cantavam, mas Dom Bosco não podia ouvir suas vozes, embora fizessem gestos e movessem os lábios moldando a boca para o canto.
            As meninas cantavam: Me propter innocentiam suscepisti et confirmasti me in conspectu tuo in aeternum. Benedictus Dominus Deus a saeculo et usque in saeculum; fiat fiat! (Pela minha integridade me sustentas e me fazes ficar na tua presença para sempre. Seja bendito o Senhor, Deus de Israel, desde sempre e para sempre. Amém, amém. – Sal 40,13-14).
            Enquanto isso, às primeiras fileiras de Anjos se juntavam outras e depois outras continuamente. O vestuário deles era variado em cores, em ornamentos, diferentes uns dos outros e especialmente daquele das duas donzelas. Mas a riqueza e a magnificência eram divinas. A beleza de cada um deles era tal que a mente humana nunca poderá conceber uma sombra, por mais distante que seja. Todo o espetáculo desta cena não pode ser descrito, mas à força de adicionar palavra a palavra, pode-se de alguma forma explicar confusamente o conceito.
            Terminada a canção das duas meninas, ouviu-se cantar todos juntos um cântico imenso e tão harmonioso que igual não se ouviu e nunca se ouvirá na terra. Eles cantavam:
            Ei, qui potens est vos conservare sine peccato et constituere ante conspectum gloriae suae immaculatos in exultatione, in adventu Domini nostri Jesu Christi: Soli Deo Salvatori nostro, per Jesum Christum Dominum nostrum, gloria et magnificentia, imperium et protestas ante omne saeculum, et nunc et in omnia saecula saeculorum. Amen (Àquele que é capaz de guardar-vos sem pecado e de apresentar-vos irrepreensíveis e jubilosos perante a sua glória, ao
Deus único, que nos salva por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor: glória, majestade, domínio e poder, desde antes de todos os séculos e agora e por todos os séculos. Amém. – Jd 24-25).
            Enquanto cantavam, sempre novos anjos chegavam e, quando o cântico terminou, aos poucos todos juntos se elevaram e desapareceram com toda a visão. – E Dom Bosco acordou.
(MB XVII, 722-730)




O sonho das 22 luas (1854)

Em março de 1854, num dia de festa, depois das vésperas, Dom Bosco reuniu todos os alunos na sacristia dos fundos, dizendo que queria contar-lhes um sonho. Estavam presentes, entre outros, os jovens Cagliero, Turchi, Anfossi, o Clérigo Reviglio e o Clérigo Buzzetti, dos quais colhemos a nossa narração. Todos estavam convencidos de que, sob o nome de sonho, Dom Bosco estava escondendo as manifestações que tinha do céu. O sonho era o seguinte:

            – Eu me encontrava com vocês no pátio e estava feliz vendo-os animados, alegres e contentes. Quem pulava, quem gritava, quem corria. De repente vejo que um de vocês sai de uma porta da casa e se põe a passear no meio dos colegas, com uma espécie de cilindro, como um turbante, na cabeça. Ele era transparente, todo iluminado por dentro e com a figura de uma grande lua, no meio da qual estava escrito o número 22. Eu fiquei surpreso e procurei logo aproximar-me para dizer que deixasse aquela coisa carnavalesca. Mas, enquanto escurecia, como se fosse dado um toque de sineta, o pátio se esvazia e vejo todos os jovens debaixo do pórtico da casa, dispostos em fila. O aspecto deles manifestava um grande medo, e dez ou doze deles tinham o rosto coberto por uma estranha palidez. Eu passei adiante de todos para observá-los. E vejo entre eles aquele que tinha a lua sobre a cabeça mais pálido que todos. Dos seus ombros pendia um manto fúnebre. Encaminho-me para ele para perguntar o que significasse aquele estranho espetáculo. Mas uma mão me detém, e vejo um desconhecido de aspecto sério e postura nobre, que me diz:
             – Escute-me, antes de aproximar-se dele. Ele tem ainda 22 luas de tempo, e antes que passem, morrerá. Esteja de olho nele e prepare-o!
            Eu queria pedir-lhe explicação da sua fala e do seu aparecimento de improviso, mas não o vi mais.
            – O jovem, meus queridos filhos, eu o conheço e está entre vocês!
            Um vivo terror se apoderou de todos os jovens, tanto mais que sendo a primeira vez que Dom Bosco anunciava em público e com uma certa solenidade a morte de um da casa. O bom pai não podia deixar de notar isso e prosseguiu:
            – Eu o conheço e está entre vocês aquele das luas. Mas não quero que se espantem. É um sonho como lhes disse, e sabem que nem sempre se deve acreditar nos sonhos. De qualquer modo, conforme for a coisa, o que é certo é que devemos estar sempre preparados como nos recomenda o divino Salvador no santo Evangelho e não cometer pecados. E, então, a morte não nos fará mais medo. Sejam todos bons, não ofendam o Senhor, e eu, então, estarei atento e estarei de olho no número vinte e dois, o que quer dizer 22 luas, ou seja 22 meses. Espero que tenha uma boa morte.
            Este anúncio espantou os jovens no início. Fez, porém, um bem enorme, porque estavam todos atentos em manter-se na graça de Deus, com o pensamento da morte, e a contar, então as luas que transcorriam. Dom Bosco, de quando em quando, lhes perguntava:
            – Quantas luas ainda? –
            E lhe respondiam:
            – Vinte, dezoito, quinze etc.
            Às vezes, os jovens que vigiavam todas as suas palavras se aproximavam dele para lembrar-lhe as luas passadas, e procuravam fazer prognósticos e adivinhar. Mas Dom Bosco ficava em silêncio. O jovem Piano, que entrou como estudante no Oratório no mês de novembro de 1854, ouviu falar da nona lua, dos colegas, dos superiores, e veio saber o que Dom Bosco tinha predito. E ele, então, como todos os outros, ficou em observação.
            Terminou o ano de 1854, passaram muitos meses de 1855 e chegou outubro, isto é, a vigésima lua. Cagliero, já clérigo, era encarregado de assistir a três quartinhos perto da antiga casa Pinardi, que serviam de dormitório para um grupo de jovens. Entre eles havia um certo Segundo Gurgo, bielense de Pettinengo, com seus 17 anos, de físico belo e robusto, tipo de uma saúde de ferro, que dava todas as esperanças de longa vida, até a velhice. Seu pai o tinha recomendado a Dom Bosco para mantê-lo em pensão. Um pianista e organista talentoso que estudava música desde manhã até noite e ganhava um bom dinheiro dando aulas em Turim. Dom Bosco, ao longo do ano, de quando em quando, perguntava ao Clérigo Cagliero sobre a conduta de seus assistidos, com especial atenção. Em outubro chamou-o e lhe disse:
            – Onde você dorme?
            Respondeu o Clérigo Cagliero:
            – No último quartinho, e de lá assisto os outros dois.
            – E não seria melhor que mudasse a sua cama para aquele do meio?
            – Como quiser. Mas, lhe faço notar que os outros dois quartos são secos, enquanto no segundo uma parede faz parte do muro do campanário da igreja, recém-construído. Há, então, um pouco de umidade, o inverno se aproxima e poderia pegar uma doença. Contudo, de onde me encontro agora, posso muito bem assistir a todos os jovens do meu dormitório.
            – Quanto a assisti-los, sei que pode. Mas é melhor que vá para aquele do meio.
            O Clérigo Cagliero obedeceu, mas depois de algum tempo pediu licença a Dom Bosco para mudar sua cama para o primeiro quarto. Dom Bosco não consentiu, mas lhe disse:
            – Fique onde está e repouse tranquilo que a sua saúde nada sofrerá.
            O Clérigo Cagliero aquietou-se e alguns dias depois de novo foi chamado por Dom Bosco:
            – Em quantos vocês são no seu novo quarto?
            – Somos três. Eu, o jovem Segundo Gurgo, o Garovaglia. E com o piano somos quatro.
            – Bem, está bem. São três tocadores, o Gurgo poderá dar-lhe lições de piano. Você cuide de assisti-lo bem.
            E nada mais acrescentou. O clérigo, tocado pela curiosidade e suspeitando, começou a fazer-lhe perguntas, mas Dom Bosco o interrompeu dizendo-lhe:
            – O porquê saberá a seu tempo.
            O segredo era que naquele quarto estava o jovem das 22 luas.
            No começo de dezembro não havia doentes no Oratório, e Dom Bosco, tendo subido no estrado à noite depois das orações, anunciou que um dos jovens morreria antes do santo Natal. Por essa nova predição e porque as 22 luas já se cumpriam, reinou em casa uma grande trepidação, lembrando-se frequentemente das palavras de Dom Bosco e se temia o cumprimento.
            Dom Bosco, naqueles dias, chamara ainda uma vez o Clérigo Cagliero, e lhe perguntou se Gurgo se comportasse bem e se, depois das lições de música na cidade, voltasse para casa a tempo. Cagliero lhe respondeu que tudo ia bem e que não havia novidade com seus colegas. Disse-lhe Dom Bosco apenas isso e nada mais: – Ótimo. Estou contente. Vigie para que sejam todos bons, e avise-me se acontecer algum inconveniente.
            E eis que pela metade de dezembro o Gurgo foi acometido por uma cólica violenta e tão preocupante que, chamando depressa o médico, a seu conselho lhe administraram os santos sacramentos. Por oito dias, e muito sofrida, durou a doença e veio para melhor, graças aos cuidados do doutor Debernardi. E Gurgo pôde levantar-se da cama convalescente. O mal tinha desaparecido e o médico repetia que o jovem escapara por pouco. No entanto, seu pai foi avisado, porque, não tendo ainda morrido alguém no Oratório, Dom Bosco queria evitar aos alunos um espetáculo fúnebre.
            A novena do Santo Natal começara e Gurgo já curado pensava em ir à sua cidade nas festas natalinas. Todavia, quando se davam as boas novas dele a Dom Bosco, ele fez uma cara de quem não queria acreditar. Veio o pai, e encontrando o filho já em bom estado, pedindo e obtendo licença, foi reservar um lugar na carruagem para conduzi-lo no dia seguinte a Novara, e depois a Pettinengo, para que se restabelecesse plenamente da saúde. Era domingo, 23 de dezembro. Gurgo, porém, naquela mesma noite, manifestou o desejo de comer um pouco de carne, alimento proibido pelo médico. O pai, para fortalecê-lo, correu para comprá-la e a fez cozinhar numa maquininha de café. O jovem tomou a sopa e comeu a carne, que certamente devia estar meio crua e meio cozida e até mais do que o necessário. O pai se retirou. No quarto ficou o enfermeiro e Cagliero. E eis que a uma certa hora da noite o enfermo começa a lamentar-se de dores na barriga. A cólica voltava a incomodá-lo com mais força. Gurgo chamou o assistente pelo nome:
            – Cagliero, Cagliero! Adeus suas aulas de piano!
            Respondeu Cagliero:
            – Tenha paciência. Coragem!
            – Eu não vou mais para casa: não viajo mais. Reze por mim; se soubesse como me sinto mal. Recomende-me a Nossa Senhora.
            – Sim, rezarei. Invoque também você Maria Santíssima.
            Cagliero começou a rezar, mas, vencido pelo sono, adormeceu. E eis que improvisamente o enfermeiro o sacode e mostrando-lhe Gurgo, corre logo para chamar P. Alasonatti, que dormia no quarto vizinho. Este veio, e depois de alguns instantes Gurgo expirava. Foi uma desolação em toda a casa. Cagliero, de manhã, encontrou Dom Bosco que descia as escadas para ir rezar a Santa Missa e estava muito triste, porque já lhe tinham comunicado a dolorosa notícia.
            No entanto, na casa havia um grande falatório desta morte. Era a vigésima segunda lua e ainda não completa. E Gurgo, morrendo no dia 24 de dezembro, antes da aurora, cumpriu também a segunda predição, isto é, que ele não veria a festa do santo Natal.
            Depois do almoço, os jovens e os clérigos rodearam Dom Bosco silenciosos. De repente o Clérigo João Turchi o interrogou se Gurgo era o das luas. Respondeu Dom Bosco:
            – Sim, era justamente ele. É ele mesmo que vi no sonho!
            Depois acrescentou ainda:
            – Vocês observaram que há um tempo, coloquei-o para dormir com um grupo especial, recomendando a um dos melhores assistentes que para lá transportasse sua cama para que pudesse continuamente vigiá-lo. E o assistente foi o Clérigo João Cagliero. E improvisamente voltou-se para o clérigo e lhe disse: – Uma outra vez não deve fazer tantas observações ao que Dom Bosco lhe disser. Agora compreende o motivo pelo qual eu não queria que deixasse o quarto onde estava aquele pobrezinho? Você me pediu, mas eu não quis contentá-lo, justamente para que Gurgo tivesse um guarda. Se ele estivesse ainda vivo, poderia dizer quantas vezes lhe vinha falando abertamente da morte e os cuidados que lhe dediquei para dispô-lo a uma feliz passagem.
            Escreveu Dom Cagliero: – “Eu entendi, então, o motivo das recomendações especiais que Dom Bosco me deu, e aprendi a conhecer e a valorizar melhor a importância de suas palavras e de seus conselhos paternos”.
            Narra Pedro Enria: – Na noite da vigília de Natal, lembro-me ainda Dom Bosco que subiu no estrado, percorrendo com os olhos ao redor como se procurasse alguém. E disse: É o primeiro jovem que morre no Oratório. Ele fez bem suas coisas e esperamos que esteja no paraíso. Recomendo-lhes que estejam sempre preparados… E não pôde mais continuar porque seu coração estava triste. A morte tinha-lhe roubado um filho.
(MBp V, 322-327)