Reitores-Mores da Congregação Salesiana

A Congregação Salesiana, fundada em 1859 por São João Bosco, teve à sua frente um superior geral chamado, já nos tempos de Dom Bosco, Reitor-Mor. A figura do Reitor-Mor é central na liderança da congregação, atuando como guia espiritual e centro de unidade não só dos salesianos, mas também de toda a Família Salesiana. Cada Reitor-Mor contribuiu de modo único para a missão salesiana, enfrentando os desafios do seu tempo e promovendo a educação e a vida espiritual dos jovens. Façamos um breve resumo dos Reitores-Mores e dos desafios que tiveram de enfrentar.

São João Bosco (1859-1888)
São João Bosco, fundador da Congregação Salesiana, encarnou qualidades distintivas que moldaram a identidade e a missão da ordem. Sua profunda fé e confiança na Divina Providência o tornaram um líder carismático, capaz de inspirar e guiar com visão e determinação. Sua dedicação incansável à educação dos jovens, especialmente dos mais necessitados, manifestou-se através do inovador Sistema Preventivo, baseado em razão, religião e amabilidade. Dom Bosco promoveu um clima de família nas casas salesianas, favorecendo relações sinceras e fraternas. Sua capacidade organizativa e seu espírito empreendedor levaram à criação de numerosas obras educativas. Sua abertura missionária impulsionou a Congregação para além das fronteiras italianas, difundindo o carisma salesiano no mundo. Sua humildade e simplicidade o tornaram próximo a todos, conquistando a confiança e o afeto de colaboradores e jovens.
São João Bosco enfrentou muitas dificuldades. Teve de superar a incompreensão e a hostilidade de autoridades civis e eclesiásticas, que frequentemente desconfiavam do seu método educativo e do seu rápido crescimento. Enfrentou graves dificuldades econômicas ao sustentar as obras salesianas, frequentemente contando apenas com a Providência. Gerir jovens difíceis e formar colaboradores confiáveis foi uma tarefa árdua. Além disso, sua saúde, desgastada pelo intenso trabalho e pelas contínuas preocupações, foi um limite constante. Apesar de tudo, enfrentou cada prova com fé inabalável, amor paterno pelos jovens e uma determinação incansável, levando adiante a missão com esperança.

1. Beato Miguel Rua (1888-1910)
O ministério de Reitor-Mor do Beato Miguel Rua se caracteriza como fidelidade ao carisma de Dom Bosco, consolidação institucional e expansão missionária. Foi nomeado por Dom Bosco como sucessor por ordem do Papa Leão XIII, na audiência de 24/10/1884. Após a confirmação do Papa, em 24/09/1885, Dom Bosco tornou pública sua escolha diante do Capítulo Superior.
Algumas características do seu reitorado:
– Agiu como “regra vivente” do sistema preventivo, mantendo íntegro o espírito educativo de Dom Bosco através de formação, catequese e direção espiritual; foi um continuador do fundador;
– Dirigiu a Congregação em crescimento exponencial, gerindo centenas de casas e milhares de religiosos, com visitas pastorais em todo o mundo, apesar de problemas de saúde;
– Enfrentou calúnias e crises (como o escândalo de 1907) defendendo a imagem salesiana;
– Promoveu as Filhas de Maria Auxiliadora e os Cooperadores, reforçando a estrutura tripartida desejada por Dom Bosco;
– Sob sua guia, os Salesianos passaram de 773 para 4.000 membros, e as casas de 64 para 341, estendendo-se em 30 nações.

2. Dom Paulo Albera (1910-1921)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Paulo Albera se distingue por fidelidade ao carisma de Dom Bosco e expansão missionária global. Eleito no Capítulo Geral 11.
Algumas características do seu reitorado:
– Manteve íntegro o sistema preventivo, promovendo a formação espiritual dos jovens salesianos e a difusão do Boletim Salesiano como instrumento de evangelização;
– Enfrentou os desafios da Primeira Guerra Mundial, com salesianos mobilizados (mais de 2.000 chamados às armas, 80 deles mortos na guerra) e casas transformadas em hospitais ou quartéis, mantendo coesão na Congregação; este conflito causou a suspensão do Capítulo Geral previsto e interrompeu muitas atividades educativas e pastorais;
– Enfrentou as consequências desta guerra que gerou um aumento da pobreza e do número de órfãos, requerendo um compromisso extraordinário para acolher e sustentar estes jovens nas casas salesianas;
– Abriu novas fronteiras na África, Ásia e América, enviando 501 missionários em nove expedições ad gentes e fundando obras no Congo, China e Índia.

3. Beato Filipe Rinaldi (1922-1931)
O ministério de Reitor-Mor do Beato Filipe Rinaldi se caracteriza por fidelidade ao carisma de Dom Bosco, expansão missionária e inovação espiritual. Eleito no Capítulo Geral 12.
Algumas características do seu reitorado:
– Manteve íntegro o sistema preventivo, promovendo a formação interior dos salesianos;
– Enviou mais de 1.800 salesianos em todo o mundo, fundou institutos missionários e revistas, abrindo novas fronteiras na África, Ásia e América;
– Instituiu a associação dos Ex-alunos e o primeiro Instituto secular salesiano (Voluntárias de Dom Bosco), adaptando o espírito de Dom Bosco às exigências do início do século XX;
– Reanimou a vida interior da Congregação, exortando a uma “confiança ilimitada” em Maria Auxiliadora, herança central do carisma salesiano;
– Enfatizou a importância da formação espiritual e da assistência aos emigrantes, promovendo obras de previdência e associações entre trabalhadores;
– Durante o seu reitorado, os membros passaram de 4.788 para 8.836 e as casas de 404 para 644, evidenciando sua capacidade organizativa e seu zelo missionário.

4. Dom Pedro Ricaldone (1932-1951)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Pedro Ricaldone se caracteriza por consolidação institucional, compromisso durante a Segunda Guerra Mundial e colaboração com as autoridades civis. Eleito no Capítulo Geral 14.
Algumas características do seu reitorado:
– Potencializou as casas salesianas e os centros de formação, fundou a Universidade Pontifícia Salesiana (1940) e cuidou da canonização de Dom Bosco (1934) e Madre Mazzarello (1951);
– Enfrentou a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) que representou uma das principais dificuldades, com perseguições que atingiram duramente as obras salesianas no país;
– Sucessivamente enfrentou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) causou ulteriores sofrimentos: muitos salesianos foram deportados ou privados da liberdade, e as comunicações entre a Casa Generalícia de Turim e as comunidades espalhadas no mundo foram interrompidas; além disso, o advento de regimes totalitários na Europa oriental levou à supressão de diversas obras salesianas;
– Durante a guerra, abriu as estruturas salesianas a deslocados, judeus e partisans, mediando pela libertação de prisioneiros e protegendo quem estava em perigo;
– Promoveu a espiritualidade salesiana através de obras editoriais (ex: Corona patrum salesiana) e iniciativas a favor dos jovens marginalizados.

5. Dom Renato Ziggiotti (1952-1965)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Renato Ziggiotti (1952-1965) se caracteriza por expansão global, fidelidade ao carisma e compromisso conciliar. Eleito no Capítulo Geral 17.
Algumas características do seu reitorado:
– Foi o primeiro Reitor-Mor a não ter conhecido pessoalmente Dom Bosco e a renunciar ao cargo antes da morte, demonstrando grande humildade;
– Durante o seu mandato, os salesianos passaram de 16.900 para mais de 22.000 membros, com 73 inspetorias e quase 1.400 casas em todo o mundo;
– Promoveu a construção da Basílica de São João Bosco em Roma e do santuário sobre o Colle dei Becchi (Colle Dom Bosco), além da transferência do Pontifício Ateneu Salesiano na capital;
– Foi o primeiro Reitor-Mor a participar ativamente das primeiras três sessões do Concílio Vaticano II, antecipando a renovação da Congregação e o envolvimento dos leigos;
– Cumpriu uma empresa sem precedentes: visitou quase todas as casas salesianas e Filhas de Maria Auxiliadora, dialogando com milhares de confrades, apesar das dificuldades logísticas.

6. Dom Luís Ricceri (1965-1977)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Luís Ricceri se caracteriza por renovação conciliar, centralização organizativa e fidelidade ao carisma salesiano. Eleito no Capítulo Geral 19.
Algumas características do seu reitorado:
– Adaptação pós-conciliar: guiou a Congregação na atuação das indicações do Concílio Vaticano II, promovendo o Capítulo Geral Especial (1966) para a renovação das Constituições e a formação permanente dos salesianos;
– Transferiu a Direção Geral de Valdocco para Roma, separando-a da “Casa Mãe” para integrá-la melhor no contexto eclesial;
– A revisão das Constituições e dos Regulamentos foi uma tarefa complexa, mirando garantir a adequação às novas diretivas eclesiais sem perder a identidade originária;
– Potencializou o papel dos Cooperadores e dos Ex-alunos, reforçando a colaboração entre os diversos ramos da Família salesiana.

7. Dom Egídio Viganò (1977-1995)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Egídio Viganò se caracteriza por fidelidade ao carisma salesiano, compromisso conciliar e expansão missionária global. Eleito no Capítulo Geral 21.
Algumas características do seu reitorado:
– Sua participação como especialista no Concílio Vaticano II influenciou significativamente seu trabalho, promovendo a atualização das Constituições salesianas em linha com as diretivas conciliares e guiou a Congregação na atuação das indicações do Concílio Vaticano II;
– Colaborou ativamente com o Papa São João Paulo II, tornando-se confessor pessoal, e participou de 6 sínodos dos bispos (1980-1994), reforçando o laço entre a Congregação e a Igreja universal;
– Profundamente ligado à cultura latino-americana (onde passou 32 anos), ampliou a presença salesiana no Terceiro Mundo, com um foco em justiça social e diálogo intercultural;
– Foi o primeiro reitor-mor eleito para três mandatos consecutivos (com dispensa papal);
– Potencializou o papel dos Cooperadores e dos Ex-alunos, promovendo a colaboração entre os diversos ramos da Família salesiana;
– Reforçou a devoção a Maria Auxiliadora, reconhecendo a Associação dos Devotos de Maria Auxiliadora como parte integrante da Família Salesiana;
– Sua dedicação à pesquisa científica e ao diálogo interdisciplinar o levou a ser considerado o “segundo fundador” da Universidade Pontifícia Salesiana;
– Sob sua guia, a Congregação iniciou o “Projeto África”, expandindo a presença salesiana no continente africano que deu muitos frutos.

8. Dom Juan Edmundo Vecchi (1996-2002)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Juan Edmundo Vecchi se distingue por fidelidade ao carisma salesiano, compromisso na formação e abertura aos desafios do pós-Concílio. Eleito no Capítulo Geral 24.
Algumas características do seu reitorado:
– É o primeiro Reitor-Mor não italiano: filho de imigrantes italianos na Argentina, representou uma mudança geracional e geográfica na guia da Congregação, abrindo a uma perspectiva mais global;
– Promoveu a formação permanente dos salesianos, sublinhando a importância da espiritualidade e da preparação profissional para responder às exigências dos jovens;
– Promoveu uma renovada atenção à educação dos jovens, enfatizando a importância da formação integral e do acompanhamento pessoal;
– Através das Cartas Circulares, exortou a viver a santidade na cotidianidade, ligando-a ao serviço juvenil e ao testemunho de Dom Bosco;
– Durante sua doença, continuou a testemunhar fé e dedicação, oferecendo reflexões profundas sobre a experiência do sofrimento e da velhice na vida salesiana.

9. Dom Pascual Chávez Villanueva (2002-2014)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Pascual Chávez Villanueva se distingue por fidelidade ao carisma salesiano, compromisso na formação e o compromisso nos desafios da globalização e das transformações eclesiais. Eleito no Capítulo Geral 25.
Algumas características do seu reitorado:
– Promoveu a renovada atenção à comunidade salesiana como sujeito evangelizador, com prioridade à formação espiritual e à inculturação do carisma nos contextos regionais;
– Relançou o compromisso para com os jovens mais vulneráveis, herdando a abordagem de Dom Bosco, com particular atenção aos oratórios de fronteira e às periferias sociais;
– Cuidou da formação permanente dos salesianos, desenvolvendo estudos teológicos e pedagógicos ligados à espiritualidade de Dom Bosco, preparando o bicentenário do seu nascimento;
– Guiou a Congregação com uma abordagem organizativa e dialogante, envolvendo as diversas regiões e promovendo a colaboração entre centros de estudo salesianos;
– Promoveu uma maior colaboração com os leigos, encorajando a corresponsabilidade na missão salesiana e enfrentando as resistências internas à mudança.

10. Dom Ángel Fernández Artime (2014-2024)
O ministério de Dom Ángel Fernández Artime se distingue por fidelidade ao carisma salesiano e ao papado. Eleito no Capítulo Geral 27.
Algumas características do seu reitorado:
– Guiou a Congregação com uma abordagem inclusiva, visitando 120 países e promovendo a adaptação do carisma salesiano às diversas realidades culturais, mantendo firme o laço com as raízes de Dom Bosco;
– Reforçou o compromisso para com os jovens mais vulneráveis, das periferias, herdando a abordagem de Dom Bosco;
– Enfrentou os desafios da globalização e das transformações eclesiais, promovendo a colaboração entre centros de estudo e renovando os instrumentos de governo da Congregação;
– Promoveu uma maior colaboração com os leigos, encorajando a corresponsabilidade na missão educativa e pastoral;
– Teve de enfrentar a pandemia de COVID-19 que exigiu adaptações nas obras educativas e assistenciais para continuar a servir os jovens e as comunidades em dificuldade;
– Teve de enfrentar a gestão dos recursos humanos e materiais em um período de crise vocacional e mudanças demográficas;
– Mudou a Casa Generalícia da Pisana para a obra fundada por Dom Bosco, Sagrado Coração de Roma;
– Seu compromisso culminou na nomeação a Cardeal (2023) e a Pró-Prefeito do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada (2025), marcando um reconhecimento da sua influência na Igreja universal.

Os Reitores-Mores da Congregação Salesiana desempenharam um papel fundamental no crescimento e no desenvolvimento da congregação. Cada um deles trouxe sua contribuição única, enfrentando os desafios do seu tempo e mantendo vivo o carisma de São João Bosco. Seu legado continua a inspirar as gerações futuras de salesianos e jovens em todo o mundo, garantindo que a missão educativa de Dom Bosco permaneça relevante e vital no contexto contemporâneo.

Apresentamos abaixo também uma estatística destes reitorados.

 Reitor-Mor Nascido em Início do mandato como Reitor-Mor Eleito aos … anos Fim do mandato como Reitor-Mor Reitor-Mor por… Viveu por… anos
BOSCO Giovanni 16.08.1815 18.12.1859 44 31.01.1888 (†) 28 anos e 1 mês 72
RUA Michele 09.06.1837 31.01.1888 50 06.04.1910 (†) 22 anos e 2 meses 72
ALBERA Paolo 06.06.1845 16.08.1910 65 29.10.1921 (†) 11 anos e 2 meses 76
RINALDI Filippo 28.05.1856 24.04.1922 65 05.12.1931 (†) 9 anos e 7 meses 75
RICALDONE Pietro 27.07.1870 17.05.1932 61 25.11.1951 (†) 19 anos e 6 meses 81
ZIGGIOTTI Renato 09.10.1892 01.08.1952 59 27.04.1965 († 19.04.1983) 12 anos e 8 meses 90
RICCERI Luigi 08.05.1901 27.04.1965 63 15.12.1977 († 14.06.1989) 12 anos e 7 meses 88
VIGANO Egidio 29.06.1920 15.12.1977 57 23.06.1995 (†) 17 anos e 6 meses 74
VECCHI Juan Edmundo 23.06.1931 20.03.1996 64 23.01.2002 (†) 5 anos e 10 meses 70
VILLANUEVA Pasqual Chavez 20.12.1947 03.04.2002 54 25.03.2014 11 anos e 11 meses 76
ARTIME Angel Fernandez 21.08.1960 25.03.2014 53 31.07.2024 10 anos e 4 meses 64



Dom Bosco e a música

            Para a educação de seus jovens, Dom Bosco fazia grande uso da música. Desde menino, ele gostava de cantar. Como tinha uma bela voz, o Sr. João Roberto, chefe dos cantores da paróquia, ensinou-lhe a cantar. Em poucos meses, João pôde fazer parte da cantoria e executar peças musicais com excelentes resultados. Ao mesmo tempo, começou a aprender a espineta, que era um instrumento de cordas dedilhadas com teclado, e também o violino (cf. MBp I, 190).
            Sacerdote em Turim, atuou como professor de música para seus primeiros oratorianos, formando gradualmente verdadeiros corais que atraíam a simpatia dos ouvintes com seus cantos.
            Após a abertura do internato, ele iniciou uma escola de canto gregoriano e, com o tempo, também levou seus jovens cantores a igrejas da cidade e fora de Turim para apresentar seu repertório.
            Ele mesmo compôs cânticos sacros, como aquele para o Menino Jesus, “Ah, se cante em som do júbilo…”. Ele também encaminhou alguns de seus discípulos ao estudo da música, entre eles o P. João Cagliero, que mais tarde se tornou famoso por suas criações musicais, conquistando a estima dos especialistas. Em 1855, Dom Bosco organizou a primeira banda instrumental no Oratório.
            No entanto, Dom Bosco não agia impensadamente! Já na década de 1860, ele incluiu num Regulamento um capítulo sobre escolas noturnas de música, no qual dizia, entre outras coisas:
“De cada aluno de música se exige a promessa formal de não ir cantar ou tocar nos teatros públicos, nem em outras diversões em que se possam comprometer a religião e os bons costumes” (MBp VII, 888).

A Música dos meninos
            A um religioso francês que havia fundado um Oratório festivo e que lhe perguntou se era apropriado ensinar música aos meninos, ele respondeu: “Um Oratório sem música é um corpo sem alma!”(MBp V, 300).
            Dom Bosco falava francês bastante bem, embora com certa liberdade gramatical e de expressão. Nesse sentido, uma de suas respostas sobre a música dos meninos ficou famosa. O P. Mendre, vigário paroquial de São José em Marselha, lhe dedicava grande afeto. Um dia, estava sentado ao seu lado durante uma academia no Oratório de São Leão. Os pequenos músicos de vez em quando desafinavam. O Padre, que era bom conhecedor da música, se irritava e reclamava de cada desafinada. Dom Bosco sussurrou-lhe ao ouvido, com o seu francês: “Monsieur Mendre, la musique de les enfants elle s’écoute avec le coeur et non avec les oreilles” (Senhor P. Mendre, a música dos jovens deve ser ouvida com o coração e não com os ouvidos). Mais tarde, o padre recordou essa resposta inúmeras vezes, revelando a sabedoria e a bondade de Dom Bosco (cf. MBp XV, 76, n.2).
            Tudo isso não significa, porém, que Dom Bosco colocava a música acima da disciplina no Oratório. Ele era sempre amável, mas não ignorava facilmente as faltas de obediência. Durante alguns anos, ele permitiu que os jovens membros da banda saíssem para passear e almoçar no campo na festa de Santa Cecília. Mas em 1859, devido a incidentes, ele começou a proibir esse tipo de entretenimento. Os jovens não protestaram abertamente, mas metade deles, incitados por um líder que lhes havia prometido obter permissão de Dom Bosco, e esperando impunidade, decidiu deixar o Oratório de qualquer maneira e organizar um almoço por conta própria antes da festa de Santa Cecília. Eles tomaram essa decisão pensando que Dom Bosco não perceberia e não tomaria providências. Assim, nos últimos dias de outubro, foram almoçar em um restaurante próximo. Depois do almoço, voltaram a passear pela cidade e, à noite, jantaram no mesmo lugar, retornando a Valdocco meio bêbados, já tarde da noite. Somente o Sr. Buzzetti, convidado no último momento, recusou-se a se juntar àqueles desobedientes e advertiu Dom Bosco. Este, calmamente, declarou a banda dissolvida e ordenou a Buzzetti que recolhesse e trancasse todos os instrumentos e pensasse em novos alunos para iniciar a música instrumental. Na manhã seguinte, ele mandou chamar todos os músicos indisciplinados, um por um, lamentando a cada um deles o fato de o terem forçado a ser muito rigoroso. Em seguida, mandou-os de volta para seus parentes ou responsáveis, recomendando alguns mais necessitados para as oficinas da cidade. Apenas um desses meninos travessos foi aceito mais tarde, porque o P. Rua assegurou a Dom Bosco que ele era um menino inexperiente que se deixara enganar por seus companheiros. E Dom Bosco o manteve sob vigilância por algum tempo!
            Mas com as tristezas não se deve esquecer as consolações. O dia 9 de junho de 1868 foi uma data memorável na vida de Dom Bosco e na história da Congregação. A nova Igreja de Maria Auxiliadora, que ele havia construído com imensos sacrifícios, foi finalmente consagrada. Aqueles que estavam presentes nas celebrações solenes ficaram profundamente comovidos. Uma multidão transbordante lotou a bela igreja de Dom Bosco. O arcebispo de Turim, Dom Riccardi, realizou o rito solene da consagração. No ofício da tarde do dia seguinte, durante as Vésperas solenes, o coral de Valdocco entoou a grande antífona musicada pelo P. Cagliero: Sancta Maria succurre miseris [Santa Maria, socorrei os pobres]. A multidão de fiéis ficou emocionada. Três poderosos corais a executaram com perfeição. Cento e cinquenta tenores e baixos cantavam na nave perto do altar de São José, duzentos sopranos e contraltos estavam no alto, ao longo da grade sob a cúpula, e um terceiro coro, formado por outros cem tenores e baixos, estava na orquestra que dava vista para os fundos da igreja. Os três corais, conectados por um dispositivo elétrico, mantinham a sincronia ao comando do maestro. O biógrafo, presente na apresentação, escreveu mais tarde:
            “No instante em que todos os corais se uniam numa única harmonia, sentiu-se uma espécie de encanto. As vozes se juntaram, e o eco as levava em todas as direções, assim que o ouvinte se sentia como que imergido num mar de vozes, que o circundavam sem poder distinguir como e de onde vinham”. As exclamações que se ouviam então indicavam como todos se sentiam subjugados por tão grande maestria. O próprio Dom Bosco não conseguia conter sua intensa emoção. E ele, que nunca na igreja, durante a oração, se permitia dizer uma palavra, voltou os olhos úmidos de lágrimas para um cônego amigo seu e em voz baixa lhe disse: “Caro Anfossi, não lhe parece estar no Paraíso?” (MBp IX, 296).




Grande santo, grande gerente

            Não é fácil escolher entre as centenas de cartas inéditas de Dom Bosco que conseguimos recuperar nas últimas décadas, aquelas que mais merecem ser apresentadas e comentadas. Desta vez nós pegamos uma muito simples, mas que em poucas linhas resume todo um projeto de trabalho educacional salesiano e nos oferece muitas outras notícias interessantes. Trata-se daquela escrita em 7 de maio de 1877 a uma pessoa de Trento, um tal Daniel Garbari, que em nome de dois irmãos lhe havia perguntado repetidamente como poderia fundar um instituto educacional em sua terra, como aqueles que Dom Bosco estava fundando em toda a Itália, França e Argentina.

Prezado Sr. Garbari,

Minha ausência de Turim foi a causa do atraso na resposta às suas cartas, que eu tenho recebido regularmente. Estou muito satisfeito que nossa instituição seja bem recebida em suas cidades. Quanto mais se torna conhecida, mais ela será bem recebida pelos próprios governos; quer eles gostem ou não, os fatos nos asseguram que é preciso ajudar os jovens em perigo a fim de torná-los bons cidadãos ou então mantê-los desonrados nas prisões.
Quanto à criação de um instituto semelhante a este na cidade ou cidades de Trento, não é preciso muito para começar:
1° Um local capaz de acolher certo número de crianças, mas que tenham suas respectivas oficinas ou laboratórios em seu interior.
2° Algo que possa fornecer um pouco de pão para o diretor e as outras pessoas que o ajudam na assistência e na direção.
Os meninos são sustentados:
1° por aquele pouco de pensão mensal que alguns deles podem pagar, ou são pagos por parentes ou outras pessoas que os recomendam.
2° por um pouco de renda que o trabalho proporciona.
3° por subsídios dos municípios, do governo, de congregações caritativas e pelas ofertas de particulares. É assim que todas as nossas casas de aprendizes são administradas e, com a ajuda de Deus, temos progredido bastante. Entretanto, deve ser tomado como base que nós sempre estivemos, e sempre estaremos desvinculados de tudo o que se refere à política.
Nosso principal objetivo é reunir crianças em situação de risco para torná-las bons cristãos e cidadãos honestos. Esta é a primeira coisa a ser deixada clara para as autoridades civis e governamentais.
Como padre, então, eu devo estar de pleno acordo com a autoridade eclesiástica; portanto, quando se trata de concretizar o assunto, eu escreveria diretamente ao Arcebispo de Trento, que certamente não oporá nenhuma dificuldade.
Eis o meu pensamento preliminar. Continuando as tratativas e ocorrendo alguma novidade, lhe escreverei. Por favor, agradeça em meu nome a todas aquelas pessoas que me manifestam benevolência.
Eu mesmo quis escrever com minha letra feia; na próxima vez vou entregar a caneta ao meu secretário, para que seja mais fácil de ler o que está escrito.

Creia-me com a máxima estima e gratidão com que tenho a honra de professar-me de Vossa Senhoria Ilustríssima,

Humilde servidor, P. João Bosco.
Turim, 7 de maio de 1877.

Imagem positiva do trabalho salesiano
            Em primeiro lugar, a carta nos informa como Dom Bosco, após a aprovação pontifícia da congregação salesiana (1874), a abertura da primeira casa salesiana na França (1875) e a primeira expedição missionária à América Latina (1875), estava sempre ocupado visitando e apoiando suas obras já existentes e aceitando ou não as muitas que lhe eram propostas naqueles anos de todos os lados. Na época da carta ele tinha a ideia de abrir as primeiras casas das Filhas de Maria Auxiliadora além da de Mornese – até seis no período de dois anos de 1876-1877 – e acima de tudo ele estava interessado em se estabelecer em Roma, onde ele vinha tentando sem sucesso há mais de 10 anos ter uma sede. Nada conseguiu. Outro autêntico piemontês como Dom Bosco, um “sacerdote do movimento” como ele, não era bem-vindo às margens do Tibre, na capital Roma já cheia de piemonteses invisíveis, por algumas autoridades pontifícias e por parte clero romano. Por três anos ele teve que “contentar-se” com a “periferia” romana, ou seja, Castelli Romani e Magliano Sabino.

            Paradoxalmente o oposto aconteceu com as administrações municipais e as mesmas autoridades governamentais do Reino da Itália, onde Dom Bosco contou, se não com amigos – suas ideias eram muito divergentes – pelo menos com grandes admiradores. E por uma razão muito simples, pela qual todos os governos estavam interessados: administrar a Itália, um país recém-nascido, com cidadãos honestos, trabalhadores e cumpridores da lei, ao invés de povoar as prisões com “criminosos” vagabundos, incapazes de sustentar a si mesmos e a suas famílias com o próprio trabalho digno. Três décadas depois, em 1900, o famoso antropólogo e criminologista judeu César Lombroso teria dado plena razão a Dom Bosco quando escreveu: “Os institutos salesianos representam um esforço colossal e engenhosamente organizado para prevenir o crime, aliás o único realmente criado na Itália”. Como bem diz a carta em questão, a imagem dos trabalhos salesianos nos quais, sem se filiar a qualquer partido político, os meninos eram educados para se tornarem “bons cristãos e honestos cidadãos” foi positiva, e isto até no Império Austro-Húngaro, ao qual Trento e Veneza pertenciam nessa época.

Tipologia de uma casa salesiana
            Na continuação da carta, Dom Bosco passou a apresentar a estrutura de uma casa de educação: ambientes em que os meninos poderiam ser alojados (e ele focalizou pelo menos cinco coisas: pátio para brincar, salas para estudar, refeitório para comer, dormitório para dormir, igreja para orar) e “oficinas ou laboratórios” onde se poderia ensinar um ofício com o qual os jovens poderiam viver e ter um futuro quando deixassem o instituto. No que diz respeito aos recursos econômicos, ele indicou três ativos: a pensão mínima mensal que os pais dos meninos poderiam pagar, a pequena renda das oficinas de artesanato, subsídios da caridade pública (governo, prefeituras) e, acima de tudo, caridade privada. Foi exatamente a experiência de Valdocco. Mas Dom Bosco não falou aqui de uma coisa importante: a consagração total à missão educativa do diretor e de seus colaboradores próximos, padres e leigos, que pelo preço de um pedaço de pão e uma cama passavam 24 horas por dia no trabalho, na oração, no ensino e na assistência. Pelo menos era assim que se fazia nas casas salesianas da época, muito apreciadas pelas autoridades civis e religiosas, em primeiro lugar pelos bispos, sem cuja aprovação não era evidentemente possível fundar uma casa que “educava pela evangelizando e evangelizava pela educando” como era a casa salesiana.

Resultado
            Nós não sabemos se houve um seguimento a esta carta. O projeto de fundação salesiana do Sr. Garbari certamente não foi adiante. Assim como dezenas de outras propostas de fundações. Mas é historicamente verificado que muitos outros professores, padres e leigos, em toda a Itália, foram inspirados pela experiência de Dom Bosco, fundando obras similares, inspiradas por seu modelo educacional e seu sistema preventivo.
            O Sr. Garbari teve que se considerar satisfeito, porém: Don Bosco tinha sugerido uma estratégia que funcionava em Turim e em outros lugares… e então ele tinha em mãos o seu autógrafo, que, por mais difícil que fosse “decifrar”, era sempre o de um santo. Tanto é verdade que ele o preservou ciosamente e hoje é guardado no Arquivo Central Salesiano em Roma.




Um interessante caso judicial em Valdocco

Uma carta ao magistrado da cidade de Turim, datada de 18 de abril de 1865, abre um interessante e inédito vislumbre da vida cotidiana em Valdocco naquele tempo.

Entre os jovens acolhidos em Valdocco no decênio de 1860, quando quase todos as oficinas para aprendizes, muitas vezes órfãos, foram abertas, havia alguns enviados pela segurança pública. Assim, o Oratório não só acolhia bons jovens e jovens vivazes e de bom coração, mas também jovens difíceis e problemáticos que tinhas às costas experiências decididamente negativas.

Talvez estejamos habituados a pensar que em Valdocco, com a presença de Dom Bosco, as coisas sempre correram bem, sobretudo no decênio de 1850 e princípios de 60, quando a Obra salesiana ainda não se espalhara e Dom Bosco vivia em contato direto e constante com os meninos. Mais tarde, contudo, com uma grande massa heterogênea de jovens, educadores, aprendizes, jovens estudantes, noviços, estudantes de filosofia e de teologia, alunos noturnos e trabalhadores “externos”, poderiam surgir dificuldades na gestão disciplinar da comunidade de Valdocco.

Um fato bastante sério
Uma carta ao magistrado da cidade de Turim, datada de 18 de abril de 1865, abre um interessante e inédito vislumbre da vida cotidiana de Valdocco naquela época. Nós a reproduzimos e depois a comentaremos.

Ao Magistrado Urbano da cidade de Turim

Em vista da citação a ser feita ao clérigo Mazzarello, assistente na oficina de encadernação da casa conhecida como Oratório de São Francisco de Sales; tendo visto também a citação a ser feita aos jovens Frederico Parodi, João Castelli e José Guglielmi, e tendo considerado cuidadosamente o seu conteúdo, o diretor deste estabelecimento, Padre João Bosco, em seu desejo de resolver o assunto com menos perturbação por parte das autoridades do tribunal da cidade, acredita poder intervir em nome de todos no caso do jovem Carlos Boglietti, disposto a dar a quem quer que seja as mais amplas satisfações.
Antes de mencionar o fato em questão, parece apropriado notar que o artigo 650 do código penal parece totalmente alheio ao assunto em questão, pois se fosse interpretado no sentido exigido pela corte urbana, seria introduzido no regime doméstico das famílias, e os pais e tutores não poderiam mais corrigir seus filhos ou evitar insolência e insubordinação, [o que] seria seriamente prejudicial à moralidade pública e privada.
Além disso, a fim de manter certos jovens sob controle, em sua maioria enviados pela autoridade governamental, obteve-se a faculdade de usar todos os meios considerados apropriados e, em casos extremos, enviar o braço da segurança pública, como já foi feito várias vezes.
Passando agora ao assunto de Carlos Boglietti, devemos lamentar, mas francamente afirmar que ele foi paternalmente advertido várias vezes em vão; que ele provou não apenas ser incorrigível, como insultou, ameaçou e afrontou o seu assistente, clérigo Mazzarello, diante de seus companheiros. Aquele assistente, que de disposição muito mansa e branda, ficou tão assustado com isso que a partir de então sempre esteve doente sem nunca ter podido retomar suas funções, e ainda está doente.
Após esse evento, Boglietti fugiu da casa sem dizer aos superiores a quem se dirigia, e só deu a conhecer \ sua fuga através de sua irmã quando soube que queria se entregar nas mãos da polícia. O que não foi feito para preservar a sua honra.
Entretanto, faz-se um pedido para reparar os danos que o assistente sofreu à sua honra e à sua pessoa, pelo menos até que ele possa retomar suas ocupações comuns.
Que os custos deste processo sejam suportados por ele. Que nem ele Carlos Boglietti, nem o Sr. Estevão Caneparo, seu parente ou conselheiro, venham ao referido estabelecimento para renovar os atos de insubordinação e escândalos já causados em outras ocasiões.
[Sac. Gio Bosco].

O que posso dizer? Em primeiro lugar, que a carta documenta como entre os jovens acolhidos em Valdocco nos anos sessenta, quando até então quase todas as oficinas de aprendizes, muitas vezes órfãos, tinham sido abertas, havia alguns enviados pela segurança pública. Assim, o Oratório não só acolheu rapazes como Domingos Sávio ou Francisco Besucco ou mesmo Miguel Magone, ou seja, jovens ótimos, bons, e de jovens vivazes, mas de bom coração, como também jovens difíceis, problemáticos, com experiências decididamente negativas às costas
Aos juveníssimos educadores salesianos de Valdocco foi confiada a árdua tarefa de reeducá-los, autorizados também a recorrer a “todos os meios considerados adequados”. Quais deles? Certamente o Sistema Preventivo de Dom Bosco, cuja validade foi demonstrada pela experiência de duas décadas em Valdocco. Mas quando os fatos foram postos à prova, “em casos extremos”, para os jovens mais incorrigíveis, foi preciso recorrer à mesma força pública que os havia levado até lá.

No caso em questão
Dom Bosco, diante de uma citação para comparecer à corte por um de seus jovens clérigos e alguns rapazes do Oratório, sentiu o dever de intervir diretamente junto à autoridade constituída para defender o seu jovem educador, salvaguardar a imagem positiva do seu Oratório e proteger a sua própria autoridade educativa. Com extrema clareza, ele indicou ao magistrado as possíveis consequências negativas, para si, para as famílias e para a sociedade em geral, da aplicação rígida, e em sua opinião injustificada, de um artigo do código penal.
Como excelente advogado, com uma arenga jurídico-educativa imprudente, Dom Bosco transformou a sua defesa em acusação e o acusador em acusado, a ponto de imediatamente pedir indenização pelos danos físicos e morais causados ao jovem assistente Mazzarello, que adoeceu e foi obrigado ao repouso forçado..

O resultado da contestação
Não nos é dado saber; provavelmente terminou em um impasse. Mas o caso revela-nos uma série de atitudes e de comportamentos que não só são pouco conhecidos sobre Dom Bosco, mas que, de certa maneira, são sempre relevantes. Assim, ficamos sabendo que, mesmo sob os olhos atentos de Dom Bosco, o Sistema Preventivo pode às vezes falhar. O primeiro interesse a ser salvaguardado devia ser sempre o de cada jovem, obviamente na condição de não entrar em conflito com o interesse superior de outros companheiros. Além disso, a imagem positiva da obra salesiana também deveria ser defendida nos foros judiciais apropriados. Nesse caso, porém, as possíveis consequências tiveram que ser sabiamente levadas em conta, a fim de não se enfrentarem surpresas desagradáveis.




Onde nasceu Dom Bosco?

            No primeiro aniversário da morte de Dom Bosco, seus Antigos Alunos quiseram continuar a celebrar a Festa do Reconhecimento, como faziam todos os anos no dia 24 de junho, organizando-a para o novo Reitor-Mor, Padre Rua.
            Em 23 de junho de 1889, depois de colocar uma placa na Cripta de Valsalice, onde Dom Bosco estava sepultado, celebraram a festa do Padre Rua em Valdocco no dia 24.
            O professor Alessandro Fabre, ex-aluno de 1858-66, tomou a palavra e disse, entre outras coisas:
            “Caríssimo P. Rua, o senhor não ficará desapontado ao saber que decidimos acrescentar, como apêndice, a inauguração, no próximo dia 15 de agosto, de outra placa, cuja encomenda já foi feita e cujo desenho está reproduzido aqui, e que colocaremos na casa onde nasceu e viveu por muitos anos o nosso querido Dom Bosco, para que fique assinalado, para os contemporâneos e para a posteridade, o lugar em que, em primeiro lugar, palpitou o coração daquele grande homem que mais tarde encheria a Europa e o mundo com seu nome, suas virtudes e suas admiráveis instituições”.
            Como se pode ver, a intenção dos Antigos Alunos era colocar uma placa na “Casetta” dos Becchi, considerada por todos como o local de nascimento de Dom Bosco, porque ele sempre a indicou como sua casa. Mas depois, encontrando a “Casetta” em ruínas, foram induzidos a retocar o rascunho da inscrição e colocar a placa na casa vizinha de José com a seguinte redação ditada pelo próprio Prof. Fabre: “Em 11 de agosto, poucos dias antes do aniversário de Dom Bosco, os Antigos Alunos foram aos Becchi para descerrar a placa. O Teól. Félix Reviglio, Cura de Santo Agostinho, um dos primeiros alunos de Dom Bosco, fez o discurso na ocasião. Falando sobre a Pequena Casa, ele disse: “A mesma casa perto daqui, onde ele nasceu, que está quase completamente arruinada…” é “um verdadeiro monumento à pobreza evangélica de Dom Bosco”.
            A “ruína completa” da “Casetta” já havia sido mencionada no Boletim Salesiano em março de 1887 (BS 1887, março, p. 31), e o P. Reviglio e a inscrição na placa (“uma casa agora demolida”) estavam evidentemente falando dessa situação. A inscrição cobria tristemente o fato desagradável de que a “Casetta”, que ainda não era propriedade salesiana, parecia já inexoravelmente perdida.
            Mas o P. Rua não desistiu e, em 1901, ofereceu-se para restaurá-la às custas dos salesianos, na esperança de obtê-la mais tarde dos herdeiros de Antônio e José Bosco, como aconteceu em 1919 e 1926, respectivamente.
            Quando o trabalho foi concluído, uma placa foi colocada na “Casetta” com a seguinte inscrição: NESTA HUMILDE CASINHA, AGORA PIEDOSAMENTE restaurada, nasceu o p. João Bosco em 16 de agosto de 1815.
            Em seguida, a inscrição na casa de José também foi corrigida da seguinte forma: “Nascido aqui perto em uma casa agora restaurada… etc.”, e a placa foi devidamente substituída.
            Depois, quando o centenário do nascimento de Dom Bosco foi celebrado em 1915, o Boletim publicou a foto da “Casetta”, especificando: “E aquela onde nasceu o Venerável João Bosco em 16 de agosto de 1815, foi salva da ruína à qual a voracidade do tempo a condenou, com uma restauração geral no ano de 1901”.
            Na década de 1970, as pesquisas de arquivo realizadas pelo Comendador Segundo Caselle convenceu os salesianos de que Dom Bosco havia de fato vivido de 1817 a 1831 naquela “Casetta”, comprada por seu pai, portanto sua casa, como ele sempre disse; mas que havia nascido na propriedade Biglione, onde seu pai era agricultor; e viveu aí com a família até a morte, em 11 de maio de 1817, no alto da colina onde hoje se encontra o Templo de São João Bosco.
            A placa na casa de José foi alterada, enquanto a placa na “Casetta” foi substituída pela atual inscrição em mármore: ESTA É A MINHA CASA. DOM BOSCO.
            Permanece assim inconsistente a opinião recentemente expressa de que os Antigos Alunos, em 1889, com as palavras: “Nascido perto daqui em uma casa agora demolida” não pretendiam falar da Pequena Casa dos Becchi.

Os nomes de lugares dos Becchi
            A família Bosco morava em propriedade Biglione quando João nasceu?
            Alguns disseram que é permitido duvidar disso, porque é quase certo que eles moravam em outra casa de propriedade de Biglione em “Meinito”. A prova disso seria o Testamento de Francisco Bosco, redigido pelo notário C. G. Montalenti em 8 de maio. G. Montalenti, em 8 de maio de 1817, onde se lê: “… na casa do Senhor Biglione, habitada pelo abaixo-assinado testador na região do Monastero, no vilarejo de Meinito…”. (S. CASELLE, Cascinali e Contadini del Monferrato: i Bosco di Chieri nel secolo XVIII, Roma, LAS, 1975, p. 94).
            O que pode ser dito sobre essa opinião?
            Hoje, “Meinito” (ou “Mainito”) é apenas o local de uma propriedade rural situada ao sul do “Colle Don Bosco”, além da estrada provincial que vai de Castelnuovo em direção a Capriglio; porém, tempos atrás indicava um território mais extenso, contíguo àquele chamado Sbaraneo (ou Sbaruau). E Sbaraneo não era outra coisa senão o vale a leste do “Colle”.
            “Monastero”, portanto, não correspondia apenas à atual área arborizada perto de Mainito, mas cobria uma vasta área, de Mainito a Barosca, tanto que a mesma “Casetta” dos Becchi foi registrada em 1817 como “região de Cavallo, Monastero” (S. CASELLE, o. c., p. 96).
            Quando ainda não havia mapas com lotes numerados, as propriedades e lotes eram identificados com base em nomes de lugares ou topônimos, derivados de sobrenomes de famílias antigas ou características geográficas e históricas.
            Serviam como pontos de referência, mas não correspondiam ao significado atual de “região” ou “vilarejo”, exceto de forma muito aproximada, e eram usados com muita liberdade de escolha pelos notários.
            O mapa mais antigo de Castelnovese, preservado nos arquivos municipais e gentilmente disponibilizado para nós, data de 1742 e é chamado de “Mapa Napoleônico”, provavelmente devido ao seu maior uso durante a ocupação francesa. Um extrato desse mapa, editado em 1978 com elaboração fotográfica do texto original pelos Senhores Polato e Occhiena, que compararam os documentos do arquivo com os lotes numerados no Mapa Napoleônico, fornece uma indicação de todas as terras pertencentes à família Biglione desde 1773 e trabalhadas pela família Bosco de 1793 a 1817. A partir desse “Extrato”, parece que a família Biglione não possuía nenhuma terra ou casa em Mainito. Por outro lado, nenhum outro documento foi encontrado até o momento que prove o contrário.
            Então, que significado podem ter as palavras “na casa do Sr. Biglione… na região de Monastero, no vilarejo de Meinito”?
            Em primeiro lugar, é bom saber que, apenas nove dias depois, o mesmo notário que redigiu o testamento de Francisco Bosco escreveu no inventário de sua herança: “… na casa do senhor Jacinto Biglione, habitada pelos meninos citados abaixo [filhos de Francisco] na região de Meinito…”. (S. CASELLE, o. c., p. 96), promovendo assim Mainito de “vilarejo” para “região” em apenas alguns dias. Além disso, é curioso notar que até a mesma propriedade Biglione, em diferentes documentos, aparece em Sbaconatto, em Sbaraneo ou Monastero, em Castellero, e assim por diante.
            Então, como podemos entender isso? Levando tudo em conta, não é difícil perceber que é sempre a mesma área, o Monastero, que em seu centro tinha Sbaconatto e Castellero, a leste o Sbaraneo e ao sul o Mainito. O notário Montalenti escolheu “Meinito”, enquanto outros escolheram “Sbaraneo” ou “Sbaconatto” ou “Castellero”. Mas o local e a casa eram sempre os mesmos!
            Sabemos, além disso, que o Sr. e a Sra. Damevino, donos da propriedade Biglione de 1845 a 1929, também possuíam outras propriedades, em Scajota e Barosca; mas, como nos asseguram os anciãos locais, eles nunca tiveram casas em Mainito. No entanto, eles compraram as propriedades que a família Biglione havia vendido ao Sr. José Chiardi em 1818.
            Só resta concluir que o documento redigido pelo notário Montalenti em 8 de maio de 1817, mesmo que não contenha erros, refere-se à propriedade Biglione propriamente dita, onde Dom Bosco nasceu em 16 de agosto de 1815, onde seu pai morreu em 11 de maio de 1817 e onde foi construído o grandioso Templo de São João Bosco em nossos dias.
            A existência, finalmente, de uma casa fictícia em Biglione, habitada pela família Bosco em Mainito e depois demolida não se sabe quando, por quem ou por qual motivo antes de 1889, como alguns especularam, não tem (pelo menos até agora) nenhuma evidência real a seu favor. Os próprios Antigos Alunos, quando colocaram na placa dos Becchi as palavras “Nascido aqui perto…” (veja nosso artigo de janeiro), eles certamente não poderiam estar se referindo a Mainito, que fica a mais de um quilômetro da casa de José!

Propriedades, administradores e meeiros
            Francisco Bosco, administrador da propriedade Biglione, desejando montar seu próprio negócio, comprou terras e a casa dos Becchi, mas a morte o levou repentinamente em 11 de maio de 1817, antes que pudesse pagar todas as suas dívidas. Em novembro, sua viúva, Margarida Occhiena, mudou-se com os filhos e a sogra para a “Casetta”, que havia sido reformada para esse fim. Até então, essa “Casetta”, já contratada por seu marido desde 1815, mas ainda não paga, consistia apenas em “uma crotta e um estábulo adjacente, cobertos com telhas, em más condições” (S. CASELLE, Cascinali e contadini […], p. 96-97) e, portanto, inabitável para uma família de cinco pessoas, com animais e ferramentas. Em fevereiro de 1817, a escritura pública de venda havia sido lavrada, mas a dívida ainda estava pendente. Margarida teve que resolver a situação como guardiã de Antônio, José e João Bosco, na época pequenos proprietários nos Becchi.
            Não era a primeira vez que a família Bosco passava do status de administradores para o de pequenos proprietários e vice-versa. O falecido Comendador Segundo Caselle nos forneceu ampla documentação sobre isso.
            O trisavô de Dom Bosco, João Pedro, antes administrador na Cascina Croce di Pane, entre Chieri e Andezeno, de propriedade dos Padres Barnabitas, em 1724 tornou-se administrador na Cascina de São Silvestre, perto de Chieri, pertencente à Paróquia de São Jorge. E que ele morava mesmo na Propriedade de São Silvestre com sua família está documentado nos “Registros do Sal” de 1724. Seu sobrinho, Filipe Antônio, órfão de pai e acolhido pelo filho mais velho de João Pedro, João Francisco Bosco, foi adotado por um tio-avô, de quem herdou uma casa, um jardim e 2 hectares de terra em Castelnuovo. Mas, devido à situação econômica crítica em que se encontrava, teve que vender a casa e a maior parte de suas terras e se mudar com a família para o vilarejo de Morialdo, como administrador de Cascina Biglione, onde morreu em 1802.
            Paulo, seu filho primogênito, tornou-se assim o chefe da família e o administrador, conforme registrado no censo de 1804. Mas, alguns anos depois, ele deixou a fazenda para seu meio-irmão Francisco e foi se estabelecer em Castelnuovo, após receber sua parte da herança e realizar a compra e venda. Foi então que Francisco Bosco, filho de Filipe Antônio e Margarida Zucca, tornou-se administrador de Cascina Biglione.
            O que se entendia naquela época por “cascina”, “massaro” e “meeiro”?
            A palavra “cascina” (em piemontês: cassin-a) indica em si uma casa do colono ou toda a propriedade agrícola; mas nos lugares de que estamos falando, a ênfase estava na casa, ou seja, a construção da propriedade usada em parte como moradia e em parte como abrigo para o gado etc. O “massaro” (em piemontês: massé) em si é o inquilino da fazenda e dos lotes, enquanto o “mezzadro” (em piemontês: masoé) é apenas o cultivador da terra de um senhor com quem ele compartilha as colheitas. Mas, na prática, nesses lugares o massaro também era meeiro e vice-versa, de modo que a palavra massé não era muito usada, enquanto masoé geralmente indicava também o massaro.
            O Sr. e a Sra. Damevino, proprietários de Cascina “Bion” ou Biglione em Castellero de 1845 a 1929, também possuíam outras propriedades, em Scajota e Barosca, e, como nos garantiu o Sr. Angelo Agagliate, tinham cinco “massari” ou meeiros, um na priedade Biglione, dois em Scajota e dois em Barosca. Naturalmente, os vários “massari” viviam em suas propriedades.
            Ora, se um agricultor era um “massaro”, por exemplo, em Cascina Scajota, de propriedade da família Damevino, ele não era chamado de “morador na casa Damevino”, mas simplesmente “em Scajota”. Se Francisco Bosco tivesse morado na suposta casa de Biglione em Mainito, não se diria, portanto, que ele morava “na casa do Sr. Biglione”, mesmo que essa casa pertencesse à família Biglione. Se o tabelião escreveu: “Na casa do senhor Biglione, habitada pelo testador abaixo-assinado”, é sinal de que Francesco vivia com a família na propriedade Biglione propriamente dita.
            E isso é mais uma confirmação dos artigos anteriores que refutam a hipótese do nascimento de Dom Bosco em Mainito “em uma casa agora demolida”.
            Em conclusão, não se pode dar importância exclusiva ao significado literal de certas expressões, mas deve-se examinar seu verdadeiro significado no uso local da época. Em estudos desse tipo, o trabalho do pesquisador local é complementar ao do historiador acadêmico e particularmente importante, porque o primeiro, auxiliado pelo conhecimento detalhado da área, pode fornecer ao segundo o material necessário para suas conclusões gerais e evitar interpretações errôneas.




Como encontrar os recursos para construir uma igreja

Um segredo a ser encontrado
É sabido que a fama de Dom Bosco e suas habilidades de realização se espalharam por toda a Itália. Como ele foi bem sucedido em tantos empreendimentos, muitas pessoas lhe pediram conselhos sobre como fazer o mesmo.
Como encontrar os fundos para construir uma igreja? A senhora Mariana Moschetti, de Castagneto di Pisa (hoje Castagneto Carducci-Livorno), lhe perguntou expressamente em 1877. A resposta de Dom Bosco de 11 de abril é admirável em sua brevidade e simplicidade.

Ponto de partida: conhecer a situação
Com a sabedoria prática que lhe veio da criação de sua família e de sua experiência como construtor-realizador-fundador de tantos projetos, Dom Bosco tomou a iniciativa e escreveu inteligentemente que “seria necessário poder conversar para examinar que projetos podem ser feitos e qual a probabilidade de poder realizá-los”. Sem um realismo saudável, os melhores projetos continuam sendo um sonho. O santo, porém, não quer desencorajar imediatamente sua correspondente, e então acrescenta imediatamente “o que me parece bom no Senhor”.

In nomine Domini
Ele começa bem, poder-se-ia dizer, com este “no Senhor”. De fato, o primeiro, e portanto o conselho mais importante que dá à senhora, é “rezar e convidar outros a rezar e fazer comunhão com Deus, como o meio mais eficaz de merecer Suas graças”. A igreja é a casa do Senhor, que não deixará de abençoar um projeto de igreja, se for levado avante por quem confia nEle, ora a Ele, vive a vida cristã e faz uso dos meios indispensáveis. Uma vida de graça certamente merece as graças do Senhor (Dom Bosco está convencido disso), mesmo se tudo é graça: “Se o Senhor não constrói a casa, em vão trabalham nela os construtores”.

A colaboração de todos
A igreja é a casa de todos; certamente o pároco é o principal responsável, mas não o único. Portanto, os leigos devem sentir-se corresponsáveis e entre eles os mais sensíveis, os mais disponíveis, talvez os mais capazes (aqueles que hoje poderiam fazer parte do conselho pastoral e econômico de cada paróquia). Eis aqui então o segundo conselho de Dom Bosco: “Convidar o pároco a se colocar à frente de duas comissões tão numerosas quanto possível. Uma de homens, a outra de mulheres. Cada membro dessa comissão se inscreve para uma oferta dividida em três parcelas, uma para cada ano”.
Observação: duas comissões, uma masculina e uma feminina. É claro que, na época, as associações masculinas e femininas de uma paróquia eram normalmente separadas; mas por que não ver também nelas uma “competição” justa e leal em fazer o bem, em administrar um projeto com suas próprias forças, cada grupo “à sua maneira”, com suas próprias estratégias? Dom Bosco sabia o quanto ele mesmo estava financeiramente endividado com o mundo feminino, com as marquesas, com as condessas, com as nobres em geral: geralmente mais religiosas que seus maridos, mais generosas em obras de caridade, mais dispostas “a ajudar as necessidades da Igreja”. Apostar nelas era sabedoria.

Alargar o círculo
De fato, Dom Bosco acrescentou imediatamente: “Ao mesmo tempo, cada um deve procurar doadores em dinheiro, em trabalho, ou em materiais”. Por exemplo, convidar os que vão mandar fazer um altar, o púlpito, os castiçais, um sino, as esquadrias das janelas, a porta maior, as portas menores, os vidros, etc. Mas uma só coisa cada um”. Lindo. Cada um tinha que se comprometer com algo que pudesse considerar com razão seu próprio presente pessoal para a igreja em construção.
Dom Bosco não tinha estudado psicologia, mas sabia – como todos os párocos, e não só eles, sabem – que, fazendo cócegas no orgulho legítimo das pessoas, também se pode conseguir muito em termos de generosidade, de solidariedade, de altruísmo. Além disso, ao longo de sua vida ele precisou de outros: estudar quando criança, ir à escola de Chieri quando jovem, entrar no seminário como clérigo, iniciar seu trabalho como padre, desenvolvê-lo como fundador.

Um segredo
Dom Bosco então mostra-se misterioso com sua correspondente: “Se eu pudesse falar com o senhor pároco, poderia sugerir outro meio; mas não gostaria de confiá-lo ao papel”. Do que se tratava então? É difícil de dizer. Poder-se-ia pensar na promessa de indulgências especiais para tais benfeitores, mas teria sido necessário dirigir-se a Roma e Dom Bosco sabia o quanto isso poderia causar dificuldades com o bispo e outros párocos também envolvidos nas mesmas frentes de construções. Talvez fosse mais provável que fosse um convite confidencial para buscar o apoio das autoridades políticas, a fim de que elas pudessem apoiar a causa. Seria mais conveniente apresentar oralmente a sugestão, para não se comprometer diante das autoridades civis ou religiosas, num momento de oposição feroz entre elas, com a esquerda histórica no poder, mais anticlerical do que a direita anterior.
Que mais poderia ele dizer? Uma coisa que era importante para ambos: a oração. E de fato é assim que ele se despede da sua correspondente: “Rezarei para que tudo corra bem. Meu único apoio tem sido sempre o de recorrer a Jesus no Santíssimo Sacramento e a Maria Auxiliadora. Deus a abençoe e reze por mim, que serei sempre em Jesus Cristo”…




Dom Bosco e “a Consolata”

            O pilar mais antigo da área de Becchi parece datar de 1700. Foi erguido na parte inferior da planície em direção ao “Mainito”, onde as famílias que viviam na antiga “Scaiota” costumavam se encontrar. Depois, tornou-se uma propriedade rural salesiana, que agora foi reformada e convertida em uma casa para jovens que recebe grupos de jovens peregrinos do Templo e da Casa Dom Bosco.
            Este é o pilar da Consolata, com uma estátua da Virgem Consoladora dos Aflitos, sempre homenageada com flores do campo trazidas pelos devotos. João Bosco deve ter passado muitas vezes por esse pilar, tirando o chapéu e murmurando uma Ave Maria, como sua mãe lhe ensinara.
            Em 1958, os salesianos restauraram o velho pilar e, com uma solene função religiosa, inauguraram-no para um renovado culto da comunidade e da população, conforme registrado na Crônica daquele ano, mantida nos arquivos do Instituto “Bernardi Semeria”.
            Aquela estátua da Consolata poderia, portanto, ser a primeira imagem de Maria Santíssima que Dom Bosco venerou em sua infância, perto de sua casa.

Na “Consolata” em Turim
            Já como estudante e seminarista em Chieri, Dom Bosco deve ter ido a Turim para venerar a Virgem Consoladora (MB I, 267-68 – MBp I, 217). Mas é certo que, como neossacerdote, celebrou sua segunda Santa Missa precisamente no Santuário da Consolata, como ele mesmo escreveu: “para agradecer à excelsa Virgem Maria os incontáveis favores que me havia alcançado de seu divino Filho Jesus” (MO 115 – MOp 112).
            Nos dias do Oratório errante, sem residência fixa, Dom Bosco ia com seus meninos a alguma igreja de Turim para a missa dominical e, na maioria das vezes, iam à Consolata (MB II, 248; 346 – MBp II, 215; 295).
            No mês de maio de 1846-47, para agradecer à Virgem Consoladora por ter-lhes dado, finalmente, um lar estável, ele levou seus jovens até lá para fazer a Sagrada Comunhão, enquanto os bons Padres Oblatos da Virgem Maria, que oficiavam no Santuário, se prestavam a ouvir suas confissões (MB II, 430 – MBp II, 363).
            Quando, no verão de 1846, Dom Bosco adoeceu gravemente, seus filhos não só demonstraram sua dor em lágrimas, mas, temendo que os meios humanos não fossem suficientes para sua recuperação, eles se revezavam de manhã à noite no Santuário da Consolata para rezar a Maria Santíssima para preservar a saúde de seu amigo e pai.
            Houve até quem fizesse votos infantis e quem jejuasse a pão e água para que Nossa Senhora os ouvisse. Eles foram ouvidos e Dom Bosco prometeu a Deus que até seu último suspiro seria para eles.
            As visitas de Dom Bosco e de seus filhos à Consolata continuaram. Convidado uma vez para cantar uma missa no santuário com seus jovens, ele chegou na hora marcada com a improvisada “Schola cantorum”, trazendo consigo a partitura de uma “missa” que havia composto para a ocasião.
            O organista do santuário era o famoso maestro Bodoira, que Dom Bosco convidou para tocar o órgão. Este nem sequer deu uma olhada na partitura de Dom Bosco, mas quando estava prestes a tocar a música, não entendeu nada dela e, deixando o posto de organista com raiva, foi embora.
            Dom Bosco, então, sentou-se ao órgão e acompanhou a missa seguindo sua composição repleta de sinais que só ele podia entender. Os jovens, que antes se perdiam com as notas do famoso organista, continuaram até o fim sem desafinar, e suas vozes argentinas atraíram a admiração e a simpatia de todos os fiéis presentes à missa (MB III, 148 – MBp III, 119).
            De 1848 a 1854, Dom Bosco acompanhou seus meninos em procissão pelas ruas de Turim até a Consolata. Seus jovens cantavam louvores à Virgem ao longo do caminho e depois participavam da Santa Missa que ele celebrava.
            Quando Mamãe Margarida morreu, em 25 de novembro de 1856, Dom Bosco foi naquela manhã celebrar a Santa Missa de sufrágio na capela subterrânea do Santuário da Consolata, parando para rezar longamente diante da imagem de Maria Consoladora, implorando que fosse mãe para ele e seus filhos. E Maria atendeu suas preces (MB V, 566 – MBp V, 484).
            No Santuário da Consolata, Dom Bosco não só teve a oportunidade de celebrar a Santa Missa várias vezes, mas um dia também quis servi-la. Ao entrar no santuário para fazer uma visita, ouviu o sinal para o início da missa e percebeu que o ministro não estava presente. Levantou-se, foi até a sacristia, pegou o missal e serviu a missa com devoção (MB VII, 86 – MBp VII, 109-110).
            E a presença de Dom Bosco no Santuário nunca cessou, especialmente por ocasião da Novena e da Festa da Consolata.

Estatueta da Consolata na Capela Pinardi
            Em 2 de setembro de 1847, Dom Bosco comprou, pelo preço de 27 liras, uma estatueta de Maria Consoladora, colocando-a na Capela Pinardi.
            Em 1856, quando a capela estava sendo demolida, o P. Francisco Giacomelli, companheiro de seminário e grande amigo de Dom Bosco, desejando guardar para si o que ele chamava de monumento mais ilustre da fundação do Oratório, levou a estatueta para Avigliana, para sua casa paterna.
            Em 1882, sua irmã mandou construir um pilar com um nicho na casa e colocou ali a preciosa relíquia.
            Quando os salesianos souberam da existência da coluna em Avigliana, após a extinção da família Giacomelli, conseguiram recuperar a antiga estatueta que, em 12 de abril de 1929, retornou ao Oratório de Turim, depois de 73 anos desde o dia em que o P. Giacomelli a havia retirado da primeira capela (E. GIRAUDI, L’Oratorio di Don Bosco, Torino, SEI, 1935, p. 89-90).
            Hoje, a pequena estátua histórica é a única lembrança do passado na nova Capela Pinardi, constituindo seu tesouro mais caro e precioso.
            Dom Bosco, que difundiu o culto a Maria Auxiliadora em todo o mundo, nunca esqueceu sua primeira devoção à Virgem, venerada desde a infância na coluna dos Becchi, sob a efígie da “Consolata”. Quando chegou a Turim como jovem sacerdote diocesano, durante o período heroico do seu “Oratório”, foi da Virgem Consoladora, no seu Santuário, que tirou luz e conselho, coragem e conforto para a missão que o Senhor lhe havia confiado.
            É também por isso que ele é considerado, com razão, um dos santos de Turim.




Edmond Obrecht. Eu almocei com um santo

Na biografia de um famoso abade, a emoção do encontro com Dom Bosco.

Hoje em dia é muito fácil encontrar um santo de altar; isso já me aconteceu várias vezes. Conheci vários: o Cardeal de Milão Ildefonso Schuster (que me crismou) e os Papas João XXIII e Paulo VI; com Madre Teresa conversei; com o Papa João Paulo II até almocei. Mas, há um século, não era tão fácil, portanto, aproximar-se pessoalmente de um santo de altar foi uma experiência que ficou gravada na mente e no coração da pessoa afortunada. Esse foi o caso do abade trapista francês P. Edmundo Obrecht (1852-1935). Em 1934, quando Dom Bosco foi canonizado, três dias após a cerimônia solene, ele confidenciou ao editor do semanário católico norte-americano Louisville Record sua grande satisfação por ter conhecido pessoalmente o novo santo, por ter apertado sua mão e por ter almoçado com ele.
O que aconteceu? O episódio é relatado em sua biografia.

Quatro horas com Dom Bosco
Nascido na Alsácia em 1852, Edmundo Obrecht tornou-se monge trapista aos 23 anos de idade. Assim que se tornou sacerdote, em 1879, o padre Edmundo foi enviado a Roma como secretário do Procurador Geral das três Observâncias Trapistas, que em 1892 seriam unidas em uma única Ordem, com a casa geral da Trapa das Três Fontes na capital italiana.
Durante sua estada em Roma, ele teve o domingo livre e aproveitou para celebrar com seus irmãos cistercienses na basílica de Santa Cruz de Jerusalém. O celebrante titular era o Vigário de Roma, Cardeal Lúcido Maria Parocchi, de modo que o Padre Edmundo teve a oportunidade de servi-lo várias vezes em serviços pontifícios solenes e de conhecê-lo bem.
Ora, em 14 de maio de 1887, estava programada a consagração da Igreja do Sagrado Coração em Roma, ao lado do que hoje é a estação Términi: uma igreja magnífica que havia custado uma fortuna a Dom Bosco e pela qual ele havia dado “corpo e alma” para conseguir concluí-la. Ele foi bem-sucedido e, apesar de sua saúde, então bastante comprometida (ele morreria oito meses depois), quis participar da cerimônia solene de consagração.
Para essa longa celebração (cinco horas a portas fechadas), o Card. Parocchi foi acompanhado pelo padre Edmundo. Foi uma experiência decididamente inesquecível para ele. Ele escreveria 50 anos depois: “Durante aquela longa cerimônia, tive o prazer e a honra de sentar-me ao lado de Dom Bosco no presbitério da igreja e, após a consagração, fui admitido na mesma mesa dele e do cardeal. Foi a única vez em minha vida que tive contato próximo com um santo canonizado e a profunda impressão que ele causou em mim permaneceu em minha mente por todos esses longos anos”. Padre Edmundo tinha ouvido falar muito de Dom Bosco, que, em uma época em que as relações diplomáticas da Santa Sé com o novo Reino da Itália estavam se rompendo, era tido em alta estima e consideração pelos políticos da época: Zanardelli, Depretis, Nicotera. Os jornais falavam de suas intervenções para resolver algumas questões sérias relativas à nomeação de novos bispos e à tomada de posse das propriedades de cada diocese.
O P. Edmundo não se contentou com essa experiência inesquecível. Mais tarde, em uma viagem, ele passou por Turim e quis parar para visitar a grande obra salesiana de Dom Bosco. Ele ficou admirado e só pôde se alegrar no dia de sua beatificação (2 de junho de 1929).

Post Scriptum
No dia anterior à consagração da Igreja do Sagrado Coração, 13 de maio de 1887, o Papa Leão XIII concedeu a Dom Bosco uma audiência de uma hora no Vaticano. Ele foi muito cordial com ele e até brincou dizendo que Dom Bosco, devido à sua idade, estava perto da morte (mas ele era mais jovem que o papa!), mas Dom Bosco teve um pensamento que talvez não ousasse expressar ao papa pessoalmente. Ele o fez alguns dias depois, em 17 de maio, ao sair de Roma: perguntou-lhe se poderia pagar todo ou parte do custo da fachada da igreja: uma bela soma, 51.000 liras [230.000 euros]. Coragem ou atrevimento? Extrema confiança ou simples insolência? O fato é que, alguns meses depois, em 6 de novembro, Dom Bosco voltou à carga e pediu a intervenção de Dom Francisco della Volpe, prelado doméstico do Papa, para obter – escreveu – “a soma de 51.000 francos, que a caridade do Santo Padre lhe fazia esperar que ele mesmo iria pagar… nosso Ecônomo está indo a Roma para liquidar as despesas dessa construção; ele irá à Vossa Excelência para obter a melhor resposta possível.” Ele garantiu que “nossos mais de trezentos mil órfãos rezam todos os dias por Sua Santidade”. E concluiu: “Por favor, perdoe esta minha escrita pobre e feia. Não consigo mais escrever”.
Pobre Dom Bosco: em maio, naquela igreja, celebrando diante do altar de Maria Auxiliadora, chorou várias vezes porque viu realizado o sonho dos nove anos; mas seis meses depois seu coração ainda estava angustiado porque, diante da morte que sentia estar próxima, deixava uma pesada dívida para liquidar as contas daquela mesma igreja.
Para isso, ele realmente passou vários anos, “até seu último suspiro”. Pouquíssimas das dezenas de milhares de pessoas que passam por ela todos os dias ao sair da estação Términi pela Via Marsala sabem disso.




Dom Bosco e a língua italiana

            No início do século XIX, o Piemonte ainda era uma área periférica em comparação com o resto da Itália. O idioma falado era o piemontês. O italiano era usado somente em casos especiais, como se usa uma roupa em ocasiões especiais. As classes mais altas preferiam usar o francês na escrita e recorriam ao dialeto na conversação.
            Em 1822, o rei Carlos Félix aprovou um regulamento para escolas com disposições especiais para o ensino da língua italiana. No entanto, essas disposições não foram muito eficazes, especialmente devido ao método como foram aplicadas.
            Portanto, não é de se surpreender que o uso correto da língua italiana também tenha custado não pouco esforço a Dom Bosco. Não é por acaso que no manuscrito de suas Memórias é fácil encontrar palavras piemontesas italianizadas ou palavras italianas usadas no sentido dialetal, como nos casos a seguir:
“Notei que […] estava aparecendo um sfrosadore” (ASC 132 / 58A7), onde sfrosadore (piemontês: sfrosador) significa fraudador; e da mesma forma: “Dom Bosco com seus filhos poderia a qualquer momento provocar uma revolução” (ASC 132 / 58E4), onde figli (piemontês: fieuj) significa jovens. E assim por diante.
            Se Dom Bosco pôde então escrever com propriedade de linguagem, combinada com simplicidade e clareza, isso se deve, entre outras coisas, ao uso paciente do vocabulário que lhe foi aconselhado por Sílvio Pellico (MB III, 314-315 – MBp III, 249-250).

Uma correção
            Um exemplo significativo pode ser encontrado na correção de uma frase do primeiro sonho que ele descreveu em suas Memórias: “Torna-te sadio, forte e robusto”.
            Dom Bosco, ao revisar o manuscrito, traçou uma linha sobre a palavra “sadio” e escreveu em seu lugar: “humilde” (ASC 132 / 57A7).
            O que Dom Bosco realmente ouviu em seu sonho e por que ele mudou essa palavra? Falou-se de uma mudança de significado feita para fins didáticos, como parece ter sido o costume de Dom Bosco, às vezes, ao narrar e escrever seus sonhos. Mas não poderia ser, em vez disso, um simples esclarecimento do significado original?
            Aos 9 anos de idade, Joãozinho Bosco só falava e ouvia em piemontês. Ele tinha apenas começado a estudar “os elementos de leitura e escrita” na escola do P. Lacqua, em Capriglio. Em casa e no vilarejo, só se usava o dialeto. Na igreja, Joãozinho ouvia o pároco ou capelão ler o Evangelho em latim e explicá-lo em piemontês.
            Portanto, é mais do que razoável supor que, em um sonho, Joãozinho ouviu tanto o “Homem venerável” como a “Mulher de aspecto majestoso” se expressarem em dialeto. As palavras que ele ouviu no sonho devem, então, ser lembradas em dialeto. Não: “umile, forte, robusto”, mas sim: “san, fòrt e robust” no sotaque local característico.
            Em tais circunstâncias, esses adjetivos não poderiam ter um significado puramente literal, mas figurado. Ora, “san”, em sentido figurado, quer dizer:
sem defeitos, de conduta moral correta, isto é, bom (C. ZALLI, Dizionario Piemontese-Italiano. Carmagnola, Tip. di P. Barbié, 2. Ed. 1830, vol.
II, p. 330, usado por Dom Bosco); “fòrt e robust” significa vigoroso, isto é, dotado de resistência no sentido físico e moral (C. ZALLI, o. c., vol. I, 360; vol. II, 309).
            Dom Bosco nunca mais se esquecerá desses três adjetivos “san, fòrt e robust” e, quando escrever suas Memórias, embora à primeira vista os tenha traduzido literalmente, refletindo sobre isso mais tarde,considerará  mais apropriado especificar melhor o significado da primeira palavra. Aquele san (= bom) para um menino de 9 anos significava obediente, dócil, não inconstante, não arrogante; numa palavra: “humilde”!
            Seria, portanto, um esclarecimento, não uma mudança de significado.

Confirmações dessa interpretação
            Dom Bosco, ao escrever suas Memórias, enfatizou com franqueza os pequenos defeitos de sua infância. Duas passagens extraídas das mesmas Memórias confirmam esse fato.
            A primeira diz respeito ao ano da sua primeira Confissão e Comunhão, para as quais Mamãe Margarida havia preparado o seu filho. Dom Bosco escreveu: “Considerei e procurei praticar os conselhos da minha piedosa mãe; e parece-me que daquele dia em diante houve alguma melhora na minha vida, especialmente na obediência e na submissão aos outros, às quais eu antes sentia grande repugnância, querendo sempre fazer as minhas considerações infantis a quem me ordenava ou me dava bons conselhos” (ASC 132 / 60B5).
            A outra pode ser encontrada um pouco mais adiante, onde Dom Bosco fala das dificuldades que encontrou com seu meio-irmão Antônio para entregar-se ao estudo. É um detalhe divertido para nós, mas que trai o temperamento de Antônio e o de Joãozinho. Dizem que Antonio disse-lhe um dia, vendo-o na cozinha, sentado à mesa, todo concentrado em seus livros: “Quero acabar com essa gramática. Cresci grande e forte e nunca vi esses livros”. E Dom Bosco acrescentou: “Dominado naquele momento pela aflição e pela raiva, respondi o que não deveria dizer. “Você não está certo. Não sabe que o nosso burro é maior do que você e nunca foi à escola? Quer se parecer com ele?” Com essas palavras, ele ficou furioso, e foi somente com minhas pernas, que me serviam muito bem, que consegui escapar de uma chuva de golpes e pescoções” (ASC 132 / 57B5).
            Esses detalhes dão uma melhor compreensão do aviso do sonho e, ao mesmo tempo, podem explicar o motivo do “esclarecimento” linguístico mencionado acima.
            Portanto, ao interpretar os manuscritos de Dom Bosco, será útil não esquecer o problema da língua, porque Dom Bosco falava e escrevia corretamente em italiano, mas a sua língua materna era aquela em que pensava.
            Em Roma, no dia 8 de maio de 1887, em uma recepção em sua homenagem, quando lhe perguntaram qual era a língua de que mais gostava, ele disse: “A língua de que mais gosto é a que minha mãe me ensinou, porque me custou pouco esforço para aprendê-la e acho mais fácil expressar minhas ideias nela, e depois não a esqueço tão facilmente quanto as outras línguas!” (MB XVIII, 325).




Sonho dos Dez Diamantes

Um dos sonhos mais famosos de Dom Bosco foi o chamado “Sonho dos Dez Diamantes”, realizado em setembro de 1881. É um sonho de advertência que nunca perderá seu valor, de modo que a declaração que Dom Bosco fez aos superiores será sempre verdadeira: “Os males ameaçados serão evitados, se pregarmos sobre as virtudes e os vícios ali observados”. O Padre Lemoyne nos diz isso em suas Memórias Biográficas (XV, 182-184).

Como para levantar o ânimo de Dom Bosco, para que o peso de tantas pequenas e grandes contrariedades não o esmagasse, o céu, por assim dizer, descia até ele de tempos em tempos sob a forma de ilustrações do alto, que o confirmavam na certeza encorajadora da missão que lhe fora confiada pelo Senhor. No mês de setembro, ele teve um de seus sonhos mais importantes, que, prenunciando o destino da Congregação em um futuro próximo, revelou-lhe seus grandiosos aumentos, mas ao mesmo tempo revelou-lhe os perigos que ameaçavam destruí-la, se ele não tomasse providências a tempo. As coisas que ele viu e ouviu o impressionaram tanto que ele não se contentou em expressá-las verbalmente, mas também as colocou por escrito. O original está perdido; no entanto, várias cópias chegaram até nós, todas com uma concordância incrível.

Spiritus Sancti gratia, illuminet sensus et corda nostra. Amém. [A graça do Espírito Santo ilumine nossos sentidos e nossos corações]

Para ensinamento da Pia Sociedade Salesiana.
No dia 10 de setembro do ano em curso (1881), dia que a Igreja consagra ao glorioso Nome de Maria, os salesianos, reunidos em São Benigno Canavese, realizavam seus Exercícios Espirituais.
Na noite do dia 10 para o dia 11, enquanto dormia, minha mente se viu em um grande salão esplendidamente adornado. Parecia-me estar passeando com os Diretores das nossas Casas, quando apareceu entre nós um homem de tão majestoso aspecto que não podíamos fixar nele os olhos. Depois de lançar-nos um olhar, sem dizer palavra, pôs-se a caminhar a alguns passos distante de nós. Ele estava vestido da seguinte maneira: Um rico manto, à guisa de capa, cobria-o todo. A parte próxima ao pescoço era como uma faixa que se atava na frente, e sobre o peito pendia um laço. Na faixa estava escrito em caracteres luminosos: Pia Salesianorum Societas anno 1881 (Sociedade de São Francisco de Sales no ano de 1881) e na borda dessa faixa liam-se as palavras: Qualis esse debet (Como deve ser).De tamanho e fulgor extraordinários, dez diamantes mal nos permitiam fitar o augusto Personagem. Sobre o peito achavam-se três deles. Num estava escrito Fides (Fé), noutro Spes (Esperança) e, no que estava sobre o coração, Charitas (Caridade). Um quarto diamante, no ombro direito, trazia a palavra Labor (Trabalho). Outro, no ombro esquerdo Temperantia (Temperança). Os demais cinco ornavam a parte posterior do manto e estavam assim dispostos: um maior e mais resplandecente era como o centro de um quadrilátero, e tinha escrito Obedientia (Obediência). No primeiro da direita lia-se Votum Paupertatis (Voto de Pobreza). No segundo, mais abaixo, Praemium (Prêmio). À esquerda, no que ficava mais alto, lia-se Votum Castitatis (Voto de Castidade): seu esplendor emitia uma luz toda especial e atraía o olhar como o imã atrai o ferro. No segundo, da esquerda, mais embaixo, estava escrito Ieiunium (Jejum). Os quatro faziam convergir seus raios luminosos para o diamante do centro.
Estes brilhantes despediam raios que se elevavam quais pequenas chamas e traziam escritas aqui e ali várias sentenças.

Sobre a Fé se elevavam as palavras: Sumite scutum Fidei, ut adversus insidias diaboli certare possitis (Tomai o escudo da Fé a fim de poderdes combater contra as insídias do demônio). Noutro raio: Fides sine operibus mortua est. Non auditores, sed factores legis regnum Dei possidebunt (A Fé sem obras é morta. Não os que escutam a lei, mas os que a praticam é que possuirão o Reino de Deus).

Sobre os raios da esperança: Sperate in Domino, non in hominibus. Semper vestra fixa sint corda, ubi vera sunt gaudia (Esperai em Deus e não nos homens. Ali estejam sempre fixos os vossos corações, onde estão as verdadeiras alegrias).

Sobre os raios da Caridade: Alter alterius onera portate, si vultis adimplere legem meam. Diligite et diligemini. Sed diligite animas vestras et vestrorum. Devote divinum officium persolvatur; missa attente celebretur; Sanctum Sanctorum peramanter visitetur (Suportai-vos uns aos outros, se quiserdes observar a minha lei. Amai e sereis amados. Mas amai as vossas almas e as dos que vos são confiados. Recitai com devoção o Ofício divino; a Missa se celebre com atenção; visitai com muito amor o Santo dos Santos).

Sobre a palavra Obra: Remedium concupiscentiae, arma potens contra omnes insidias diaboli (Remédio contra a concupiscência. Arma poderosa contra todas as insídias do demônio).

Sobre a temperança: Si lignum tollis, ignis extinguitur. Pactum constitue cum oculis tuis, cum gula, cum somno, ne huiusmodi inimici depraedentur animas vestras. Intemperantia et castitas non possunt simul cohabitare (Se retiras a lenha, o fogo se apaga. Faze um pacto com os olhos, com a gula, com o sono, para que tais inimigos não te arruínem a alma. Intemperança e castidade não podem conviver juntas).

Sobre os raios da obediência: Totius aedificii fundamentum, et sanctitatis compendium (Fundamento de todo o edifício e compêndio da santidade).

Sobre os raios da Pobreza: Ipsorum est Regnum coelorum. Divitiae spinae. Paupertas non verbis, sed corde et opere conficitur. Ipsa coeli ianuam aperiet et introibit (Deles é o reino dos céus. As riquezas são espinhos. A pobreza não se obtém com palavras, mas com o coração e as obras. Ela nos abrirá a porta do céu e nele nos introduzirá).

Sobre os raios da Castidade: Omnes virtutes veniunt pariter cum illa. Qui mundo sunt corde, Dei arcana vident, et Deum ipsum videbunt. (Junto com ela vêm todas as virtudes. Os puros de coração penetram os segredos de Deus: verão o mesmo Deus).

Sobre os raios do Prêmio: Si delectat magnitudo praemiorum, non deterreat multitudo laborum. Qui mecum patitur, mecum gaudebit. Momentaneum est quod patimur in terra, aeternum est quod delectabit in coelo amicos meos (Se nos agrada a grandeza dos prêmios, não nos amedronte a multidão das fadigas. Quem sofre comigo, comigo há de gozar no céu. É momentâneo o que se sofre na terra; mas eterno o que os meus amigos hão de gozar no Céu).

Sobre os raios do Jejum: Arma potentissima adversus insidias inimici. Omnium Virtutum Custos. Omne genus daemoniorum per ipsum eiicitur (Arma poderosíssima contra as insídias do inimigo. A guarda de todas as virtudes. Por meio dele se expulsa toda a classe de inimigos).

Uma larga faixa cor-de-rosa servia de orla à parte inferior do manto. Sobre ela estava escrito: Argumentum praedicationis. Mane, meridie et vespere. Colligite fragmenta virtutum et magnum sanctitatis aedificium vobis constituetis. Vae vobis qui modica spernitis, paulatim decidetis. (Tema de pregação. De manhã, ao meio-dia e à tarde. Praticai as pequenas virtudes e erguereis um grande edifício de santidade. Ai de vós que desprezais as coisas pequenas; pouco a pouco caireis nas grandes).

Até esse ponto alguns Diretores mantinham-se de pé, outros de joelhos, mas todos atônitos e ninguém falava. Neste ponto, o P. Rua, como se estivesse fora de si, disse: “É preciso tomar nota de tudo para não esquecer”. Procurou uma caneta, mas não achou; tomou da caderneta, procurou um lápis e tampouco achou. Tirou a carteira, procurou, e nada de lápis.
– “Eu lembrarei”, disse o P. Durando.
– “Vou tomar nota” – acrescentou o P. Fagnano. E se pôs a escrever com a haste de uma rosa. Todos olhavam e compreendiam a escrita. Assim que o P. Fagnano acabou de escrever, o P. Costamagna continuou a ditar assim:
– “A Caridade tudo entende, tudo suporta, tudo vence; preguemo-la com as palavras e com os fatos”.

Enquanto o P. Fagnano escrevia, a luz desapareceu, e todos nós nos vimos em uma escuridão espessa. Silêncio, disse o P. Ghivarello, ajoelhemo-nos, rezemos, e a luz virá. O P. Lasagna começou o Veni Creator (Vinde, Espírito Criador); depois o De Profundis (Das profundezas clamo a Vós, Senhor) e Maria Auxilium Christianorum (Maria Auxiliadora dos Cristãos), e todos respondemos. Quando dissemos: Ora pro nobis (Rogai por nós), reapareceu uma luz, rodeando um cartaz em que se lia: Pia Salesianorum Societas qualis esse periclitatur anno salutis 1900 (A Pia Sociedade Salesiana tal como corre o risco de se tornar no ano 1900). Após um instante a luz se fez mais viva, de modo que nos podíamos ver e reconhecer uns aos outros.
No meio desse resplendor, apareceu de novo o Personagem de antes, mas com aspecto triste, como o de alguém que está prestes a chorar. O manto estava desbotado, puído, rasgado. Onde antes estavam os diamantes, viam-se agora profundos estragos causados por traças e outros pequenos insetos.
Respicite (olhem) disse o personagem, et intelligite (entendam). Vi os dez diamantes transformados em traças que roíam o manto.
No lugar do diamante da Fé, agora se lia:
Somnus et accidia (Sono e indolência).
Em vez deSpes: Risus et scurrilitas (Risadas e Vulgaridades).
Em vez deCharitas: Negligentia in divinis perficiendis. Amant et quaerunt quae sua sunt, non quae Iesu Christi. (Negligência nas coisas de Deus. Amam e buscam o que lhes interessa e não o que interessa a Jesus Cristo).
Em vez deTemperantia: Gula, et quorum Deus venter est (Gula e Aqueles cujo Deus é o próprio ventre).
Em vez deLabor: Somnus, furtum, et otiositas (Sono, furto e ociosidade).
No lugar da Obedientia, havia apenas um rasgão amplo e profundo, sem nada escrito.
Em vez deCastitas: Concupiscentia oculorum et superbia vitae (Concupiscência dos olhos e soberba da vida).
À Pobrezasucedera: Lectus, habitus, potus et pecunia (Leito, roupas, bebida, dinheiro).
Em vez dePraemium: Pars nostra erunt quae sunt super terram (Nossa herança serão os bens da terra).
Onde antes estavaIeiunium, havia outra grande falha, sem nada escrito.
A essa vista ficamos todos estarrecidos. O P. Lasagna caiu desmaiado, o P. Cagliero tornou-se pálido e, apoiando-se numa cadeira, exclamou: – “Mas é possível que as coisas chegaram a este ponto?”. O P. Lazzero e o P. Guidazio estavam como fora de si e deram-se as mãos para não desmaiar. O P. Francesia, o Conde Cays, o P. Barberis e o P. Leveratto estavam de joelhos e rezavam com o terço nas mãos.
Foi quando se ouviu uma voz cavernosa: Quomodo mutatus est colour optimus! (Como se esvaeceu toda aquela esplêndida cor!)

Mas na escuridão aconteceu um fenômeno singular. Vimo-nos de repente rodeados de densas trevas, no meio das quais apareceu logo uma luz vivíssima que tinha forma de corpo humano; não podíamos fixar nela os olhos, mas percebemos que era um gracioso jovenzinho trajando um hábito branco tecido com fios de ouro e prata. Ao redor de todo o hábito havia uma faixa de diamantes muito luminosos. Com aspecto majestoso, mas doce e amável, aproximou-se um pouco de nós e disse-nos estas palavras textuais:
Servi et instrumenta Dei Omnipotentis, attendite et intelligite. Confortamini et estote robusti. Quod vidistis et audistis, est coelestis admonitio, quae nunc vobis et fratribus vestris facta est; animadvertite et intelligite sermonem. Iaculo, praevisa minus feriunt, et praeveniri possunt. Quot sunt verbo signata, tot sint argumenta praedicationis. Indesinenter praedicate opportune et importune. Sed quae praedicatis, constanter facite, adeo ut opera vestra sint velut lux, quae sicuti tuta traditio ad fratres et filios vestros pertranseat de generatione in generationem. Attendite et intelligite. Estate oculati in tironibus acceptandis, fortes in colendis, prudentes in admittendis. Omnes probate, sed tantum quod bonum est tenete. Leves et mobiles dimittite. Attendite et intelligite. Meditatio matutina et vespertina sit indesinenter de observantia constitutionum. Si id feceritis, numquam vobis deficiet Omnipotentis auxilium. Spectaculum facti eritis mundo et Angelis, et tunc gloria vestra erit gloria Dei. Qui videbunt saeculum hoc exiens et alterum incipiens, ipsi dicent de vobis: A Domino factum est istud et est mirabile in oculis nostris. Tunc omnes fratres vestri et filii vestri una voce cantabunt: Non nobis, Domine, non nobis; sed Nomini tuo da gloriam.

(Servos e instrumentos de Deus Onipotente, atendam e fiquem sabendo. Tenham coragem e sejam fortes. O que viram e ouviram é um aviso do céu que se lhes dá agora e a seus irmãos; prestem bem atenção e compreendam minhas palavras. Quando previstos, os dardos ferem menos; e podem ser evitados. Todas as palavras aqui escritas sejam assunto de pregação. Preguem sem descanso, oportuna e importunamente. Mas pratiquem constantemente o que pregam, para que suas obras sejam luz que se transmita como tradição segura a seus irmãos e filhos, de geração em geração. Prestem bem atenção e fiquem sabendo. Sejam cuidadosos no aceitar os noviços, fortes em cultivá-los, prudentes em admiti-los [à profissão]. Provem-nos todos, mas conservem somente os bons. Mandem embora os levianos e volúveis. Prestem bem atenção e fiquem sabendo. A meditação da manhã e da tarde seja constantemente acerca da observância das Constituições. Se assim fizerem, jamais lhes faltará o auxílio do Onipotente. Serão alvo dos olhares do mundo e dos Anjos. E então a glória de vocês será a glória de Deus. Os que virem o findar deste século e o início do outro hão de dizer de vocês: Esta é Obra de Deus, admirável aos nossos olhos. Então seus irmãos e filhos hão de cantar a uma só voz: “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome seja a glória!”.)

Estas últimas palavras foram cantadas, e à voz de quem falava uniu-se uma multidão de outras vozes tão harmoniosas e sonoras que ficamos sem sentidos, e para não cairmos desmaiados, pusemo-nos a cantar juntos! Terminado o canto, a luz se esvaiu… Então acordei. E vi que estava amanhecendo”.

Pró memória. Esse sonho durou quase a noite inteira e, pela manhã, vi-me sem forças. Entretanto, com medo de esquecer, levantei-me às pressas e fiz algumas anotações, que me serviram de lembrete para relembrar o que expus aqui no dia da Apresentação de Maria Santíssima no Templo.
Não foi possível lembrar-me de tudo. Entre muitas coisas, pude observar com confiança que o Senhor nos mostra grande misericórdia.

Nossa Sociedade é abençoada pelo Céu, mas Ele quer que façamos nosso trabalho. Os males ameaçados serão evitados, se pregarmos sobre as virtudes e sobre os vícios mencionados; se praticarmos o que pregamos, se transmitirmos a nossos irmãos minha tradição prática do que foi e do que será feito.
Também pude ver que há muitos espinhos, muitos trabalhos iminentes, que serão seguidos de grandes consolações. Por volta de 1890, grande temor, por volta de 1895, grande triunfo.
Maria Auxilium Christianorum ora pro nobis (Maria Auxiliadora, rogai por nós).

O Padre Rua imediatamente pôs em prática a admoestação do Personagem, de que as coisas reveladas deveriam ser objeto de pregação; pois deu uma série de conferências aos Irmãos do Oratório, nas quais comentou minuciosamente as duas partes do sonho. O tempo a que Dom Bosco se referia, a dupla eventualidade de triunfos ou derrotas, correspondia na Congregação ao que na vida humana é o início da adolescência, um momento delicado e perigoso, do qual depende a maior parte do futuro. Na última década do século passado, a multiplicação das casas e dos sócios e a extensão da obra salesiana em tantas nações diferentes poderiam, sem dúvida, dar origem a alguns daqueles desvios da linha reta que, se não forem interrompidos prontamente, levam cada vez mais longe da estrada principal. Mas quando Dom Bosco faleceu, a Providência encontrou em seu sucessor a mente iluminada e a vontade enérgica que eram necessárias para aquela fase crítica. O Padre Rua, que poderia muito bem ser considerado a personificação viva de tudo o que era bom e belo representado na primeira parte do sonho, era de fato uma sentinela vigilante e um líder infatigável e autorizado para disciplinar e guiar as novas gerações ao longo do caminho legítimo.
O escopo do sonho não tem limite de tempo. Dom Bosco deu o alarme para um momento especial que se seguiria à sua morte; mas o qualis esse debet (Como deve ser) e o
qualis esse periclitatur (que perigo corre) contém uma admoestação que nunca perderá seu valor, de modo que a declaração feita por Dom Bosco aos Superiores será sempre verdadeira: “Os males ameaçados serão evitados, se pregarmos sobre as virtudes e os vícios ali observados”.