Loterias: autênticos empreendimentos

Dom Bosco não foi apenas um incansável educador e pastor de almas, mas também um homem de extraordinária iniciativa, capaz de inventar soluções novas e corajosas para sustentar suas obras. As necessidades econômicas do Oratório de Valdocco, em constante expansão, o levaram a buscar meios cada vez mais eficazes para garantir alimentação, alojamento, escola e trabalho a milhares de jovens. Entre esses, as loterias representaram uma das ideias mais engenhosas: verdadeiras empreitadas coletivas, que envolviam nobres, sacerdotes, benfeitores e cidadãos comuns. Não era simples, pois a legislação piemontesa regulava rigorosamente as loterias, permitindo sua organização por particulares apenas em casos bem definidos. E não se tratava apenas de arrecadar fundos, mas de criar uma rede de solidariedade que unia a sociedade turinesa em torno do projeto educativo e espiritual do Oratório. A primeira, em 1851, foi uma aventura memorável, cheia de imprevistos e sucessos.

Todo o dinheiro que chegava às mãos de Dom Bosco permanecia ali por pouco tempo, porque era imediatamente usado para fornecer alimentação, alojamento, escola e trabalho para dezenas de milhares de meninos ou para construir colégios, orfanatos e igrejas ou para apoiar as missões sul-americanas. Suas contas, como sabemos, estavam sempre no vermelho; as dívidas o acompanharam durante toda a sua vida.
Ora, entre os meios inteligentemente adotados por Dom Bosco para financiar suas obras, podemos certamente colocar as loterias: cerca de quinze foram organizadas por ele, tanto pequenas quanto grandes. A primeira, modesta, foi a de Turim, em 1851, em favor da igreja de São Francisco de Sales, em Valdocco, e a última, grandiosa, em meados da década de 1880, foi a que se destinava a cobrir as imensas despesas da igreja e do Internato do Sagrado Coração, na estação Términi, em Roma.
Ainda não foi escrita uma verdadeira história dessas loterias, embora não faltem fontes a esse respeito. Somente com relação à primeira, a de 1851, nós mesmos recuperamos uma dúzia de documentos inéditos. Com eles, reconstruímos sua história atormentada em dois tópicos.

Pedido de autorização
De acordo com a lei de 24 de fevereiro de 1820 – modificada pelas Patentes Reais de janeiro de 1835 e pelas Instruções da Companhia Geral das Finanças Reais de 24 de agosto de 1835 e, mais tarde, pelas Patentes Reais de 17 de julho de 1845 – era necessária uma autorização governamental prévia para qualquer loteria nacional (Reino da Sardenha).
Para Dom Bosco, tratava-se, antes de tudo, de ter a certeza moral de ser bem-sucedido no projeto. Ele a tinha graças ao apoio econômico e moral dos primeiros benfeitores: as nobres famílias Callori e Fassati e o Cônego Anglesio do Cottolengo. Assim, ele se lançou no que viria a ser um autêntico empreendimento. Em pouco tempo, ele conseguiu criar uma comissão organizadora, inicialmente composta por dezesseis personalidades conhecidas, que depois aumentou para vinte. Entre elas, havia numerosas autoridades civis oficialmente reconhecidas, como um senador (nomeado tesoureiro), dois vice-prefeitos, três conselheiros municipais; depois, sacerdotes de prestígio, como os teólogos Pedro Baricco, vice-prefeito e secretário da Comissão, João Borel, capelão da corte, José Ortalda, diretor da Pia Obra da Propagação da Fé, Roberto Murialdo, cofundador do Colégio dos Pequenos Artesãos e da Associação de Caridade; e, por fim, homens experientes, como um engenheiro, um ourives avaliador, um comerciante atacadista etc. Todos eles, em sua maioria, proprietários, conhecidos de Dom Bosco e “próximos” da obra de Valdocco.
Uma vez concluída a Comissão, no início de dezembro de 1851, Dom Bosco encaminhou o pedido formal ao Intendente Geral de Finanças, Cavalheiro Alexandre Pernati di Momo (futuro Senador e Ministro do Interior do Reino), bem como “amigo” da obra de Valdocco.

O pedido de doações
Ao pedido de autorização, ele anexou uma circular muito interessante, na qual, depois de traçar uma história comovente do Oratório – prestigiada pela família real, pelas autoridades governamentais e municipais – salientava que a necessidade constante de ampliar a Obra de Valdocco para acolher cada vez mais jovens estava consumindo os recursos econômicos da caridade privada. Portanto, para pagar as despesas de conclusão da nova capela em construção, decidiu-se apelar para a caridade pública por meio de uma loteria de doações a serem oferecidas espontaneamente: “Esse meio consiste em uma loteria de objetos, que o abaixo-assinado teve a ideia de empreender para cobrir as despesas de conclusão da nova capela, e à qual Vossa Senhoria sem dúvida desejará dar seu apoio, refletindo sobre a excelência da obra à qual se destina. Seja qual for o objeto que Vossa Senhoria queira oferecer, seja de seda, lã, metal ou madeira, ou o trabalho de um artista de renome, ou de um trabalhador modesto, ou de um artesão esforçado, ou de uma senhora caridosa, todos serão aceitos com gratidão, porque, em matéria de caridade, toda pequena ajuda é uma grande coisa, e porque as ofertas, mesmo pequenas, de muitos podem, em conjunto, ser suficientes para completar a obra desejada”.
A circular também indicava os nomes dos promotores, a quem as doações poderiam ser entregues, e as pessoas de confiança que os recolheriam e guardariam. Os 46 promotores incluíam várias categorias de pessoas: profissionais, professores, empresários, estudantes, clérigos, lojistas, comerciantes, padres; por outro lado, entre os cerca de 90 promotores, pareciam prevalecer as mulheres nobres (baronesa, marquesa, condessa e suas damas de honra).
Não deixou de anexar ao requerimento o “plano da loteria” em todos os seus muitos aspectos formais: coleta dos objetos, recibo de entrega dos objetos, sua avaliação, bilhetes autenticados a serem vendidos em número proporcional ao número e ao valor dos objetos, sua exibição ao público, sorteio dos ganhadores, publicação dos números sorteados, tempo para receber os prêmios etc. Uma série de tarefas exigentes das quais Dom Bosco não se esquivou. A capela Pinardi já não era suficiente para seus jovens: eles precisavam de uma igreja maior, aquela projetada de São Francisco de Sales (doze anos depois, precisariam de outra ainda maior, a de Maria Auxiliadora!)

Resposta positiva
Dada a seriedade da iniciativa e a alta “qualidade” dos membros da Comissão proponente, a resposta da Intendência só poderia ser positiva e imediata. No dia 17 de dezembro, o referido vice-prefeito Pedro Baricco transmitiu a Dom Bosco o respectivo decreto, com o convite para transmitir cópias dos futuros atos formais da loteria à administração municipal, responsável pela regularidade de todos os requisitos legais. Nesse ponto, antes do Natal, Dom Bosco enviou a circular acima para a gráfica, fez com que ela circulasse e começou a coletar doações.
Ele tinha dois meses para fazer isso, pois outras loterias também estavam ocorrendo durante o ano. No entanto, as doações chegavam lentamente, de modo que, em meados de janeiro, Dom Bosco foi obrigado a reimprimir a circular acima e pediu a colaboração de todos os jovens de Valdocco e amigos para escrever endereços, visitar benfeitores conhecidos, divulgar a iniciativa e coletar as doações.
Mas “o melhor” ainda estava por vir.

A sala de exposições
Valdocco não tinha espaço para expor as doações; então Dom Bosco pediu ao vice-prefeito Baricco, tesoureiro da comissão da loteria, que solicitasse ao Ministério da Guerra três salas na parte do Convento de São Domingos que estavam à disposição do exército. Os padres dominicanos concordaram. O ministro Afonso Lamarmora concedeu-as em 16 de janeiro. Mas logo Dom Bosco percebeu que não seriam suficientes; então pediu ao rei, por meio do esmoler, o abade Estanislau Gazzelli, uma sala maior. O superintendente real Pamparà disse-lhe que o rei não tinha instalações adequadas e propôs alugar as instalações para o jogo de “Trincotto” (ou “pallacorda”: uma antiga espécie de tênis de mão) às suas próprias custas. Essa sala, porém, só estaria disponível para o mês de março e sob certas condições. Dom Bosco recusou a proposta, mas aceitou as 200 liras oferecidas pelo rei para o aluguel do local. Em seguida, procurou outro salão e encontrou um adequado por recomendação da prefeitura, atrás da igreja de São Domingos, a algumas centenas de metros de Valdocco.

Chegada das doações
Nesse meio tempo, Dom Bosco havia pedido ao Ministro das Finanças, o famoso Conde Camilo Cavour, uma redução ou isenção no custo da postagem de cartas circulares, bilhetes e das próprias doações. Por meio do irmão do conde, o muito religioso marquês Gustavo di Cavour, ele recebeu a aprovação de várias reduções postais.
Agora era uma questão de encontrar um especialista para avaliação do conjunto das doações e o consequente número de bilhetes a serem vendidos. Dom Bosco pediu ao Intendente e também sugeriu seu nome: um ourives que era membro da Comissão. O Intendente, porém, respondeu por meio do prefeito, pedindo-lhe uma cópia dupla das doações recebidas para poder nomear seu próprio perito. Dom Bosco realizou imediatamente o pedido e, assim, em 19 de fevereiro, o perito avaliou os 700 objetos coletados em 4124,20 liras. Depois de três meses chegaram a 1.000 doações, depois de quatro meses a 2.000, até a conclusão de 3.251 doações, graças às contínuas “buscas” de Dom Bosco junto a pessoas, sacerdotes e bispos e aos repetidos pedidos formais à Comuna para que prorrogasse o prazo para a extração. Dom Bosco também não deixou de criticar a estimativa feita pelo avaliador municipal das ofertas que chegavam continuamente, que ele dizia ser inferior ao seu valor real; e, de fato, foram acrescentados outros avaliadores, especialmente um pintor para as obras de arte.
O valor final foi tal que Dom Bosco foi autorizado a emitir 99.999 bilhetes ao preço de 50 centavos cada. Ao catálogo já impresso com as doações numeradas com o nome do doador e dos promotores, foi acrescentado um suplemento com as últimas ofertas recebidas. Entre elas estavam as do Papa, do Rei, da Rainha Mãe, da Rainha Consorte, de deputados, senadores, autoridades municipais, mas também de muitas pessoas humildes, especialmente mulheres, que ofereceram objetos e móveis domésticos, mesmo os de pouco valor (copo, tinteiro, vela, garrafa, saca-rolhas, tampa, dedal, tesoura, lâmpada, fita métrica, cachimbo, chaveiro, sabonete, apontador, açucareiro). As doações mais oferecidas foram livros, 629 deles, e fotos, 265. Até mesmo os meninos de Valdocco competiram para oferecer seu próprio pequeno presente, talvez um livreto dado a eles pelo próprio Dom Bosco.

Um trabalho imenso até o sorteio dos números
Nesse momento, era necessário imprimir os bilhetes em uma série progressiva em duas formas (canhoto e bilhete), fazer com que ambos fossem assinados por dois membros da comissão, enviar o bilhete com uma nota, documentar o dinheiro arrecadado… Muitos benfeitores receberam dezenas de bilhetes, com um convite para adquiri-los ou repassá-los a amigos e conhecidos.
A data do sorteio, inicialmente marcada para 30 de abril, foi adiada para 31 de maio e depois para 30 de junho, para ser realizada em meados de julho. Esse último adiamento foi devido à explosão do depósito de pólvora de Bairro Dora, que devastou a área de Valdocco.
Durante duas tardes, de 12 a 13 de julho de 1852, os bilhetes foram sorteados na sacada da prefeitura. Quatro urnas com rodas de cores diferentes continham 10 balas (de 0 a 9) idênticas e da mesma cor da roda. Inseridas uma a uma pelo vice-prefeito nas urnas e giradas, oito jovens do Oratório realizaram a operação e o número sorteado foi proclamado em voz alta e depois publicado na imprensa. Muitas doações foram deixadas no Oratório, onde mais tarde foram reutilizados.

Valia a pena?
Com os cerca de 74.000 bilhetes vendidos e deduzidas as despesas, Dom Bosco ficou com cerca de 26.000 liras, que depois dividiu igualmente com a vizinha obra do Cottolengo. Um pequeno capital, é claro (metade do preço de compra da casa Pinardi no ano anterior); mas o maior resultado do trabalho árduo que ele teve para realizar a loteria – documentado por dezenas de cartas, muitas vezes inéditas – foi o envolvimento direto e sincero de milhares de pessoas de todas as classes sociais em seu “incipiente projeto Valdocco”: torná-lo conhecido, apreciado e depois apoiado econômica, social e politicamente.
Dom Bosco recorreu muitas vezes a loterias, sempre com um duplo objetivo: angariar fundos para suas obras em favor dos meninos pobres, para as missões, e oferecer meios para que os crentes (e os não crentes) praticassem a caridade, o meio mais eficaz, como ele repetia continuamente, para “obter o perdão dos pecados e assegurar a vida eterna”.

“Eu sempre precisei de todos” (Dom Bosco)

Ao senador José Cotta

José Cotta, banqueiro, foi um grande benfeitor de Dom Bosco. A seguinte declaração em papel selado, datada de 5 de fevereiro de 1849, está preservada nos arquivos: “Os padres abaixo-assinados T. João Borrelli de Turim e P. João Bosco de Castelnuovo d’Asti declaram ser devedores de três mil francos ao Ilustríssimo Cavalheiro Cotta, que os emprestou para uma obra piedosa. Essa soma deve ser reembolsada pelos abaixo-assinados em um ano, com juros legais”. Assinado: Padre João Borel, P. João Bosco.

Na parte inferior da mesma página e na mesma data, o P. José Cafasso escreve: “O abaixo-assinado agradece sinceramente ao Ilustríssimo Sr. Cav. Cotta pelo acima exposto e, ao mesmo tempo, se torna fiador do mesmo pela soma mencionada”. Na parte inferior da página, Cotta assina que recebeu 2.000 liras em 10 de abril de 1849, outras 500 liras em 21 de julho de 1849 e o saldo em 4 de janeiro de 1851.




Dom Bosco com seus salesianos

Se com seus meninos Dom Bosco brincava alegremente para vê-los alegres e serenos, com seus salesianos revelava também em tom de brincadeira a estima que tinha por eles, o desejo de vê-los formar com ele uma grande família, pobre sim, mas confiante na Divina Providência, unida na fé e na caridade.

Os feudos de Dom Bosco
Em 1830, Margarida Occhiena, viúva de Francisco Bosco, fez a divisão dos bens herdados de seu marido entre seu enteado Antônio e seus dois filhos José e João. Consistia, entre outras coisas, de oito lotes de terra com prado, campo e vinhedo. Não sabemos nada exato sobre os critérios seguidos por Mamãe Margarida ao dividir a herança paterna entre os três. Entretanto, entre os lotes de terra havia um vinhedo próximo aos Becchi (em Bric dei Pin), um campo em Valcapone (ou Valcappone) e outro em Bacajan (ou Bacaiau). De qualquer forma, essas três terras constituem os “feudos” que Dom Bosco, às vezes, chamava por brincadeira de sua propriedade.
Os Becchi, como todos sabemos, são o humilde povoado do vilarejo onde Dom Bosco nasceu; Valcapponé (ou Valcapone) era um local a leste do Colle, sob a Serra di Capriglio, mas no fundo do vale, na área conhecida como Sbaruau (= espantalho), porque era densamente arborizada, com algumas cabanas escondidas entre os galhos, que serviam como local de armazenamento para lavanderias e como refúgio para bandidos. Bacajan (ou Bacaiau) era um campo a leste do Colle, entre os lotes de Valcapone e Morialdo. Estes são os “feudos” de Dom Bosco!
As Memórias Biográficas dizem que, por algum tempo, Dom Bosco conferiu títulos de nobreza a seus colaboradores leigos. Assim, havia o Conde dos Becchi, o Marquês de Valcappone, o Barão de Bacaiau, isto é, os três terrenos que Dom Bosco devia conhecer como parte de sua herança. “Com esses títulos costumava chamar Rossi, Gastini, Enria, Pelazza, Buzzetti, não só em casa, mas também fora, sobretudo quando viajava com alguns deles” (MB VIII, 198-199 – MB VIII, 231-232).
Entre esses “nobres” salesianos, sabemos com certeza que o conde dos Becchi (ou do Bricco del Pino) era José Rossi, o primeiro salesiano leigo, ou “Coadjutor”, que amava Dom Bosco como um filho muito afeiçoado e lhe foi fiel para sempre.
Um dia, Dom Bosco foi à estação de Porta Nova e José Rossi o acompanhou carregando sua mala. Eles chegaram quando o trem estava prestes a partir e os vagões estavam cheios de gente. Dom Bosco, não conseguindo encontrar um assento, voltou-se para Rossi e, em voz alta, disse-lhe:
– Oh, senhor conde, lamento que esteja tendo tanto trabalho por mim!
– Imagine, Dom Bosco, é uma honra para mim!
Alguns viajantes que estavam na janela, ao ouvirem aquelas palavras “Senhor Conde” e “Dom Bosco”, olharam uns para os outros com espanto e um deles gritou do vagão:
– Dom Bosco! Senhor Conde! Subam aqui; ainda há dois lugares!
– Mas eu não queria incomodá-los – respondeu Dom Bosco.
– Subam! É uma honra para nós. Vou retirar minhas malas; estarão à vontade!
E assim o “Conde dos Becchi” pôde entrar no trem com Dom Bosco e a mala.

As bombas e uma cabana
Dom Bosco viveu e morreu pobre. Para comer, ele se contentava com muito pouco. Até mesmo um copo de vinho já era demais para ele, e ele sistematicamente misturava com água.
“Muitas vezes se esquecia de beber por estar absorto em outros pensamentos, e cabia aos vizinhos de mesa completar-lhe o copo. Então, se o vinho era do bom, logo procurava água “para fazê-lo melhor”, dizia. E acrescentava sorrindo: ‘Renunciei ao mundo e ao demônio, mas não às pompas’, aludindo às bombas que tiram água dos poços” (MB IV, 191-192 – MBp IV, 181).
Até mesmo para as acomodações, sabemos como ele vivia. Em 12 de setembro de 1873, foi realizada a Conferência Geral dos Salesianos para reeleger um ecônomo e três conselheiros. Naquela ocasião, Dom Bosco pronunciou palavras memoráveis e proféticas sobre o desenvolvimento da Congregação. Então, quando chegou a hora de falar sobre o Capítulo Superior, que a essa altura parecia precisar de uma residência adequada, ele disse, em meio à hilaridade universal: “Se fosse possível, eu gostaria de fazer no meio do pátio uma ‘söpanta’ (leia-se: supanta = barraca, abrigo), onde o Capítulo Superior pudesse ficar separado de todos os mortais. Como os membros deste Capítulo Superior têm o direito de continuar a viver nesta terra, ele poderá estar ora aqui, ora lá, nas diversas casas, segundo parecer melhor!” (MB X, 1061-1062 – MBp X, 888-889).

Otis, botis, pija tutis
Um jovem lhe perguntava um dia como ele conhecia o futuro e adivinhava tantos segredos. Respondeu-lhe:
– “Escute-me. A maneira é esta, e se explica com: Ótis, bótis, pija tútis. Sabe o que significam estas palavras? Preste atenção. São palavras gregas. E soletrando, repetiu: Ó-tis, bó-tis, pi-ja tú-tis. Entende?
– É um negócio complicado de entender!
– Também sei disso. Eu mesmo nunca quis revelar a ninguém o que significa essa epígrafe. E ninguém sabe mesmo. Nem nunca saberá. É conveniente não o revelar. Este é o grande segredo com que opero todas as coisas fora do comum. Com ele eu leio as consciências, e por meio dele revelam-se os mistérios. Mas se você é esperto, veja se pode entender alguma coisa.
E repetia aquelas quatro palavras, acentuando-as sucessivamente ao pronunciar cada uma delas. Passava o indicador na testa, sobre a boca, sobre o queixo, sobre o peito do jovem e acabava por dar-lhe, de improviso, um tapinha no rosto. O jovem ria, mas insistia:
– Mas, ao menos, traduza-me as quatro palavras em língua vulgar.
– Posso traduzi-las, mas não entenderá a tradução.
E, brincando, falava em dialeto piemontês:
– Quand ch’at dan ed bòte, pije tute (Quando lhe dão bofetadas, tome-as todas) (MB VI, 424 – MB VI, 401-402). E queria dizer que, para se tornar santo, é preciso aceitar todos os sofrimentos que a vida nos reserva.

Protetor dos funileiros
Todos os anos, os jovens do Oratório de São Leão, em Marselha, faziam um passeio à casa do Sr. Olive, um generoso benfeitor dos Salesianos. Naquela ocasião, o pai e a mãe serviam os superiores à mesa, e seus filhos, os alunos.

Em 1884, o passeio aconteceu durante a estada de Dom Bosco em Marselha.
Enquanto os alunos estavam se divertindo nos jardins, o cozinheiro correu até a Madame Olive para lhe dizer:
– Madame, a panela de sopa para os meninos está vazando e não há como remediar a isso. Terão de ficar sem sopa!
A senhora, que tinha muita fé em Dom Bosco, teve uma ideia. Mandou chamar todos os jovens:
– “Escutem”, disse-lhes ela, “se quiserem comer a sopa, ajoelhem-se aqui e rezem uma oração a Dom Bosco para que a panela deixe de vazar”.
Eles obedeceram. A panela parou de vazar instantaneamente. Mas Dom Bosco, ao ouvir o fato, riu muito e disse:
– De agora em diante, chamarão Dom Bosco de patrono dos funileiros (MB XVII, 55-56).




O oratório festivo de Valdocco

Em 1935, após a canonização de Dom Bosco em 1934, os salesianos tiveram o cuidado de coletar testemunhos sobre ele. Um tal Pedro Pons, que quando menino tinha frequentado o oratório festivo de Valdocco por cerca de dez anos (de 1871 a 1882) e que também tinha frequentado dois anos de escola primária (com salas de aula sob a Basílica de Maria Auxiliadora), no dia 8 de novembro deu um belo testemunho daqueles anos. Extraímos dele algumas passagens, quase todas inéditas.

A figura de Dom Bosco
Ele era o centro de atração de todo o Oratório. É assim que o nosso ex-oratoriano Pedro Pons se lembra dele no final dos anos 1970: “Ele não tinha mais vigor, mas estava sempre calmo e sorridente. Tinha dois olhos que perfuravam e penetravam a mente. Comparecia entre nós: era uma alegria para todos”. O P. Rua, o P. Lazzero estavam ao seu lado como se tivessem o Senhor no meio deles. O P. Barberis e todos os rapazes corriam em sua direção, cercando-o, alguns andando ao seu lado, outros atrás dele com o rosto voltado para ele. Era uma sorte, um privilégio cobiçado poder estar perto dele, conversar com ele. Ele passeava devagar, conversando e olhando para todos, com aqueles dois olhos que se voltavam para todos os lados, eletrizando os corações com alegria”.
Entre os episódios que ficaram gravados em sua mente 60 anos depois, ele se lembra de dois em particular: “Um dia… ele apareceu sozinho na porta da frente do santuário. Então, um bando de meninos correu para encontrá-lo como uma rajada de vento. Mas ele segura na mão o guarda-chuva, que tem um cabo e uma haste tão grossa como a dos camponeses. Ele o levanta e, usando-o como uma espada, faz malabarismos para repelir aquele ataque afetuoso, ora para a direita, ora para a esquerda, para abrir a passagem. Toca um com a ponta, outro para o lado, mas, enquanto isso, os outros se aproximam pelo outro lado. Assim, o jogo, a brincadeira continua, alegrando os corações, ansiosos por ver o bom Pai voltar de sua viagem. Ele parecia um pároco de aldeia, mas daqueles bem simples”.

Os jogos e o teatrinho
É impensável um oratório salesiano sem jogos. O ex-aluno idoso recorda: “O pátio era ocupado por um prédio, a igreja de Maria Auxiliadora e no final de um muro baixo… no canto esquerdo havia uma espécie de cabana, onde sempre havia alguém para vigiar quem entrava… Logo na entrada à direita, havia um balanço com um único assento, depois as barras paralelas e a barra fixa para os meninos maiores, que gostavam de dar piruetas e cambalhotas, e também o trapézio e o passo do gigante, que ficavam, porém, perto das sacristias, além da capela de São José”. E ainda: “Esse pátio era bem comprido e se prestava muito bem as corridas de velocidade que partiam da lateral da igreja e retornavam para lá no caminho de volta. Também se brincava com “prende e solta”, corridas de sacos e quebra-pote. Esses últimos jogos eram anunciados desde o domingo anterior. O mesmo acontecia com o pau de sebo, mas o pau era fincado com a ponta fina na parte inferior para que fosse mais difícil subir. Havia loterias, e o bilhete custava um ou dois centavos. Dentro da casinha havia uma pequena biblioteca em um armário”.

O jogo era acompanhado pelo famoso “teatrinho”, no qual eram apresentados dramas autênticos, como “O filho do cruzado”, as canções de Dom Cagliero e os “musicais”, como o Sapateiro, personificado pelo lendário Carlos Gastini [um brilhante animador dos ex-alunos]. A peça, assistida gratuitamente pelos pais, era realizada no salão sob a nave da igreja de Maria A., mas o antigo oratoriano também lembra que “uma vez foi apresentada na casa Moretta [atual igreja paroquial perto da praça]. As pessoas pobres viviam lá na mais miserável pobreza. Nos porões que podem ser vistos sob a varanda, havia uma mãe pobre que, ao meio-dia, levava nos ombros seu filho Carlos, cujo corpo era rígido por causa de uma doença, a fim de poder tomar sol”.

As funções religiosas e as reuniões formativas
No oratório festivo não faltavam as funções religiosas nas manhãs de domingo: Santa Missa com a Sagrada Comunhão, orações do bom cristão; à tarde, seguia-se a recreação, o catecismo e a pregação do P. Júlio Barberis. Já idoso, “Dom Bosco nunca vinha para rezar a missa ou pregar, mas apenas para visitar e entreter-se com os meninos durante o recreio… Os catequistas e assistentes levavam seus alunos com eles para a igreja durante as funções e lhes ensinavam o catecismo. A pequena pregação era feita para todos. Exigia-se que a lição fosse memorizada em cada festa e também a explicação”. As festas solenes terminavam com uma procissão e um lanche para todos: “Ao sair da igreja depois da missa, havia um lanche. Um jovem à direita, do lado de fora da porta, dava o pão, outro à esquerda colocava duas fatias de salame com um garfo”. Aqueles meninos se contentavam com pouco, mas estavam muito felizes. Quando os meninos internos se juntavam aos oratorianos para cantar as vésperas, suas vozes podiam ser ouvidas na Rua Milão e na Rua Corte de Apelação!
As reuniões formativas do grupo também eram realizadas no oratório festivo. Na casinha perto da igreja de São Francisco, havia “uma sala pequena e baixa com capacidade para cerca de vinte pessoas… Na sala havia uma pequena mesa para o palestrante, havia bancos para as reuniões e conferências para os mais crescidos em geral e para a Companhia de São Luís, quase todos os domingos”.

Quem eram os oratorianos?
De seus cerca de 200 companheiros – mas seu número diminuía no inverno devido ao retorno dos trabalhadores sazonais para suas famílias – nosso alegre senhor lembrava que muitos eram de Biella “quase todos ‘bic’, ou seja, carregavam o balde de madeira cheio de cal e o cesto de vime cheio de tijolos para os pedreiros das construções”. Outros eram “aprendizes de pedreiros, mecânicos, funileiros”. Pobres aprendizes: trabalhavam da manhã à noite, todos os dias, e somente aos domingos podiam se dar ao luxo de um pouco de recreação “na casa de Dom Bosco” (como era chamado seu oratório): “Brincávamos de “Elefante voa”, sob a direção do então Sr. Milanesio [um futuro padre que foi um grande missionário na Patagônia]. O senhor Ponzano, mais tarde padre, era professor de ginástica. Ele nos obrigava a fazer exercícios corporais sem instrumentos, com bastões, em aparelhos”.
As lembranças de Pedro Pons são muito mais amplas, tão ricas em sugestões distantes quanto permeadas por uma sombra de nostalgia; elas esperam para serem conhecidas em sua totalidade. Esperamos que isso aconteça em breve.




Visitar Roma com Dom Bosco. Crônica de sua primeira viagem a Roma

A primeira vez que Dom Bosco esteve em Roma foi entre 18 de fevereiro e 16 de abril de 1858, acompanhado pelo seminarista de vinte e um anos, Miguel Rua. Quatro anos antes, a Igreja havia celebrado um Jubileu extraordinário de seis meses, convocado em ocasião da proclamação do dogma da Imaculada Conceição (8 de dezembro de 1854). Dom Bosco aproveitou a oportunidade dessa grande festa espiritual para publicar o volume “O Jubileu e Práticas devotas para a visita das igrejas”.
Durante aquela que seria sua primeira de outras vinte visitas à Cidade Eterna, Dom Bosco se comportou como um verdadeiro peregrino jubilar, dedicando-se fervorosamente às visitas e devoções previstas, inclusive participando dos solenes ritos pascais oficiados pelo Papa. Foi uma experiência intensa, que ele não guardou para si mesmo, mas a compartilhou com seus jovens com seus característicos entusiasmo e a paixão educativa.
Ao descrever minuciosamente a viagem, as etapas e os lugares sagrados, Dom Bosco tinha um claro objetivo apostólico e educativo: fazer reviver em quem o ouvia ou o lia a mesma profunda experiência de fé, transmitindo-lhes o amor pela Igreja e pela tradição cristã.
Convidamos agora também vocês, leitores, a se unirem espiritualmente a Dom Bosco, repercorrendo na imaginação as ruas da Roma cristã, e se deixando fascinar por seu entusiasmo e seu fervor, com ele renovar a sua fé.

De trem até Gênova
A partida para Roma estava marcada para 18 de fevereiro de 1858. Durante a noite caíra quase um palmo de neve, sobre os dois palmos que já cobriam a terra. Às oito e meia da manhã, enquanto ainda nevava, com a comoção que
experimenta um pai que deixa os seus filhos, despedi-me dos jovens para iniciar a viagem a Roma. Embora tivéssemos certa pressa para chegar a tempo ao trem, ainda nos detivemos um pouco para fazer o testamento: não queria deixar complicações para o Oratório, caso a Providência me quisesse chamar à Eternidade, dando-me em comida aos peixes do Mediterrâneo. […].  Então, correndo, fomos à estação ferroviária e, junto com o P. Mentasti […] partimos com o trem das dez da manhã.
Aqui aconteceu uma coisa desagradável: os vagões estavam quase cheios, então tive que deixar Rua e o P. Mentasti em um vagão e encontrar lugar em outro […].

O menino judeu
Por acaso estava perto de um garotinho de dez anos. Notando seu aspecto simples e seu rosto bondoso, comecei a conversar com ele e […] percebi que ele era judeu. Seu pai, que estava ao seu lado, me assegurou que o filho estava na quarta série, mas a mim parecia que sua escolaridade não era de quem estava nem mesmo na segunda série. No entanto, ele era de inteligência rápida. O pai ficou contente que eu fizesse perguntas ao menino, e nos sugeriu que falássemos sobre a Bíblia. Comecei, então, a questioná-lo sobre a criação do mundo e do ser humano, sobre o Paraíso terrestre, sobre a queda dos progenitores. Ele respondia razoavelmente bem, mas fiquei surpreso quando percebi que não tinha ideia do pecado original e da promessa de um Redentor.
– Não tem na sua Bíblia o que Deus prometeu a Adão quando o expulsou
do paraíso terrestre?
– Não tem, 
lhe respondeu o menino. Diga-me, por favor.
– Sim. Deus disse à serpente: Porque você enganou a mulher, será
maldita entre todos os animais, e Alguém que nascer da mulher esmagará
sua cabeça.
– Quem é este Alguém do qual se fala?
– Este alguém é o Salvador que devia libertar o gênero humano da escravidão do demônio.
– Quando virá o Salvador?
– Ele já veio, e é aquele que nós chamamos… 
Aqui o pai o interrompeu e disse:
– Essas coisas nós não as estudamos, porque não se referem à nossa lei.
– Vocês, porém, fariam bem estudá-las, porque estão contidas nos livros de Moisés e dos Profetas nos quais acreditam.
– Está bem, vamos pensar. Mas, pergunte-lhe alguma coisa de aritmética.
 Vendo que ele não desejava que eu falasse de religião ao seu filho, mudou de assunto e lhe fez várias perguntas sobre coisas indiferentes, de maneira que o pai, seu filho e outros que estavam juntos naquele compartimento se divertiram e riram um pouco. Na estação de Asti, o menino devia descer, e não sabia como separar-se de mim. Tendo lágrimas nos olhos, segurava minha mão e, emocionado, conseguiu apenas me dizer:
– Eu me chamo Sacerdote Leão de Moncalvo. Lembre-se de mim. Indo a Turim, espero fazer-lhe uma visita. O pai, para aliviar a emoção, disse que havia procurado em Turim a “História da Itália” [escrita por mim]. Não tendo encontrado, me pedia para enviar-lhe uma cópia. Prometi enviar a impressa especialmente para a juventude, então desci também para procurar meus companheiros de viagem para ver se havia lugar em seu vagão. Encontrei Rua, que estava com as mandíbulas cansadas de tanto bocejar, pois de Turim a Asti ele havia se entediado muito, não sabendo com quem conversar: seus companheiros de viagem só falavam de danças, teatro e outras coisas de pouco gosto […].

Rumo a Gênova
Chegamos aos Apeninos. Eles se erguiam diante de nós altíssimos e íngremes. Como o trem viajava a grande velocidade, tínhamos a impressão de que iríamos colidir com as rochas quando, de repente, tudo ficou escuro. Havíamos entrado nos túneis. Estes são “furos” que, passando sob as montanhas, economizam várias dezenas de milhas. […]. Sem túneis, seria impossível atravessar as montanhas e, visto que são muitas, existem muitos túneis. Um deles é tão longo quanto a distância entre Turim e Moncalieri; tanto que o comboio ficou no escuro por oito minutos, tempo necessário para percorrer o trecho do túnel.

Ficamos surpresos ao constatar que a neve diminuía à medida que o trem se aproximava da costa de Gênova. Mas qual não foi nossa maravilha quando avistamos os campos sem um fio de branco, as margens verdejantes, os jardins cheios de cores, as plantas de amendoeira floridas e as árvores de pêssego com os botões prestes a se abrir ao sol! Fazendo, então, uma comparação entre Turim e Gênova, dissemos que em Gênova é já primavera e que em Turim ainda é um rigoroso inverno.

Os dois montanheses
Já ia me esquecendo de falar de dois montanheses que subiram em nosso vagão na estação de Busalla. Um deles estava pálido e enfermo e movia-se de dar pena. O outro tinha um ar vivo e, se bem chegasse aos 70 anos, mostrava o vigor de um jovem de vinte e cinco anos. Ele vestia calças curtas e as polainas quase desatadas, de modo que se viam as pernas, os joelhos nus e flagelados pelo frio. Estavam em mangas de camisa com apenas uma malha e um casaco grosso que trazia sobre os ombros. Depois de tê-lo feito falar de várias coisas, eu disse:
– Por que não ajeita sua roupa para defender-se do frio? Ele respondeu:
– Veja, senhor, nós somos montanheses e estamos acostumados com o vento,
a chuva, a neve e o gelo. Quase não percebemos nem o inverno. Nossos meninos caminham também hoje com os pés nus no meio da neve e vão até para divertir-se sem olhar para o frio ou o calor.
 Então entendi que o ser humano vive de hábitos, e o corpo é capaz de suportar, conforme o caso, o frio ou o calor, e aqueles que desejam se proteger de cada pequeno desconforto correm o risco de enfraquecer sua condição em vez de fortalecê-la.

A parada em Gênova
Eis Gênova, eis o mar! Rua se apressa para vê-lo, estica o pescoço: num lado vê um navio, no outro alguns barcos, mais abaixo o farol, que é bem alto. Chegamos à estação e descemos do trem. O cunhado do abade Montebruno nos aguardava com alguns jovens e, assim que saímos do trem, nos acolheram com alegria, e carregando nossas bagagens, nos levaram à obra dos artigianelli (pequenos artesãos, n.d.r.), que é uma casa semelhante ao nosso Oratório. Os cumprimentos foram breves, pois todos estávamos com muita fome: eram três e meia da tarde e eu havia tomado apenas uma xícara de café. À mesa parecia que nada poderia nos saciar, no entanto, depois de comer bastante, estávamos satisfeitos.
Logo depois visitamos a casa: escolas, dormitórios, oficinas: parecia que eu estava vendo o Oratório de dez anos atrás. Os internos eram vinte; outros vinte, embora comessem e trabalhassem aqui, dormiam em outro lugar. Qual é a alimentação deles? No almoço, um bom prato de sopa e… nada mais. No jantar, um pãozinho, que se come em pé, e depois, se vai para a cama!
Ao final, saímos para um passeio pela cidade que, para dizer a verdade, é pouco atraente, embora tenha magníficos palácios e grandes lojas. As ruas são estreitas, tortuosas e íngremes. Mas a coisa mais irritante era um vento incômodo que, soprando quase sem interrupção, tirava o prazer de admirar qualquer coisa, mesmo a mais bela […].

Sendo assim, em Gênova nossas expectativas foram decepcionadas. Como se não bastasse, o vento contrário impediu a atracação do navio no qual deveríamos embarcar, portanto, contra nossa vontade, tivemos que esperar até o dia seguinte. […]. De manhã, celebrei missa na igreja dos Padres Pregadores (Dominicanos) no altar do Beato Sebastião Maggi, um frade que viveu há cerca de trezentos anos. Seu corpo é um prodígio contínuo, pois se conserva inteiro, flexível e com uma cor que você diria que está morto há poucos dias. […]. Depois fomos carimbar, ou seja, assinar o passaporte. O Cônsul Pontifício nos recebeu com muita cortesia. […]. Ele também tentou nos conseguir algum desconto no barco, mas não foi possível.

A Civitavecchia, pelo mar. O embarque
Às seis e meia da tarde, antes de nos dirigirmos ao barco a vapor chamado Aventino, nos despedimos de vários eclesiásticos que vieram dos Artigianelli para nos desejar boa viagem. Também os rapazes, atraídos pelas boas palavras, mas principalmente por alguma coisa a mais no almoço daquele dia, tornaram-se nossos amigos e pareciam estar tristes ao nos ver partir. Vários deles nos acompanharam até o mar e, e saltando com destreza num pequeno barco, quiseram nos escoltar até o barco. O vento estava bastante forte: não acostumados a viajar pelo mar, a cada movimento do barco temíamos virar de cabeça para baixo e afundar, e nossos acompanhantes riam muito. Depois de vinte minutos, finalmente chegamos ao navio.

À primeira vista, parecia um edifício cercado pelas ondas. Subimos a bordo, e levando nossa bagagem para um alojamento bastante espaçoso, nos sentamos para descansar e pensar: cada um de nós experimentava particulares sensações que não sabia como expressar. Rua observava tudo e todos em silêncio. E eis o primeiro contratempo: tendo chegado na hora do almoço, não fomos imediatamente comer; quando pedimos, já tinha acabado tudo. Rua jantou uma maçã, um pãozinho e um copo de vinho Bordô, eu me contentei com um pedaço de pão e um pouco daquele excelente vinho. Vale lembrar que, quando se viaja de navio, as refeições estão incluídas na passagem e, assim, comendo ou não, paga-se da mesma forma.

Depois subimos ao convés para conhecer melhor esse navio “Aventino”. Assim, soubemos que os navios recebem nomes dos lugares mais famosos das regiões para onde estão indo. Um se chama Vaticano, outro Quirinale, outro Aventino (como o nosso), para lembrar as sete famosas colinas de Roma. Este nosso navio partiu de Marselha, passa por Gênova, Livorno, Civitavecchia, depois segue para Nápoles, Messina e Malta. No retorno, repete o mesmo percurso até Marselha. Também é chamado de barco postal porque transporta cartas, pacotes, etc. Independentemente de fazer sol ou chuva, parte sempre.

O enjoo
Nos foi designada um beliche, que é uma espécie de armário com prateleiras onde os passageiros se deitam sobre um colchão em cada prateleira. Às dez, as âncoras foram levantadas e o barco, impulsionado pelo vapor e por um vento favorável, começou a correr em alta velocidade em direção a Livorno. Quando estávamos em alto-mar fiquei enjoado, coisa que me atormentou por dois dias. Esse desconforto causa vômitos frequentes, e quando não se tem mais nada para regurgitar, os espasmos ficam mais violentos, de modo que a pessoa fica tão exausta que recusa comer. A única coisa que pode trazer algum alívio é deitar-se e ficar, quando o vômito permite, com o corpo totalmente estendido.

Livorno
Aquela noite de 20 de fevereiro foi uma noite ruim. Não estávamos em perigo por causa do mar agitado, mas o enjoo me havia prostrado tanto que não conseguia ficar nem deitado, nem em pé. Sai da cama e fui ver se Rua estava vivo ou morto. No entanto, ele não tinha mais do que um pouco de cansaço, nada mais. Ele se levantou imediatamente, colocando-se à minha disposição para aliviar os desconfortos da travessia. Quando Deus quis, chegamos ao porto de Livorno. Por porto entende-se uma enseada do mar protegida da fúria dos ventos por barreiras naturais ou por barreiras construídas pelo ser humano. Aqui os navios estão a salvo de qualquer perigo, aqui descarregam suas mercadorias e carregam outras para outros destinos, aqui se fazem os abastecimentos. Os passageiros que desejam também podem descer à terra para dar uma volta pela cidade, desde que voltem a tempo. […].

Embora eu desejasse descer para visitar a cidade, celebrar a missa e cumprimentar alguns amigos, não pude fazê-lo, na verdade fui forçado a voltar para minha cama e ficar lá quieto e em jejum. Um garçom chamado Charles me olhava com um olhar de compaixão e de vez em quando se aproximava oferecendo seus serviços. Vendo-o tão gentil e cortês, comecei a conversar com ele, e entre outras coisas perguntei se ele não temia ser ridicularizado por ajudar um padre sob o olhar de tantas pessoas.
– Não, ele me disse em francês, veja que ninguém fica maravilhado. Aliás, todos
o admiram com bondade, mostrando desejo de poder de algum modo ajudá-lo. Por outro lado, minha boa mãe recomendou-me muitas vezes de ter grande respeito aos padres e que isso era um meio para obter a bênção do Senhor
. Charles, então, foi chamar um médico: cada navio tem seu médico e os principais remédios para qualquer necessidade. O médico veio e suas maneiras afáveis me animaram um pouco.
– Compreende o francês? Ele me disse. Respondi:
– Compreendo todas as linguagens do mundo, também aquelas não escritas, e até mesmo a linguagem dos surdos-mudos. Eu estava brincando para me despertar da sonolência que me havia tomado. O outro entendeu e começou a rir.
– Peut être, pode ser! Ele dizia enquanto me examinava. No final, me anunciou que ao enjoo havia se juntado a febre e que uma bebida de chá me faria bem. Agradeci e perguntei seu nome.
– Meu nome, disse, é Jobert de Marselha, doutor em medicina e cirurgia. Charles, atento às ordens do doutor, em poucos instantes preparou a Dom Bosco uma ótima xícara de chá, daí há pouco uma outra e depois uma outra. E me fez bem, tanto que consegui dormir.
Às cinco [da tarde] o barco levantou âncoras. Quando estávamos em alto-mar novamente, tive ânsias de vômito ainda mais violentas, ficando mal por cerca de quatro horas e depois, pelo esgotamento (não tinha mais nada no estômago) e ajudado pelo balanço do navio, adormeci e descansei em um sono tranquilo até chegar em Civitavecchia.

Pagar, pagar, pagar
O descanso da noite me fez recuperar as forças. Embora exausto pelo longo jejum, levantei-me e preparei as malas. Estávamos prestes a descer quando nos avisaram de uma dívida que não sabíamos ter contraído. O café não estava incluído na alimentação, mas deveria ser pago à parte e nós, que tomamos quatro xícaras, pagamos um suplemento de dois francos, ou seja, cinquenta centavos por xícara. O capitão, após fazer carimbar os passaportes, nos autorizou o desembarque; e aqui começaram as gorjetas: um franco de cada um para os barqueiros, meio franco para a bagagem (que nós tínhamos que carregar), meio franco para a alfândega, meio franco para quem nos convidava a entrar no carro, meio para o carregador que arrumava as malas, dois francos para o visto no passaporte, um franco e meio para o Cônsul Pontifício. Não dava nem tempo de abrir a boca que já tinha que pagar alguma coisa. Com a adição de que, variando as moedas de nome e valor, tínhamos que confiar em quem nos fazia a troca. […]. Na Alfândega respeitaram um pacote endereçado ao Cardeal Antonelli com o selo pontifício, dentro do qual colocamos as coisas mais importantes. […].

Terminadas as operações, fui ao barbeiro para fazer a barba de dez dias. Tudo correu bem, mas na loja não consegui desviar o olhar de dois chifres em uma mesinha. Eram longos cerca de um metro e adornados com anéis brilhantes e fitas. Pensava que eram destinados a algum uso especial, mas me disseram que eram de novilha, que nós chamamos de boi, colocados lá apenas para ornamentação. […].

Rumo a Roma de carruagem
Enquanto isso, o P. Mentasti estava furioso porque não nos via chegar, enquanto a carruagem já nos aguardava. Tivemos de correr para chegar a tempo. Subimos na carruagem e partimos para Roma. A distância a percorrer era de 47 milhas italianas, que correspondem a 36 milhas piemontesas; a estrada era muito bonita.
Como nossos lugares eram na parte alta podíamos contemplar os prados verdejantes e as cercas vivas floridas. Uma curiosidade nos divertiu bastante. Percebemos que tudo ia em grupos de três: os cavalos da nossa carruagem estavam atrelados em grupos de três; encontramos patrulhas de soldados que iam em grupos de três; até mesmo alguns camponeses caminhavam em grupos de três, assim como algumas vacas e alguns burros pastavam em grupos de três. Nós ríamos sobre essas estranhas coincidências. […].

Uma parada para os cavalos
Em Palo o cocheiro concedeu aos viajantes uma hora de liberdade para dar descanso aos cavalos. Nós aproveitamos para correr até uma estalagem próxima e saciar a fome. As ocupações quase nos fizeram esquecer de comer; desde o meio-dia de sexta-feira, eu não havia tomado mais do que uma xícara de café com leite. Nos reunimos em torno dos pãezinhos e comemos, ou melhor, devoramos tudo. Ao ver o garçom muito exausto e pálido, perguntei o que ele tinha.
– Tenho uma febre que me aflige há muitos meses, respondeu. Então eu fiz o bom médico:
– Deixe comigo, vou prescrever uma receita que eliminará a febre para sempre. Tenha apenas fé em Deus e em São Luís. Pegando então um pedaço de papel com o lápis, escrevi minha receita, recomendando-lhe que a levasse a algum farmacêutico. Ele não cabia em si de tanta alegria e, não sabendo o modo melhor de demonstrar sua gratidão, beijava minha mão e repetia o gesto, e queria beijar também a de Rua, que por modéstia não permitiu.

Foi também simpática a encontro com um policial pontifício. Ele achava que me conhecia, e eu acreditava conhecê-lo, assim nos cumprimentamos ambos com grande festa. E quando percebemos o equívoco, a amizade e as expressões de benevolência e respeito continuaram: para agradá-lo, tive que permitir que ele pagasse uma xícara de café, e da minha parte ofereci-lhe uma dose de rum. E como me pediu uma lembrança, dei-lhe a medalha de São Luís Gonzaga. O nome daquele bom policial era Pedrocchi.

Na cidade dos papas
Subimos novamente na carruagem e voando mais rápido com o desejo do que com as patas dos cavalos, parecia a cada momento que já estávamos em Roma. Com a noite caindo, toda vez que avistávamos ao longe um arbusto ou uma planta, Rua imediatamente exclamava:
– Eis a cúpula de São Pedro. Mas tivemos que continuar a viagem até às dez e meia da noite e, já sendo bastante escuro, não conseguíamos mais discernir nenhum detalhe. Sentimos um arrepio, no entanto, ao saber que estávamos entrando na cidade santa. […]. Finalmente chegando no ponto de parada e não tendo nenhum conhecimento do lugar, procuramos um guia que, por doze tostões nos acompanhou até a casa De Maistre, na via del Quirinale 49, nas Quattro Fontane. Já eram onze horas. Fomos recebidos com bondade pelo conde e pela condessa; os outros já dormiam. Após fazermos um lanche, nos despedimos e fomos dormir.

San Carlino
A parte do Quirinale onde estamos é chamada Quattro Fontane porque jorram quatro fontes perenes de quatro cantos de quatro bairros que aqui se unem. Em frente à casa onde nos hospedamos estava a igreja dos carmelitas. Estes, todos espanhóis, pertenciam à ordem conhecida como da Redenção dos Escravos. A igreja foi construída em 1640 e dedicada a São Carlos; mas para distingui-la de outras dedicadas ao mesmo santo, foi chamada de São Carlinhos[S. Carlino]. Fomos à sacristia, mostramos o Celebret (o documento para celebrar, n.d.r.) e assim pudemos celebrar a missa. […]. Passamos o dia quase inteiramente organizando nossos papéis, entregando recados e encomendas, levando cartas. […].

Pantheon
Aproveitando que ainda tínhamos ainda uma hora antes que escurecesse, fomos ao Pantheon, que é um dos monumentos mais antigos e célebres de Roma. Foi mandado construir por Marco Agripa, genro de César Augusto, vinte e cinco anos antes da era comum (do nascimento de Cristo, n.d.r.). Acredita-se que este edifício tenha sido chamado de Pantheon, que significa todos os deuses, porque de fato era dedicado a todas as divindades. A fachada é realmente estupenda. Oito grossas colunas compõem uma elegante moldura. Logo depois, há um pórtico formado por dezesseis colunas feitas de um único bloco de granito, depois o pronaos, ou ante-templo, constituído por quatro pilares canelados, dentro dos quais estão escavados nichos antigamente ocupados pelas estátuas de Augusto e Agripa.
No interior, apresenta uma alta cúpula aberta no meio, pela qual penetra a luz, mas também o vento, a chuva e a neve, quando cai por estas bandas. Aqui, os mais preciosos mármores foram usados como piso ou como decoração de tudo ao redor. O diâmetro é de cento e trinta e três pés, correspondendo a dezoito trabucos (cerca de 55 m). Este templo serviu ao culto dos deuses até 608 depois de Cristo, quando o Papa Bonifácio IV, para impedir as desordens que aconteciam durante os sacrifícios, o dedicou ao culto do verdadeiro Deus e a todos os santos.

Esta igreja passou por muitas modificações. Quando Bonifácio IV obteve este lugar do imperador Foca e o dedicou ao culto de Deus e de Nossa Senhora, fez transportar de vários cemitérios vinte e oito carros de relíquias que colocou sob o altar-mor. Desde então, começou a ser chamada de Santa Maria ad Martyres. Gostamos muito de ter visitado o túmulo do grande Rafaello. […]. Agora esta igreja também é chamada de Rotonda, pela forma arredondada de sua construção. À frente dela há uma praça cujo centro é ocupado por uma grande fonte de mármore, encimada por quatro golfinhos que jorram água continuamente.

San Pietro in Vincoli
No dia 23 de fevereiro […] ficamos muito contentes com a visita a S. Pietro in Vincoli, igreja ao sul de Roma, quase no fim da cidade. Foi um dia memorável porque coincidia com uma das raras vezes em que eram exibidas as correntes de São Pedro [catene di san Pietro], cujas chaves são guardadas pelo próprio Santo Padre.
Diz a tradição que foi o próprio Pedro quem ergueu aqui a primeira igreja, dedicando-a ao Salvador. Destruída pelo incêndio de Nero, foi reconstruída por São Leão Magno em 442 e dedicada ao primeiro Papa. Foi chamada de San Pietro in Vincoli porque o Pontífice deixou nela a corrente com a qual o Príncipe dos Apóstolos foi, por ordem de Herodes, acorrentado em Jerusalém. O patriarca Giovenale a havia presenteado à imperatriz Eudóxia, que por sua vez a enviou a Roma para sua filha Eudóxia Júnior, esposa de Valentiniano III. Em Roma também se conservava a corrente à qual São Pedro foi acorrentado no cárcere Mamertino. Quando São Leão quis fazer a comparação desta com a de Jerusalém, de maneira prodigiosa as duas correntes se uniram, de modo que hoje formam uma só, que é conservada em um altar específico ao lado da sacristia. Tivemos a consolação de tocar essas correntes com nossas mãos, beijá-las, colocá-las em nosso pescoço e aproximá-las da fronte. Também olhamos com bastante atenção para tentar ver onde as duas se uniam, mas não conseguimos. Apenas pudemos constatar que a corrente de Roma é menor que a de Jerusalém.

Em San Pedro in Vincoli encontra-se a magnífica sepultura de Júlio II. […]. É uma das obras-primas do célebre Michelangelo Buonarroti, que é considerado um dos maiores artistas do mármore, especialmente pela estátua de Moisés [statua del Mosè], colocada perto da urna. O patriarca é representado com as tábuas da lei dobradas sob o braço direito, em ato de falar ao povo que ele observa com atenção, pois se havia rebelado. A igreja tem três naves, separadas por vinte colunas de mármore pario e duas de granito, bem conservado.

San Luigi dei Francesi
Por volta das nove, fomos a Santa Maria sopra Minerva, onde fomos recebidos em audiência privada pelo Cardeal Gaude por cerca de uma hora e meia. Ele falou conosco em dialeto piemontês, interessando-se por nossos oratórios. […]. Depois do meio-dia fomos visitar o marquês Giovanni Patrizi. […]. Em frente ao seu palácio está a igreja de São Luís dos Franceses [chiesa di S. Luigi dei Francesi], que dá nome à praça e à vizinhança. É uma igreja bem cuidada e enriquecida com muitos mármores preciosos. Sua singularidade consiste nos sepulcros de ilustres personagens franceses que morreram em Roma. De fato, o piso e as paredes estão cobertos de epígrafes e lápides. […].
Santa Maria Maggiore all’Esquilino
Do Quirinale se abre uma via que leva ao Esquilino, assim chamado pelos muitos alces que o adornavam. Na parte mais elevada ergue-se Santa Maria Maggiore [S. Maria Maggiore], cuja origem assim é narrada por todos os que se ocupam da história sagrada. Um certo Giovanni, patrício romano, não tendo filhos, desejava empregar seus bens em alguma obra de piedade. […]. Na noite de 4 de agosto de 352, Nossa Senhora lhe apareceu em sonho e ordenou que lhe erguesse um templo no lugar onde, na manhã seguinte, encontraria neve fresca. A mesma visão teve o papa da época, Libério. No dia seguinte, espalhou-se a notícia de que havia caído abundante neve no monte Esquilino; Libério e Giovanni foram até lá e, constatando o prodígio, se colocaram de acordo para concretizar o que lhes foi ordenado no sonho. O papa fez o traçado do novo templo, que foi construído com os recursos de Giovanni: poucos anos depois, Libério o consagrou […]

Em frente à igreja se estende uma vasta praça, no centro da qual está a antiga coluna de mármore branco, retirada do templo da paz. No ano de 1614 o Papa Paulo V dotou-a de uma base e de um capitel, sobre o qual colocou a estátua de Nossa Senhora com o Menino Jesus [la statua della Madonna col Bambino]. A arquitetura da fachada é majestosa e é sustentada por grossas colunas de mármore que formam um espaçoso vestíbulo. No fundo deste foi colocada a estátua de Filipe IV, rei da Espanha, que fez muitas doações em favor desta igreja e quis ele mesmo ser inscrito entre os canônicos dela. O piso é de mosaico precioso trabalhado com mármores de vários tipos, todos de valor incalculável.

A capela à direita do altar-mor conserva a tumba de São Jerônimo, a manjedoura do Salvador [culla del Salvatore] e o altar do Papa Libério. O altar papal é coberto por preciosos mármores de porfírio e sustentado por quatro anjos de bronze dourado. Abaixo dele se abre a Confissão, que é uma capela dedicada a São Matias. Fomos visitá-la no dia da estação quaresmal, assim tivemos a sorte de encontrar exposto sobre um rico altar a cabeça de São Matias. Observando-a atentamente notamos a pele ainda presa à cabeça e que, também, ainda aparecem alguns cabelos presos ao venerado crânio.

A Virgem e a peste
Na capela à esquerda do altar pode-se observar uma pintura da Virgem atribuída a São Lucas [un dipinto della Vergine attribuito a san Luca], muito venerada pelo povo. A imagem sempre foi muito apreciada pelos papas. São Gregório Magno, na terrível peste de 590, a levou em procissão até o Vaticano. Era 25 de abril. Quando o cortejo chegou perto da Mole Adriana (torre Adriana, n.d.r.), foi visto um anjo que guardava a espada na bainha, indicando assim o término da peste. Em memória deste prodígio, a Mole Adriana foi chamada de Castel Sant’Angelo, e desde então a procissão se repete todo ano no dia de São Marcos Evangelista. Em Santa Maria Maggiore tudo é majestoso e grandioso; mas falar ou escrever sobre isso é insuficiente para descrevê-la com precisão. Quem a vê com seus próprios olhos fica maravilhado com tudo o que vê lá.

Hoje, Quarta-feira de Quaresma, aqui em Roma se jejua e isso significa que são proibidos não apenas os alimentos de carne, mas também qualquer sopa ou prato à base de ovos, manteiga ou leite. Óleo, água e sal são os temperos usados nestas Quartas-feiras. A prática é rigorosamente observada por todas as pessoas, de modo que nos mercados e nas lojas não se encontra carne, ovos ou manteiga naquele dia.

A lenda de São Galgano
À noite, a senhora De Maistre nos contou uma história digna de ser lembrada. Ela disse:
No ano passado veio aqui o Vigário Geral de Siena. Entre outras coisas que ele costumava contar havia uma sobre São Galgano, soldado. Esse santo morreu há séculos, e o seu corpo se conserva intacto. Mas a maravilha é que todo ano lhe cortam os cabelos, que crescem sensivelmente e voltam ao mesmo comprimento no ano seguinte. Um protestante, ouvindo sobre tal prodígio, começou a rir dizendo: – Deixa-me lacrar o caixão, e se os cabelos crescerem, eu reconheço o dedo de Deus no prodígio e me torno católico. A coisa chegou ao bispo, que disse: – Sim, logo! Colocarei os lacres episcopais para a autenticidade da relíquia. Que ele coloque os seus para assegurar-se do fato. Assim foi. Mas o protestante, impaciente para ver se o prodígio acontecia, depois de alguns meses pediu para abrir o caixão do santo. Mas, qual não foi sua surpresa quando viu os cabelos de São Galgano crescidos já em um considerável tamanho com a mesma proporção como se fosse vivo ainda?! Então exclamou: – Agora sou católico! De fato, no ano seguinte, no dia da festa do santo, ele, com sua família abjurou os erros de Calvino e de Lutero, e abraçou a religião católica, que agora professa exemplarmente.

Santa Pudenziana al Viminale
Das Quattro Fontane sobe-se ao Viminale, chamado assim pelos muitos vimes, ou seja, os juncos, que outrora o cobriam. Aos pés desta colina, na casa de Pudente, senador romano, hospedou-se São Pedro quando veio a Roma. O santo apóstolo converteu à fé seu anfitrião e transformou sua casa em igreja. São Pio I, por volta de 160, a pedido das virgens Pudenziana e Prassede, filhas do sobrinho do Senador Pudente, consagrou esta igreja, que […] posteriormente foi dedicada a Santa Pudenziana [dedicata a S. Pudenziana] porque ela ali havia habitado e foi ali que morreu. Muitos papas trabalharam na reestruturação deste lugar, que contém preciosos testemunhos da fé cristã. Merece especial atenção o poço de Santa Pudenziana. Acredita-se que ela tenha sepultado os corpos dos mártires neste poço. No fundo, pode-se notar uma grande quantidade de relíquias: a história diz que contém as relíquias de três mil mártires.

Ao lado do altar-mor há uma capela de forma alongada em cujo altar estão estátuas em mármore em que Jesus entrega as chaves a São Pedro. Acredita-se que o altar seja o mesmo sobre o qual São Pedro celebrou a missa, e sobre o qual, com grande consolação, eu também pude fazê-lo. Conservam-se vários pedaços de esponja, os mesmos que Pudenziana usava para recolher o sangue das chagas dos mártires ou da terra que estava impregnada dele.
Continuando à esquerda chega-se a uma capela onde se conserva o testemunho de um grande milagre. Enquanto celebrava a missa, um sacerdote caiu em dúvida sobre a possibilidade da presença real de Jesus na hóstia santa. Após a consagração, a hóstia lhe escapuliu das suas mãos e, caindo no chão, quicou primeiro em um degrau e depois em outro. Onde tocou pela primeira vez, o mármore ficou quase furado; também no segundo degrau formou-se uma cavidade muito profunda em forma de hóstia. Esses dois degraus de mármore são conservados naquele mesmo lugar, de modo bem seguro.

Santa Prassede
De Santa Pudenziana, subindo em direção ao Esquilino, a pouca distância de Santa Maria Maggiore, encontra-se a igreja de Santa Prassede [chiesa di S. Prassede]. Por volta do ano 162 d.C., sobre o local onde estavam as termas, ou seja, as casas de banho de Novato, São Pio I ergueu uma igreja em honra desta virgem, irmã de Novato, Pudenziana e Teotilo. O local serviu de refúgio para os antigos cristãos em tempos de perseguição. A Santa, que se esforçava para fornecer o que era necessário aos cristãos perseguidos, também se encarregava de recolher os corpos dos mártires, que depois sepultava, vertendo seu sangue no poço que está no meio da igreja. Ela é riquíssima em ornamentos e mármores preciosos, como quase todas as igrejas de Roma.

Há também a capela dos mártires Zenone e Valentino, cujos corpos, trazidos por São Pascoal I no ano 899, repousam sob o altar. Aqui se conserva também uma coluna de jaspe, alta cerca de três palmos, que um Cardeal chamado Colonna fez transportar da Terra Santa no ano 1223. Acredita-se que seja aquela à qual o Salvador foi atado durante a flagelação.

Celio
Do Esquilino, olhando para o oeste, vê-se a colina Celio. Antigamente, era chamada de Querchetulano pelas árvores de carvalho que a cobriam. Mais tarde, foi denominada Celio em homenagem a Cele Vilenna, capitão dos etruscos que vieram em socorro de Roma, e que Tarquínio Prisco acolheu nesta colina. A primeira coisa que se nota é o maior obelisco que se conhece. Ramsés, faraó do Egito, fez erguê-lo em Tebas, dedicando-o ao sol. Constantino, o Grande, mandou transportá-lo pelo Nilo até Alexandria, mas, tendo morrido, coube ao filho, Constâncio, levá-lo a Roma. Para a viagem, usou-se um navio de trezentos remos, e pelo rio Tibre foi conduzido à Urbe e colocado em um lugar chamado Circo Massimo. Aqui caiu, quebrando-se em três partes. O Papa Sisto V mandou restaurá-lo e erguê-lo na praça do Laterano no ano de 1588. O obelisco chega à altura de 153 pés romanos. É todo ornamentado com hieróglifos e coroado por uma alta cruz.

À direita da praça está o batistério de Constantino com a igreja de San Giovanni in Fonte [chiesa di S. Giovanni in Fonte]. Diz-se que foi construída por Constantino em ocasião do batismo que recebeu do pontífice São Silvestre no ano 324. Das duas capelas anexas, uma dedicada a São João Batista e a outra a São João Evangelista, recebeu o nome de igreja de San Giovanni in Fonte. O batistério, que é uma bacia de grande largura revestida de mármores preciosos, está no meio. A capelinha anexa, dedicada a São João Batista, acredita-se que fosse um cômodo de Constantino, transformada em oratório e dedicada ao santo Precursor pelo papa São Hilário.

San Giovanni in Laterano
Saindo do batistério e atravessando a vasta praça, encontra-se a basílica de San Giovanni in Laterano [basilica di S. Giovanni in Laterano]. Esta célebre construção é a primeira e principal igreja do mundo católico. Na fachada está escrito: Ecclesiarum Urbis et Orbis Mater et Caput (Mãe e Cabeça de todas as Igrejas de Roma e do Mundo). É a sede do Sumo Pontífice como bispo de Roma; após sua coroação, ele vem até aqui para, solenemente, tomar posse. Foi chamada também de Basílica Costantiniana, porque foi fundada por Constantino, o Grande. Depois foi chamada de Basílica Lateranense porque erguida onde estava o palácio de um certo Pláucio Laterano, assassinado por Nero; e também Basílica do Salvador, em decorrência de uma aparição do Salvador ocorrida durante a sua construção. Chamam-na ainda de Basílica Áurea pelos preciosos dons com que foi enriquecida, e Basílica de São João porque dedicada aos santos João Batista e Evangelista.

Foi Constantino, o Grande, quem a mandou construir perto de seu palácio, por volta do ano 324. Ampliada depois com novos edifícios, foi cedida ao santo Pontífice. Aqui habitaram os papas até a época de Gregório XI. Quando este trouxe a Santa Sé de Avinhão para Roma, transferiu sua residência para o Vaticano.
No ano de 1308 um terrível incêndio a destruiu, mas Clemente V, que então estava em Avinhão, imediatamente enviou seus agentes com grandes somas de dinheiro, e logo breve foi reconstruída. O pórtico é sustentado por vinte e quatro grossos pilares; ao fundo, está a estátua de Constantino encontrada em suas termas no Quirinale. A grande porta de bronze é de extraordinária altura. Ela foi retirada da igreja de Sant’Adriano in Campo Vaccino e trazida para cá. Constitui um raro exemplo de portas antigas chamadas Quadrifores, ou seja, construídas de modo que pudessem ser abertas em quatro partes, uma de cada vez, sem que nenhuma colocasse em perigo a estabilidade da outra. À direita, há uma porta murada que se abre apenas no ano do jubileu e, por isso, é chamada de Porta Santa.

Seu interior tem cinco naves. O comprimento, a altura, a preciosidade dos pavimentos, das esculturas e das pinturas são coisas que chamam a atenção. Deveria-se escrever grossos volumes para falar dignamente sobre isso. As relíquias mais insignes desta igreja são a cabeça dos dois príncipes dos Apóstolos, Pedro e Paulo. Elas estão sob o altar-mor e ficam dentro de uma outra cabeça de ouro. Há também uma relíquia insigne de São Pancrazio, mártir, e guarda-se uma mesa que se acredita ser a mesma sobre a qual Jesus celebrou a sagrada ceia com seus Apóstolos.

Saindo da igreja pela porta principal e atravessando a praça, encontra-se a Escada Santa [Scala Santa], um edifício que o Papa Sisto V mandou erguer para guardar a escada, que antes estava em pedaços no antigo palácio papal do Laterano. Ela é formada por vinte e oito degraus de mármore branco que eram do pretório de Pilatos, em Jerusalém, que Jesus subiu e desceu várias vezes durante sua paixão. Santa Helena, mãe de Constantino, os enviou a Roma junto com muitas outras coisas santificadas pelo sangue de Jesus Cristo. Esta célebre escadaria é mantida em grande veneração e, por isso, sobe-se de joelhos; e desce-se por uma das quatro escadas laterais. Esses degraus se afundaram pelo grande afluxo de cristãos que os subiram, por isso foram cobertos com tábuas de madeira. O próprio Sisto V fez colocar no alto da escada a célebre capela doméstica dos Papas, que está repleta das mais insignes relíquias, e que, por isso, é chamada de Sancta Sanctorum.

Cidade do Vaticano. A construção
A colina do Vaticano [colle Vaticano] contém o que existe de mais excelente nas artes e de memorável na religião; por isso, faremos um relato um pouco mais preciso. Foi chamada Vaticano, de Vagitanus, uma divindade que acreditavam que acompanhava o choro dos recém-nascidos. De fato, a primeira sílaba Uà (“va”, n.d.r.) da qual é composta a palavra é também o primeiro grito das crianças. A colina ficou conhecida quando Calígula construiu nela um circo, que depois ficou conhecido como circo de Nero. Calígula, para passar da margem esquerda para a direita do Tibre, construiu a ponte do Vaticano, também chamada de Triunfal, que agora, porém, não existe mais. O circo de Nero começava onde hoje está a igreja de Santa Marta e se estendia até as escadas da antiga basílica vaticana. Neste circo foi enterrado o corpo do Príncipe dos Apóstolos [corpo del Principe degli Apostoli] .[…].

Ali também foram enterrados os ossos de outros Papas, incluindo Lino, Cleto, Anacleto, Evaristo e outros mais. A Memória de São Pedro, ou seja, a capela construída sobre o túmulo dele, durou até os tempos de Constantino que, por desejo de São Silvestre, por volta de 319, começou a construção de uma igreja em honra do Apóstolo. Ela foi erguida exatamente em torno daquela capela, utilizando material retirado de edifícios públicos. A construção foi chamada de Basílica Constantiniana, e naqueles tempos era considerada uma das mais célebres da cristandade. No meio daquela igreja, feita em forma de cruz latina, havia o altar dedicado a São Pedro, sob o qual estava sepultado seu corpo, protegido por grades; desde então aquele lugar era chamado de Confissão de São Pedro. Terminada a construção e dotada de ricos adornos, o Papa Silvestre a consagrou em 18 de novembro de 324. […]. Os pontífices que vieram depois a embelezaram e a ampliaram. Por onze séculos foi objeto de devoção e admiração dos cristãos que se dirigiam a Roma.

No século XV, começou a ruir, por isso Nicolau V pensou em renová-la, mas teve apenas o mérito de iniciar os trabalhos, pois com a sua morte se suspendeu tudo. Júlio II retomou a construção, mudando o nome dela de Basílica Constantiniana para São Pedro no Vaticano, e colocou a primeira pedra em 18 de abril de 1506. Os arquitetos foram Bramante, depois Fra Giocondo Domenico e Raffaello Sanzio. E além deles, também trabalharam os mais célebres arquitetos e os mais sublimes gênios da época.

A grande praça
 […] Diante da basílica se abre uma vasta praça cuja extensão supera meio quilômetro. Ela é formada por 284 colunas e 64 pilares que, dispostos em semicírculo de ambos os lados em quatro fileiras, formam três corredores, dos quais o mais amplo, o central, pode permitir a passagem de duas carruagens. Sobre a colunata sobressaem 96 estátuas de santos, em mármore, com cerca de 10 pés de altura. No centro, ergue-se o obelisco egípcio. Ele é formado por um só bloco e é o único que permaneceu inteiro. Mede 126 pés de altura, incluindo a cruz e o pedestal. Não possui hieróglifos. Nuccoreo, rei do Egito, o havia erguido em Heliópolis, de onde foi retirado e trazido a Roma por Calígula no 3º ano de seu império. Foi colocado no circo construído ao pé da colina do Vaticano, como demonstram os dizeres que podem ser lidos. Este circo foi chamado de Nero porque foi muito frequentado por ele; aqui, aquele cruel imperador fez um massacre de cristãos, acusando-os de serem os autores do incêndio de Roma, que ele mesmo havia provocado.

Em 1818 foi construída uma meridiana na praça. Foram desenhados no chão os doze signos do zodíaco. O obelisco servia como ponteiro e com sua sombra indicava as estações do sol. Ao redor, foram escritos os nomes dos ventos na direção em que sopra cada um deles. Dos lados, duas fontes iguais jorram perpetuamente água de um grupo de jatos que se elevam até sessenta pés. A rainha da Escócia, recebida com pompa neste lugar, olhou com espanto para as duas fontes, pensando que haviam sido feitas especialmente para sua recepção. Não, disse um senhor que estava ao seu lado, esses jatos são perenes.

Visita a São Pedro
Caminhando em direção à fachada da basílica, chega-se a uma magnífica escadaria ladeada por duas estátuas, uma de São Pedro e a outra de São Paulo, colocadas ali pelo Papa Pio IX. Subindo as escadas, está-se diante da fachada que tem esta inscrição: Em honra do Príncipe dos Apóstolos, Paulo V, Pontífice Máximo, no ano de 1612, 7º de seu pontificado. Acima do pórtico se estende o grande Balcão das bênçãos. A fachada é majestosa e imponente. O pórtico é todo adornado com mármores, pinturas em mosaico e outros trabalhos elegantes. No fundo do vestíbulo, à direita, pode-se observar a belíssima estátua equestre de Constantino em ato de contemplar a prodigiosa cruz que lhe apareceu no céu antes da batalha final com Massenzio.

Do pórtico entra-se na basílica através de quatro portas, das quais a última à direita só se abre no ano santo. A porta maior é de bronze, muito alta, e são necessárias muitas e fortes mãos para abri-la. O interior apresenta-se em cinco naves além da cruz que termina com a tribuna. A curiosidade e a surpresa nos levaram ao meio da nave maior. Aqui paramos para admirar e refletir, sem pronunciar palavra. Pareceu-nos ver a Jerusalém celeste. O comprimento da basílica é de 837 palmos, sua largura de 607. É o maior templo de toda a cristandade. Depois de São Pedro, o maior é o de São Paulo em Londres. Se à igreja de São Paulo acrescentarmos a do nosso Oratório, forma-se o comprimento exato da de São Pedro.

Depois de estarmos por algum tempo imóveis, procuramos a pia de água benta. Avistamos dois anjos no primeiro pilar da basílica, à primeira vista muito pequenos, que seguravam uma espécie de concha. Ficamos maravilhados que uma igreja tão vasta tivesse uma pia de água benta tão pequena. Mas nossa maravilha se transformou em surpresa quando vimos os anjos se tornavam cada vez maiores à medida que nos aproximávamos deles. A concha tornou-se um recipiente de cerca de seis pés de circunferência, e os anjos ao lado nos mostravam suas mãos com dedos do tamanho de nosso braço. Isso demonstra que as proporções deste maravilhoso edifício são tão bem reguladas que tornam menos perceptível a amplitude, a qual, no entanto, se nota cada vez melhor ao examinar cada detalhe. Ao redor dos pilares da nave maior estão as estátuas dos fundadores das ordens religiosas, esculpidas em mármore.

No último pilar, à direita, está colocada a estátua de São Pedro, em bronze, venerada com grande reverência. Foi feita fundir por São Leão Magno com o bronze da estátua de Júpiter Capitolino. Ela recorda a paz que aquele Pontífice obteve de Átila, que estava enfurecido contra a Itália. O pé direito que se projeta para fora do pedestal está consumido pelos lábios dos fiéis que nunca passam diante dele sem beijá-lo com respeito. Enquanto estávamos admirando a estátua, passou o embaixador austríaco em Roma, que se curvou diante do príncipe dos Apóstolos e beijou seu pé.

Naves e capelas
Passamos agora a dizer alguma coisa sobre as naves menores e as capelas que lá se encontram. Na nave da direita encontramos, primeiro, a capela da Pietà. Além de magníficos mosaicos e das estátuas que a adornam, admira-se sobre o altar a célebre estátua esculpida por Michelangelo Buonarroti, em mármore branco, quando ele tinha apenas vinte e quatro anos de idade. Talvez seja a escultura mais bela do mundo. O mesmo Buonarroti se agradou tanto dela deixou a sua assinatura na faixa sobre o peito de Maria.

À esquerda da capela da Pietà está a capela interna dedicada ao Crucifixo e a São Nicolau. Daqui se entra na chamada Capelinha da Coluna Santa, onde se conserva, protegida por uma grade de ferro, uma das colunas em espiral que estavam antigamente diante do altar da Confissão de São Pedro. Esta é a coluna à qual Jesus Cristo se apoiou quando pregou no templo de Salomão. Admira-se com maravilha que a parte tocada pelos sagrados ombros do Salvador nunca está suja de poeira, e por isso não é necessário que seja limpa como o resto.

Após a capela da Pietà está o monumento fúnebre de Leão XII, feito por Gregório XVI. O Pontífice é retratado enquanto abençoa o povo do Balcão (Loggia, n.d.r.) acima do pórtico; ao redor vê-se as cabeças dos Cardeais que participavam da cerimônia. Em frente a este jazigo está o de Cristina Alessandra, rainha da Suécia, morta em Roma no dia 19 de abril de 1689. Esta, protestante, convencida da pouca consistência de sua religião, fez-se instruir no catolicismo e fez a solene abjuração em Ispruch em 3 de novembro de 1655. Vários baixos-relevos que adornam o túmulo representam o acontecimento.

Depois está a capela de São Sebastião, também essa rica em pinturas e mármores. Saindo à direita, encontra-se o túmulo de Inocêncio XII, dos Pignatelli de Nápoles. Em frente, está a sepultura da famosa condessa Matilde, ilustre benfeitora da Igreja e defensora da autoridade pontifícia. Urbano VIII transferir para cá as cinzas dela, retirando-as do mosteiro de São Bento em Mantova. Ela foi a primeira das ilustres mulheres que mereceram uma sepultura na basílica Vaticana. A condessa é representada em pé; a sepultura é ornada por um baixo-relevo que retrata a absolvição concedida por Gregório VII a Henrique IV, imperador da Alemanha, a pedido de Matilde e de outros personagens, em 25 de janeiro de 1077, na fortaleza de Canossa.

Chega-se assim à capela do Sacramento, rica em mármores e mosaicos. Ao lado do altar, uma escada leva ao palácio pontifício. Este altar é dedicado a São Maurício e companheiros mártires, patronos principais do Piemonte. As duas colunas em espiral de um só bloco que ornamentam o altar são duas das doze que se acredita terem sido trazidas a Roma do antigo templo de Salomão. No chão diante do altar, pode ser visto a sepultura em bronze de Sisto IV, Della Rovere. Ele foi executado por ordem de Júlio II, seu sobrinho, e representa as virtudes e a ciência próprias do falecido. Nele estão contidas as cinzas dos dois papas.

Ao sair da capela, à direita está a sepultura de Gregório XIII, Buoncompagni. O adornam duas estátuas: a Religião e a Fortaleza; ao centro, um grande baixo-relevo representa a reforma do calendário, por isso chamada Gregoriana. Aqui estão retratados uma grande quantidade de personagens ilustres que participaram daquela obra, todos em ato de reverenciar o Pontífice. Em frente, dentro de uma urna de estuque, repousam os ossos de Gregório XIV, da família Sfrondato. Aqui termina a nave menor e se entra na cruz grega segundo o desenho do Buonarroti.

Saindo da nave, à direita encontra-se a Capela Gregoriana. Acima do altar é venerada uma antiga imagem de Nossa Senhora dos tempos de Pascoal II. Abaixo repousa o corpo de São Gregório Nazianzeno, transferido por ordem de Gregório XIII da igreja das monjas de Campo Marzio. Prosseguindo o caminho chega-se ao monumento fúnebre de Bento XIV, Lambertini, erguido pelos cardeais que foram criados por ele. Nos dois lados da sepultura erguem-se duas magníficas estátuas que representam o Desinteresse e a Sabedoria, as duas virtudes mais luminosas deste papa. A estátua do Pontífice, em pé, abençoa o povo com gesto majestoso. Este trabalho é tão bem executado que basta olhar para o Papa para reconhecer a sua grandeza e a altivez de sua alma. Em frente está o altar de São Basílio Magno, e sobre ele um precioso quadro em mosaico do imperador Valente desmaiado na presença do Santo, enquanto o observava celebrar a missa.

Chega-se então à tribuna. O primeiro altar à direita é dedicado a São Venceslau, mártir, rei da Boêmia; o do meio é consagrado aos santos Processo e Martiniano, guardas do cárcere Mamertino, convertidos à fé por São Pedro, quando o Apóstolo estava preso. Desses santos toma nome o complexo; seus corpos repousam sob o altar. Três preciosos baixos-relevos representam São Pedro na prisão, libertado pelo Anjo (o do meio), São Paulo pregando no Areópago (o da direita), o terceiro os santos Paulo e Barnabé, considerados divindades pelos habitantes de Listra.
Encontra-se então a sepultura de Clemente XIII, Rezzonico, escultura de Antonio Canova. É uma obra-prima. O quadro do altar que fica em frente ao monumento retrata São Pedro em perigo de afundar, sustentado pelo Redentor. Mais adiante está o altar de São Miguel, depois o de Santa Petronila, filha de São Pedro. Esta santa é representada em um mosaico que narra a exumação de seu cadáver para mostrá-lo a Flaco, nobre romano, que a havia pedido em casamento. Na parte superior é retratada a alma dela que, através de suas orações conseguiu morrer virgem, e é acolhida por Jesus Cristo. Mais adiante, vê-se o sarcófago de Clemente X, Altieri: o baixo-relevo representa a abertura da porta santa no Jubileu de 1675. O altar é coroado pelo quadro de São Pedro que, às orações de uma multidão de pedintes, ressuscita a viúva Tabita.

Através de dois degraus de pórfiro, que faziam parte do altar-mor da antiga basílica, se sobre ao Altar da Cátedra. Um surpreendente grupo de quatro estátuas de metal sustenta a sede pontifical. As duas da frente representam dois padres latinos, Ambrósio e Agostinho; as duas de trás, os padres gregos, Atanásio e João Crisóstomo. O peso desses grupos totaliza 219.161 libras de metal. A cadeira em bronze reveste, como preciosa relíquia, a de madeira entalhada com vários baixos-relevos de marfim. Esta cadeira é a do senador Pudente que serviu o Apóstolo Pedro e muitos outros papas depois dele.

Acima do altar da Cátedra, como segundo plano está representado, em tela, o Espírito Santo entre vidros coloridos e radiantes, de modo que, a quem o olha, parece ver uma estrela de ouro resplandecente. Abaixo, à esquerda de quem olha, está o magnífico sepulcro de Paulo III, Farnese, monumento muito precioso por suas esculturas. A estátua do Pontífice sentado sobre a urna é de bronze, as outras duas estátuas, de mármore, e representam a Prudência e a Justiça. Em frente, está a sepultura do Papa Urbano VIII, cuja estátua é de bronze. A Justiça e a Caridade estão aos seus lados, esculpidas em mármore branco. Sobre a urna vê-se a imagem da morte em ato de escrever, em um livro, o nome do Pontífice. Aqui interrompemos a visita: estávamos cansados, a visita durou das onze da manhã às cinco da tarde.

Roma. Santa Maria della Vittoria
Do Quirinale, olhando para o sul, vê-se a via de Porta Pia, assim chamada pelo Papa Pio IV, que para embelezá-la executou não poucas obras. Ao longo desta estrada, perto da fonte Acqua Felice, ergue-se à esquerda a igreja de S. Maria della Vittoria, edificada por Paulo V em 1605 e assim chamada por causa de uma imagem milagrosa de Nossa Senhora levada para lá pelo P. Domenico, dos Carmelitas Descalços. A esta imagem, ou melhor, à proteção de Maria, Maximiliano, duque da Baviera, deve a grande vitória obtida em poucos dias contra os protestantes, que com um exército numerosíssimo haviam colocado o reino da Áustria de pernas para o ar. A prodigiosa imagem se conserva sobre o altar maior. Nas suas bordas estão penduradas as bandeiras tiradas dos inimigos: um glorioso monumento à proteção de Maria.

Em memória da libertação de Viena, foi instituída a festa do Nome de Maria, que é celebrada por toda a cristandade no domingo entre a oitava do nascimento de Maria. Aconteceu no dia 12 de setembro de 1683, sob o pontificado de Inocêncio XI. Nesta mesma igreja, celebra-se uma especial solenidade no segundo Domingo de novembro, recordando a famosa vitória obtida pelos cristãos contra os turcos, em Lepanto, no dia 7 de outubro de 1571, sob Pio V. Também algumas bandeiras tiradas dos turcos estão penduradas como troféus nos beirais desta igreja.
Diante de Santa Maria della Vittoria encontra-se a fontana di Termini, chamada fonte de Moisés, porque em um nicho está esculpida a estátua de Moisés que, com a vara na mão, faz jorrar água da pedra. É também chamada de Acqua Felice, em homenagem ao Frei Felice, que é o nome de Sisto V quando estava no convento.

A ilha Tiberina [L’isola Tiberina]À tarde, decidimos ir com o Conde De Maistre visitar a grande obra de São Miguel do outro lado do Tibre. Portanto, tivemos que atravessar o rio na altura de uma ilhota chamada Tiberina ou também Licaonia, em homenagem a um templo dedicado a Júpiter Licão. Esta ilha teve origem assim. Quando Tarquínio foi expulso de Roma, o Tibre estava quase sem água, deixando expostos alguns bancos de areia. Os romanos, movidos por ódio contra este rei, foram aos seus campos, cortaram o trigo e outros cereais que estavam próximos da maturação, e jogaram tudo no Tibre. A palha dos cereais se misturou com aquela areia e, uma vez se misturando com a lama do rio, se consolidou a tal ponto que pôde ser cultivada e habitada. Nesta ilha, os pagãos ergueram um templo em honra de Esculápio; mas, em 973, o corpo de São Bartolomeu foi transferido para o templo, e hoje repousa na urna sob o altar-mor.

Passado o Tibre e continuando em direção a São Miguel, encontra-se à direita a igreja de Santa Cecília [chiesa di S. Cecilia], edificada no local onde era sua casa. Urbano I, por volta da metade do terceiro século, a consagrou, e São Gregório Magno a enriqueceu com muitos objetos preciosos. Ao entrar, à direita, está a capela onde era o banheiro de Santa Cecília, no qual se diz que ela recebeu o golpe mortal. O altar-mor, protegido por uma grade de ferro, guarda o corpo da santa. Acima da urna foi esculpida uma comovente estátua em mármore, que a representa deitada e vestida como foi encontrada na sua sepultura.

Chegando ao Refúgio São Miguel, tivemos uma audiência com o Cardeal Tosti, que nos contou vários episódios que lhe aconteceram na época da república. Ele também foi forçado a viver por um tempo longe do refúgio para não ser vitimado por algum atentado. Entre as várias coisas roubadas deste pio purpurado, naquela triste circunstância, estão três caixas de tabaco muito preciosas, seja pela antiguidade seja pela procedência. Levadas aos membros do triunvirato, Mazzini pensou em ficar com uma para si e presentear as outras duas a seus companheiros. Mas eles não se atreveram a ficar com elas. Mazzini resolveu tudo e graciosamente colocou as três no bolso!

Campidoglio
Ao longo do trajeto de volta, a meio caminho se ergue a colina mais alta de Roma, o Campidoglio, assim chamado de caput Toli, cabeça de Tolo, que foi encontrado enquanto Tarquínio, o Soberbo, fazia aplainar o cume para construir nele uma fortaleza. Subimos uma longa escadaria, cuja extremidade se elevam duas estátuas colossais representando Castor e Pólux. O plano que forma a praça era antigamente chamado inter duos lucos, porque ficava entre os bosques que cobriam os dois picos. Aqui Rômulo havia criado um abrigo para os povos vizinhos que quisessem refugiar-se. O Campidoglio de hoje não tem mais a imponência bélica, mas é uma praça majestosa contornada por palácios que abrigam museus, e onde se tratam os assuntos municipais. Em uma parte desta praça existia o templo de Júpiter Ferétrio, assim chamado pelas armas dos vencidos que os vencedores iam pendurar no altar daquele templo.

No meio da praça se ergue a famosa estátua equestre de Marco Aurélio num gesto de pacificador. Ela é a mais bela entre as mais antigas estátuas de bronze que se conservaram intactas. Uma parte dos grandes edifícios que cercam a praça constitui o palácio senatorial, fundado por Bonifácio IX em 1390 sobre o mesmo terreno onde estava o antigo senado dos romanos. Ao lado encontra-se a fonte Acqua Felice, que é adornada por duas estátuas deitadas do Nilo e do Tibre. Daqui, através de uma pequena escada, chega-se à torre do Campidoglio, erguida em forma de campanário no mesmo lugar onde, antigamente, se montavam os observadores para admirar Roma e controlar os inimigos que tentassem se aproximar da cidade. […].
Na parte mais elevada, em direção ao oriente, havia o templo de Júpiter Capitolino, que era chamado de Júpiter ÓtimoMáximo, e havia sido erguido por Tarquínio, o Soberbo, sobre as fundações preparadas por Tarquínio Prisco, que havia feito voto durante a guerra contra os sabinos. Justamente enquanto se fazia a escavação foi encontrado o caput Toli.

Santa Maria in Aracoeli
Onde era o templo de Júpiter Capitolino agora está a majestosa igreja de Santa Maria in Aracoeli [maestosa chiesa di Santa Maria in Aracoeli], edificada no século VI da era cristã. Por algum tempo foi chamada de Santa Maria in Campidoglio, pelo lugar onde se erguia. Foi então chamada Aracoeli pelo seguinte fato. Tendo um raio atingido o Campidoglio, Otaviano Augusto, temendo alguma desgraça, mandou interrogar o oráculo de Delfos. […]. Por este fato, e por algumas ditas das Sibilas, que diziam respeito ao nascimento do Salvador, Augusto fez erguer um altar intitulado: Ara primogeniti Dei, altar do primogênito de Deus. Daí derivou o nome de Santa Maria in Aracoeli, depois que no local foi erguida uma igreja em honra da Mãe de Deus. O interior tem três naves divididas por 22 colunas de mármore que já foram do templo de Júpiter Ferétrio. O altar-mor é digno de especial observação, porque sobre ele se venera uma imagem de Maria, que se pensa ser de São Lucas. Esta, nos tempos de São Gregório Magno, foi levada processionalmente por Roma para obter a libertação da peste. O fato é representado em uma pintura no pilar ao lado do altar. Na interseção da cruz está a capela de Santa Helena, onde foi erguida a Ara Primogeniti. A mesa do altar é uma grande urna de porfírio, dentro da qual foram depositados os corpos de Santa Helena, mãe de Constantino, e dos santos Abundância e Abundâncio.

Em uma sala próxima à sacristia se conserva uma efígie milagrosa do Menino Jesus. As faixas que o revestem são enriquecidas com pedras preciosas. Ela é exposta em veneração durante as festas de Natal, em um belo presépio que é feito em uma capela da igreja. Junto do Menino estão também as figuras de Augusto e da Sibila, lembrando a tradição que afirma que a Sibila Cumaea previu o nascimento do Salvador e, por isso, Augusto erigiu um altar.

Saindo de Aracoeli e indo em direção à parte ocidental do Campidoglio encontra-se a rocha Tarpeia que ocupava a parte voltada para o Tibre, e assim chamada por causa da Virgem Tarpeia, que foi morta traiçoeiramente na guerra dos sabinos. Os traidores da pátria eram jogados do alto desta rocha. Aqui foram martirizados muitos cristãos que, em ódio à fé, foram jogados para baixo. Ali perto estava a Cúria e a cabana de Rômulo, onde, diz-se, ele aguardou o responso dos abutres. […].

Descendo, um pouco mais abaixo está o templo da Concordia [tempio della Concordia], construído por Camilo no ano 387 de Roma. […]. Perto deste templo, na parte esquerda de quem desce, estava o de Júpiter Tonante, do qual restam três colunas de mármore. Foi erguido por Augusto no penhasco capitolino e dedicado a Júpiter, em agradecimento por ter escapado ao raio que matou o servo que o precedia.

Carcere Mamertino
Na manhã de 2 de março, junto com a família De Maistre, fomos visitar o carcere Mamertino, que está aos pés do Campidoglio, na sua parte ocidental. Esta prisão é assim chamada de Mamerto ou Anco Március, quarto rei de Roma, que a fez construir para espalhar terror na plebe, e assim impedir os furtos e os assassinatos. Sérvio Túlio, sexto rei de Roma, acrescentou sob este outro cárcere, que foi chamado Tulliano. Ele tem dois subterrâneos, que na abóbada tem uma abertura onde mal passava um homem. Através desta se desciam com uma corda os condenados. […].

Aqui brota uma fonte de água que se diz ter sido milagrosamente feita jorrar por São Pedro quando, junto com São Paulo, estava preso ali. O príncipe dos Apóstolos usou desta água para batizar os santos Processo e Martiniano, guardiões da prisão, junto com outros 47 companheiros, todos martirizados. Esta água tem aspectos milagrosos. Seu gosto é natural. Nunca aumenta e nunca diminui de volume, qualquer que seja a quantidade que se retire dela. Dois senhores ingleses, quase para zombar dos católicos, quiseram tentar esvaziar a pequena fonte da água, que se assemelha a um recipiente de pequenas dimensões. Eles se cansaram, assim como seus amigos, mas a água permaneceu sempre no mesmo nível. Contam-se muitas curas milagrosas obtidas pelo seu uso. Ao lado da fonte está colocada uma coluna de pedra à qual foram atados os dois príncipes dos Apóstolos. Ao lado da coluna está localizado um altar pequeno e baixo onde, com grande consolação, celebrei a missa, à qual participaram a família De Maistre e outras pessoas piedosas. Acima do altar, um baixo-relevo representa Paulo pregando e Pedro batizando os guardas. […].

Em um canto do primeiro andar da prisão nota-se na parede a impressão de um rosto humano. Diz-se que São Pedro recebeu um forte tapa de um bandido, de modo que batendo com o rosto na parede deixou impresso seu rosto, que milagrosamente se conservou. Acima desta figura está esculpida esta antiga inscrição: “Nesta pedra Pedro bateu a cabeça, golpeado por um bandido, e o prodígio permanece”. Acima desta prisão foi edificada uma igreja, e sobre esta ainda outra, dedicada a São José. Aqui é a sede da confraria dos carpinteiros. Os membros se reúnem nos dias festivos, assistem às funções sagradas e providenciam o que é necessário para a manutenção da igreja e para a limpeza do cárcere. Antigamente, para chegar à entrada da prisão, descia-se por uma escada da qual no seu final estava a abertura por onde eram precipitados os condenados. Aquelas escadas foram chamadas Gemonie por causa dos gemidos dos condenados. […].

Cidade do Vaticano. Devoções jubilares
O dia 3 de março estava reservado para visitar São Pedro. Partindo às seis e meia de casa, com um frescor que alegrava a vida e tornava céleres nossos passos, tomamos a direção da colina vaticana. Chegando à Ponte Elio ou Ponte Sant’Angelo, sobre a qual se passa atravessando o Tibre, recitamos o Credo. Os Pontífices concedem cinquenta dias de indulgência àqueles que recitam o Símbolo dos Apóstolos enquanto passam sobre esta ponte. É chamada Elio por causa de Elio Adriano, que a construiu. Mas também é chamado de ponte Sant’Angelo da Castel Sant’Angelo, que é o primeiro edifício que se encontra na margem oposta.

Diremos algo sobre este castelo. O imperador Adriano quis erguer uma grande sepultura na margem direita do Tibre. Por sua largura, comprimento e altura, chamaram-no de Mole Adriana. Quando o imperador Teodósio fez retirar as colunas do mausoléu de Adriano para dotar a basílica de São Paulo, esta construção ficou sem a metade superior e sem colunas. No ano 537, as tropas de Belisário atacaram os godos para afastá-los de Roma, e então quase todos os restos daquele mausoléu foram reduzidos a pedaços. No século X foi chamado Castro e Torre de Crescencio por um certo Cescenzo Nomentano, que se apoderou dele e o fortificou. Pouco depois, a história lhe deu o nome de Castel Sant’Angelo, derivando talvez de uma igreja dedicada ao anjo Miguel. […]. Mas a opinião mais provável permanece aquela que narra de uma procissão de São Gregório Magno para obter da Virgem a libertação da peste: naquela ocasião apareceu no alto da Mole um anjo que recolocava a espada na bainha, sinal de que o flagelo estava prestes a cessar. Então, Castel Sant’Angelo foi reduzido a uma fortaleza e é a única de Roma.

Continuando nosso caminho, chegamos à grande praça de São Pedro. Passando diante do obelisco, tiramos o chapéu, porque os Papas concederam cinquenta dias de indulgência a quem faz reverência ou descobre a cabeça ao passar perto daquele obelisco, sobre o qual foi colocada uma cruz que contém um pedaço da Santa Cruz de Jesus.
Eis-nos, então, de volta à Basílica Vaticana. Já havíamos visitado a metade e mais a tribuna, que forma como o coro do altar papal, localizado no meio da interseção da cruz, em frente à cátedra de Pedro. Este coro foi feito por Clemente VIII e foi por ele consagrado no ano de 1594: abriga o altar já edificado por São Silvestre. Sendo o altar papal, nele celebra apenas o Papa, e quando algum outro deseja usá-lo, é necessário um “Breve” apostólico. Nos quatro lados se erguem quatro grandes colunas em espiral que sustentam um baldaquino ornamentado com frisos, todo de bronze. A altura deste baldaquino do piso do chão iguala a dos mais altos prédios de Turim.

A tumba de Pedro: curiosidades de um santo
Diante do altar papal, através de uma escada dupla de mármore, desce-se ao nível da Confissão. Na extremidade das escadas estão colocadas duas colunas de alabastro de Orte, um material bastante raro, transparente como diamante. Cento e doze lâmpadas ardem continuamente ao redor do venerando lugar. No fundo, abre-se um nicho formado no antigo oratório erguido por São Silvestre, onde São Anacleto “ergueu uma memória a São Pedro”. Aqui repousa o corpo do Príncipe dos Apóstolos. Nas paredes laterais abrem-se duas portas munidas de um portão de ferro, de onde se passa para as sagradas grutas. Bem em frente ao nicho, no dia 28 de novembro de 1822, foi colocada a estátua em mármore de Pio VI, que, de joelhos, está em fervorosa oração. Esta é uma das mais belas obras de Antonio Canova. Pio VI costumava, durante o dia e às vezes até à noite, ir até o túmulo de São Pedro para rezar. Em vida, mostrou o vivo desejo de ser sepultado ali e, ao morrer, quis que seu desejo fosse atendido. Mas, após uma escavação de pouca profundidade, foi descoberta uma sepultura sobre a qual estava escrito: Linus episcopus. Imediatamente, tudo foi colocado em ordem, e o Pontífice foi sepultado em outro canto da igreja. No lugar escolhido, em vez do corpo, foi colocada a estátua da qual falamos. Nós vimos e tocamos com as mãos o que há aqui de precioso, mas não pudemos ver o corpo do primeiro papa, porque há séculos o sepulcro não foi mais aberto, por temor de que alguém tentasse quebrar alguma relíquia.

Acima deste túmulo foi erguido um rico altar: aqui tive a consolação de celebrar a santa missa. Este altar, com uma pequena capela anexa, recebe luz de algumas claraboias cobertos com grades de metal. Durante a construção da basílica, ocorreu um fato prodigioso, relatado por uma testemunha ocular. Antes que o teto fosse terminado, caíram chuvas tão impetuosas que as águas inundaram o piso da basílica até um palmo de altura. Apesar de tanta abundância, a água não ousou se aproximar do altar da Confissão, e nem desceu no oratório inferior através das três claraboias mencionadas, porque, chegando perto, parou, permanecendo suspensa, de modo que nem uma gota chegou a molhar aquele santuário. Depois de observar cada objeto, olhar cada canto, as paredes, os tetos, o piso, perguntamos se não havia mais nada para ver.
– Nada mais, nos responderam.
– Mas o túmulo do santo apóstolo, onde está?
– Aqui embaixo. Está situado no mesmo lugar que ocupava quando a antiga basílica estava de pé […].
– Mas gostaríamos de vê-lo.
– Não é possível […].
– Mas o papa disse que poderíamos ver tudo. Se ao estar com ele novamente e ele nos perguntar se vimos tudo, eu ficaria triste por não poder responder afirmativamente.
O monsenhor [que nos acompanhava] mandou buscar algumas chaves e abriu uma espécie de armário. Aqui se abria uma cavidade que descia ao subterrâneo. Estava tudo escuro.
– Está satisfeito? Disse-me o monsenhor.
– Ainda não, gostaria de ver.
– E como quer fazer?
– Mande buscar uma vara e uma tocha. Trouxeram a vara e a tocha, que se apagou imediatamente ao ser descida naquele ar sem oxigênio. E a tocha não chegava até o fundo. Então foi trazida uma outra vara, que tinha na extremidade um gancho de ferro. Com ela se conseguiu tocar a tampa do túmulo de São Pedro. Estava a sete/oito metros de profundidade. Batendo levemente, o som que chegava até nós indicava que o gancho estava tocando ora no ferro, ora no mármore. E isso confirmava o que haviam escrito os antigos historiadores.

Seria necessário um volume para descrever as coisas vistas. O que existia na basílica constantiniana se conserva em lápides laterais, ou nos pisos ou nos tetos dos subterrâneos. Destaco apenas uma coisa, a imagem de Santa Maria della Bocciata, muito antiga, colocada em um altar subterrâneo. O nome deriva do seguinte fato. Um jovem, por desprezo ou, talvez, inadvertidamente, atingiu um olho da figura de Maria com uma bola. Ocorreu um grande prodígio. Sangue brotou da fronte e do olho que, ainda vermelho, se vê sobre as bochechas da imagem. Duas gotas espirraram lateralmente sobre a pedra que é zelosamente protegida atrás de dois portões de ferro.

Altares, capelas, sepulturas
Acima do altar papal e do túmulo de São Pedro se ergue a imensa cúpula que encanta quem a observa. Quatro grandes pilares a sustentam: cada um deles tem cento e cinquenta passos, cerca de vinte e cinco trabucos (70,85 m, n.d.r.), de circuito. Em tudo ao redor daquela alta cúpula há elegantes trabalhos em mosaico executados pelos mais célebres autores. Nos pilares estão esculpidos quatro nichos chamados Galeria das Relíquias, que são a Sagrada Face da Verônica, um pedaço da Santa Cruz, a Lança Sagrada e o crânio de Santo André. Entre estas é célebre a relíquia da Sagrada Face, que se crê ser aquele pano do qual se serviu o Divino Salvador para enxugar o rosto pingando sangue. Ele deixou a sua face impressa nele, que o deu a Santa Verônica, enquanto em lágrimas o acompanhava Calvário. Pessoas dignas de fé contam que esta Sagrada Face, em 1849, suou sangue mais vezes, aliás, mudou de cor, a ponto de variar as primeiras feições. Esses fatos foram escritos, e os cônegos de São Pedro o testemunham.

Partindo do altar papal e prosseguindo em direção à parte meridional encontra-se o sepulcro de Alexandre VIII, dos Ottobuoni. Foi erguido pelo sobrinho, o Cardeal Pietro Ottobuoni. A estátua do Papa sentado no trono é de metal. Duas estátuas em mármore estão nos dois lados, representando a Religião e a Prudência. A urna é coberta pelo baixo-relevo da canonização de Lorenzo Giustiniani, Giovanni da Capistrano, Giovanni de San Facondo, Giovanni di Dio e Pasquale Bajlon, feita por Alexandre VIII em 1690. Ao lado se ergue o altar de São Leão Magno, sobre o qual se admira o surpreendente baixo-relevo do Pontífice que vai ao encontro do feroz Átila. Acima estão figurados Pedro e Paulo, ao lado do Papa Átila, apavorado pela aparição dos dois e em ato de se curvar ao Pontífice. Em uma urna sob o altar repousa o corpo do santo Papa e Doutor da Igreja. À frente está o túmulo de Leão XII, morto em 1829, que tinha tanta veneração por este seu glorioso antecessor, que quis ser sepultado ao lado dele. […]

O altar que se segue é dedicado à Vergine della Colonna, assim chamada porque se venera a imagem de Maria pintada sobre uma coluna da antiga basílica constantiniana. Foi colocada ali em 1607. O altar guarda os corpos de Leão II, III e IV. Continuando o giro pela linha meridional, encontramos à direita a sepultura de Alexandre VII, Ghigi, com quatro estátuas: JustiçaPrudênciaCaridade e Verdade. Como este pontífice tinha sempre presente o pensamento da morte, o escultor estendeu uma colcha em relevo, sob a qual a figura da morte mostra uma ampulheta, ou seja, um relógio de areia, que está prestes a terminar sua carga. O Papa está ajoelhado, rezando de mãos postas. O altar à esquerda é dedicado aos apóstolos Pedro e Paulo. Está representada a queda de Simão, o Mago. Em frente está o altar dos Santos Simão e Judas, que aqui repousam. O altar à direita, por sua vez, é dedicado a São Tomé e guarda o corpo de Bonifácio IV, enquanto o da esquerda conserva os restos de Leão IX. Em frente à porta da sacristia, o altar dos Santos Pedro e André apresenta, em precioso mosaico, a morte de Ananias e Safira.

Chega-se assim à capela Clementina, cujo altar, dedicado a São Gregório Magno, tem no alto um belo mosaico do santo no ato de convencer os incrédulos. Sob o altar se venera o seu corpo. Acima da porta, que conduz até o órgão, está o monumento fúnebre de Pio VII. O Pontífice, sentado sobre uma rica cadeira e vestido com as vestes pontifícias, está abençoando. As estátuas colocadas aos lados representam a Sabedoria e a Fortaleza. Antes de chegar à nave lateral está o altar da Transfiguração, cujo mosaico apresenta a transfiguração do Salvador no Monte Tabor.

A nave menor, do lado esquerdo
Entrando na nave menor, em ambos os lados estão duas sepulturas, à direita a de Leão XI, dos Médici. Um baixo-relevo mostra o Pontífice que absolve Henrique IV, rei da França. […]. Mais abaixo há rosas esculpidas com o lema: Sic floruit, para indicar a caducidade da vida e simbolizar a brevidade do pontificado de Leão XI, que foi de apenas 21 dias.
O sarcófago à esquerda é de Inocêncio XI, Odescalchi. O baixo-relevo sobreposto retrata a libertação de Viena dos turcos, ocorrida sob seu pontificado. Avançando pela nave, chega-se à capela do coro, enriquecida com mosaicos e pinturas. Sob o altar repousa o corpo de São João Crisóstomo. Esta capela tem um subterrâneo onde se conservam as cinzas de Clemente XI. É chamada Capela Sistina por causa de Sisto IV, que erigiu outra no mesmo local da antiga basílica. À direita, acessa-se o lugar do coro e à Capela Giulia, assim chamada por causa de Júlio II, que a construiu. Acima desta porta existe uma urna de estuque que abriga as cinzas de Gregório XVI, morto em 1846. Esta urna está reservada para acolher o cadáver do último pontífice até que lhe seja dada uma sepultura.

O sepulcro de Inocêncio VIII, da família Cibo, está em frente. Duas são as figuras daquele Papa: uma sentada com o ferro da lança na mão, em alusão àquela com a qual foi ferido Jesus, enviada a ele como presente por Bajasetto II, imperador dos turcos; a outra deitada, sob a primeira. […]. De frente à portinha que leva à escada da cúpula está o cenotáfio de Tiago III, rei da Inglaterra, da família Stuart, morto em Roma no dia 1º de janeiro de 1766, e de seus dois filhos Carlos III e Henrique IX, cardeal, duque de York. Os três bustos em baixo-relevo são de Antonio Canova.
A última capela é a do Batistério. A pia batismal é de porfírio e era a tampa da urna do imperador Otão II, que foi aqui transportada quando suas cinzas foram colocadas nas grutas vaticanas […].

Roma. Sant’Andrea al Quirinale
Já que o tempo de visita terminava ao meio-dia e meia e visto que estávamos com fome, combinamos com o senhor Carlo, que nos guiava, de adiar para uma outra ocasião a subida à cúpula e a visita ao Palácio Vaticano. Após o almoço e algumas horas de descanso, demos uma olhada no Quirinale e nas coisas mais importantes próximas à nossa moradia. O Quirinale é uma das sete colinas da antiga Roma, assim chamada pelo povo Quirite, que vivia aqui, e por um templo dedicado a Rômulo, venerado com o nome de Quirino. À nossa esquerda, ao prosseguir em direção à praça Monte Cavallo, está a igreja de Santo André[chiesa di Sant’Andrea], onde hoje está o noviciado dos Jesuítas. Ela conserva, em uma capela dedicada a São Estanislau Kostka, o corpo do santo dentro de uma urna de lápis-lazúli, adornada com mármores preciosos. Ao lado desta igreja está o mosteiro das Dominicanas. Acredita-se que essas duas construções tenham surgido sobre as ruínas do templo de Quirino. À direita da estrada se ergue o majestoso Palácio do Quirinale, iniciado por Paulo III há cerca de 300 anos, e concluído por seus sucessores. Sua bela arquitetura é adornada com esculturas, pinturas e mosaicos de grande valor. O Papa reside nele por uma parte do ano. O Palácio tem um espaçoso jardim de cerca de um milha de perímetro. Entre as outras maravilhas que podem ser admiradas está um órgão que toca alimentado pela força da água que corre aqui.

Diante do Quirinale está a praça de Monte Cavallo, assim chamada por causa de dois cavalos colossais em bronze que representam Castor e Pólux. Pio VI fez erguer um obelisco no meio desta praça. Ele é um trabalho executado por ordem de Smarre e Efre, príncipes do Egito, e transportado a Roma pelo imperador Cláudio. Não tem hieróglifos. Ao sul domina o magnífico Palácio Rospigliosi, erguido onde antigamente estavam as termas de Constantino. Os amantes das belas artes podem aqui visitar muitas obras-primas da pintura e da escultura.

Santa Croce in Gerusalemme
O dia 4 de março estava reservado à basílica de Santa Croce in Gerusalemme [basilica di S. Croce in Gerusalemme]. O tempo estava nublado e, após percorrermos um pouco de caminho, fomos surpreendidos pela chuva. Não tendo guarda-chuva, chegamos molhados como dois ratos; mas a consolação sentida na visita nos compensou tanto pela água quanto pelo desconforto sofrido. Esta é uma das sete basílicas que se visitam para ganhar indulgências. Fundada por Constantino, o Grande, onde se erguia o palácio chamado Sassorio, foi por isso chamada de Basílica Sassoriana, e foi erguida em memória da descoberta da Santa Cruz, feita por Santa Helena, mãe do imperador, em Jerusalém. Aquela princesa fez transportar muita terra do Calvário, retirada do local onde foi encontrada a Cruz de Cristo. O edifício recebeu o nome de Santa Cruz pela parte considerável da santa Madeira que ali se conserva, e foi acrescentado em Jerusalém porque esta santa relíquia, junto com muitas outras, foi transportada daquela cidade. A igreja foi consagrada pelo Papa São Silvestre. Sob o altar-mor repousam os corpos de São Cesário e Santo Anastácio, mártires […].

Em frente ao altar está a capela Gregoriana, privilegiada porque se pode lucrar a indulgência plenária aplicável às almas do purgatório, tanto para aqueles que presidem a missa quanto para aqueles que dela participam. Neste altar, com grande consolação, celebrei também eu. Ao lado da igreja ergue-se o convento dos Cistercienses. O Padre Abade é um certo Marchini, piemontês, que nos tratou com muita cortesia. Entre outras coisas, ele nos fez visitar a biblioteca, rica em pergaminhos antigos e outras obras […].

Um dia de chuva
Já que o dia 5 de março foi chuvoso, passamos quase todo o tempo escrevendo. Há algo singular em Roma, que chove e faz sol ao mesmo tempo, de modo que em certas épocas do ano é preciso estar continuamente munido de guarda-chuva para se proteger ou do sol ou da chuva. Às dez horas deste dia faleceu o P. Lolli, reitor do noviciado dos jesuítas, na igreja de Sant’Andrea a Monte Cavallo, um piemontês que residiu por muito tempo em Turim, onde se tornou célebre pela pregação e pela solicitude no apostolado do confessionário. A rainha da Sardenha, Maria Teresa, o havia escolhido como seu confessor […].

Neste dia, soubemos que as doenças em Roma se multiplicaram e que a mortalidade atual é quatro vezes superior à média. Somente nos meses de janeiro e fevereiro morreram cerca de 6.600 pessoas; um número bastante alto, considerando que a população é de cerca de 130 mil habitantes. Quase de noite saí para fazer a barba. Entrei em uma barbearia e fui atendido bastante bem; mas prometi a mim mesmo de não voltar mais lá visto que foram muitos os empurrões e sacudidas que o barbeiro me deu com suas mãos grandes que ele teria deslocado meus dentes e mandíbulas se não tivessem raízes bem firmes.

O Refúgio de São Miguel
De acordo com o convite que nos foi feito pelo Cardeal Tosti, no dia 6 de março fomos com a família De Maistre visitar o Refúgio de São Miguel. Além do que disse na última vez, posso acrescentar o seguinte. O primeiro gesto de cortesia que nos foi oferecido foi um suntuoso café da manhã, do qual, no entanto, não pudemos participar, pois já o havíamos feito antes de partir, e sendo dia de jejum, não podíamos mais comer até o almoço. Assim, nos limitamos a uma pequena xícara de chocolate, que Sua Eminência nos disse ser compatível com o jejum. Também nos foi oferecida uma bebida de excelente sabor de tangerina, uma espécie de vinho feito com frutas secas e misturadas com água e açúcar. Somente Rua, não estando obrigado ao jejum, comeu algo mais sólido.

Depois, começamos a visita àquele espaçoso internato que acolhe mais de oitocentas pessoas. O Cardeal Tosti nos acompanhou por toda parte. Paramos especialmente para ver o trabalho dos jovens. Aqui aprendem os mesmos ofícios que aprendem conosco: a maioria se ocupa com desenho, a pintura e a escultura; e muitos trabalham em uma tipografia interna. O Santo Padre, para ajudar o Refúgio, concedeu-lhe o privilégio da exclusividade de exclusivamente os livros escolares que são usados nos Estados Pontifícios. Acima do edifício, há um terraço com uma vista magnífica: olhando para o oeste, avista-se o acampamento dos franceses que vieram libertar Roma. […]. Às doze e trinta, quando os meninos já estavam almoçando e o Cardeal já demostrando estar cansado, nos despedimos […].

Santa Maria em Cosmedin e a Boca da Verdade
Como de costume, chovia bastante e, como eu e Rua havíamos apenas um guarda-chuva muito pequeno, nos molhamos muito. Atravessamos o Tibre por uma ponte chamada Ponte Rotto porque, havia se arruinado, e foi substituída por uma ponte de ferro muito semelhante àquela que temos sobre o Pó, em Turim. Antigamente, chamava-se ponte Coclite, porque é a mesma em que Horácio Coclite opôs uma histórica resistência ao exército de Porsenna, até que a ponte foi destruída e ele, então, se jogou no Tibre, atravessando a nado até a outra margem, entre as flechadas dos inimigos maravilhados.

Aqui encontramos uma rua chamada Boca da Verdade [Bocca della Verità], porque no final da mesma havia o lugar onde eram levados aqueles que deviam fazer um juramento. Agora há uma igreja chamada S. Maria in Cosmedin, palavra que significa ornamento, porque foi magnificamente adornada pelo papa Adriano I. Em seu interior conserva-se a cátedra que foi usada por Santo Agostinho quando ensinava Retórica. Aguardamos sob o vestíbulo até que parasse a chuva, que já estava inundando todas as ruas. Enquanto aguardávamos, vimos a praça que também se chama Bocca della Verità.

Os vaqueiros
Havia muitos bois atrelados que pastavam, expostos à chuva, ao barro e ao vento. Os vaqueiros se abrigaram sob o mesmo vestíbulo, sentando-se para almoçar com um apetite invejável. Em vez de sopa ou alguma iguaria, tinham um pedaço de bacalhau cru, do qual cada um tirava um pedaço. Algumas broas de milho e centeio eram o seu pão. Água era a bebida. Ao perceber neles um ar de simplicidade e bondade, me aproximei para conversar com eles.
– Estão com muito apetite?
– Muito, respondeu um deles.
– Basta para vocês essa comida para matar a fome e sustentá-los?
– Sim, basta. E graças a Deus podemos tê-la, já que por sermos pobres
não podemos pretender mais do que isso.
– Por que não levam aqueles bois ao estábulo?
– Porque não temos.
– Deixam sempre eles expostos ao vento, à chuva e ao granizo, dia e noite?
– Sim, sempre.
– Fazem a mesma coisa em seus povoados?
– Sim, fazemos o mesmo, porque temos poucos estábulos. Por isso, faça sol, vento, faça neve, seja dia, seja noite estão sempre ao relento.
– E as vacas e os bezerros pequenos, também eles ficam expostos às intempéries?
– Sim, também. Entre nós temos este costume: os animais de estábulo estão sempre no estábulo, e os que começam a ficar fora, estarão sempre fora.
– Moram muito longe daqui?
– Quarenta milhas.
– Nos dias festivos, podem assistir às funções sagradas?
– Oh! Sem dúvida! Temos a nossa Capela, temos o padre que celebra a missa, faz a pregação e a catequese, e todos, mesmo distantes, fazem questão de participar.
– Alguma vez vão também confessar?
– Oh! Sem dúvida. Há cristãos que talvez não cumpram esses santos deveres? Agora tem o Jubileu e nós todos teremos o cuidado de fazê-lo bem.
Dessa conversa se percebe a boa índole desses camponeses, que em sua simplicidade vivem contentes com sua pobreza e alegres com seu estado, contanto que pudessem cumprir os deveres de bom cristão e desempenhar o que cabe ao humilde trabalho deles.

Santa Maria del Popolo
O domingo, 7 de março, estava destinado à visita de S. Maria del Popolo. Algumas piedosas e nobres pessoas desejavam que fôssemos lá celebrar a missa para poderem comungar. Era uma piedosa devoção. Às nove horas o senhor Foccardi, uma pessoa prestativa e cheia de fé, veio nos buscar com sua carruagem, para nos levar ao local indicado. Esta igreja foi construída no local onde foram sepultados Nero e a família Domícia. A tradição diz que ali apareciam continuamente fantasmas que aterrorizavam os cidadãos, de modo que ninguém queria habitar nas proximidades. O papa Pascoal II, no ano de 1099, fez erguer uma igreja lá, e para afastar a infestação diabólica, a dedicou a Maria Santíssima. No ano de 1227, a antiga igreja ameaçava cair e o povo romano contribuiu generosamente com os custos da reconstrução. Por isso, foi chamada Santa Maria do Povo. Uma igreja grandiosa, rica em mármores e pinturas. No altar-mor venera-se uma imagem milagrosa de Nossa Senhora, trazida por ordem de Gregório IX da capela do Salvador, em Latrão. Perto, está o convento dos padres Agostinianos.

Porta del Popolo, antigamente se chamava Porta Flaminia porque estava no início da via Flaminia […]. Fora desta porta, virando à direita, encontra-se a Villa Borghese, um majestoso edifício digno de ser visitado pelos turistas devido aos muitos objetos de arte que ali são conservados. Porta del Popolo delimita uma grande praça chamada Piazza del Popolo, embelezada por copiosas fontes e obeliscos, que, como todos sabem, são monumentos de uma remota antiguidade, erguidos pelos reis do Egito para tornar imortal a memória de suas ações. O soberbo obelisco que se eleva no meio da praça foi construído em Heliopólis por ordem de Ramsés, rei do Egito, que reinou em 522 a.C. O imperador Augusto o fez transportar para Roma; mas, por infortúnio, ele tombou, quebrando-se, e foi coberto por terra. O papa Sisto V, em 1589, fez desenterrá-lo, erguendo-o na praça, após dotar seu cume de uma alta cruz de metal. Suas quatro faces estão cobertas de hieróglifos, ou seja, de símbolos misteriosos que os egípcios usavam para expressar as coisas sagradas e os mistérios de sua teologia.

No fundo da praça ergue-se a igreja de Santa Maria dei Miracoli [chiesa di S. Maria dei Miracoli], construída por Alexandre VII, e chamada assim devido a uma imagem milagrosa de Nossa Senhora cuja pintura, antes, estava sob um arco nas proximidades do Tibre. À esquerda, há outra igreja, S. Maria di Monte Santo, porque foi edificada sobre outra igreja que pertencia aos carmelitas da província de Monte Santo. Foi inaugurada em 1662. Satisfeita, assim, nossa devoção e curiosidade, subimos novamente na carruagem que nos levou à casa da Princesa Potosca, dos Condes e Príncipes Sobieski, antigos soberanos da Polônia. O café da manhã preparado para nós era suntuoso, mas muito requintado, portanto pouco adequado ao nosso apetite. Nos ajustamos da melhor maneira. No entanto, ficamos muito satisfeitos com a conversa verdadeiramente cristã que aquelas senhoras mantiveram durante o tempo que nos detivemos em sua casa.
Uma coisa chamou nossa atenção. Terminada a refeição, a dona da casa mandou trazer um maço de charutos e começou a fumar. Apesar de uma conversa bastante animada, ela continuou com grande avidez a fumar um charuto após o outro, e isso me deixou desconfortável, sendo obrigado a suportar o cheiro de fumaça que impregnava toda a casa. Isso me provocava náuseas, tornando-se insuportável […].

Cidade do Vaticano. A subida à Cúpula
Reservamos o dia 8 de março para visitar a famosa cúpula de São Pedro. O Cônego Lantieri nos havia providenciado o bilhete necessário para satisfazer essa curiosidade. O horário em que é permitida a subida vai das 7h às 11h30 da manhã. O tempo estava ensolarado e, portanto, propício. Depois de celebrar a eucaristia no altar de São Francisco Xavier da Igreja de Jesus [Chiesa del Gesù], onde estão os jesuítas, chegamos ao Vaticano às 9h, acompanhados do senhor Carlo De Maistre. Entregue o bilhete, uma portinha nos foi aberta e começamos a subir por uma escada bastante confortável, como uma subida inclinada. Ao subir, encontramos várias inscrições que lembram o nome e o ano de todos os Papas que abriram e fecharam os anos jubilares. Perto do patamar do terraço estão escritos os mais célebres personagens, reis ou príncipes, que subiram até a bola da cúpula. Lemos com prazer também o nome de vários de nossos soberanos e da família real.

Demos uma olhada no terraço da basílica. Ele se apresenta como uma vasta praça pavimentada onde se pode jogar bola, bocha e coisas semelhantes. Aqui habitam algumas pessoas a quem é confiada a manutenção da parte superior do templo: carpinteiros, ferreiros, trabalhadores do asfalto. Quase no meio do terraço há uma fonte sempre funcionante, onde Rua foi beber.
Da praça abaixo, observamos as estátuas dos doze apóstolos que adornam o frontispício da basílica. De lá pareciam pequenas, mas de perto percebemos que o único dedo polegar do pé tinha a grossura do corpo de uma pessoa. Daí se pode entender a que altura estávamos. Também visitamos o sino maior, que tem um diâmetro de mais de três metros, o que significa três trabucos de circunferência (cerca de 9 metros, n.d.r.).

Uma coisa muito curiosa foi a vista do jardim vaticano, onde o papa costuma passear a pé. Penso que ele tenha a extensão que vai da Porta Susa ao início da Via Po (lugares de Turim, n.d.r.). Ao sul, se viam vastas campinas. Nosso guia nos disse:
– Todo aquele plano estava coberto de soldados franceses quando vieram libertar nossa cidade dos rebeldes. E nos indicava a basilica di S. SebastianoS. Pietro in Montorio, Villa PanfiliVilla Corsini, todos edifícios que sofreram danos gravíssimos por terem sido campos de batalha.
Uma escadinha em caracol ao lado da cúpula nos levou até a primeira balaustrada. Deste patamar parecia que estávamos voando alto e nos afastando da terra. O guia nos abriu uma portinha que levava a uma balaustrada interna que circundava a cúpula. Eu quis medir, e caminhando como um bom viajante, contei 230 passos antes de completar a volta. Uma curiosidade: em qualquer ponto do parapeito em que você esteja, falando até em voz baixa, com o rosto voltado para a parede, o mínimo som se comunica nitidamente de uma parede à outra. Também notamos que os mosaicos da igreja, que de baixo pareciam muito pequenos, de lá tomavam uma forma gigantesca.
– Coragem, nos exortou o guia, se quisermos ver outras coisas. Assim, pegamos outra escada em caracol e chegamos à segunda balaustrada. Aqui parecia que tínhamos sido elevados em direção ao Paraíso, e quando chegamos ao balaústre interno e vimos o chão da basílica, percebemos a extraordinária altura que havíamos alcançado. As pessoas que trabalhavam ou caminhavam lá embaixo pareciam crianças. O altar papal, que é coberto por um baldaquino de bronze que em altura supera as casas mais altas de Turim, de lá parecia uma simples cadeira de bebê.

O último andar sobre o qual subimos é aquele que estava sobre a ponta da cúpula, de onde se desfruta, talvez, a vista mais majestosa do mundo. O olhar se perde em tudo ao redor, em um horizonte formado pelos limites da visão humana. Dizem que olhando para o leste pode-se ver o mar Adriático, a oeste o Mediterrâneo. Nós, porém, só conseguimos avistar a neblina que o tempo chuvoso dos dias anteriores havia espalhado um pouco por toda parte.

Havia ainda a bola, um globo que da terra parece uma das bolas que usamos para passar um tempo; de lá parecia enorme. Os mais corajosos, passando por uma escadinha perpendicular e caminhando como dentro de um saco, subiram como gatos a uma altura de dois trabucos, ou seja, seis metros. Alguns não tiveram coragem suficiente. Nós, que éramos um pouco mais temerários, conseguimos. Da bola tudo parece maravilhoso. Disseram-me que poderia conter dezesseis pessoas; para mim, parecia que poderiam caber confortavelmente trinta. Alguns buracos, quase pequenas janelas, permitem observar a cidade e as campinas. Mas a grande altura causa uma sensação estranha e faz com que a vista não seja totalmente agradável. Pensávamos que lá em cima fizesse frio. Tudo ao contrário: o sol batendo no bronze da bola a aquecia a tal ponto que parecia que estávamos em pleno verão. Acredito que essa seja uma das razões pelas quais, após o almoço, não é permitido subir até lá: pelo calor insuportável. Aqui, depois de falar sobre várias coisas sobre os jovens do oratório, satisfeitos com nossa empreitada, quase como se tivéssemos trazido uma grande vitória, começamos a descida com passos lentos e graves, para não quebrarmos o pescoço, e sem nenhuma parada voltamos ao térreo.

Para descansar um pouco, fomos ouvir o sermão que havia começado exatamente naquele momento na basílica. O pregador nos agradou. Boa língua, belo gesto, mas o tema não nos interessou muito porque tratava da observância das leis civis. O que, no entanto, não serviu para nutrir o espírito serviu muito bem para dar descanso ao corpo. Restando-nos ainda um pouco de tempo, o empregamos para visitar a sacristia, que é uma verdadeira magnificência digna de São Pedro.
Sendo já onze e meia, estando ainda em jejum e de ter caminhado tanto, estávamos com grande apetite; por isso, fomos fazer um lanche. Rua, não satisfeito, achou melhor ir almoçar; assim eu fiquei sozinho com o senhor Carlo De Maistre, companheiro inseparável daquele dia. Restaurados um pouco, fomos visitar Monsenhor Borromeo, mordomo de Sua Santidade, que nos recebeu muito bem e, depois de falar sobre o Piemonte e Milão, sua terra natal, anotou nossos nomes para nos inserir no catálogo das pessoas que desejam receber a palma do Santo Padre na função do Domingo de Ramos.

Nos famosos museus
Ao lado da varanda deste prelado, em torno do pátio do Palácio Pontifício, estão os Museus Vaticanos [Musei Vaticani]. Entramos e vimos coisas realmente excepcionais. Descrevo apenas algumas. Há uma sala de comprimento extraordinário, enriquecida com mármores e pinturas preciosíssimas. No meio da segunda arcada se destaca uma pia batismal de cerca de um metro e meio, feita de malaquita, um dos mármores mais preciosos do mundo. Foi um presente feito pelo imperador da Rússia ao Sumo Pontífice. Há vários outros objetos semelhantes. No fundo daquela grande sala, à esquerda, se abre uma espécie de longo corredor que abriga o museu cristão. […]. No mesmo se entra na Biblioteca Vaticana, onde se conservam os manuscritos mais célebres da antiguidade […].

Pelas ruas de Roma
Do Vaticano, indo em direção ao centro de Roma, chegamos à praça Scossacavalli, onde trabalham os escritores do célebre periódico La Civiltà Cattolica. Paramos para fazer-lhes uma visita e sentimos um verdadeiro prazer ao observar que os principais apoiadores desta publicação são piemonteses. Sentia já um vivo desejo de voltar para casa, superando toda hesitação, e estávamos quase chegando ao Quirinale, quando o senhor Foccardi nos viu passar em frente à sua loja e nos chamou para dentro. A força de convites e cortesia, ele nos reteve um pouco, e quando pedimos para partir, ele disse:
– Aqui está a carruagem, eu os acompanho até em casa. Mesmo subindo de contragosto na carruagem, no entanto, para agradá-lo, acedi. Mas o Foccardi, desejando se prolongar mais conosco, nos fez dar uma longa volta, tanto que chegamos em casa já tarde da noite.

Aqui me foi entregue uma carta. Abri e li. Notifica-se ao senhor Abade Bosco que Sua Santidade se dignou a admiti-lo à audiência amanhã, dia nove de março, das 11h45 a uma hora. Esta notícia, esperada e muito desejada, me causou uma revolução interior e durante toda a noite não consegui falar de outra coisa senão do Papa e da audiência.

A audiência papal. Santa Maria sopra Minerva
Chegou o dia 9 de março, o grande dia da audiência papal. Antes, porém, eu precisava falar com o Cardeal Gaude; por isso, fui celebrar a missa na igreja de S. Maria sopra Minerva, onde o Cardeal tinha sua residência. Antigamente era um templo que Pompeu, o Grande, havia mandado edificar à deusa Minerva; foi chamada de Santa Maria sopra Minerva porque foi construída precisamente sobre as ruínas deste templo. No ano 750, o Papa Zacarias a doou a um convento de freiras gregas. No ano 1370 passou aos padres pregadores (dominicanos, n.d.r.) que ainda a oficiam. Em frente a esta igreja está uma praça onde admiramos um obelisco egípcio com hieróglifos, cuja base repousa sobre o dorso de um elefante de mármore. Entramos e pudemos admirar um dos edifícios sagrados mais belos de Roma. Sob o altar-mor repousa o corpo de Santa Catarina de Sena. Celebrada a missa e indo com toda pressa ao encontro do Cardeal Gaude, conversei com ele, então partimos em direção ao Quirinale.

O pequeno mentiroso
Pelo caminho encontramos um garoto que, com simpatia, nos pediu esmola, e para nos fazer conhecer sua condição nos disse que seu pai havia morrido, sua mãe tinha cinco filhas e que ele sabia falar italiano, francês e latim. Surpreso, dirigi-lhe um discurso em francês, ao qual ele respondeu com um simples oui, sem entender o que eu dizia, nem articular outras expressões; então o convidei a falar latim, e ele, sem prestar atenção às minhas palavras, começou a recitar de memória as seguintes palavras: ego stabam bene, pater meus mortuus est l’annus passatus et ego sum rimastus poverus. Mater mea etc. Aqui não conseguimos mais conter as risadas. Porém, depois o avisamos para não contar mentiras e lhe presenteamos com um tostão.

A antecâmara
Enquanto isso, a hora da audiência se aproximava. […]. Chegando ao Vaticano, subimos as escadas mecanicamente. Por toda parte havia guardas nobres, vestidos de modo a parecerem príncipes. No andar nobre, abriram-nos a porta que introduzia nas salas pontifícias. Guardas e camareiros, vestidos com grande luxo, nos saudavam com profunda reverência. Entregue o bilhete para a audiência, fomos conduzidos de sala em sala até a antecâmara papal. Como havia várias outras pessoas aguardando, esperamos cerca de uma hora e meia antes de sermos recebidos.

Esse tempo o empregamos para observar as pessoas e o lugar onde estávamos. Os domésticos do Papa estavam vestidos quase como os bispos de nossos países. Um Monsenhor, a quem se dá o título de prelado doméstico, introduzia por turno as pessoas para a audiência à medida que terminava a anterior. Admiramos grandes salas bem tapeçadas, majestosas, mas sem luxo. Um simples tapete de pano verde cobria o chão. As tapeçarias eram de seda vermelha, mas sem ornamentos. As cadeiras eram de madeira dura. Uma cadeira colocada sobre um estrado um tanto elegante indicava que aquela era a sala pontifícia. Vimos tudo isso com prazer, lembrando as mordazes e injustas acusações que alguns fazem contra a pompa e o luxo da corte pontifícia. Enquanto estávamos imersos em vários pensamentos, soou o sino, e o prelado nos fez sinal para avançar e nos apresentar a Pio IX. Nesse momento, eu realmente fiquei confuso e tive que cometer uma espécie de autoviolência para não perder o equilíbrio.

Pio IX
Rua me acompanhou trazendo consigo uma cópia das Leituras Católicas. Entramos, fizemos a genuflexão no início, depois no meio da sala, finalmente, a terceira, aos pés do Papa. Cessou toda apreensão quando avistamos no Pontífice a aparência de um homem afável, venerando, e ao mesmo tempo o mais belo que um pintor poderia retratar. Não pudemos beijar seu pé, porque ele estava sentado à mesa; beijamos, porém, sua mão, e Rua, lembrando da promessa feita aos clérigos, a beijou uma vez por si e uma vez por seus companheiros. Então o Santo Padre fez sinal para nos levantarmos e nos colocarmos à sua frente. Eu, segundo a etiqueta, gostaria de falar permanecendo de joelhos.
– Não, ele disse, levantem-se. Convém notar aqui que ao nos apresentarmos ao Papa, nosso nome foi lido errado. De fato, em vez de escrever Bosco, foi escrito Bosser, por isso o Papa começou a me interrogar:
– O senhor é piemontês?
– Sim, Santidade, sou piemontês, e neste momento sinto a maior consolação da minha vida, encontrando-me aos pés do Vigário de Cristo.
– E de que o senhor se ocupa?
– Santidade, eu me ocupo da instrução da juventude e das Leituras Católicas.
– A instrução da juventude sempre foi coisa útil em todos os tempos. Mas hoje em dia é mais do nunca necessária. Há um outro em Turim que se ocupa dos jovens. Então percebi que o Papa tinha em mãos um nome errado, mas, sem saber como, ele também se deu conta de que eu não era Bosser, mas Bosco; assim, assumiu uma aparência muito mais festiva e perguntou muitas coisas sobre os jovens, os clérigos, os oratórios […]. Então, com um rosto sorridente, ele me disse:
– Lembro-me do presente que me enviou em Gaeta e dos ternos sentimentos daqueles meninos que o acompanharam. Aproveitei para expressar a ele o apego de nossos jovens à sua pessoa e pedi-lhe que aceitasse uma cópia das Leituras Católicas: – Santidade, disse-lhe, ofereço-lhe um exemplar daqueles livrinhos até agora
impressos e ofereço-o em nome da direção. A encadernação é trabalho dos
jovens de nossa casa.
– Quantos são esses jovens?
– Santidade, os jovens da casa são perto de duzentos. Os encadernadores são quinze.
– Bem, ele respondeu, eu quero mandar uma medalha a cada um. Então, indo a outro aposento, depois de breves instantes voltou, trazendo pequenas medalhas da Conceição:
– Estas serão para os jovens encadernadores, disse enquanto as entregava a mim. Voltando-se então para Rua, deu-lhe uma maior dizendo:
– Esta é para seu companheiro. Então, voltando-se novamente para mim, me entregou uma pequena caixa que estava dentro de outra maior:
– E esta é para o senhor. Estando de joelhos para receber os presentes, o Santo Padre pediu que nos levantássemos, e pensando que queríamos nos retirar, estava para se despedir, quando eu comecei a falar com ele assim:
– Santidade, tenho algo em particular para comunicar-lhe.
– Está bem, respondeu […]. O Santo Padre é muito rápido em entender as perguntas e prontíssimo em dar as respostas, por isso com ele se trata em cinco minutos o que com outros exigiria mais de uma hora. No entanto, a bondade do Papa e meu vivo desejo de me deter com ele prolongaram a audiência por mais de meia hora, tempo bastante considerável tanto em relação à sua pessoa quanto em relação à hora do almoço, que por nossa causa estava atrasado […].

Gianicolo
Às 13h30 do dia 10 de março, o P. Giacinto, dos Carmelitas Descalços, veio nos buscar com uma carruagem para nos levar à basilica di S. Pancrazio e de S. Pietro in Montorio. São duas igrejas situadas no Gianicolo, chamado assim por causa de Jano que dizem ter vivido ali. Do outro lado do Tibre, no topo desta colina está situada a basílica de São Pancrácio, construída pelo Papa Félix II em 485, cerca de 100 anos após o martírio de Pancrácio. O general Narsete, vencidos os godos, fez uma solene procissão junto com o Papa Pelágio de São Pancrácio até São Pedro. São Gregório Magno, que tinha grande veneração por esta igreja, celebrou nela várias vezes a missa e fez algumas homilias, e finalmente a doou aos monges beneditinos. Em 1673, foi confiada aos Carmelitas Descalços com o convento anexo e um seminário para as missões das Índias […].

Sob o altar-mor, há outro altar subterrâneo onde antigamente era conservado o corpo do Santo, protegido por uma grade de ferro. Havia o costume de levar aqueles que eram suspeitos de perjúrio diante dessa grade, porque se fossem culpados, eram tomados por um visível tremor ou outro sinal.

As Catacumbas
– Venham comigo, nos disse o P. Giacinto, iremos às catacumbas. Ele havia preparado uma luminária para cada um. Nós começamos a segui-lo. No meio da igreja, ele nos indicou uma abertura no chão. Levantando a tampa, apareceu uma cavidade escura e profunda: começavam as catacumbas. Na entrada estava escrito em latim: “Neste lugar foi decapitado o mártir de Cristo Pancrácio”. Aqui estamos nas catacumbas. Imaginem longos corredores ora mais estreitos e mais baixos, ora mais altos e espaçosos, ora cortados por outros corredores, ora em descida, ora em subida, e vocês terão a primeira ideia desses subterrâneos. À direita e à esquerda há pequenas sepulturas escavadas paralelamente no tufo. Aqui antigamente eram sepultados os cristãos, especialmente os mártires. Aqueles que deram a vida pela fé eram designados com emblemas particulares. A palma era sinal da vitória obtida contra os tiranos; a galheta indicava que havia derramado sangue pela fé; o “χ” significava que havia morrido na paz do Senhor ou que havia sofrido por Cristo. Em outros apareciam os instrumentos com os quais foram martirizados. Às vezes, esses emblemas estavam fechados na pequena sepultura do santo. Quando as perseguições não eram muito severas, escrevia-se nome e sobrenome do mártir e algumas linhas que destacavam alguma circunstância importante de sua vida. […].
– Este é o lugar, nos disse o guia, onde estava sepultado São Pancrácio, e ao lado dele São Dionísio, seu tio, e aqui perto outro parente. Depois visitamos algumas sepulturas reunidas em uma saleta cujas paredes apresentavam inscrições antigas que não conseguimos ler. No meio da abóbada estava pintado um jovem que nos pareceu representar São Pancrácio […].

Desta vez o guia nos indicou uma cripta. Cripta, palavra grega, significa profundidade. É um espaço maior que o normal onde os cristãos costumavam se reunir, em tempo de perseguição, para ouvir a Palavra, assistir à missa e às funções sagradas. De um lado ainda há um altar antigo onde é possível celebrar. Na maioria das vezes, a sepultura de algum mártir servia como altar. Depois de um pouco de caminhada, nos mostraram a capela onde São Félix, Papa, costumava descansar e celebrar a Eucaristia. Seu sepulcro está a pouca distância. Por toda parte viam-se esqueletos humanos reduzidos a pedaços pelo tempo. Nossa guia nos assegurou que em breve chegaríamos a um lugar onde se conservavam lápides com as inscrições intactas.

Mas estávamos muito cansados, também porque o ar subterrâneo e as dificuldades do caminho – cada um tinha que cuidar para não bater a cabeça, não esbarrar com os ombros e não escorregar com os pés – nos haviam fatigado bastante. O guia nos advertia que os subterrâneos são muitos e alguns chegam a ter quinze/vinte milhas de comprimento. Se tivéssemos ido sozinhos, poderíamos ter cantado o requiescant in pace, porque teria sido muito difícil encontrar o caminho de volta para fora. Nossa guia, porém, era muito prática e em breve nos reconduziu ao ponto de onde partimos […].

San Pietro in Montorio
Subimos novamente na carruagem com o P. Giacinto e descemos o Gianicolo para ir até San Pedro em Montorio. A palavra é uma corrupção de “monte de ouro”, porque aqui o solo e a areia assumem uma cor amarela, semelhante a do ouro. Também foi chamado Castro Aureo, fortaleza de ouro, pelos restos da fortaleza de Anco Marzio que ainda existem no cume. É uma das igrejas fundadas por Constantino, o Grande, rica em estátuas, pinturas e mármores. Entre a igreja e o convento anexo se destaca um edifício chamado Tempietto di Bramante, de forma redonda. Trata-se de uma das mais notáveis obras de Bramante. Ele foi edificado no local onde foi martirizado São Pedro. Nos fundos, uma escadinha leva a uma capela subterrânea circular, no meio da qual há um buraco onde arde continuamente uma luz. É o lugar onde foi encaixada a ponta da cruz na qual São Pedro foi pregado de cabeça para baixo. A igreja está situada onde termina o Gianicolo e começa o Vaticano.

Perto de San Pietro em Montorio está localizada a magnífica Fontana Paolina, de Paulo V, que a fez construir em 1612. A água jorra de três colunas que parecem um rio. Vem de Bramário, um lugar a 35 milhas de Roma. Essas águas, ao descer, servem para mover moinhos e outras máquinas e se ramificam com grande vantagem em vários pontos da cidade […].

Uma adversidade
No dia 11 de março estivemos ocupados escrevendo e despachar encomendar particulares. Merece uma lembrança ode quando me perdi em Roma. Fui fazer uma visita ao Monsenhor Pacca, prelado doméstico de Sua Santidade. No retorno, estava acompanhado pelo P. Bresciani, tendo enviado Rua para procurar o P. Botandi em Ponte Sisto. O bom Bresciani me conduziu até a academia da Sapienza e, então, me indicou onde passar para chegar ao Quirinale:
– Atravesse esta rua, depois mantenha-se sempre à direita. Eu, em vez de pegar à direita, peguei à esquerda, de modo que após uma hora de caminhada me encontrei na Piazza del Popolo, a quase uma milha de casa. Pobre de mim! Ao menos se eu tivesse Rua comigo, poderíamos nos consolar mutuamente, mas eu estava sozinho. O tempo estava nublado, soprava um vento forte e começava a chover. O que fazer? Dormir no meio daquela praça me desagradava, por isso, com toda a paciência, subi ao Pincio, chamado assim por causa do palácio de um senhor chamado Pincio […]. Este monte não é muito habitado e não é uma das sete colinas de Roma […].

Sant’Andrea della Vale
Na sexta-feira, dia 12, fui celebrar a missa em S. Andrea della Valle, para distingui-lo de outras igrejas dedicadas ao mesmo Apóstolo. Valle foi acrescentado tanto porque a basílica se encontra no ponto mais baixo de Roma quanto também devido a um palácio pertencente à família Valle. Antigamente, a igreja era dedicada a São Sebastião, que aqui sofreu o martírio. Perto dela foi construída outra dedicada a São Luís, rei da França. Mas no ano de 1591, um rico senhor, chamado Gesualdo, fez uma reforma, modificando completamente o projeto. É uma das primeiras igrejas de Roma. Sua cúpula mede 64 palmos de diâmetro, e por isso, depois de São Pedro no Vaticano, é a cúpula mais ampla de todas as outras da cidade. A primeira capela, ao entrar à esquerda, tem um portão de ferro que indica o ponto da cloaca onde se acredita que o corpo do mártir São Sebastião foi jogado. Quase em frente a esta igreja está o palácio Stoppani, que serviu de moradia ao imperador Carlos V quando veio a Roma, como aparece em uma inscrição na parede ao pé da escada.

San Gregorio Magno
Às 13h30, com o senhor Francesco De Maistre, nosso guia, partimos para visitar a igreja de São Gregório Magno [chiesa di S. Gregorio Magno]. Ela está edificada sobre uma parte do monte Celio, chamado antigamente clivus Scauri, ou seja, descida de Scauro, e era a casa habitada por São Gregório e seus pais. Foi ele quem a converteu em mosteiro, onde depois residiu até o ano 590, inicialmente como simples monge, depois como Abade. Quando foi eleito papa (em 590), dedicou aquele edifício ao apóstolo São André, transformando uma parte dos cômodos em igreja. Após sua morte, a igreja foi dedicada a ele mesmo.

É certamente uma das mais belas igrejas de Roma. A primeira capela ao entrar, à esquerda, é dedicada a Santa Silvia, mãe de São Gregório. A última, à direita, é a do Sacramento, sobre cujo altar celebrava o próprio São Gregório. […]. Este altar, venerável pelo título e patrocínio do santo Papa, foi tornado célebre em todo o mundo pelos privilégios concedidos por muitos Papas. Aconteceu que um monge do mosteiro, tendo por ordem do santo oferecido a missa por trinta dias consecutivos em sufrágio da alma de um irmão falecido, outro monge a viu liberada das penas do purgatório.

Ao lado desta capela existe outra menor, onde São Gregório se retirava para descansar. Mostra-se ainda com precisão o lugar onde estava sua cama. Ali ao lado está a cadeira de mármore sobre a qual ele se sentava tanto quando escrevia quanto quando anunciava a palavra de Deus ao povo.
Passado o altar-mor, encontra-se a capela que guarda uma imagem de Nossa Senhora muito antiga e prodigiosa. Acredita-se que seja aquela que o Santo mantinha em casa e sempre que passava diante dela a saudava dizendo “Ave, Maria”. Um dia, porém, o bom Pontífice, por causa da pressa que tinha devido a alguns assuntos urgentes, ao sair não dirigiu à Virgem a saudação habitual. E Ela lhe fez esta doce reprimenda: “Ave, Gregori”, com as quais palavras o convidava a não esquecer aquela saudação que a ela era tão grata.

Em outra capela se ergue a estátua de São Gregório, um trabalho projetado e dirigido por Michelangelo Buonarroti. O Santo está sentado no trono com uma pomba perto do ouvido, que lembra o que afirma Pedro Diácono, familiar do Santo, ou seja, que sempre que Gregório pregava ou escrevia, uma pomba sempre lhe falava ao ouvido. No centro da capela está colocada uma grande mesa de mármore sobre a qual o Pontífice todos os dias oferecia comida a doze pobres, servindo-os com a própria mão. Um dia, sentou-se à mesa com os outros um anjo sob a forma de um jovem, que então, de repente, desapareceu. Desde então, o Santo aumentou para treze o número dos pobres que ele alimentava. Assim teve origem o costume de colocar treze peregrinos à mesa que, na quinta-feira santa, o Papa serve todos os anos com a própria mão. Acima da mesa está gravado o dístico seguinte: “Aqui Gregório alimentava doze pobres; um anjo sentou-se à mesa e completou o número de treze”.

Santi Giovanni e Paolo
Saindo desta igreja e virando à direita, encontra-se a dos Santos João e Paulo [Santi Giovanni e Paolo]. O imperador Joviano permitiu ao monge São Pammáquio construí-la, no ano 400, em honra destes dois irmãos mártires. Ela foi edificada sobre a sua habitação, exatamente onde sofreram o martírio. Foi depois restaurada por São Símaco, Papa, por volta de 444 […]. Ao entrar, apresenta-se à vista um majestoso edifício. No meio, uma grade de ferro delimita o lugar onde os santos foram mortos. Seus corpos, fechados em uma urna preciosa, repousam sob o altar-mor. Na capela ao lado, sob o altar, é guardado o corpo do Beato Paulo da Cruz, fundador dos passionistas, aos quais a igreja é confiada. Este servo de Deus é um piemontês, nascido em Castellazzo, na diocese de Alexandria. Morreu em 1775, aos 82 anos. Os muitos milagres que em Roma e em outros lugares ocorrem por sua intercessão, fizeram crescer a congregação dos passionistas, assim chamados por causa do quarto voto que fazem, ou seja, promover a veneração pela paixão do Senhor.

Um desses religiosos, um genovês, Frei André, depois de nos acompanhar para ver as coisas mais importantes da igreja, nos levou ao convento, um belo edifício que abriga cerca de oitenta padres, em sua maioria piemonteses.
– Este, nos disse Frei André, é o quarto em que morreu nosso santo Fundador. Entramos e admiramos em devoto recolhimento o lugar de onde partiu sua alma para voar ao céu.
– Ali está a cadeira, as vestes, os livros e outros objetos que serviram ao Beato. Cada coisa está selada e são distribuídas como relíquias aos fiéis cristãos. Aquele quarto hoje é uma capela onde se celebra a missa.

Arcos de Constantino e Tito
Cumprimentando ao cortês frei André, nos dirigimos para S. Lorenzo in Lucina. Depois de um pouco de caminho, nos encontramos sob o Arco di Costantino. Ele se conservou quase intacto. Uma inscrição do senado e do povo romano indica que foi dedicado ao imperador Constantino em ocasião da vitória sobre o tirano Massenzio. Este imperador, tornando-se cristão, fez colocar sobre o arco uma estátua com uma cruz na mão em memória da cruz que lhe apareceu diante do exército, para lembrar a todo o mundo que ele professava a religião de Jesus crucificado.
Após mais um trecho de estrada, eis outro arco, o Arco di Tito. Existem três arcos em Roma e o de Tito é o mais antigo e elegante. É enriquecido por baixos-relevos que comemoram as várias vitórias obtidas por aquele valente guerreiro: em um deles está esculpido o candelabro do templo de Jerusalém em memória da queda daquela cidade e de seu templo. Sob este arco passava a célebre Via Sacra, uma das mais antigas de Roma, assim chamada porque através dela se levavam todos os meses as coisas sagradas para a Rocha, e era percorrida pelos áugures para ir buscar suas respostas.

Chegando a San Lorenzo in Lucina, não conseguimos entrar devido aos trabalhos que lá se realizavam […]. Esta igreja é uma das mais vastas paróquias de Roma, e foi erguida por Sisto III com o consentimento do imperador Valentiniano em honra de São Lourenço, mártir. Para distingui-la das outras igrejas erguidas a este levita, foi denominada in Lucina, ou pela santa mártir de tal nome ou talvez porque este fosse o nome do lugar. Anexo a esta igreja, em direção à rua principal, está o Palácio Ottobuoni [palazzo Ottobuoni], construído por volta do ano 1300 sobre as ruínas de um grande edifício antigo chamado Palácio de Domiciano. Estando já cansados e aproximando-se a hora do almoço, voltamos para casa […].

Santa Maria degli Angeli
[…] No dia 13 de março, a estação quaresmal era em S. Maria degli Angeli, onde fomos tanto para lucrar a indulgência plenária quanto também para rezar a Deus em favor de nossa casa. Esta igreja é distinta de outra do mesmo nome, com o acréscimo das Terme di Diocleziano, porque é construída no local onde antigamente se erguiam as famosas termas, ou seja, as casas de banho do imperador Diocleciano. O sumo pontífice Pio IV encarregou Michelangelo Buonarroti, que com seu vasto engenho soube transformar em igreja uma parte daqueles edifícios magníficos. Em um salão das termas já existia uma capelinha dedicada a São Cirilo, mártir. Esta ficou confinada dentro da nova igreja, que o Pontífice dedicou a Santa Maria dos Anjos, para agradar ao duque e rei da Sicília, devotíssimo dos Anjos, que cooperou muito na sua edificação.

No dia da estação quaresmal, a igreja é ornada com especial elegância, e são expostas à veneração pública as relíquias mais insignes. Em uma capela ao lado do altar-mor estava colocado o relicário com muitas relíquias, entre as quais vimos os corpos de São Próspero, São Fortunato e São Cirilo, além da cabeça de São Justino e de São Máximo, mártires, e de muitos outros. Satisfeita assim a nossa devoção, chegamos em casa por volta das seis da tarde, bastante cansados e com bom apetite.

Santa Maria della Quercia
No domingo, 14 de março, celebramos em casa, depois fomos visitar um oratório, segundo as indicações recebidas do Marquês Patrizi. A igreja onde se reúnem os jovens chama-se S. Maria della Quercia. Eis a origem, que remonta aos tempos de Júlio II. Uma imagem de Maria foi pintada em uma telha por um certo Battista Calvaro, que a pendurou em um carvalho dentro de sua vinha, em Viterbo. Esta imagem permaneceu escondida por sessenta anos, até que em 1467 começou a se manifestar com tantas graças e milagres que os fiéis que a visitavam, com suas ofertas, ergueram uma igreja e um mosteiro. O Papa Júlio II desejou que também em Roma houvesse um templo dedicado a Nossa Senhora do Carvalho, que é aquele de que falamos.
Entrando na igreja e chegando na espaçosa sacristia, nos alegrou a presença
de uns quarenta jovens. Pela vivacidade do comportamento pareciam muito com nossos moleques do nosso oratório. As suas funções sagradas se realizam todas pela manhã. Missa, confissão, catecismo e uma breve instrução é o que se faz para eles […].

Após o meio-dia, os jovens vão a S. Giovanni dei Fiorentini, outro oratório onde há apenas recreação, sem funções de igreja. Fomos lá e vimos cerca de cem jovens que se divertiam a valer. Seus jogos eram a tombola e a campana, conhecidas também por nós. Praticam também o jogo do buraco, que consiste em cinco buracos bastante grandes nos quais se colocam duas castanhas ou outra coisa. De uma distância de seis passos, faz-se rolar uma bola. Quem consegue fazê-la entrar em um dos buracos ganha o que está dentro. Lamentamos muito que eles não tivessem outra coisa além da recreação. Se houvesse algum padre entre eles, este poderia fazer o bem para suas almas, pois há grande necessidade. Tanto mais nos entristeceu, pois encontramos neles boas disposições. Vários demonstraram prazer em dialogar conosco, beijando várias vezes a mão tanto a mim quanto a Rua, que, contra sua vontade, era constrangido a consentir […].

Voltando para casa, recebemos a visita de Monsenhor Merode, mestre de câmara de Sua Santidade. Após algumas conveniências, ele me anunciou que o Santo Padre me convidava a pregar os exercícios espirituais às detidas nas prisões perto de Santa Maria degli Angeli alle terme di Diocleziano. Cada desejo do Papa é para mim um comando e, portanto, aceitei com muito prazer […].

Na prisão feminina
Às duas da tarde, fui à superiora da prisão para combinar o dia e a hora em que começaria a pregação. Ela me disse:
– Se está bem para o senhor, pode pregar daqui há pouco, já que as mulheres estão na Igreja e não temos pregador. Assim, comecei naquele momento os exercícios e quase a semana inteira foi empregada inteiramente nesse ministério. A casa correcional chama-se Alle Terme di Diocleziano porque está situada no mesmo local onde estavam as termas daquele famoso imperador. Havia 260 detidas culpadas de graves delitos e condenadas à prisão […]. Os exercícios foram realizados com satisfação. A pregação simples e popular que usamos entre nós foi frutífera nesta prisão. No sábado, depois da última pregação, a madre
superiora, com prazer, falou-me que nenhuma das prisioneiras tinha deixado de aproximar-se dos Sacramentos.

Dois episódios
Um episódio agradável aconteceu ao Santo Padre nesta semana. O Conde Spada foi visitá-lo e teve esta conversa:
– Santidade, eu gostaria de pedir uma lembrança desta visita.
– Peça o que quiser e tentarei agradá-lo.
– Eu gostaria de algo extraordinário.
– Bem, peça.
– Santidade, eu gostaria de ter como lembrança a vossa tabaqueira.
– Mas está cheio de um tabaco de qualidade ínfima.
– Não importa; eu a guardarei com muito carinho.
– Leve-a, faço-lhe este presente com prazer. O Conde Spada partiu mais contente com aquele tabaqueira do que se fosse um grande tesouro. Ela é simples, de chifre de búfalo, unido com dois anéis de latão e não vale quatro tostões, mas é preciosíssimo pela procedência. O bom conde o mostra a seus amigos como um objeto digno de veneração […].

Outra anedota me foi contado sobre este venerando Pontífice. No ano passado, enquanto o Santo Padre viajava por seus estados, estava nas proximidades de Viterbo. Uma garotinha com um feixe de lenha, vendo que a carruagem pontifícia havia parado, pensou que aqueles senhores quisessem comprar seu feixe. Correu em direção a eles:
– Senhores, disse ao Santo Padre, compre-o, a madeira está bem seca.
– Não precisamos, respondeu o Papa.
– Compre-o, vendo-o pelo preço de três tostões.
– Pegue o valor e fique com seu feixe. O Santo Padre deu-lhe três escudos, então se preparou para voltar à carruagem. Mas a garotinha queria que o Santo Padre pegasse seu feixe.
– Leve-o, o senhor ficará contente; na sua carruagem há espaço de sobra. Enquanto o Papa e sua corte riam de tal negócio, a mãe da menina, que trabalhava em um campo próximo, correu gritando:
– Santo Padre, Santo Padre, perdoe-a; esta pobre menina é minha filha. Ela não o conhece. Tenha piedade de nós, que estamos em grande miséria. O Papa acrescentou mais seis escudos e continuou o caminho […].

San Paulo fuori le Mura
No dia 22 de março, Domingo, Dom Bosco foi ao Cardeal vigário, o eminentíssimo Constantino Patrizi […]. Saindo do Vicariato, peregrinou até S. Paolo fuori le Mura para venerar o sepulcro do grande Apóstolo dos Gentios e admirar as maravilhas daquele templo imenso. Depois de um milha de estrada, chegou ao célebre lugar denominado Ad Aquas Salvias, onde São Paulo derramou seu sangue por Jesus Cristo. Exatamente neste ponto, onde há três fontes milagrosas de água que brotaram dos torrões onde a cabeça do santo Apóstolo fez três saltos, foi construída uma igreja. Dom Bosco também rezou na igreja vizinha de Sancta Maria Scala Coeli, de forma octogonal, edificada sobre o cemitério de São Zenão, um tribuno que foi martirizado sob Diocleciano, junto com 10.203 de seus companheiros soldados […].

Colosseo
No dia 23 de março, seu olhar atônito contemplou as gigantescas ruínas do anfiteatro Flaviano ou Colosseo, de forma oval com 527 metros de circunferência externa, e cinquenta metros de altura por um longo trecho. Nos tempos de seu esplendor era coberto de mármores, ornado por colunatas, centenas de estátuas, obeliscos, quadrigas de bronze; e em seu interior sustentava tudo ao redor imensas arquibancadas, que podiam abrigar 200 mil pessoas para assistir aos combates de feras e de gladiadores, e ao massacre de milhares e milhares de mártires. Dom Bosco entrou na arena dos espetáculos que mede 241 metros de circunferência […]

San Clemente
No dia 24 de março Dom Bosco foi à Basílica de São Clemente [basilica di S. Clemente] para venerar as relíquias do quarto Papa depois de São Pedro, as de Santo Inácio, mártir, Bispo de Antioquia; foi também para admirar a arquitetura da antiquíssima igreja com três naves. Na do meio, diante do Altar da Confissão, há um recinto de mármore branco que é o coro para o clero menor, com dois púlpitos: um para o canto do Evangelho, junto ao qual se eleva uma pequena coluna destinada ao círio pascal e outro para o subdiácono que deve ler a epístola; ao lado deste último uma estante para os clérigos cantores e leitores das profecias e dos outros livros das sagradas escrituras. Ao redor da abside há um assento destinado aos sacerdotes e, no fundo, no centro, surge, sobre três degraus, a cátedra do bispo […].

Deaqui Dom Bosco foi para a igreja dos Quatro Coroados [chiesa dei Quattro Coronati]para visitar os sepulcros dos santos mártires Severo, Severino, Carpóforo e Vitorino, mortos sob Diocleciano. Depois passou por S. Giovanni diante da Porta Latina, junto da qual está uma Capela construída no lugar onde São João Evangelista foi colocado na caldeira de óleo fervente; dali avançou até a igrejinha do Quo Vadis, assim chamada porque apareceu naquele lugar o Salvador a São Pedro, que saía de
Roma para fugir do furor da perseguição:
– Senhor, para onde vai? gritou o Apóstolo maravilhado. E Jesus lhe respondeu:
– Venho para ser crucificado de novo. São Pedro entendeu e voltou para Roma onde o esperava o martírio. Desse pequeno templo, Dom Bosco retomou a estrada, depois de ter dado uma olhada à via Apia, ao longo da qual se contam muitíssimos mausoléus dos tempos do paganismo, que recordam qual fim ameace toda a grandeza humana

Dom Bosco… salesiano!
Uma cena graciosa aconteceu na manhã do dia 25 de março. Dom Bosco, atravessando o Tibre, viu em uma pequena praça uns trinta meninos que se divertiam. Sem mais, se pôs no meio deles, que, parando as brincadeiras,olhavam-no maravilhados. Dom Bosco levantou então a mão, mantendo
entre os dedos uma medalha, e depois exclamou:
– Vocês são muitos e sinto não ter muitas medalhas para dar uma para
cada um. 
Aqueles meninos, tomando coragem, gritaram a plenos pulmões, levantando as mãos:
– Não importa, não importa… para mim, para mim! Dom Bosco acrescentou:
– Está bem. Não tendo para todos, esta medalha quero dá-la ao melhor. Quem de vocês é o melhor?
– Sou eu, sou eu! gritaram todos juntos. Ele continuou:
– Mas o que posso fazer se todos são bons igualmente? Está bem: quero dá-la ao mais malandro! Quem entre vocês é o mais malandro?
– Sou eu, sou eu! responderam com gritos atordoantes.
O Marquês Patrizi e os seus amigos, a uma certa distância, sorriam comovidos e maravilhados ao ver Dom Bosco tratar assim familiarmente com aqueles meninos que pela primeira vez tinha encontrado. E exclamavam:
– Eis um outro São Filipe Neri, amigo da juventude. Dom Bosco, de fato, como se fosse um amigo já conhecido daqueles meninos, continuou a interrogá-los, se já tinham ouvido a Santa Missa, em qual igreja costumavam ir, se conheciam os oratórios que estavam por aquelas bandas […]. O diálogo estava animado e finalmente Dom Bosco, depois de tê-los exortados a serem sempre bons cristãos, prometia que passaria outra vez por aquela praça e traria uma medalha, ou melhor, uma imagem para cada um deles; depois, saudando-os afetuosamente, saiu do meio daquela turba, e, voltando àqueles senhores que o esperavam, mostrou-lhes a única medalha que tinha ainda na mão. Nada tinha dado àqueles meninos, no entanto, tinha-os deixado contentes.

Santo Stefano Rotondo
No dia 26 de março, Dom Bosco retornou ao Celio na espaçosa igreja de Santo Estêvão Redondo [chiesa di S. Stefano Rotondo], chamada assim por sua forma. O seu beiral circular é sustentado por 56 colunas. Em todas as paredes ao redor estão pintadas as cenas dos suplícios atrozes com os quais foram massacrados os mártires. É ornada por mosaicos do século VII, que representam Jesus crucificado, com alguns santos, e conserva os corpos de dois confessores da fé, Santo Primo e Santo Feliciano. Dali Dom Bosco passou para S. Maria in Dominica ou della Navicella (por causa de uma barca de mármore que está na praça). Tem três naves separadas por 18 colunas e contém mosaicos do século IX. Entre esses se vê a Virgem no lugar de honra entre muitos anjos e, aos pés dela, ajoelhado, o Papa Pascal […].

O Santo Padre, no entanto, tinha manifestado o desejo que Dom Bosco assistisse no Vaticano ao devoto e magnífico espetáculo de todas as funções da Semana Santa. Por isso, encarregou Monsenhor Borromeu de convidá-lo em seu nome e de arrumar-lhe um lugar no qual pudesse à vontade ser espectador dos ritos sagrados. O Monsenhor o fez procurar por todo o dia, mas sem êxito. Finalmente, quando voltou à residência do Conde De Maistre tarde da noite, soube que Dom Bosco tinha se retirado para o seu quarto. Todavia, dizendo que vinha por ordem do Papa, foi acompanhado até o quarto e apresentou a Dom Bosco a carta-convite com a qual era admitido a receber a palma bendita das mãos de Sua Santidade. Dom Bosco a leu logo e exclamou que iria com grande prazer.

Páscoa Romana de Dom Bosco. O Domingo de Ramos
No domingo, 28 de março, Dom Bosco com o Clérigo Rua entraram na Basílica de São Pedro muito antes que começassem as funções. O Conde Carlos De Maistre o acompanhou até a tribuna dos diplomatas, onde lhe fora preparado o lugar. Dom Bosco estava de olho porque conhecia a importância das cerimônias da Igreja. Ao seu lado estava um milorde inglês protestante, maravilhado com aquela solenidade de ritos. A certo ponto um cantor soprano da Capela Sistina cantou uma parte solo, mas tão bem que Dom Bosco ficou comovido às lágrimas e aquele milorde voltou-se para ele e exclamou em latim, porque em outra língua não sabia como entender-se:
– Post hoc paradisus! (Depois disso, o paraíso!, n.d.r.). Aquele senhor depois de algum tempo converteu-se ao catolicismo e depois foi padre e bispo. Como o Papa abençoara as palmas, quando chegou sua vez, o corpo diplomático desfilou em direção ao trono do Pontífice, e cada embaixador e ministro recebeu a palma de suas mãos. Também Dom Bosco e o Clérigo Rua se ajoelharam aos pés do Pontífice e receberam a palma. Assim Pio IX quis: e não era Dom Bosco um embaixador do Altíssimo? O Clérigo Rua, voltando junto dos rosminianos, presenteou sua palma ao P. Pagani, que muito agradeceu a gentileza […].

Dom Bosco caudatário
O Cardeal Marini, que era um dos dois cardeais diáconos assistentes ao trono, para que Dom Bosco pudesse assistir a todas as funções da Semana Santa, tomou-o como caudatário. Assim, ele esteve, em veste violeta, quase o tempo todo do cerimonial ao lado do Papa e pôde saborear os cantos gregorianos e as músicas de Allegri e de Palestrina.
Na Quinta-feira Santa, viu pontificar a Missa do Cardeal Mario Mattei como o mais ancião dos bispos suburbicários, em vez do cardeal decano do sacro colégio que estava impedido. Dom Bosco seguiu o Pontífice que em procissão levava o Santíssimo Sacramento à Capela Paulina para repô-lo na urna aí preparada; acompanhou-o no balcão vaticano do qual abençoa Roma e o mundo; assistiu ao lava-pés feito pelo Papa a treze sacerdotes e participou da ceia comemorativa
deles, servida pelo mesmo Vigário de Jesus Cristo.

A bênção Urbi et Orbi
[…] No dia 4 de abril as salvas da artilharia do Castel Sant’Angelo anunciavam o dia de Páscoa. Pio IX desceu pelas dez horas à Basílica para o pontifical. Logo depois, precedido por um cortejo de bispos e cardeais, ele foi até a Loggia para a bênção Urbi et Orbi. Dom Bosco, com o Cardeal Marini e um bispo, ficou por um instante perto da sacada, coberta por um magnífico tecido sobre o qual foram depositadas três áureas tiaras. O cardeal disse a Dom Bosco:
– Observe que espetáculo! Dom Bosco olhava atônito para a praça. Uma multidão
de 200 mil pessoas se aglomerava com o rosto voltado para a Loggia. Os tetos, as janelas, os terraços de todas as casas estavam ocupados. O Exército francês ocupava uma parte do espaço entre o obelisco e a escadaria de São Pedro. Os batalhões da infantaria pontifícia estavam enfileirados à direita e à esquerda. Atrás, a cavalaria e a artilharia. Milhares de carruagens estavam paradas nas duas alas da praça, perto dos pórticos de Bernini, e ao fundo perto das casas. Especialmente sobre aquelas alugadas estavam em pé grupos de pessoas que pareciam dominar a praça. Era um vozear clamoroso, um pisoteio de cavalos, uma confusão incrível. Ninguém pode fazer ideia de tal espetáculo.

Encurralado  
Dom Bosco, que deixara o Papa na Basílica no ato da veneração das insignes relíquias expostas, pensava que ele demoraria a chegar. Absorto em contemplar tanta gente de todas as nações, não percebeu a chegada do papa sentado na cadeira gestatória. Encontrou-se, então, numa posição difícil; apertado entre a cadeira e a balaustrada, apenas podia mexer-se; tudo ao redor da cadeira estava ocupado por cardeais, bispos, cerimoniários e sediários, de tal maneira que não via espaço para sair dali. Voltar o olhar para o Papa era inconveniente; dar-lhe os ombros, falta de educação; permanecer no centro do balcão, uma coisa ridícula. Não podendo fazer melhor, voltou-se de lado; então, a ponta de um pé do Papa pousou sobre seu ombro.

Nesse interim, um silêncio solene reinou na praça de modo que se podia ouvir o zumbido de uma mosca voando. Os próprios cavalos estavam imóveis. Dom Bosco, por nada perturbado, atento ao mínimo incidente, observou que um só relincho e o som de um relógio que batia as horas fizeram se ouvir enquanto o Papa, sentado, recitava algumas orações de rito. Ele, no entanto, visto que o pavimento da Loggia estava ornado de folhagens e flores, curvou-se e recolheu algumas daquelas flores e as colocou entre as páginas do livro que tinha em mãos. Finalmente Pio IX levantou-se para abençoar: abriu os braços, elevou ao céu as mãos, estendeu-as sobre a multidão, que inclinou a cabeça, e a sua voz no cantar a fórmula da bênção, sonora, forte, solene, se ouvia além da praça Rusticucci e do sótão do palácio dos escritores da Civiltà Cattolica.

A multidão respondeu à bênção do Papa com uma imensa ovação. Então o Cardeal Ugolini leu em latim o Breve da indulgência plenária e logo em seguida o Cardeal Marini o repetiu, mas em língua italiana. Dom Bosco havia se ajoelhado, e quando se levantou, o cortejo papal já havia desaparecido. Todos os sinos ocavam em festa, o canhão de Castel Sant’Angelo ribombava, as bandas militares faziam soar suas trompetas. O cardeal Marini, acompanhado pelo caudatário, desceu e foi em direção à sua carruagem. Assim que esta se moveu, Dom Bosco sentiu-se tomado pelo mal causado por aquele movimento que revirava seu estômago; não podendo mais resistir, manifestou ao cardeal seu desconforto. Por seu conselho, subiu na caixa com o cocheiro, mas o mal-estar não diminuiu, então desceu para caminhar a pé. Estando vestido de roxo, teria sido objeto de admiração ou escárnio se tivesse atravessado Roma assim; por isso, o secretário gentilmente desceu da carruagem e o acompanhou ao palácio […].

A lembrança do Papa
Dom Bosco, no dia 6 de abril, voltou para uma audiência particular com Pio IX em companhia do Clérigo Rua e do Teólogo Murialdo, admitido no Vaticano por gentil mediação do próprio Dom Bosco. Entraram na antessala às 9 horas da noite e logo Dom Bosco foi chamado. O Papa apenas o viu à sua frente e lhe disse com jeito sério:
– Dom Bosco, aonde o senhor se meteu no dia de Páscoa na hora da bênção papal? Ali, na frente do Papa! E tendo o ombro sob o meu pé como se o Pontífice tivesse necessidade de ser escorado por Dom Bosco.
– Santo Padre, respondeu Dom Bosco, tranquilo e humilde, fui pego de surpresa e peço-lhe perdão se de qualquer modo o ofendi!
– E o senhor acrescenta ainda a afronta em perguntar-me se me ofendeu? Dom Bosco olhou para o Papa, parecendo-lhe fictício tal comportamento. E, de fato, um sorriso sinalizava aparecer naqueles lábios venerandos. E o Pontífice continuou: Mas o que lhe passou na cabeça de colher flores naquele momento? Precisou de toda a gravidade de Pio IX para não desatar a rir. […].
– Beatíssimo Padre, suplicou Dom Bosco, tenha a bondade de sugerir-me uma máxima que eu possa repetir aos meus jovens como lembrança saída dos lábios do Vigário de Jesus Cristo.
– A presença de Deus! Respondeu o Papa. Diga aos seus jovens em meu nome que se guiem sempre com esse pensamento!… E agora não tem mais nada para me pedir? O senhor deseja certamente ainda alguma coisa.
– Santo Padre, a Vossa Santidade se dignou conceder-me tudo quanto pedi e por agora não me resta mais nada senão agradecê-la do mais íntimo do meu coração.
– No entanto, no entanto, o senhor deseja ainda algo. A essa réplica, Dom Bosco estava lá como suspenso sem proferir palavra, quando o Pontífice acrescentou:
– E como? Não deseja deixar alegres seus meninos, quando voltar a eles?
– Santidade, isso sim.
– Então, espere. Poucos instantes antes tinham entrado naquela sala o Teólogo Murialdo, o Clérigo Rua e P. Cerutti de Varazze, chanceler na Cúria Arquiepiscopal de Gênova. Eles ficaram maravilhados com a familiaridade com que o Papa tratava Dom Bosco e do que viram naquele momento. O Papa abriu o cofre, tirou com as duas mãos um monte de moedas romanas de ouro e sem contá-las entregou a Dom Bosco, dizendo:
– Pegue e dê uma boa merenda aos seus filhinhos. Cada um pode imaginar a impressão que fez em Dom Bosco esse gesto de paterna bondade de Pio IX que com grande amor se dirigia também aos eclesiásticos sobrevindos, abençoava os terços, os crucifixos e outros objetos de devoção que lhe apresentaram, e dava a todos uma preciosa lembrança em medalhas.

O desafio educativo de Dom Bosco
Entre os cardeais que passou a homenagear está o Eminentíssimo Tosti, a convite do qual dirigiu novamente algumas palavras aos jovens do Refúgio de São Miguel. O cardeal, satisfeito pela cortesia de Dom Bosco, sendo a hora de seu passeio, manifestou o desejo de tê-lo por companhia, e ambos saíram com a carruagem. Começou-se a falar do sistema mais apto para a educação dos jovens. Dom Bosco estava persuadido que os alunos daquele Internato não tinham familiaridade com os superiores, aliás, tinham medo deles: coisa pouco agradável, sob a direção de padres. Por isso dizia:
– Veja, Eminência, é impossível poder educar bem os jovens se eles não têm confiança nos superiores.
– Mas como, replicou o cardeal, se pode ganhar essa confiança?
– Procurando que eles se aproximem de nós, evitando qualquer causa que se afastem de nós.
– E como se pode fazer para aproximá-los de nós?
– Aproximando-nos deles, buscando adaptar-nos aos seus gostos, fazendo-nos semelhantes a eles. Quer fazer uma prova? Diga-me: em que ponto de Roma se pode encontrar um bom número de meninos?
– Na ‘iazza Termini e na Piazza del Popolo.
– Pois bem, vamos então à Piazza del Popolo.

O cardeal deu ordem ao cocheiro e foram. Assim que chegaram, Dom Bosco desceu da carruagem, e o cardeal ficou observando-o. Vendo um grupo de meninos que brincavam, Dom Bosco aproximou-se, mas os garotos fugiram. Então, chamou-os com boas maneiras e eles, depois de alguma hesitação, retornaram. Dom Bosco lhes deu alguma coisinha, pediu notícias de suas famílias, perguntou do que brincavam, convidou-os a retomar a brincadeira, pôs-se a comandar o divertimento deles, e ele mesmo tomou parte. Então, outros jovens que estavam olhando de longe correram em grande número dos quatro cantos da praça e rodearam o padre, que os acolheu amorosamente e tinha para todos uma boa palavra e um presentinho. Perguntava se fossem bons, se rezassem as orações, se iam se confessar. Quando quis ir embora, eles o seguiram por um bom trecho e só o deixaram quando subiu na carruagem. O cardeal estava maravilhado.
– Viu?
– Tem razão! exclamou o cardeal […].

As últimas visitas
Suas últimas visitas foram reservadas à Confissão de São Pedro e às Catacumbas. Depois de ter rezado na Basílica de São Sebastião [basilica di S. Sebastiano], visto as duas das flechas que feriram o santo tribuno e a coluna na qual foi amarrado, desceu às galerias que guardam os ossos de milhares e milhares de mártires e onde São Filipe Neri tantas noites esteve em vigília rezando fervorosamente. Passou, depois, às Catacumbas de São Calisto [Catacombe di san Callisto]. Aí esperava-o o Cavaleiro G. B. De Rossi, quem descobrira aquelas catacumbas e ao qual Monsenhor de San Marzano o tinha apresentado. Quem entra naqueles lugares experimenta uma tal comoção que permanece inesquecível pelo resto da vida; e Dom Bosco estava absorto em santos e doces pensamentos percorrendo aqueles subterrâneos, onde os primeiros cristãos, com a missa, as orações em comum, o canto dos salmos e das profecias, a comunhão eucarística, o ouvir a palavra dos bispos e dos papas tinham encontrado a força necessária para o martírio que os esperava. É impossível olhar com olhos enxutos aqueles lóculos que tinham guardado os corpos ensanguentados ou queimados de tantos heróis da fé, as tumbas de quase catorze papas que tinham dado a vida para testemunhar o que ensinavam e a cripta de Santa Cecília.

Dom Bosco observava os muitos afrescos antiquíssimos que simbolizavam Jesus Cristo e a Eucaristia; e as imagens que representavam o matrimônio de Maria Santíssima com São José; a Assunção de Maria ao céu, a Mãe de Deus com o Menino nos braços ou sobre os joelhos. Ele ficou encantado pelo sentimento de simplicidade que resplandece nessas imagens, nas quais a arte cristã primitiva soubera reproduzir a beleza incomparável da alma e o ideal altíssimo da perfeição moral que se deve atribuir à Virgem. Não faltavam outras figuras de santos e de mártires. Dom Bosco saiu das catacumbas às 6h da tarde e tinha entrado nelas às 8h da manhã […].

Rumo a casa
Dom Bosco, no dia 14 de abril, partia de Roma com o Clérigo Rua, feliz pelo lançamento das bases da Sociedade de São Francisco de Sales […]. Alugou uma carruagem, fez uma breve parada no povoado de Palo e encontrou o dono perfeitamente livre das febres: a sua cura fora instantânea. Ele nunca esqueceu o benefício e, depois de muito tempo, por volta do ano de 1875 ou 1876, tendo ido a Gênova por razões comerciais, quis avançar sua viagem até Turim. Informando-se e sabendo por telégrafo que Dom Bosco estava no Oratório, foi até lá; mas Dom Bosco, naquele dia, estava almoçando com o Sr. Carlos Occelletti. Foi logo encontrá-lo, numa felicidade sem fim. O Sr. Occelletti lembrava sempre com grande satisfação a história que ouvira sobre aquela cura. Tendo chegado em Civitavecchia e feita uma visita ao Delegado Pontifício, Dom Bosco foi ao porto para embarcar.

As ondas dessa vez estavam calmas e o tempo bom, assim Dom Bosco pôde descer em Livorno, conversar com algum amigo e visitar algumas igrejas. Retomado o mar à noite, Rua se lembra como a barca chegasse ao porto de Gênova ao surgir de uma esplêndida aurora que iluminava o magnífico panorama da soberba cidade. Dom Bosco tinha acabado de pôr os pés em terra e logo se dirigiu ao Colégio dos Artigianelli, onde o esperava o P. Montebruno e o Sr. Giuseppe Canale. Depois do meio-dia subiu no trem. Atravessando a cidade, teve uma grata surpresa: tocando os sinos, o Angelus, muitas pessoas pelas ruas e pelas praças tiraram o chapéu, e os mesmos carregadores se levantaram de seus bancos para recitar a oração. Muitas vezes ele descrevera esse espetáculo para a edificação de seus alunos. Chegou em Turim no dia 16 de abril, sendo acolhido pelos jovens com tal exultação e afeto que nenhum pai poderia desejar-se melhor dos próprios filhos.




Devoção de Dom Bosco ao Sagrado Coração de Jesus

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, tão querida a Dom Bosco, nasceu das revelações feitas a Santa Margarida Maria Alacoque no mosteiro de Paray-le-Monial: Cristo, mostrando seu Coração transpassado e coroado de espinhos, pediu uma festa reparadora na sexta-feira após a Oitava do Corpus Christi. Apesar das oposições, o culto se difundiu porque aquele Coração, sede do amor divino, lembra a caridade manifestada na cruz e na Eucaristia. Dom Bosco convida os jovens a honrá-lo constantemente, especialmente no mês de junho, recitando a Coroinha e realizando atos de reparação que obtêm indulgências abundantes e as doze promessas de paz, misericórdia e santidade.


            A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que cresce a cada dia, ouçam, ó queridos jovens, como teve origem. Vivendo na França, no mosteiro da Visitação de Paray-le-Monial, havia uma humilde virgem chamada Margarida Alacoque, querida por Deus por sua grande pureza. Um dia, enquanto ela estava diante do Santíssimo Sacramento para adorar o bendito Jesus, viu o seu Esposo Celestial no ato de descobrir o peito e mostrar-lhe o seu Sagrado Coração, resplandecente de chamas, cercado de espinhos, transpassado por uma ferida e encimado por uma cruz. Ao mesmo tempo, ouviu-o queixar-se da monstruosa ingratidão dos homens e ordenar-lhe que se empenhasse para que, na sexta-feira após a Oitava do Corpus Christi, fosse prestado um culto especial ao seu Divino Coração, em reparação das ofensas que Ele recebe na Santíssima Eucaristia. A piedosa virgem, cheia de confusão, expôs a Jesus o quanto era incapaz de realizar uma tarefa tão grande, mas foi consolada pelo Senhor para continuar sua obra, e a festa do Sagrado Coração de Jesus foi estabelecida, apesar da viva oposição de seus adversários.
            Os motivos para este culto são múltiplos: 1º Porque Jesus Cristo nos ofereceu o seu Sagrado Coração como sede dos seus afetos; 2º Porque é símbolo da imensa caridade que Ele demonstrou especialmente ao permitir que o seu Sagrado Coração fosse ferido por uma lança; 3º Para que deste Coração os fiéis sejam movidos a meditar as dores de Jesus Cristo e a professar-lhe gratidão.
            Honremos, portanto, constantemente este Divino Coração, que pelos muitos e grandes benefícios que já nos concedeu e nos concederá, merece toda a nossa mais humilde e amorosa veneração.

Mês de junho
            Quem consagrar todo o mês de junho em honra do Sagrado Coração de Jesus com alguma oração diária ou devoção, ganhará 7 anos de indulgência por cada dia e indulgência plenária no final do mês.

Coroinha ao Sagrado Coração de Jesus
            Recitem esta Coroinha ao Divino Coração de Jesus Cristo para reparar as ofensas que Ele recebe na Santíssima Eucaristia dos infiéis, dos hereges e dos maus cristãos. Recite-a sozinho ou com outras pessoas reunidas, se possível diante da imagem do Divino Coração ou diante do Santíssimo Sacramento:
            V. Deus, in adjutorium meum intende (Vinde, ó Deus, em meu auxílio).
            R. Domine ad adjuvandum me festina (Socorrei-me sem demora).
            Glória ao Pai… etc.

            1. Ó amabilíssimo Coração de meu Jesus, adoro humildemente a vossa dulcíssima ternura, que usais de modo singular no Divino Sacramento para com as almas ainda mesmo pecadoras. Sinto imenso em ver que sois tão ingratamente correspondido, e proponho desagravar-vos de tantas ofensas que recebeis na Santíssima Eucaristia dos hereges, dos infiéis e dos maus cristãos.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            2. Ó Coração tão humilde do meu Jesus sacramentado, adoro reverente a vossa profunda humildade na divina Eucaristia, escondendo-vos por nosso amor sob as espécies de pão e de vinho. Por piedade, meu Jesus, peço-vos queirais infundir no meu coração tão bela virtude; e entretanto procurarei desagravar-vos de tantas ofensas que recebeis no Santíssimo Sacramento, dos hereges, dos infiéis e dos maus cristãos.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            3. Ó Coração de meu Jesus, tão sequioso de padecer, adoro os vossos ardentíssimos desejos de sofrer tão dolorosa paixão e sujeitar-vos às injustiças que prevíeis no Santíssimo Sacramento. Ah! meu Jesus, de todo o coração proponho repará-las, mesmo com a minha vida; quisera impedir as ofensas que infelizmente recebeis na Divina Eucaristia dos hereges, dos infiéis e dos maus cristãos.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            4. Ó Coração pacientíssimo de meu Jesus, venero humildemente a vossa invencível paciência em sofrer por meu amor tantas penas na cruz e tantos desprezos na divina Eucaristia, ó meu querido Jesus! Já que não posso lavar com o meu sangue os lugares em que fostes tão maltratado num e noutro mistério, prometo-vos, meu sumo bem, empregar todos os meios para desagravar o vosso divino Coração de tantos ultrajes, que recebeis na Santíssima Eucaristia dos hereges, dos infiéis e dos maus cristãos.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            5. Ó Coração de meu Jesus, amantíssimo de nossas almas na admirável instituição da Santíssima Eucaristia, adoro humildemente o imenso amor que tendes para conosco, dando-nos como alimento o vosso divino corpo e o vosso divino sangue. Qual o coração que deixará de comover-se à vista de tamanha caridade? Oh meu bom Jesus! Dai-me abundantes lágrimas para chorar e reparar tantas ofensas que recebeis na Santíssima Eucaristia dos hereges, dos infiéis e dos maus cristãos.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            6. Ó Coração de meu Jesus, sequioso de nossa salvação, venero humildemente o amor que vos impeliu a realizar o sacrifício inefável da cruz e a renová-lo todos os dias sobre os altares na santa missa. Será possível que, à vista de tanto amor, o coração humano não arda de gratidão? Sim, infelizmente é possível, meu Deus; mas prometo fazer para o futuro tudo o que puder a fim de reparar tantos ultrajes que recebeis neste mistério de amor, dos hereges, dos infiéis e dos maus cristãos.
            Pai nosso, Ave Maria e Glória.

            Quem recitar apenas as seis orações acima mencionadas Pai nosso, Ave Maria e Glória, diante do Santíssimo Sacramento, sendo que o último Pai nosso, Ave Maria e Glória seja rezado segundo a intenção do Sumo Pontífice, ganhará 300 dias de indulgência cada vez.

Promessas feitas por Jesus Cristo
à bem-aventurada Margarida Alacoque para os devotos do seu Divino Coração
            1 – Darei às almas dedicadas ao meu Coração todas as graças necessárias ao seu estado de vida.
            2 – Estabelecerei e conservarei a paz em suas famílias.
            3 – Consolá-las-ei em todas as suas aflições.
            4 – Serei seu refúgio seguro na vida e, sobretudo, na hora da morte.
            5 – Derramarei abundantes bênçãos sobre todas as suas empresas.
            6 – Os pecadores encontrarão em meu Coração a fonte e o oceano infinito de misericórdia.
            7 – As almas tíbias tornar-se-ão fervorosas.
            8 – As almas fervorosas elevar-se-ão rapidamente a uma grande perfeição.
            9 – Abençoarei as casas em que a imagem do meu Sagrado Coração for exposta e venerada.
            10 – Darei aos sacerdotes o dom de tocar os corações mais endurecidos.
            11 – As pessoas que propagarem esta devoção terão os seus nomes escritos no meu Coração e dele nunca serão apagados.

Ato de reparação contra as blasfêmias.
            Bendito seja Deus.
            Bendito seja o seu Santo Nome.
            Bendito seja Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.
            Bendito seja o Nome de Jesus.
            Bendito seja Jesus no Santíssimo Sacramento do Altar.
            Bendito seja o seu Amabilíssimo Coração.
            Bendita seja a grande Mãe de Deus, Maria Santíssima.
            Bendito seja o Nome de Maria, Virgem e Mãe.
            Bendita seja a sua Santa e Imaculada Conceição.
            Bendito seja Deus nos seus Anjos e nos seus Santos.

            É concedida Indulgência de um ano em cada vez: e Plenária a quem a recitar durante um mês, no dia em que fizer a Santa Confissão e a Comunhão.

Oferta ao Sagrado Coração de Jesus diante da sua santa imagem
            Eu N. N. para vos ser grato e para reparar as minhas infidelidades, dou-vos o meu coração e consagro-me inteiramente a Vós, meu amável Jesus, e com a vossa ajuda proponho não pecar mais.

            O Pontífice Pio VII concedeu cem dias de indulgência uma vez por dia, recitando-a com coração contrito, e plenária uma vez por mês, a quem a recitar todos os dias.

Oração ao Sagrado Coração de Maria
            Ave, augustíssima rainha da paz, Mãe de Deus; pelo sacratíssimo Coração de vosso Filho Jesus, príncipe da paz, fazei que se aplaque a sua ira e reine sobre nós em paz. Lembrai-vos, ó piíssima Virgem Maria, de que nunca se ouviu dizer que por vós seja abandonado quem implora os vossos favores. Animado eu de tal confiança, a vós recorro: ó Mãe do Verbo, não desprezeis as minhas súplicas, mas ouvi-as propícia e atendei-me, ó clemente, ó piedosa Virgem Maria.

            Pio IX concedeu a indulgência de 300 dias cada vez que esta oração for recitada com devoção, e indulgência plenária uma vez por mês àqueles que a recitarem todos os dias.

            Ó Jesus de amor ferido,
            nunca houvera tão ofendido!
            Ó meu doce e bom Jesus,
            nunca te pregue na cruz.
            Sagrado Coração de Maria,
            Fazei que eu salve a minha alma.
            Sagrado Coração do meu Jesus,
            Fazei que eu vos ame cada vez mais.

            A vós dou o meu coração,
            Mãe do meu Jesus – Mãe de amor.

(Fonte: “Il Giovane Provveduto per la pratica de’ suoi doveri negli esercizi di cristiana pietà per la recita dell’Uffizio della b. Vergine dei vespri di tutto l’anno e dell’uffizio dei morti coll’aggiunta di una scelta di laudi sacre, pel sac. Giovanni Bosco, 101ª edição, Turim, 1885, Tipografia e Libreria Salesiana, S. Benigno Canavese – S. Per d’Arena – Lucca – Nizza Marittima – Marselha – Montevidéu – Buenos Aires”, pp. 119-124 [Obras Publicadas, pp. 247-253])

INSTITUTO HISTÓRICO SALESIANO. Fontes Salesianas: Dom Bosco e sua obra. Tradução de Dom Hilário Moser. Brasília, EDB, 2015, 1421p., p.741-744 (Coletânea Antológica. V. 1)

Foto: Estátua do Sagrado Coração em bronze dourado no campanário da Basílica do Sagrado Coração em Roma, presente dos ex-alunos salesianos da Argentina. Erguida em 1931, é uma obra realizada em Milão por Riccardo Politi, com projeto do escultor Enrico Cattaneo, de Turim.




Dom Bosco e o Sagrado Coração. Custodiar, reparar, amar

Em 1886, às vésperas da consagração da nova Basílica do Sagrado Coração, no centro de Roma, o “Boletim Salesiano” quis preparar seus leitores – cooperadores, benfeitores, jovens, famílias – para um encontro vital com “o Coração transpassado que continua a amar”. Durante um ano inteiro, a revista apresentou aos olhos do mundo salesiano um verdadeiro “rosário” de meditações: cada número ligava um aspecto da devoção a uma urgência pastoral, educativa ou social que Dom Bosco – já exausto, mas muito lúcido – considerava estratégica para o futuro da Igreja e da sociedade italiana. Quase cento e quarenta anos depois, essa série continua sendo um pequeno tratado de espiritualidade do coração, escrito em tom simples, mas cheio de ardor, capaz de conjugar contemplação e prática. Apresentamos aqui uma leitura unificada desse percurso mensal, mostrando como a intuição salesiana ainda sabe falar aos dias de hoje.


Fevereiro – A guarda de honra: vigiar o Amor ferido
            O novo ano litúrgico se abre, no Boletim, com um convite surpreendente: não apenas adorar Jesus presente no sacrário, mas “fazer-lhe guarda” – um turno de uma hora escolhido livremente em que cada cristão, sem interromper as atividades cotidianas, torna-se sentinela amorosa que consola o Coração transpassado pela indiferença do carnaval. A ideia, nascida em Paray-le-Monial e florescida em muitas dioceses, torna-se um programa educativo: transformar o tempo em espaço de reparação, ensinar aos jovens que a fidelidade nasce de pequenos atos constantes, fazer do dia uma liturgia difundida. O voto associado – destinar o produto do Manual da Guarda de Honra à construção da Basílica romana – revela a lógica salesiana: contemplação que se traduz imediatamente em tijolos, porque a verdadeira oração edifica (literalmente) a casa de Deus.

Março – Caridade criativa: o cunho salesiano
            Na grande conferência de 8 de maio de 1884, o cardeal Parocchi sintetizou a missão salesiana em uma palavra: “caridade”. O Boletim retoma esse discurso para lembrar que a Igreja conquista o mundo mais com gestos de amor do que com disputas teóricas. Dom Bosco não funda escolas de elite, mas internatos populares; não tira os jovens do meio só para protegê-los, mas para devolvê-los à sociedade como cidadãos sólidos. É a caridade “segundo as exigências do século”: resposta ao materialismo não com polêmicas, mas com obras que mostram a força do Evangelho. Daí a urgência de um grande santuário dedicado ao Coração de Jesus: fazer sobressair no coração de Roma um sinal visível desse amor que educa e transforma.

Abril – Eucaristia: “obra-prima do Coração de Jesus”
            Para Dom Bosco, nada é mais urgente do que levar os cristãos de volta à comunhão frequente. O Boletim lembra que “não há catolicismo sem Nossa Senhora e sem a Eucaristia”. A mesa eucarística é “gênese da sociedade cristã”: dela nascem a fraternidade, a justiça, a pureza. Se a fé enfraquece, é preciso reacender o desejo do Pão vivo. Não por acaso São Francisco de Sales confiou às Visitandinas a missão de custodiar o Coração Eucarístico: a devoção ao Sagrado Coração não é um sentimento abstrato, mas um caminho concreto que conduz ao sacrário e daí se derrama pelas ruas. E é novamente o canteiro romano que serve de verificação: cada lira oferecida para a basílica torna-se um “tijolo espiritual” que consagra a Itália ao Coração que se doa.

Maio – O Coração de Jesus resplandece no Coração de Maria
            O mês mariano leva o Boletim a entrelaçar as duas grandes devoções: entre os dois Corações existe uma comunhão profunda, simbolizada pela imagem bíblica do “espelho”. O Coração Imaculado de Maria reflete a luz do Coração Divino, tornando-a suportável aos olhos humanos: quem não ousa olhar para o Sol, olha para o seu brilho refletido na Mãe. Culto de latria para o Coração de Jesus, de “hiperdulia” para o de Maria: distinção que evita os equívocos dos polemistas jansenistas de ontem e de hoje. O Boletim refuta as acusações de idolatria e convida os fiéis a um amor equilibrado, onde contemplação e missão se alimentam mutuamente: Maria introduz ao Filho e o Filho conduz à Mãe. Em vista da consagração do novo templo, pede-se que se unam as duas invocações que se erguem nas colinas de Roma e Turim: Sagrado Coração de Jesus e Maria Auxiliadora.

Junho – Consolações sobrenaturais: o amor operante na história
            Duzentos anos após a primeira consagração pública ao Sagrado Coração (Paray-le-Monial, 1686), o Boletim afirma que a devoção responde à doença do tempo: “arrefecimento da caridade por excesso de iniquidade”. O Coração de Jesus – Criador, Redentor, Glorificador – é apresentado como o centro de toda a história: da criação à Igreja, da Eucaristia à escatologia. Quem adora esse Coração entra num dinamismo que transforma a cultura e a política. Por isso, o Papa Leão XIII pediu a todos que concorressem ao santuário romano: monumento de reparação, mas também “barreira” contra a “torrente imunda” do erro moderno. É um apelo que soa atual: sem caridade ardente, a sociedade se desintegra.

Julho – Humildade: a fisionomia de Cristo e do cristão
            A meditação de verão escolhe a virtude mais negligenciada: a humildade, “joia transplantada pela mão de Deus no jardim da Igreja”. Dom Bosco, filho espiritual de São Francisco de Sales, sabe que a humildade é a porta das outras virtudes e o selo de todo verdadeiro apostolado: quem serve os jovens sem buscar visibilidade torna presente “o ocultamento de Jesus durante trinta anos”. O Boletim desmascara a soberba disfarçada de falsa modéstia e convida a cultivar uma dupla humildade: do intelecto, que se abre ao mistério, e da vontade, que obedece à verdade reconhecida. A devoção ao Sagrado Coração não é sentimentalismo: é escola de pensamento humilde e de ação concreta, capaz de construir a paz social porque tira do coração o veneno do orgulho.

Agosto – Mansidão: a força que desarma
            Depois da humildade, a mansidão: virtude que não é fraqueza, mas domínio de si mesmo, “o leão que gera mel”, diz o texto, remetendo ao enigma de Sansão. O Coração de Jesus se mostra manso ao acolher os pecadores, firme em defender o templo. Os leitores são convidados a imitar esse duplo movimento: doçura para com as pessoas, firmeza contra o erro. São Francisco de Sales volta a ser modelo: com um tom pacato, derramou rios de caridade na turbulenta Genebra, convertendo mais corações do que teriam conquistado as contendas acirradas. Em um século que “pecava por ser sem coração”, construir o santuário do Sagrado Coração significava erguer um ginásio de mansidão social – uma resposta evangélica ao desprezo e à violência verbal que já envenenavam o debate público.

Setembro – Pobreza e questão social: o Coração que reconcilia ricos e pobres
            O estrondo do conflito social, adverte o Boletim, ameaça “reduzir a escombros o edifício civil”. Estamos em plena “questão operária”: os socialistas agitam as massas, os capitais se concentram. Dom Bosco não nega a legitimidade da riqueza honesta, mas lembra que a verdadeira revolução começa no coração: o Coração de Jesus proclamou bem-aventurados os pobres e viveu em primeira pessoa a pobreza. O remédio passa por uma solidariedade evangélica alimentada pela oração e pela generosidade. Enquanto o templo romano não estiver concluído – escreve o jornal –, faltará o sinal visível da reconciliação. Nas décadas seguintes, a doutrina social da Igreja desenvolverá essas intuições; mas a semente já está aqui: a caridade não é esmola, é justiça que nasce de um coração transformado.

Outubro – Infância: sacramento da esperança
            “Ai daquele que escandalizar um destes pequeninos”: nos lábios de Jesus, o convite torna-se advertência. O Boletim recorda os horrores do mundo pagão contra as crianças e mostra como o cristianismo mudou a história, confiando aos pequenos um lugar central. Para Dom Bosco, a educação é um ato religioso: na escola e no oratório guarda-se o tesouro da Igreja futura. A bênção de Jesus às crianças, reproduzida nas primeiras páginas do jornal, é manifestação do Coração que “se aperta como um pai” e anuncia a vocação salesiana: fazer da juventude um “sacramento” que torna Deus presente na cidade. Escolas, colégios, laboratórios não são opcionais: são a maneira concreta de honrar o Coração de Jesus vivo nos jovens.

Novembro – Triunfos da Igreja: a humildade que vence a morte
            A liturgia recorda os santos e os defuntos; o Boletim medita sobre o “triunfo manso” de Jesus que entra em Jerusalém. A imagem torna-se chave de leitura da história da Igreja: sucessos e perseguições se alternam, mas a Igreja, como o Mestre, ressuscita sempre. Os leitores são convidados a não se deixarem paralisar pelo pessimismo: as sombras do momento (leis anticlericais, redução das ordens, propaganda maçônica) não apagam o dinamismo do Evangelho. O templo do Sagrado Coração, erguido entre hostilidades e pobreza, será o sinal tangível de que “a pedra selada foi removida”. Colaborar na sua construção significa apostar no futuro de Deus.

Dezembro – Bem-aventurança da dor: a Cruz acolhida pelo coração
            O ano termina com a mais paradoxal das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os que choram”. A dor, escândalo para a razão pagã, torna-se no Coração de Jesus caminho de redenção e fecundidade. O Boletim vê nesta lógica a chave para ler a crise contemporânea: sociedades fundadas no divertimento a todo custo produzem injustiça e desespero. Aceita em união com Cristo, porém, a dor transforma os corações, fortalece o caráter, estimula a solidariedade, liberta do medo. Até as pedras do santuário são “lágrimas transformadas em esperança”: pequenas ofertas, às vezes fruto de sacrifícios ocultos, que construirão um lugar de onde choverão, promete o jornal, “torrentes de castas delícias”.

Um legado profético
            Na montagem mensal do Boletim Salesiano de 1886, impressiona a pedagogia do crescendo: parte-se da pequena hora de guarda e chega-se à consagração da dor; do fiel individual ao canteiro nacional; do tabernáculo com torres do oratório aos baluartes do Esquilino. É um itinerário que entrelaça três eixos fundamentais:
            Contemplação – O Coração de Jesus é antes de tudo mistério a ser adorado: vigília, Eucaristia, reparação.
            Formação – Cada virtude (humildade, mansidão, pobreza) é proposta como remédio social, capaz de curar as feridas coletivas.
            Construção – A espiritualidade torna-se arquitetura: a basílica não é ornamento, mas laboratório de cidadania cristã.
            Sem forçar, podemos reconhecer aqui o pré-anúncio de temas que a Igreja desenvolverá ao longo do século XX: o apostolado dos leigos, a doutrina social, a centralidade da Eucaristia na missão, a proteção dos menores, a pastoral da dor. Dom Bosco e seus colaboradores captam os sinais dos tempos e respondem com a linguagem do coração.

            Em 14 de maio de 1887, quando Leão XIII consagrou a Basílica do Sagrado Coração, por meio de seu vigário Cardeal Lucido Maria Parocchi, dom Bosco – muito fraco para subir ao altar – assistiu escondido entre os fiéis. Naquele momento, todas as palavras do Boletim de 1886 tornaram-se pedra viva: a guarda de honra, a caridade educativa, a Eucaristia centro do mundo, a ternura de Maria, a pobreza reconciliadora, a bem-aventurança da dor. Hoje, essas páginas pedem um novo fôlego: cabe a nós, consagrados ou leigos, jovens ou idosos, continuar a vigília, erguer canteiros de esperança, aprender a geografia do coração. O programa continua o mesmo, simples e audacioso: custodiar, reparar, amar.

Na foto: Pintura do Sagrado Coração, colocada no altar-mor da Basílica do Sagrado Coração, em Roma. A obra foi encomendada por Dom Bosco e confiada ao pintor Francesco de Rohden (Roma, 15 de fevereiro de 1817 – 28 de dezembro de 1903).




Dom Bosco e as procissões eucarísticas

Um aspecto pouco conhecido, mas importante, do carisma de São João Bosco são as procissões eucarísticas. Para o santo dos jovens, a Eucaristia não era apenas uma devoção pessoal, mas uma ferramenta pedagógica e um testemunho público. Em uma Turim em transformação, Dom Bosco viu nas procissões uma oportunidade para fortalecer a fé dos jovens e anunciar Cristo nas ruas. A experiência salesiana, que se espalhou pelo mundo, mostra como a fé pode se encarnar na cultura e responder aos desafios sociais. Ainda hoje, vividas com autenticidade e abertura, essas procissões podem se tornar sinais proféticos de fé.

Quando se fala de São João Bosco (1815-1888), pensa-se imediatamente em seus oratórios populares, na paixão educativa pelos jovens e na família salesiana nascida de seu carisma. Menos conhecido, mas não menos decisivo, é o papel que a devoção eucarística — e em particular as procissões eucarísticas — teve em sua obra. Para Dom Bosco, a Eucaristia não era apenas o coração da vida interior; constituía também uma poderosa ferramenta pedagógica e um sinal público de renovação social em uma Turim em rápida transformação industrial. Revisitar a ligação entre o santo dos jovens e as procissões com o Santíssimo significa entrar em um laboratório pastoral onde liturgia, catequese, educação cívica e promoção humana se entrelaçam de maneira original e, por vezes, surpreendente.

As procissões eucarísticas no contexto do século XIX
Para compreender Dom Bosco, é preciso lembrar que o século XIX italiano viveu um intenso debate sobre o papel público da religião. Após a época napoleônica e o movimento do “Ressurgimento” [Unificação], as manifestações religiosas nas ruas das cidades não eram mais garantidas: em muitas regiões, delineava-se um estado liberal que olhava com desconfiança qualquer expressão pública do catolicismo, temendo aglomerações em massa ou ressurgimentos “reacionários”. As procissões eucarísticas, no entanto, mantinham uma força simbólica muito poderosa: lembravam o senhorio de Cristo sobre toda a realidade e, ao mesmo tempo, faziam emergir uma Igreja popular, visível e encarnada nos bairros. Contra esse pano de fundo, destaca-se a obstinação de Dom Bosco, que nunca desistiu de acompanhar seus jovens no testemunho da fé fora dos muros do oratório, fossem as avenidas de Valdocco ou as áreas rurais ao redor.

Desde os anos de formação no seminário de Chieri, João Bosco desenvolveu uma sensibilidade eucarística de sabor “missionário”. As crônicas contam que ele frequentemente parava na capela, após as aulas, para longas orações diante do sacrário. Nas “Memórias do Oratório”, ele mesmo reconhece ter aprendido com seu diretor espiritual, o P. Cafasso, o valor de “fazer-se pão” para os outros: contemplar Jesus que se doa na Hóstia significava, para ele, aprender a lógica do amor gratuito. Essa linha atravessa toda a sua trajetória: “Mantenham-se amigos de Jesus sacramentado e Maria Auxiliadora”, repetia aos jovens, indicando a comunhão frequente e a adoração silenciosa como pilares de um caminho de santidade laical e cotidiana.

O oratório de Valdocco e as primeiras procissões internas
Nos primeiros anos da década de 1840, o oratório de Turim ainda não possuía uma igreja propriamente dita. As celebrações aconteciam em barracas de madeira ou pátios adaptados. Dom Bosco, no entanto, não desistiu de organizar pequenas procissões internas, quase “ensaios gerais” daquilo que se tornaria uma prática estável. Os jovens carregavam velas e estandartes, cantavam louvores marianos e, ao final, paravam ao redor de um altar improvisado para a bênção eucarística. Essas primeiras tentativas tinham uma função eminentemente pedagógica: acostumar os jovens a uma participação devota, mas alegre, unindo disciplina e espontaneidade. Na Turim operária, onde muitas vezes a miséria desembocava em violência, desfilar ordenadamente com o lenço vermelho no pescoço já era um sinal contra a corrente: mostrava que a fé podia educar ao respeito por si mesmo e pelos outros.

Dom Bosco sabia muito bem que uma procissão não se improvisa: são necessários sinais, cantos, gestos que falem ao coração antes mesmo da mente. Por isso, ele cuidava pessoalmente da explicação dos símbolos. O baldaquino tornava-se a imagem da tenda da congregação, sinal da presença divina que acompanha o povo em caminhada. As flores espalhadas pelo percurso lembravam a beleza das virtudes cristãs que devem adornar a alma. Os lampiões, indispensáveis nas saídas noturnas, aludiam à luz da fé que ilumina as trevas do pecado. Cada elemento era objeto de uma pequena “pregação” convivencial no refeitório ou na recreação, de modo que a preparação logística se entrelaçasse com a catequese sistemática. O resultado? Para os jovens, a procissão não era um dever ritual, mas uma ocasião festiva carregada de significado.

Um dos aspectos mais característicos das procissões salesianas era a presença da banda formada pelos próprios alunos. Dom Bosco considerava a música um antídoto contra o ócio e, ao mesmo tempo, uma poderosa ferramenta de evangelização: “Uma marcha alegre bem executada — escrevia — atrai as pessoas como o ímã atrai o ferro”. A banda precedia o Santíssimo, alternando peças sacras com árias populares adaptadas com textos religiosos. Esse “diálogo” entre fé e cultura popular reduzia as distâncias com os transeuntes e criava ao redor da procissão uma aura de festa compartilhada. Não poucos cronistas leigos testemunharam ter sido “intrigados” por aquele grupo de jovens músicos disciplinados, tão diferente das bandas militares ou filarmônicas da época.

Procissões como resposta às crises sociais
A Turim do século XIX conheceu epidemias de cólera (1854 e 1865), greves, fomes e tensões anticlericais. Dom Bosco reagiu frequentemente propondo procissões extraordinárias de reparação ou súplica. Durante a cólera de 1854, levou os jovens pelas ruas mais afetadas, recitando em voz alta as ladainhas pelos enfermos e distribuindo pão e remédios. Nesse momento nasceu a promessa — depois cumprida — de construir a igreja de Maria Auxiliadora: “Se Nossa Senhora salvar meus jovens, lhe erguerei um templo”. As autoridades civis, inicialmente contrárias a cortejos religiosos por medo de contágio, tiveram que reconhecer a eficácia da rede de assistência salesiana, alimentada espiritualmente justamente pelas procissões. A Eucaristia, levada entre os doentes, tornava-se assim um sinal tangível da compaixão cristã.

Ao contrário de certos modelos devocionais fechados nas sacristias, as procissões de Dom Bosco reivindicavam um direito de cidadania da fé no espaço público. Não se tratava de “ocupar” as ruas, mas de devolvê-las à sua vocação comunitária. Passar sob as varandas, atravessar praças e pórticos significava lembrar que a cidade não é apenas lugar de troca econômica ou de confronto político, mas sim de encontro fraterno. Por isso, Dom Bosco insistia em uma ordem impecável: capas escovadas, sapatos limpos, filas regulares. Queria que a imagem da procissão comunicasse beleza e dignidade, persuadindo até os observadores mais céticos de que a proposta cristã elevava a pessoa.

A herança salesiana das procissões
Após a morte de Dom Bosco, seus filhos espirituais difundiram a prática das procissões eucarísticas pelo mundo todo: das escolas agrícolas da Emília às missões da Patagônia, dos colégios asiáticos aos bairros operários de Bruxelas. O que importava não era duplicar servilmente um rito piemontês, mas transmitir o núcleo pedagógico: protagonismo juvenil, catequese simbólica, abertura à sociedade ao redor. Assim, na América Latina, os salesianos inseriram danças tradicionais no início do cortejo; na Índia adotaram tapetes de flores segundo a arte local; na África subsaariana alternaram cantos gregorianos a ritmos polifônicos tribais. A Eucaristia tornava-se ponte entre culturas, realizando o sonho de Dom Bosco de “fazer de todos os povos uma única família”.

Sob o ponto de vista teológico, as procissões de Dom Bosco incorporam uma forte visão da presença real de Cristo. Levar o Santíssimo “para fora” significa proclamar que o Verbo não se fez carne para ficar trancado, mas para “armar sua tenda no meio de nós” (cf. Jo 1,14). Essa presença pede para ser anunciada em formas compreensíveis, sem se reduzir a um gesto intimista. Em Dom Bosco, a dinâmica centrípeta da adoração (reunir os corações em torno da Hóstia) gera uma dinâmica centrífuga: os jovens, nutridos no altar, sentem-se enviados a servir. Da procissão surgem microcompromissos: assistir um companheiro doente, pacificar uma briga, estudar com mais diligência. A Eucaristia se prolonga nas “procissões invisíveis” da caridade cotidiana.

Hoje, em contextos secularizados ou multirreligiosos, as procissões eucarísticas podem levantar questionamentos: ainda são comunicativas? Não correm o risco de parecer folclore nostálgico? A experiência de Dom Bosco sugere que a chave está na qualidade relacional mais do que na quantidade de incenso ou paramentos. Uma procissão que envolve famílias, explica os símbolos, integra linguagens artísticas contemporâneas e, sobretudo, se conecta a gestos concretos de solidariedade, mantém uma surpreendente força profética. O recente Sínodo dos Jovens (2018) ressaltou várias vezes a importância de “sair” e “mostrar a fé com a carne”. A tradição salesiana, com sua liturgia itinerante, oferece um paradigma já testado de “Igreja em saída”.

As procissões eucarísticas não eram para Dom Bosco simples tradições litúrgicas, mas verdadeiros atos educativos, espirituais e sociais. Elas representavam uma síntese entre fé vivida, comunidade educativa e testemunho público. Através delas, Dom Bosco formava jovens capazes de adorar, respeitar, servir e testemunhar.
Hoje, em um mundo fragmentado e distraído, resgatar o valor das procissões eucarísticas à luz do carisma salesiano pode ser uma maneira eficaz de reencontrar o sentido do essencial: Cristo presente no meio do seu povo, que caminha com ele, o adora, serve e anuncia.
Em uma época que busca autenticidade, visibilidade e relações, a procissão eucarística – se vivida segundo o espírito de Dom Bosco – pode ser um sinal poderoso de esperança e renovação.

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Dom Bosco, promotor da “misericórdia divina”

Como padre muito jovem, Dom Bosco publicou um volume, em pequeno formato, intitulado “Exercício da devoção à Misericórdia de Deus”.

Tudo começou com a Marquesa de Barolo
            A Marquesa Júlia Colbert di Barolo (1785-1864), declarada Venerável pelo Papa Francisco em 12 de maio de 2015, cultivou pessoalmente uma devoção especial à misericórdia divina; por isso, nas comunidades religiosas e educacionais que havia fundado perto de Valdocco, tinha introduzido o costume de uma semana de meditações e orações sobre este assunto. Mas ela não estava satisfeita. Ela queria que essa prática se espalhasse também em outros lugares, especialmente nas paróquias, no meio do povo. Pediu o consentimento da Santa Sé, que não só concordou, mas também concedeu várias indulgências em favor dessa prática devocional. Tratava-se então de fazer uma publicação adequada ao fim a que se destinava.
            Estamos no verão de 1846, quando Dom Bosco, tendo superado a grave crise de esgotamento que o havia levado à beira da sepultura, se retirou para junto de Mamãe Margarida nos Becchi para convalescer e se “demitiu” de seu muito apreciado serviço como capelão de uma das obras de Barolo, com grande desgosto da própria Marquesa. Mas “seus jovens” o chamaram para a casa Pinardi, recentemente alugada.
            A essa altura interveio o famoso patriota Sílvio Péllico, secretário da marquesa e admirador e amigo de Dom Bosco, que tinha musicado alguns de seus poemas. As memórias salesianas nos dizem que Péllico, com uma certa ousadia, propôs à marquesa que encarregasse Dom Bosco de fazer a publicação que lhe interessava. O que fez a marquesa? Ela aceitou, embora não com muito entusiasmo. Quem sabe? Talvez ela quisesse colocá-lo à prova. E Dom Bosco também aceitou.

Um tema muito caro ao seu coração
            O tema da misericórdia de Deus estava entre seus interesses espirituais, aqueles sobre os quais ele havia sido formado no seminário de Chieri e, sobretudo, no Colégio Eclesiástico de Turim. Fazia só dois anos ele havia terminado de frequentar as aulas de seu conterrâneo São José Cafasso, apenas quatro anos mais velho que ele, mas seu diretor espiritual, cujos sermões seguia nos exercícios espirituais para sacerdotes, mas também o formador de meia dúzia de outros fundadores, alguns deles até santos. Pois bem, Cafasso, embora filho da cultura religiosa de seu tempo – feita de prescrições e da lógica de “fazer o bem para escapar do castigo divino e merecer o Paraíso” – não perdia uma oportunidade de falar da misericórdia de Deus, tanto em suas aulas como na pregação. E como podia deixar de fazê-lo, se se dedicava constantemente ao sacramento da Penitência e à assistência aos condenados à morte? Tanto mais que esta devoção indulgenciada constituía na época uma reação pastoral contra o rigorismo do jansenismo que sustentava a predestinação dos que eram salvos.
            Assim, Dom Bosco, logo que voltou do seu povoado, no início de novembro, começou a trabalhar, seguindo as práticas piedosas aprovadas por Roma e espalhadas pelo Piemonte. Com a ajuda de alguns textos que facilmente pôde encontrar na biblioteca do Colégio que ele conhecia muito bem, no fim do ano publicou, às suas custas, um livrinho de 111 páginas, num formato pequeno, intitulado “Exercício de devoção à Misericórdia de Deus”. Ele o doou imediatamente às meninas, mulheres e freiras das fundações Barolo. Não está documentado, mas a lógica e a gratidão quer que ele o tenha presenteado também à Marquesa Barolo, promotora do projeto. Mas a mesma lógica e gratidão fariam com que a Marquesa não se deixasse vencer em generosidade, enviando-lhe, talvez anonimamente como em outras ocasiões, uma contribuição para as despesas.
            Não há aqui espaço para apresentar os conteúdos “clássicos” do livrinho de meditações e orações de Dom Bosco; gostaríamos apenas de assinalar que seu princípio básico é: “cada um deve invocar a Misericórdia de Deus para si e para todos os homens, porque «somos todos pecadores», […] todos necessitados de perdão e de graça […] todos chamados à salvação eterna”.
            Significativo, pois, é o fato de que, ao concluir cada dia da semana, Dom Bosco, na lógica do título “exercícios de devoção”, ofereça uma prática de piedade: convidar outros a intervir, perdoar aquele que nos ofendeu, fazer logo uma mortificação para obter a misericórdia de Deus para todos os pecadores, dar alguma esmola ou substituí-la pela recitação de orações ou jaculatórias etc. No último dia, a prática é substituída por um belo convite, talvez até alusivo à Marquesa Barolo, para rezar “pelo menos uma Ave Maria para a pessoa que promoveu essa devoção”.

Prática educativa
            Mas, além dos escritos com fins edificantes e formativos, pode-se perguntar como Dom Bosco educou concretamente seus jovens para que confiassem na misericórdia divina. A resposta não é difícil e poderia ser documentada de muitas maneiras. Limitar-nos-emos a três experiências vitais vividas em Valdocco: os sacramentos da Confissão e da Comunhão e sua figura de um “pai cheio de bondade e de amor”.

A Confissão
            Dom Bosco iniciou centenas de jovens de Valdocco na vida cristã adulta. Mas com que meios? Dois em particular: Confissão e Comunhão.
            Como se sabe, Dom Bosco é um dos grandes apóstolos da Confissão, e isso se deve, antes de tudo, ao exercício pleno desse ministério, como fez, aliás, seu mestre e diretor espiritual, o P. Cafasso, acima mencionado, e a figura muito admirada de seu quase contemporâneo o santo Cura d’Ars (1876-1859). Se a vida do segundo, como está escrito, “foi passada no confessionário” e a do primeiro pôde oferecer muitas horas do dia (“o tempo necessário”) para ouvir em confissão “bispos, sacerdotes, religiosos, eminentes leigos e pessoas simples que a ele afluíam”. Dom Bosco não pôde fazer o mesmo por causa das muitas ocupações em que esteve envolvido. No entanto, no confessionário, ele se colocou à disposição dos jovens (e dos salesianos) todos os dias em que eram celebradas funções religiosas em Valdocco ou em casas salesianas, ou em ocasiões especiais.
            Tinha começado a fazer isso tão logo tinha terminado de “aprender a ser padre” no Colégio (1841-1844), quando aos domingos reunia os jovens no oratório itinerante no decurso de dois anos, quando ia ouvir confissões no santuário da Consolata ou nas paróquias piemontesas para as quais era convidado, quando aproveitava as viagens de carruagem ou de trem para ouvir confissões de cocheiros ou de passageiros. Nunca deixou de fazer isso até o fim da vida; quando lhe foi pedido para não se cansar com confissões, respondeu que por esta altura era a única coisa que ainda podia fazer por seus jovens. E qual foi o seu pesar quando, por razões burocráticas e mal-entendidos, sua licença de confissão não foi renovada pelo Arcebispo! Os testemunhos sobre Dom Bosco como confessor são inúmeros e, de fato, a famosa fotografia que o retratava no ato de confessar um jovem cercado de tantos outros esperando para fazê-lo, deve ter agradado ao próprio santo, que talvez tenha tido a ideia disso, e que continua sendo um ícone significativo e indelével de sua figura no imaginário coletivo.
            Mas, além de sua experiência como confessor, Dom Bosco foi um incansável promotor do sacramento da Reconciliação, divulgou sua necessidade, sua importância, a utilidade de sua frequência, apontou os perigos de uma celebração sem as condições necessárias, ilustrou as maneiras clássicas de abordá-la frutuosamente. Fê-lo através de palestras, boas noites, lemas espirituosos e palavrinhas ao ouvido, cartas circulares aos jovens nos colégios, cartas pessoais e a narração de numerosos sonhos que tinham como objeto a confissão, bem ou mal feita. De acordo com sua inteligente prática catequética, ele lhes contava episódios de conversões de grandes pecadores, e também suas próprias experiências pessoais a esse respeito.
            Dom Bosco, um profundo conhecedor da alma juvenil, para induzir todos os jovens ao arrependimento sincero, baseia-se no amor e gratidão para com Deus, apresentado em sua infinita bondade, generosidade e misericórdia. Em vez disso, para sacudir os corações mais frios e endurecidos, ele descreve os possíveis castigos do pecado e impressiona salutarmente suas mentes com descrições vívidas sobre o juízo divino e o inferno. Mesmo nesses casos, porém, não satisfeito em levar os meninos ao arrependimento por seus pecados, ele procura levá-los à necessidade da misericórdia divina, uma disposição importante para antecipar seu perdão mesmo antes da confissão sacramental. Como de costume, Dom Bosco não entra em discussões doutrinárias; apenas se interessa por uma confissão sincera, que cura terapeuticamente a ferida do passado, recompõe o tecido espiritual do presente para o futuro de uma “vida de graça”.
            Dom Bosco acredita no pecado, acredita no pecado grave, acredita no inferno e fala de sua existência aos leitores e ouvintes. Mas também está convencido de que Deus é a misericórdia em pessoa, razão pela qual deu ao homem o sacramento da Reconciliação. E assim ele insiste nas condições para recebê-lo bem, e sobretudo no confessor como “pai” e “médico” e não tanto como “médico e juiz”: “O confessor sabe quanto a misericórdia de Deus seja maior do que suas faltas e lhe concede o perdão através de sua intervenção” (Esboço biográfico do jovem Miguel Magone, pág. 24-25).
            Segundo as memórias salesianas, ele sugeria muitas vezes aos seus jovens que invocassem a misericórdia divina, que não desanimassem depois do pecado, mas que voltassem à confissão sem medo, confiando na bondade do Senhor e depois tomassem resoluções firmes para o bem.
            Como “educador no campo da juventude”, Dom Bosco sentiu a necessidade de insistir menos no ex opere operato (pela própria ação do sacramento) e mais no ex opere operantis (pela ação do indivíduo), isto é, nas disposições do penitente. Em Valdocco todos se sentiam convidados a fazer uma boa confissão, todos sentiam o risco de más confissões e a importância de fazer uma boa confissão; muitos deles sentiam então que estavam vivendo em uma terra abençoada pelo Senhor. Não foi à toa que a misericórdia divina fez despertar um jovem falecido depois que os panos funerários foram exibidos, para que pudesse confessar seus pecados (a Dom Bosco).
            Em suma, o sacramento da confissão, bem explicado em suas características específicas e frequentemente celebrado, foi talvez o meio mais eficaz pelo qual o santo piemontês levou seus jovens a confiar na imensa misericórdia de Deus.

A Comunhão
            Mas a comunhão, o segundo pilar da pedagogia religiosa de Dom Bosco, também serviu para este propósito.
            Dom Bosco é certamente um dos maiores promotores da prática sacramental da Comunhão frequente. Sua doutrina, modelada no modo de pensar da Contrarreforma, deu mais importância à Comunhão do que à celebração litúrgica da Eucaristia, mesmo havendo uma evolução em sua frequência. Nos primeiros vinte anos de sua vida sacerdotal, na esteira de Tertuliano e Santo Agostinho e, depois, do Concílio de Trento e de Santo Afonso, sugeriu a Comunhão semanal, ou várias vezes por semana ou mesmo diariamente, dependendo da perfeição das disposições correspondentes às graças do sacramento. Domingos Sávio, que em Valdocco tinha começado a se confessar e a comungar quinzenalmente, passou a fazê-lo todas as semanas, depois três vezes por semana, finalmente, depois de um ano de intenso crescimento espiritual, todos os dias, obviamente sempre seguindo o conselho de seu confessor, o próprio Dom Bosco.
            Mais tarde, na segunda metade dos anos 60, Dom Bosco, com base em suas experiências pedagógicas e de uma forte corrente teológica a favor da comunhão frequente, que teve como líderes o bispo francês Dom de Ségur e o prior de Gênova, Padre José Frassinetti, Dom Bosco passou a convidar mais vezes seus jovens para a comunhão frequente, convencido de que permitia passos decisivos na vida espiritual e favorecia seu crescimento no amor de Deus. E no caso da impossibilidade da Comunhão Sacramental diária, ele sugeriu a Comunhão espiritual, talvez durante uma visita ao Santíssimo Sacramento, tão apreciada por Santo Afonso. O importante, porém, era manter a consciência em estado de poder comungar todos os dias: a decisão estava, de certa maneira, a cargo do confessor.
            Para Dom Bosco, toda comunhão dignamente recebida – jejum prescrito, estado de graça, disposição para desligar-se do pecado, uma bela ação de graças depois – anula as faltas diárias, fortalece a alma para evitá-las no futuro, aumenta a confiança em Deus e em sua infinita bondade e misericórdia; além disso, é fonte de graça para ter sucesso na escola e na vida, é uma ajuda para suportar os sofrimentos e vencer as tentações.
            Dom Bosco crê que a comunhão é uma necessidade para que os “bons” se mantenham como tais e para que os “maus” se tornem “bons”. É para aqueles que querem se tornar santos, não para os santos, como os remédios são dados aos doentes. Obviamente, ele sabe que a frequência, por si só, não é um indício seguro de bondade, pois há aqueles que a recebem com muita tibieza e por hábito, tanto mais que a própria superficialidade dos jovens muitas vezes não lhes permite compreender toda a importância do que estão fazendo.
            Com a Comunhão, então, pode-se pedir graças particulares do Senhor para si mesmo e para os outros. As cartas de Dom Bosco estão cheias de pedidos a seus jovens para rezar e comungar de acordo com sua intenção, a fim de que o Senhor lhe conceda bom êxito nos “assuntos” de toda ordem em que se encontre envolvido. E ele fez o mesmo com todos os seus correspondentes, que foram convidados a se aproximar deste sacramento para obter as graças pedidas, enquanto ele faria o mesmo na celebração da Santa Missa.
            Dom Bosco se preocupava muito que seus rapazes crescessem alimentados pelos sacramentos, mas também queria o máximo respeito pela liberdade deles. E deixou instruções precisas a seus educadores em seu tratado sobre o Sistema Preventivo: “Nunca se obriguem os jovens a frequentar os santos sacramentos: basta encorajá-los e dar-lhes comodidade de se aproveitarem deles”.
            Ao mesmo tempo, porém, permaneceu inflexível em sua convicção de que os sacramentos são de suma importância. Escreveu peremptoriamente: “Diga-se o que se quiser sobre os vários sistemas de educação, mas não encontro base segura a não ser na frequência da Confissão e da Comunhão” (O pastorzinho dos Alpes, ou vida do jovem Francisco Besucco de Argentera, 1864. p. 100).

Uma paternidade e misericórdia personificada
            A misericórdia de Deus, operante particularmente no momento dos sacramentos da Confissão e da Comunhão, encontrava então sua expressão externa não só num Dom Bosco “padre confessor”, mas também num “pai, irmão, amigo” dos jovens na vida cotidiana ordinária. Com algum exagero, pode-se dizer que a confiança deles em Dom Bosco era tal que muitos deles quase não faziam distinção entre Dom Bosco “confessor” e Dom Bosco “amigo” e “irmão”; outros, às vezes, podiam trocar a acusação sacramental com as efusões sinceras de um filho para com seu pai; por outro lado, o conhecimento que Dom Bosco tinha dos jovens era tal que, com perguntas sóbrias, ele os inspirava com extrema confiança e não raro sabia como fazer a acusação no lugar deles.
            A figura de Deus Pai, misericordioso e providente, que ao longo da história manifestou sua bondade desde Adão, para com os homens, justos ou pecadores, mas todos necessitados de ajuda e objeto de cuidados paternos, e em todo caso todos chamados à salvação em Jesus Cristo, é assim modulada e refletida na bondade de Dom Bosco “Pai de seus jovens”, que só quer o bem deles, que não os abandona, sempre pronto a compreendê-los, a compadecer-se deles, a perdoá-los. Para muitos deles, órfãos, pobres e abandonados, acostumados desde tenra idade ao duro trabalho cotidiano, objeto de manifestações muito modestas de ternura, filhos de uma época em que o que prevalecia era a submissão decisiva e a obediência absoluta a qualquer autoridade constituída, Dom Bosco era talvez a carícia jamais experimentada de um pai, a “ternura” de que fala o Papa Francisco.
            Sua carta aos jovens da casa Mirabello, no final de 1864, continua comovente: “Aquelas vozes, aqueles vivas, aquele beijo e aquele aperto de mão, aquele sorriso cordial, aquele falar um com o outro sobre a alma, aquele encorajar o outro a fazer o bem são coisas que embalsamaram meu coração, e por isso não posso pensar nisso sem me comover até as lágrimas”. Eu lhes direi […] que vocês são a pupila do meu olho” (Epistolário II, editado por F. Motto II, carta n. 792).
            Ainda mais comovente é sua carta aos jovens de Lanzo de 3 de janeiro de 1876: “Deixem-me dizer-lhes e que ninguém se ofenda, vocês são todos ladrões; digo-o e repito, vocês me tiraram tudo. Quando estive em Lanzo, vocês me encantaram com sua benevolência e com sua bondade amorosa, vocês me ataram as faculdades da mente com sua piedade; ainda sobrava-me esse pobre coração, cujos afetos vocês já me havia roubado inteiramente. Agora sua carta marcada por 200 mãos amigas e caríssimas tomou posse de todo esse coração, ao qual nada mais restou senão um vivo desejo de amá-los no Senhor, de lhes fazer o bem e de salvar as almas de todos” (Epistolário III, carta n. 1389).
            A bondade amorosa com que ele tratava e queria que os salesianos tratassem os meninos tinha um fundamento divino. Afirmava-o citando uma expressão de São Paulo: “A caridade é benigna e paciente; sofre tudo, mas espera tudo, e suporta qualquer problema”.
            A bondade amorosa foi, portanto, um sinal de misericórdia e de amor divino que fugia ao sentimentalismo e às formas de sensualidade por causa da caridade teológica que foi sua fonte. Dom Bosco comunicava esse amor aos meninos individualmente e também a grupos deles: “Que eu lhes nutro muito carinho, não preciso lhes dizer, eu lhes dei provas claras disso. Que vocês também me amam, não preciso que me digam, porque me demonstraram isso constantemente. Mas em que se baseia esse nosso afeto mútuo? […] Portanto, o bem de nossas almas é o fundamento de nosso afeto” (Epistolário II, n. 1148). O amor de Deus, o primum teológico, é, portanto, o fundamento do primum pedagógico.
            A bondade amorosa foi também a tradução do amor divino em amor verdadeiramente humano, feito de sensibilidade reta, cordialidade amável, afeto benevolente e paciente, tendente à comunhão profunda do coração. Em suma, aquele amor efetivo e afetivo que se experimenta de maneira privilegiada na relação entre educando e educador, quando gestos de amizade e de perdão por parte do educador induzem o jovem, em virtude do amor que guia o educador, a abrir-se à confiança, a sentir-se apoiado em seu esforço de superação e de compromisso, a dar seu consentimento e a aderir em profundidade aos valores que o educador vive pessoalmente e lhe propõe. O jovem compreende que essa relação o reconstrói e o reestrutura como homem. O empreendimento mais árduo do Sistema Preventivo é precisamente o de conquistar o coração do jovem, de gozar de sua estima, de sua confiança, de fazer dele um amigo. Se um jovem não ama o educador, este pode fazer muito pouco do jovem e em favor do jovem.

As obras de misericórdia
            Poderíamos agora continuar com as obras de misericórdia, que o Catecismo distingue entre obras corporais e espirituais, estabelecendo dois grupos de sete. Não seria difícil documentar como Dom Bosco viveu, praticou e encorajou a prática dessas obras de misericórdia e como, por seu “ser e trabalhar”, ele constituiu de fato um sinal e um testemunho visível, em obras e palavras, do amor de Deus pela humanidade. Devido a limitações de espaço, limitamo-nos a indicar a possibilidade de pesquisa. Resta, porém, inquestionável que hoje elas parecem ficar abandonadas também por causa da falsa oposição entre misericórdia e justiça, como se a misericórdia não fosse uma maneira típica de expressar esse amor que, como tal, jamais poderá contradizer a justiça.




A inclusão social de acordo com Dom Bosco

A proposta clarividente de Dom Bosco para os “menores desacompanhados” de Roma.

A história da igreja do Sagrado Coração em Roma, agora uma basílica, é bastante conhecida e é muito frequentada por pessoas que passam apressadas pela estação Termini adjacente. Uma história repleta de problemas e dificuldades de todos os tipos para Dom Bosco, enquanto a igreja estava em construção (1880-1887), mas também uma fonte de alegria e satisfação quando foi concluída (1887). Menos conhecida, porém, é a história da origem da “casa de caridade e benefício capaz de acomodar pelo menos 500 jovens” que Dom Bosco queria construir ao lado da igreja. Uma obra, uma reflexão extremamente atual… de 140 anos atrás! O próprio Dom Bosco no-la apresentou no número de janeiro de 1884 do Boletim Salesiano: “Hoje há centenas e milhares de meninos pobres que vagueiam pelas ruas e praças de Roma, pondo em perigo a fé e a moral. Como já lhes tinha assinalado em outras ocasiões, muitos jovens, sozinhos ou com suas famílias, vêm para esta cidade não só de várias partes da Itália, mas também de outras nações, na esperança de encontrar trabalho e dinheiro; mas, decepcionados em suas expectativas, logo caem na miséria e no risco de praticarem o mal e, consequentemente, de serem levados para as prisões”.
Analisar a condição dos jovens na “cidade eterna” não era difícil: a situação preocupante dos “meninos de rua”, fossem eles italianos ou não, estava à vista de todos, das autoridades civis e eclesiásticas, dos cidadãos romanos e da multidão de “piemonteses ignorantes” e estrangeiros que haviam chegado à cidade depois que ela foi declarada capital do Reino da Itália (1871). A dificuldade estava na solução a ser proposta e na capacidade de implementá-la, uma vez identificada.
Dom Bosco, nem sempre muito bem visto na cidade por causa de sua origem piemontesa, propôs sua solução aos Cooperadores: “O objetivo do Internato do Sagrado Coração de Jesus seria o de acolher jovens pobres e abandonados de qualquer cidade da Itália ou de qualquer outro país do mundo, educá-los na ciência e na religião, instruí-los em alguma arte ou ofício e, assim, afastá-los das portas das prisões, devolvê-los às suas famílias e à sociedade civil como bons cristãos, cidadãos honestos, capazes de ganhar um sustento honroso com seu próprio trabalho”.

À frente dos tempos
Acolhimento, educação, formação para o trabalho, integração e inclusão social: mas não é esse o objetivo prioritário de todas as políticas juvenis em favor dos imigrantes hoje? Dom Bosco tinha a seu favor a experiência nesse sentido: durante 30 anos, em Valdocco, acolhiam jovens de várias partes da Itália; durante alguns anos, nas casas salesianas da França, havia filhos de imigrantes italianos e de outros imigrantes; desde 1875, em Buenos Aires, os salesianos cuidavam espiritualmente de imigrantes italianos de várias regiões da Itália (décadas depois, interessar-se-iam também por Jorge Mário Bergoglio, futuro Papa Francisco, filho de imigrantes piemonteses).

A dimensão religiosa
Naturalmente, Dom Bosco estava interessado acima de tudo na salvação da alma dos jovens, o que exigia a profissão da fé católica: “Extra ecclesia nulla salus” [fora da Igreja não há salvação], como se costumava dizer. E, de fato, ele escreveu: “Os outros, então, da cidade e os estrangeiros, por causa de sua pobreza, estão expostos diariamente ao perigo de cair nas mãos dos protestantes, que, por assim dizer, invadiram a cidade de São Pedro e, especialmente, fazem suas emboscadas aos jovens pobres e necessitados e, sob o pretexto de fornecer-lhes comida e roupas para o corpo, espalham o veneno do erro e da descrença em suas almas”.
Isso explica como Dom Bosco, em seu projeto educativo de Roma, gostaríamos de dizer, em seu “pacto global pela educação”, não descuida da fé. Um caminho de verdadeira integração em uma “nova” sociedade civil não pode excluir a dimensão religiosa da população. O apoio papal vem a calhar: um estímulo a mais “para as pessoas que amam a religião e a sociedade”: “Este internato é muito caro ao coração do Santo Padre Leão XIII, que, enquanto com zelo apostólico se empenha em difundir a fé e a moral em todas as partes do mundo, não descuida de nenhuma tentativa em favor das crianças mais expostas ao perigo. Este internato deve, portanto, ser querido ao coração de todas as pessoas que amam a religião e a sociedade; deve ser especialmente querido ao coração de nossos Cooperadores e das nossas Cooperadoras, a quem, de modo especial, o Vigário de Jesus Cristo confiou a nobre tarefa do próprio internato e da Igreja anexa”.
Por fim, em seu apelo à generosidade dos benfeitores para a construção do internato, Dom Bosco não podia deixar de fazer uma referência explícita ao Sagrado Coração de Jesus, a quem a igreja anexa foi dedicada: “Podemos também acreditar com certeza que este internato será bem agradável ao Coração de Jesus… Na Igreja vizinha, o Coração Divino será o refúgio dos adultos, e no Internato anexo ele se mostrará o amigo amoroso, o pai terno das crianças. Ele terá em Roma, todos os dias, um grupo de 500 crianças, que estarão devotamente a seu lado, para rezar, para cantar os seus louvores, para pedir sua santa bênção”.

Novos tempos, novas periferias
O internato salesiano, construído como uma escola de artes e ofícios e um oratório na periferia da cidade – que na época começava na Praça da República – mais tarde foi absorvido pela expansão da construção da própria cidade. A escola primitiva para meninos pobres e órfãos foi transferida para um novo subúrbio em 1930 e foi substituída em etapas sucessivas por vários tipos de escolas (ensino fundamental, médio e superior). Durante algum tempo, também hospedou estudantes salesianos que frequentavam a Universidade Gregoriana e algumas faculdades do Ateneu Salesiano. Permaneceu sempre uma paróquia e um oratório, bem como a sede da Inspetoria Romana. Por muito tempo abrigou vários escritórios nacionais e agora é a sede da Congregação Salesiana: estruturas que animaram e animam as casas salesianas que, em sua maioria, nasceram e cresceram nas periferias de centenas de cidades, ou nas “periferias geográficas e existenciais” do mundo, como disse o Papa Francisco. Como o Sagrado Coração de Roma, que ainda preserva um pequeno sinal do grande “sonho” de Dom Bosco: oferece os primeiros socorros aos imigrantes extracomunitários e, com o “Banco de Talentos” do Centro Juvenil, fornece alimentos, roupas e artigos de primeira necessidade aos sem-teto da estação Termini.




O Vigário do Reitor-Mor. Dom Stefano Martoglio

Temos a alegria de anunciar que Dom Stefano Martoglio foi reeleito como Vigário do Reitor-Mor.
Os capitulares o elegeram hoje por maioria absoluta e na primeira votação.

Desejamos um apostolado frutífero a Dom Stefano e asseguramos-lhe as nossas orações.