Profetas do perdão e da gratuidade

Nestes tempos, em que as notícias, dia após dia, nos comunicam experiências de conflito, guerra e ódio, quão grande é o risco de nós, como crentes, acabarmos envolvidos numa leitura dos acontecimentos que se reduz apenas ao nível político ou nos limitamos a tomar partido por um lado ou outro com argumentos que têm a ver com a nossa maneira de ver as coisas, com a nossa forma de interpretar a realidade.

No discurso de Jesus que segue as bem-aventuranças, há uma série de “pequenas/grandes lições” que o Senhor oferece. Sempre começam com o versículo “vocês ouviram que foi dito”. Em uma delas, o Senhor recorda o antigo ditado “olho por olho e dente por dente” (Mt 5,38).
Fora da lógica do Evangelho, essa lei não só não é contestada, como pode ser tomada como uma regra que expressa a forma de acertar as contas com aqueles que nos ofenderam. Obter vingança é percebido como um direito, chegando até a ser um dever.
Jesus se apresenta diante dessa lógica com uma proposta completamente diferente, totalmente oposta. Ao que ouvimos, Jesus nos diz: “Mas eu lhes digo” (Mt 5,39). E aqui, como cristãos, devemos ter muito cuidado. As palavras de Jesus que seguem são importantes não apenas por si mesmas, mas porque expressam de forma muito sintética toda a sua mensagem. Jesus não veio para nos dizer que há outra maneira de interpretar a realidade. Jesus não se aproxima de nós para ampliar o espectro das opiniões sobre as realidades terrenas, especialmente aquelas que tocam a nossa vida. Jesus não é uma opinião a mais, mas ele próprio encarna a proposta alternativa à lei da vingança.
A frase “mas eu lhes digo” é de fundamental importância porque agora não é mais a palavra pronunciada, mas a própria pessoa de Jesus. O que Jesus nos comunica, ele vive. Quando Jesus diz “não resistam ao perverso; pelo contrário, se alguém lhe der um tapa na face direita, ofereça também a outra” (Mt 5,39), essas mesmas palavras ele viveu em primeira pessoa. Certamente não podemos dizer que Jesus prega bem, mas faz mal com sua mensagem.
Voltando aos nossos tempos, essas palavras de Jesus correm o risco de ser percebidas como as palavras de uma pessoa fraca, reações de quem não é mais capaz de reagir, mas apenas de sofrer. E, de fato, quando olhamos para Jesus que se entrega completamente no madeiro da Cruz, essa é a impressão que podemos ter. No entanto, sabemos muito bem que o sacrifício na cruz é fruto de uma vivência que parte da frase “mas eu lhes digo”. Porque tudo o que Jesus nos disse, ele acabou por assumir plenamente. E, assumindo plenamente, conseguiu passar da cruz à vitória. A lógica de Jesus aparentemente comunica uma personalidade derrotada. Mas sabemos muito bem que a mensagem que Jesus nos deixou, e que ele viveu plenamente, é o remédio de que este mundo hoje realmente precisa.

Ser profetas do perdão significa assumir o bem como resposta ao mal. Significa ter a determinação de que o poder do maligno não condicionará a minha forma de ver e interpretar a realidade. O perdão não é a resposta do fraco. O perdão é o sinal mais eloquente daquela liberdade capaz de reconhecer as feridas que o mal deixa para trás, mas que essas mesmas feridas jamais serão um barril de pólvora que fomenta a vingança e o ódio.
Reagir ao mal com o mal só faz ampliar e aprofundar as feridas da humanidade. A paz e a concórdia não crescem no terreno do ódio e da vingança.

Ser profetas da gratuidade exige de nós a capacidade de olhar para o pobre e para o necessitado não com a lógica do lucro, mas com a lógica da caridade. O pobre não escolhe ser pobre, mas quem está bem tem a possibilidade de escolher ser generoso, bom e cheio de compaixão. Quão diferente seria o mundo se nossos líderes políticos, neste cenário onde crescem os conflitos e as guerras, tivessem a sensatez de olhar para aqueles que pagam o preço dessas divisões, que são os pobres, os marginalizados, aqueles que não podem fugir porque não conseguem.
Se partirmos de uma leitura puramente horizontal, há motivo para desespero. Não nos resta outra coisa senão ficar presos às nossas murmurações e críticas. E, no entanto, não! Nós somos educadores dos jovens. Sabemos bem que esses jovens, neste nosso mundo, estão buscando pontos de referência de uma humanidade saudável, de líderes políticos capazes de interpretar a realidade com critérios de justiça e paz. Mas quando nossos jovens olham ao redor, sabemos bem que percebem apenas o vazio de uma visão pobre da vida.
Nós, que estamos comprometidos com a educação dos jovens, temos uma grande responsabilidade. Não basta comentar a escuridão que deixa uma quase completa ausência de liderança. Não basta comentar que não há propostas capazes de inflamar a memória dos jovens. Cabe a cada um e a cada uma de nós acender essa vela de esperança nesta escuridão, oferecer exemplos de humanidade bem-sucedida no cotidiano.
Realmente vale a pena hoje ser profetas do perdão e da gratuidade.




A síndrome de Filipe e a de André

No relato do evangelho de João, capítulo 6, versículos 4-14, que apresenta a multiplicação dos pães, temos alguns detalhes sobre os quais me detenho um pouco toda vez que medito ou comento esse trecho.

Tudo começa quando, diante da “grande” multidão faminta, Jesus convida os discípulos a assumirem a responsabilidade de alimentá-la. 
Os detalhes de que falo são, primeiro, quando Filipe diz que não é possível assumir esse chamado devido à quantidade de pessoas presentes. André, por sua vez, enquanto observa que “aqui há um menino que tem cinco pães de cevada e dois peixes”, acaba subestimando essa mesma possibilidade com um simples comentário: “mas o que é isso para tanta gente?” (v.9). 
Desejo simplesmente compartilhar com vocês, queridas leitoras e queridos leitores, como nós cristãos, que temos o chamado de compartilhar a alegria da nossa fé, às vezes, sem perceber, podemos ser contagiados pela síndrome de Filipe ou pela de André. Às vezes, talvez até por ambas! 
Na vida da Igreja, assim como na vida da Congregação e da Família Salesiana, os desafios não faltam e nunca faltarão. Nosso chamado não é formar um grupo de pessoas onde se busca apenas estar bem, sem incomodar e sem ser incomodado. Não é uma experiência feita de certezas pré-fabricadas. Fazer parte do corpo de Cristo não deve nos distrair nem nos afastar da realidade do mundo como ele é. Pelo contrário, nos impulsiona a estar plenamente envolvidos nas questões da história humana. Isso significa, antes de tudo, olhar a realidade não apenas com olhos humanos, mas também, e principalmente, com os olhos de Jesus. Somos convidados a responder guiados pelo amor que encontra sua fonte no coração de Jesus, ou seja, viver para os outros como Jesus nos ensina e nos mostra.

A síndrome de Filipe 
A síndrome de Filipe é sutil e por isso muito perigosa. A análise que Filipe faz é justa e correta. Sua resposta ao convite de Jesus não está errada. Seu raciocínio segue uma lógica humana muito linear e sem falhas. Ele olhava a realidade com seus olhos humanos, com uma mente racional e, no fim das contas, não viável. Diante desse modo “racional” de proceder, o faminto para de me interpelar, o problema é dele, não meu. Para ser mais preciso à luz do que vivemos diariamente: o refugiado poderia ficar em sua casa, não deve me incomodar; o pobre e o doente cuidem de si mesmos e não cabe a mim fazer parte do problema deles, muito menos encontrar a solução para eles. Eis a síndrome de Filipe. Ele é um seguidor de Jesus, mas sua maneira de ver e interpretar a realidade ainda está parada, não desafiada, a anos-luz da do seu mestre.

A síndrome de André
Segue a síndrome de André. Não digo que seja pior que a síndrome de Filipe, mas falta pouco para ser mais trágica. É uma síndrome fina e cínica: vê alguma possibilidade, mas não vai além. Há uma pequena esperança, mas humanamente não é viável. Então chega-se a desqualificar tanto o dom quanto o doador. E o doador, que neste caso tem “azar”, é um menino que está simplesmente pronto para compartilhar o que tem! 
Duas síndromes que ainda estão conosco, na Igreja e também entre nós pastores e educadores. Abafar uma pequena esperança é mais fácil do que dar espaço à surpresa de Deus, uma surpresa que pode fazer florescer uma esperança, ainda que pequena. Deixar-se condicionar por clichês dominantes para não explorar oportunidades que desafiam leituras e interpretações redutivas é uma tentação permanente. Se não tomarmos cuidado, nos tornamos profetas e executores da nossa própria ruína. Ao permanecer fechados numa lógica humana, “academicamente” refinada e “intelectualmente” qualificada, o espaço para uma leitura evangélica torna-se cada vez mais limitado e acaba desaparecendo. 
Quando essa lógica humana e horizontal é colocada em crise, para se defender, um dos sinais que surge é o do “ridículo”. Quem ousa desafiar a lógica humana porque deixa entrar o ar fresco do Evangelho será cheio de ridículo, atacado, zombado. Quando isso acontece, estranhamente podemos dizer que estamos diante de um caminho profético. As águas se movem.

Jesus e as duas síndromes
Jesus supera as duas síndromes “pegando” os pães considerados poucos e, por consequência, irrelevantes. Jesus abre a porta para aquele espaço profético e de fé que nos é pedido habitar. Diante da multidão, não podemos nos contentar em fazer leituras e interpretações autorreferenciais. Seguir Jesus implica ir além do raciocínio humano. Somos chamados a olhar os desafios com seus olhos. Quando Jesus nos chama, não pede soluções, mas a doação de todo nós mesmos, com o que somos e o que temos. No entanto, o risco é que, diante do seu chamado, permaneçamos presos, consequentemente escravos, do nosso pensamento e ávidos pelo que acreditamos possuir. 
Só na generosidade fundada no abandono à sua Palavra chegamos a colher a abundância da ação providencial de Jesus. “Eles, então, os recolheram e encheram doze cestos com os pedaços que sobraram dos que tinham comido daqueles cinco pães de cevada” (v.13): o pequeno dom do menino frutifica de maneira surpreendente somente porque as duas síndromes não tiveram a última palavra. 
O Papa Bento comenta assim esse gesto do menino: “Na cena da multiplicação, é também destacada a presença de um menino que, diante da dificuldade de alimentar tanta gente, compartilha o pouco que tem: cinco pães e dois peixes. O milagre não surge do nada, mas de uma primeira modesta partilha do que um simples menino tinha consigo. Jesus não nos pede o que não temos, mas nos mostra que, se cada um oferece o pouco que tem, o milagre pode sempre se realizar novamente: Deus é capaz de multiplicar nosso pequeno gesto de amor e nos tornar participantes do seu dom” (Ângelus, 29 de julho de 2012). 
Diante dos desafios pastorais que temos, diante de tanta sede e fome de espiritualidade que os jovens expressam, tentemos não ter medo, não ficar presos às nossas coisas, aos nossos modos de pensar. Ofereçamos a Ele o pouco que temos, confiemos na luz da sua Palavra e que esta, e somente esta, seja o critério permanente das nossas escolhas e a luz que guia nossas ações.

Foto: Milagre evangélico da multiplicação dos pães e dos peixes, vitral da Abadia de Tewkesbury em Gloucestershire (Reino Unido), obra de 1888, realizada pela Hardman & Co




Mensagem do Padre Fábio Attard na festa do Reitor-Mor

Caríssimos irmãos, caríssimos colaboradores e colaboradoras das nossas Comunidades Educativo-Pastorais, caríssimos jovens,

            Permitam-me compartilhar com vocês esta mensagem que vem do fundo do meu coração. Eu a comunico com todo o carinho, apreço e respeito que tenho por cada um de vocês enquanto se empenham na missão de educadores, pastores e animadores dos jovens em todos os continentes.
            Todos nós sabemos que a educação dos jovens exige cada vez mais pessoas adultas significativas, pessoas com uma espinha dorsal moralmente sólida, capazes de transmitir esperança e visão para o futuro deles.
            Enquanto todos nós estamos comprometidos em caminhar com os jovens, acolhendo-os em nossas casas, oferecendo-lhes oportunidades educativas de todos os tipos e gêneros, na variedade de ambientes que promovemos, também estamos conscientes dos desafios culturais, sociais e econômicos que devemos enfrentar.
            Junto com esses desafios que fazem parte de todo processo educativo-pastoral, por se tratar sempre de um diálogo contínuo com as realidades terrenas, reconhecemos que, como consequência das situações de guerras e conflitos armados em várias partes do mundo, o chamado que vivemos está se tornando mais complexo e difícil. Tudo isso afeta o compromisso que estamos levando adiante. É encorajador ver que, apesar das dificuldades que enfrentamos, estamos determinados a continuar vivendo a nossa missão com convicção.
            Nestes últimos meses, a mensagem do Papa Francisco e agora a palavra do Papa Leão XIV têm convidado continuamente o mundo a encarar essa dolorosa situação que parece uma espiral que cresce de forma assustadora. Sabemos que as guerras nunca produzem paz. Estamos conscientes, e alguns de nós o estão vivendo na linha de frente, que todo conflito armado e toda guerra trazem sofrimento, dor e aumentam todo tipo de pobreza. Todos nós sabemos que aqueles que acabam pagando o preço dessas situações são os deslocados, os idosos, as crianças e os jovens que se encontram sem presente e sem futuro.
            Por esse motivo, queridos irmãos, queridos colaboradores e jovens do mundo todo, gostaria de pedir gentilmente que, para a festa do Reitor-Mor, que é uma tradição que remonta aos tempos de Dom Bosco, cada comunidade celebre a Santa Eucaristia pela paz ao redor do dia da festa do Reitor-Mor.
            É um convite à oração que tem a sua fonte no sacrifício de Cristo, crucificado e ressuscitado. Uma oração como testemunho para que ninguém permaneça indiferente diante de uma situação mundial abalada por um número crescente de conflitos.
            Este nosso é um gesto de solidariedade para com todos aqueles, especialmente salesianos, leigos e jovens, que neste momento particular, com grande coragem e determinação, continuam a viver a missão salesiana em meio a situações marcadas por guerras. São salesianos, leigos e jovens que pedem e valorizam a solidariedade de toda a Congregação, solidariedade humana, solidariedade espiritual, solidariedade carismática.
            Enquanto de minha parte e de todo o Conselho Geral estamos fazendo o que é possível para estar muito próximos de todos de forma concreta, acredito que neste momento particular deve ser dado esse sinal de proximidade e encorajamento por parte de toda a Congregação.
            A vocês, queridos irmãos e queridas irmãs em Myanmar, Ucrânia, Oriente Médio, Etiópia, Leste da República Democrática do Congo, Nigéria, Haiti e América Central, queremos dizer em voz alta que estamos com vocês. Agradecemos o seu testemunho. Asseguramos a nossa proximidade humana e espiritual.
            Continuemos a rezar pelo dom da paz. Continuemos a rezar por esses nossos irmãos, leigos e jovens que, vivendo em situações muito difíceis, continuam a esperar e a rezar para que surja a paz. O exemplo deles, a doação de si mesmos e a sua pertença ao carisma de Dom Bosco, é para nós um testemunho forte. Eles, junto com muitas pessoas consagradas, sacerdotes e leigos comprometidos, são os mártires modernos, ou seja, testemunhas da educação e da evangelização, que apesar de tudo, como verdadeiros pastores e ministros da caridade evangélica, continuam a amar, acreditar e esperar por um futuro melhor.
            Todos nós assumimos com todo o nosso coração este chamado à solidariedade. Obrigado.

Prot. 25/0243 Roma, 24 de junho de 2025
don Fabio ATTARD,
Reitor-Mor

Foto: shutterstock.com




Quando o Senhor bate à porta

Um confrade me disse: «Padre, só precisamos da sua proximidade, da sua escuta, da sua oração. Isso nos consola, nos encoraja e nos dá força e esperança para continuarmos a servir os jovens, pobres e feridos, assustados e aterrorizados!»

Em 25 de março de 2025 a Igreja celebra a solenidade da Anunciação do Anjo Gabriel a Maria. Uma das solenidades mais significativas para a fé cristã. Nesta solenidade fazemos memória da iniciativa de Deus que passa a fazer parte daquela história humana que Ele mesmo criou. Naquele dia, na Santa Eucaristia, nós recitamos o Credo e, quando professamos que o Filho de Deus se fez homem, nós, pela nossa fé nos ajoelhamos como sinal de admiração por esta maravilhosa iniciativa de Deus, diante da qual só nos resta colocar-se de joelhos.
Na experiência da Anunciação, Maria tem medo: “Não temas, Maria”, diz-lhe o Anjo. Depois de ter feito as suas perguntas, asseguradando-se de que se trata do projeto de Deus para ela, Maria responde com uma simples frase que permanece para nós, hoje, como um apelo e um convite. Maria, a Bendita entre as mulheres, diz simplesmente: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”.
No dia 25 de março passado, o Senhor bateu à porta do meu coração através do chamado que me fizeram os meus irmãos no Capítulo Geral 29º. Pediram-me para me colocar à disposição para assumir a missão de ser Reitor-Mor dos Salesianos de Dom Bosco, a Congregação de São Francisco de Sales. Confesso que naquele momento senti o peso do convite, daquelas coisas que nos que desorientam visto que aquilo que o Senhor estava me pedindo não era uma coisa simples. A questão é que, quando chega o chamado a quem crê, nós entramos naquele espaço sagrado onde fortemente nos damos conta de que é Ele quem toma a iniciativa. O caminho diante de nós é apenas o de simplesmente abandonar-se nas mãos de Deus, sem “se” e sem “mas”. E tudo isso, obviamente, não é fácil.

«Verás como o Senhor age»
Nestas primeiras semanas ainda me pergunto, como Maria, o que significa isso tudo? Depois, pouco a pouco, começo a sentir aquela mesma consolação que um nosso Inspetor Salesiano contava: “Quando o Senhor chama, é Ele quem toma a iniciativa e é d’Ele que depende o que se faz. Apenas estejas preparado e disponível. Verás como o Senhor age”.
À luz desta experiência pessoal, mas de alcance muito amplo, já que se trata da Congregação e da Família Salesiana, dirigi-me imediatamente aos meus caros irmãos Salesianos. Desde o primeiro momento, pedi-lhes que me acompanhassem com a sua oração, a sua proximidade, o seu apoio.
Devo confessar que já nestas primeiras semanas percebo que esta missão deve inspirar-se em Maria. Ela, após o anúncio do Anjo, pôs-se a caminho para ajudar a sua prima Isabel. E assim me coloquei ao serviço dos meus irmãos, a ouvi-los, compartilhando e assegurando-lhes o apoio de toda a Congregação, especialmente para aqueles que vivem em situações de guerras, conflitos e pobreza extrema.
Impressionou-me o comentário de um Inspetor que, com os seus irmãos salesianos, está vivendo uma situação extremamente difícil. Após um colóquio muito fraterno, disse-me: “Padre, só precisamos da sua proximidade, da sua escuta, da sua oração. Isso nos consola, nos encoraja e nos dá força e esperança para continuarmos a servir os jovens, pobres e feridos, assustados e aterrorizados”! Após este comentário, ficamos em silêncio, ele e eu, e dos seus olhos caíam algumas lágrimas, assim como também dos meus.
Terminado o encontro, fiquei sozinho no meu escritório. Perguntei-me se esta missão que o Senhor me pede para aceitar não é, porventura, a de tornar-me irmão ao lado dos meus irmãos que sofrem, mas não perdem a esperança? Que lutam para fazer o bem pelos pobres e não têm nenhuma intenção de parar? Sentia dentro de mim uma voz que me dizia que vale a pena dizer ‘sim’ quando o Senhor bate à porta, custe o que custar!




Discurso do Reitor-Mor no encerramento do Capítulo Geral 29

Caríssimos irmãos,

Chegamos ao fim da experiência do XXIX Capítulo Geral com o coração cheio de alegria e gratidão por tudo o que pudemos vivenciar, compartilhar e planejar. O dom da presença do Espírito de Deus, que suplicamos todos os dias na oração da manhã e durante o trabalho mediante o diálogo no Espírito, foi a força central da experiência do Capítulo Geral. Buscamos o protagonismo do Espírito e ele nos foi concedido em abundância.
A celebração de cada Capítulo Geral é como um marco na vida de toda congregação religiosa. Isso também é verdade para nós, para a nossa amada Congregação Salesiana. É um momento que dá continuidade ao caminho que, desde Valdocco, continua a ser vivido com empenho e levado adiante com zelo e determinação nas várias partes do mundo.
Chegamos ao final deste Capítulo Geral com a aprovação do Documento Final que servirá como nossa carta de navegação para os próximos seis anos – 2025-2031. Veremos e sentiremos o valor do Documento Final à medida que a mesma dedicação à escuta, a mesma preocupação de nos deixarmos acompanhar pelo Espírito Santo que marcou estas semanas, conseguirmos manter após a conclusão desta experiência salesiana de pentecostes.
Desde o início, desde que o Reitor-Mor P. Ángel Fernández Artime tornou pública a Carta de Convocação para o Capítulo Geral 29, em 24 de setembro de 2023, ACG 441, eram claras as motivações que deveriam guiar os trabalhos pré-capitulares e, mais tarde, os trabalhos do mesmo Capítulo Geral. O Reitor-Mor escreve que:

O tema escolhido é fruto de uma rica e profunda reflexão que fizemos no Conselho-Geral, com base nas respostas recebidas das Inspetorias e da visão que temos da Congregação neste momento. Ficamos agradavelmente surpresos com a grande convergência e harmonia encontradas em muitas contribuições das Inspetorias, que tinham muito a ver com a realidade que encontramos na Congregação, com o caminho de fidelidade que há em muitos setores e também com os desafios do momento presente. (ACG 441)

O processo de escuta das Inspetorias, que levou à identificação do tema para este Capítulo Geral, já é uma indicação clara da metodologia da escuta. À luz do que vivemos nestas semanas, confirma-se o valor do processo de escuta. O modo como primeiro identificamos e depois interpretamos os desafios que a Congregação está decidida a enfrentar evidenciou aquele nosso clima tipicamente salesiano, o espírito de família, que não quer evitar os desafios, que não procura padronizar o pensamento, mas que faz o possível para chegar ao espírito de comunhão em que cada um de nós pode reconhecer o modo de ser Dom Bosco hoje.
O ponto central dos desafios identificados tem a ver com a “referência à centralidade de Deus (como Trindade) e de Jesus Cristo como Senhor da nossa vida, sem jamais esquecer os jovens e o nosso compromisso em relação a eles” (ACG 441). A condução dos trabalhos do Capítulo Geral atesta não só que temos a capacidade de identificar desafios, mas também de encontrar maneiras de trazer à tona harmonia e unidade, reconhecendo e valorizando o fato de encontra-nos em diferentes continentes e contextos, diferentes culturas e línguas. Além disso, esse clima confirma que, quando olhamos para a realidade de hoje com os olhos e o coração de Dom Bosco, quando somos verdadeiramente apaixonados por Cristo e consagrados aos jovens, descobrimos que a diversidade se transforma em riqueza, que caminhar juntos é belo, embora cansativo, que juntos podemos enfrentar desafios.
Em um mundo fragmentado por guerras, conflitos e ideologias que despersonalizam, em um mundo marcado por pensamentos e modelos econômicos e políticos que privam os jovens do seu protagonismo, a nossa presença é um sinal, um «sacramento» de esperança. Os jovens, independentemente da cor da pele, da pertença religiosa ou étnica, pedem-nos para promover propostas e lugares de esperança. Eles são filhas e filhos de Deus à espera de sermos servos humildes.
Um segundo ponto, confirmado e reafirmado por este Capítulo Geral, é a convicção compartilhada de que “se faltassem em nossa Congregação a fidelidade e a profecia, seríamos como uma luz que não brilha e um sal sem sabor” (ACG 441). A questão aqui não é tanto se queremos ou não ser mais autênticos, mas que esse é o único caminho que temos e é o que foi enfatizado intensamente nestas semanas: crescer em autenticidade!
A coragem demonstrada em alguns momentos do Capítulo Geral é uma excelente premissa para a coragem que será exigida de nós no futuro em outros temas que surgiram deste Capítulo Geral. Tenho certeza de que essa coragem encontrou aqui um terreno fértil, um ecossistema saudável e promissor para o futuro. Ter coragem significa não deixar que o medo tenha a última palavra. A parábola dos talentos ensina-o claramente. O Senhor deu-nos apenas um talento: o carisma salesiano, concentrado no Sistema Preventivo. A cada um de nós será perguntado o que fizemos com esse talento. Juntos, somos chamados a fazê-lo frutificar em contextos desafiadores, novos e inéditos. Não temos motivos para enterrá-lo. Temos muitas motivações, muitos gritos de jovens que nos incitam a «sair» e semear esperança. Este passo corajoso, cheio de convicção, já foi dado por Dom Bosco no seu tempo e hoje ele nos pede que o vivamos como ele e com ele.

Gostaria de comentar alguns pontos que já constam no Documento Final e que, acredito, possam servir de setas para nos encorajar em nosso caminho nos próximos seis anos.

1. Conversão pessoal
O nosso caminho como Congregação Salesiana depende das escolhas pessoais, íntimas e profundas que cada um de nós decide fazer. Alargando o plano de fundo com que devemos refletir sobre o tema da conversão pessoal, é importante recordar como, nestes anos após o Concílio Vaticano II, a Congregação trilhou um caminho de reflexão espiritual, carismática e pastoral magistralmente comentado pelo P. Pascual em suas intervenções semanais. Essa leitura e essa contribuição enriquecem ainda mais a importante reflexão que o Reitor-Mor, P. Egídio Viganò, nos deixou em sua última carta à Congregação: Como reler hoje o carisma do Fundador (ACG 352, 1995). Se hoje falamos de uma “mudança de época”, o P. Viganò escrevia em 1995:

A releitura do carisma do nosso Fundador está nos empenhando já há bem trinta anos. Dois grandes fachos de luz nos ajudaram nesse trabalho: primeiro, o Concílio Ecumênico Vaticano II, segundo, a transformação epocal desta hora de aceleração histórica (ACG 352, 1995).

Refiro-me a esse caminho da Congregação, com suas riquezas e patrimônio, porque o tema da conversão pessoal é o espaço em que este caminho da Congregação encontra a sua confirmação e o seu impulso ulterior. A conversão pessoal não é um assunto intimista e autorreferencial. Não se trata de um chamado que toca somente a mim, de uma maneira desvinculada de tudo e de todos. A conversão pessoal é aquela experiência singular de onde sairá e emergirá depois uma pastoral renovada. Podemos constatá-lo porque encontra o seu ponto de partida no coração de cada um de nós. A partir disso, podemos notar a contínua e convicta renovação pastoral. O Papa Francisco condensa essa urgência em uma frase: “A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão «reveste essencialmente a forma de comunhão missionária»” (Christifideles laici 32, Evangelii Gaudium 23).
Isso nos leva a descobrir que, quando insistimos na conversão pessoal, devemos ter o cuidado de não cair, por um lado, numa interpretação intimista da experiência espiritual e, por outro, de não subestimar aquilo que é o fundamento de todo caminho pastoral.
Diante do apelo de renovada paixão por Jesus, convido cada salesiano e cada comunidade a levar a sério as opções e os compromissos concretos que, como Capítulo Geral, consideramos urgentes para um testemunho educativo-pastoral mais autêntico. Acreditamos que não podemos crescer pastoralmente sem essa atitude de escuta da Palavra de Deus. Reconhecemos que os vários empenhos pastorais que temos, as necessidades sempre crescentes que nos são apresentadas e que testemunham uma pobreza que nunca se detém, correm o risco de nos tirar o tempo necessário para «estar com Ele». Já encontramos esse desafio desde o início da nossa Congregação. É uma questão de ter prioridades claras que fortaleçam a nossa espinha dorsal espiritual e carismática que dá alma e credibilidade à nossa missão.
O P. Alberto Caviglia, ao comentar o tema da “Espiritualidade Salesiana” em suas Conferências sobre o Espírito Salesiano, escreve:

A maior admiração daqueles que estudaram Dom Bosco para o processo de canonização… foi a descoberta do incrível trabalho de construção do homem interior.
O Card. Salotti (…), referindo-se aos estudos que estava a fazer, disse ao Santo Padre que «ao estudar os volumosos processos de Turim, mais do que a grandeza exterior da sua obra colossal, ficou impressionado com a vida interior do espírito, de onde nasceu e alimentou-se todo o prodigioso apostolado do Ven. Dom Bosco».
Muitos conhecem apenas o trabalho externo que parece muito rumoroso, mas ignoram em grande parte aquele sábio e sublime edifício de perfeição cristã que ele havia erigido pacientemente em sua alma, exercitando-se todos os dias, a cada hora, na virtude própria do seu estado.

Caríssimos irmãos, aqui temos o nosso Dom Bosco. É este Dom Bosco que hoje somos chamados a descobrir:

Nós o estudamos e imitamos, admirando nele esplêndida harmonia de natureza e graça. Profundamente homem, rico das virtudes do seu povo, era aberto às realidades terrenas; profundamente homem de Deus, cheio dos dons do Espírito Santo, vivia “como se visse o invisível”.
Esses dois aspectos fundiram-se num projeto de vida fortemente unitário: o serviço dos jovens. Realizou-o com firmeza e constância, por entre obstáculos e canseiras, com sensibilidade de um coração generoso. “Não deu passo, não pronunciou palavra, nada empreendeu que não visasse à salvação da juventude… Realmente tinha a peito tão somente as almas” (Const. 21).

Agrada-me recordar aqui um convite feito pela Madre Teresa a suas irmãs poucos anos antes da sua morte. A sua dedicação e a das suas irmãs aos pobres é conhecida por todos. Mas nos faz bem ouvir essas palavras que ela escreveu para suas irmãs:

Enquanto não conseguires ouvir Jesus no silêncio do teu coração, não conseguirás ouvi-lo dizer «tenho sede» no coração dos pobres. Jamais desistas desse contato íntimo e cotidiano com Jesus como uma pessoa real e viva, não só como uma ideia. (“Until you can hear Jesus in the silence of your own heart, you will not be able to hear him saying, “I thirst” in the hearts of the poor. Never give up this daily intimate contact with Jesus as the real living person – not just the idea”, in https://catholiceducation.org/en/religion-and- philosophy/the-fulfillment-jesus-wants-for-us.html)

Só escutando no fundo do coração àquele que nos chama a segui-lo, Jesus Cristo, podemos realmente escutar com um coração autêntico aqueles que nos chamam a servi-los. Se a motivação radical de sermos servos não encontrar suas raízes na pessoa de Cristo, a alternativa é que a nossa motivação seja nutrida pelo terreno do nosso ego. E a consequência é que a nossa própria ação pastoral acaba por inflacionar o próprio ego. A urgência de recuperar nestas semanas o espaço místico, o terreno sagrado do encontro com Deus, um terreno onde devemos tirar as sandálias das nossas certezas e das nossas maneiras de interpretar a realidade com os seus desafios, foi reiterada várias vezes e de várias maneiras.
Caríssimos irmãos, temos aqui o primeiro passo. Aqui comprovamos se queremos realmente ser filhos autênticos de Dom Bosco. Aqui comprovamos se realmente amamos e imitamos Dom Bosco.

2. Conhecer Dom Bosco não só amar Dom Bosco
Estamos cientes de que um dos desafios centrais que temos como Salesianos é comunicar a Boa Nova com o nosso testemunho e com as nossas propostas educativas e pastorais numa cultura que está passando por uma mudança radical. Se no Ocidente falamos de indiferença à proposta religiosa como resultado do desafio da secularização, notamos que em outros continentes o desafio assume outras formas, antes de tudo a mudança para uma cultura globalizada que altera radicalmente a escala dos valores e dos estilos de vida. Em um mundo fluido e hiperconectado, o que conhecíamos ontem mudou radicalmente hoje: em suma, estamos lidando aqui com o tema frequentemente mencionado da mudança de época.
Tendo essa mudança os seus efeitos complexos, é positivo ver como a Congregação desde o CGE (1972) até hoje vive num contínuo caminho de repensamento e reflexão sobre a sua proposta educativo-pastoral. Trata-se de um processo que responde à questão sobre “o que faria Dom Bosco hoje, numa cultura secularizada e globalizada como a nossa?”
Em todo esse movimento, reconhecemos que, desde as suas origens, a beleza e a força do carisma salesiano residem precisamente na sua capacidade interna de dialogar com a história dos jovens que somos chamados a encontrar em cada época. O que contemplamos em Valdocco, nesta terra santa salesiana, é o sopro do Espírito que guiou Dom Bosco e que reconhecemos continuar a nos guiar-nos hoje. As Constituições começam exatamente com essa certeza fundante e fundamental:

O Espírito Santo, com a maternal intervenção de Maria, suscitou São João Bosco.
Formou nele um coração de pai e mestre, capaz de doação total: “Prometi a Deus que até meu último alento seria para meus pobres jovens”.
Para prolongar no tempo a sua missão, guiou-o na criação de várias forças apostólicas, sendo a primeira delas a nossa Sociedade.
A Igreja reconheceu nisso a ação de Deus, sobretudo ao aprovar as Constituições e proclamar santo o Fundador.
Desta presença ativa do Espírito haurimos a energia para a nossa fidelidade e o apoio da nossa esperança. (Const. 1)

O carisma salesiano contém um convite inato a colocar-nos diante dos jovens da mesma forma de Dom Bosco ao colocar-se diante de Bartolomeu Garelli… «seu amigo»!
Tudo isso parece muito fácil de dizer, parece uma exortação amigável. Na realidade, ela esconde em si o convite urgente a nós, filhos de Dom Bosco, para que, no atual momento histórico em que vivemos, reproponhamos o carisma salesiano de modo adequado e significativo. Há, porém, uma condição indispensável que nos permite fazer esse caminho: o conhecimento verdadeiro e sério do bom Dom Bosco. Não podemos dizer que «amamos» Dom Bosco de verdade se não estivermos seriamente empenhados em «conhecer» Dom Bosco.
Muitas vezes, o risco é satisfazer-nos com um conhecimento de Dom Bosco que não se conecta com os desafios de hoje. Com um conhecimento superficial de Dom Bosco, somos realmente pobres daquela bagagem carismática que nos torna seus filhos autênticos. Sem conhecer Dom Bosco, não podemos e não chegamos a encarnar Dom Bosco nas culturas onde estamos. Qualquer esforço nessa pobreza de conhecimento carismático resulta apenas em operações carismáticas cosméticas, que, no final, são uma traição à mesma herança de Dom Bosco.
Se quisermos que o carisma salesiano seja capaz de dialogar com a cultura de hoje, com as culturas de hoje, devemos aprofundá-lo continuamente por si mesmo e à luz das condições sempre mutáveis em que vivemos. A bagagem que recebemos no início da nossa fase formativa inicial, se não for seriamente aprofundada hoje, não é suficiente, é simplesmente inútil, se não for até mesmo prejudicial.
Nessa direção, a Congregação fez e está fazendo um enorme esforço para reler a vida de Dom Bosco, o carisma salesiano à luz das atuais condições sociais e culturais, em todas as partes do mundo. É um patrimônio que temos, mas corremos o risco de não o conhecer porque não o estudamos como ele merece. A perda da memória corre o risco não só de nos fazer perder o contato com o tesouro que temos, mas também de nos fazer acreditar que esse tesouro não existe. E isso será realmente trágico, não tanto e somente para nós salesianos, mas para aquelas multidões de jovens que nos esperam.
A urgência deste aprofundamento não é apenas de natureza intelectual, mas toca a sede que existe de uma formação carismática séria dos leigos em nossas CEPs. O Documento Final trata dessa questão de forma frequente e sistemática. Os leigos que hoje participam conosco da missão salesiana são pessoas ávidas de uma proposta salesiana de formação mais clara. Não podemos viver esses espaços de convergência educativo-pastoral se a nossa linguagem e o nosso modo de comunicar o carisma não tiverem a capacidade cognitiva e a preparação adequada para despertar a curiosidade e a atenção daqueles que vivem conosco a missão salesiana.
Não basta dizer que amamos Dom Bosco. O verdadeiro «amor» a Dom Bosco envolve o empenho de conhecê-lo e estudá-lo, e não apenas à luz do seu tempo, mas também à luz do grande potencial da sua atualidade, à luz do nosso tempo. O Reitor-Mor, P. Pascual Chávez, convidou a Congregação e a Família Salesiana para isso nos três anos que precederam o «Bicentenário do nascimento de Dom Bosco 1815-2013».  É um convite mais atual do que nunca. Este Capítulo Geral é um apelo e uma oportunidade para reforçar o conhecimento histórico, pedagógico e espiritual do nosso Pai e Mestre (P. Pascual Chávez, Estreia 2012, “Conhecendo e imitando Dom Bosco, façamos dos jovens a missão da nossa vida” [ACG 412])
Reconheçamos, caríssimos irmãos que, neste ponto, este tema se liga ao anterior: a conversão pessoal. Se não conhecermos Dom Bosco e não o estudarmos, não poderemos compreender a dinâmica e as lutas do seu itinerário espiritual e, consequentemente, as raízes das suas opções pastorais. Nós o amaremos apenas de modo superficial, sem a verdadeira capacidade de imitá-lo como um homem profundamente santo. Acima de tudo, será impossível inculturar o seu carisma hoje nos diversos contextos e situações. Somente ao fortalecer a nossa identidade carismática poderemos oferecer à Igreja e à sociedade um testemunho credível e uma proposta educativo-pastoral significativa e relevante para os jovens.

3. O caminho continua
Nesta terceira parte, gostaria de encorajar a Congregação inteira a manter viva a atenção em determinadas áreas que, por meio de várias Deliberações e empenhos concretos, quisemos dar um sinal de continuidade.
O campo da animação e coordenação da marginalização e da insatisfação juvenil é uma área em que a Congregação tem se empenhado muito nas últimas décadas. Creio que a resposta das Inspetorias à pobreza crescente é um sinal profético que nos distingue e nos vê a todos determinados a continuar a reforçar a resposta salesiana em favor dos mais pobres.
O empenho das Inspetorias no campo da promoção de ambientes seguros continua a encontrar uma resposta crescente e profissional nas Inspetorias. O esforço nesse campo testemunha que esse caminho é o correto para afirmar o compromisso com a dignidade de todos, especialmente dos mais vulneráveis.
O campo da ecologia integral surge como apelo para um maior trabalho educativo- pastoral. A atenção crescente das comunidades educativo-pastorais às questões ambientais exige uma ação sistemática para promover mudanças de mentalidade. As várias propostas de formação nessa área, já presentes na Congregação, devem ser reconhecidas e acompanhadas.
Depois, há duas áreas que eu gostaria de convidar a Congregação a considerar cuidadosamente nos próximos anos. Elas fazem parte de uma visão mais ampla do trabalho da Congregação. Acredito que essas duas áreas terão consequências substanciais para os nossos processos educativo-pastorais.

3.1 Inteligência artificial – uma missão real num mundo artificial
Como Salesianos de Dom Bosco, somos chamados a caminhar com os jovens em todos os ambientes onde vivem e crescem, inclusive no vasto e complexo mundo digital. Hoje, a Inteligência Artificial (IA) apresenta-se como uma inovação revolucionária, capaz de moldar a maneira como as pessoas aprendem, comunicam-se e constroem relacionamentos. Entretanto, por mais revolucionária que seja, a IA continua a ser exatamente isso: artificial. O nosso ministério, enraizado na conexão humana autêntica e orientado pelo Sistema Preventivo, é profundamente real. A IA pode assessorar, mas não pode amar como nós. Pode organizar, analisar e ensinar de maneiras novas, mas jamais poderá substituir o toque relacional e pastoral que define a nossa missão salesiana.
Dom Bosco era um visionário sem medo de inovar, tanto em nível eclesial quanto em nível educativo, cultural e social. Quando essa inovação servia ao bem dos jovens, Dom Bosco avançava com uma velocidade surpreendente. Ele explorou a imprensa, os novos métodos educativos e as oficinas para elevar os jovens e prepará-los para a vida. Se estivesse entre nós hoje, sem dúvida olharia para a IA com um olhar crítico e criativo. Vê-la-ia não como um fim, mas como um meio, um instrumento para ampliar a eficácia pastoral sem perder de vista a pessoa humana no centro.
A Inteligência Artificial não é apenas um instrumento: ela faz parte da nossa missão como Salesianos que vivem na era digital. O mundo virtual não é mais um espaço separado, mas uma parte integrante da vida cotidiana dos jovens. A inteligência artificial pode ajudar-nos a responder às suas necessidades de forma mais eficiente e criativa, oferecendo caminhos personalizados de aprendizagem, orientação virtual e plataformas que promovem conexões significativas.
Nesse sentido, a inteligência artificial torna-se tanto um instrumento quanto uma missão, pois ajuda-nos a alcançar os jovens onde eles estão, geralmente imersos no mundo digital. Ao mesmo tempo em que adotamos a IA, devemos reconhecer que ela é apenas um aspecto de uma realidade muito ampla que inclui a mídia social, as comunidades virtuais, a narração digital e muito mais. Juntos, esses elementos formam uma nova fronteira pastoral que nos desafia a estar presentes e a ser proativos. A nossa missão não é simplesmente usar a tecnologia, mas evangelizar o mundo digital, levando o Evangelho a espaços onde, de outra forma, ele poderia estar ausente.
A nossa resposta à IA e aos desafios digitais deve estar enraizada no espírito salesiano de otimismo e empenho proativo. Continuemos a caminhar com os jovens, mesmo no vasto mundo digital, com os corações cheios de amor, porque eles são apaixonados por Cristo e enraizados no carisma de Dom Bosco. O futuro é brilhante quando a tecnologia está a serviço da humanidade e quando a presença digital está cheia do autêntico ardor salesiano e da ação pastoral. Abracemos este novo desafio, confiantes de que o espírito de Dom Bosco haverá de guiar-nos em cada nova oportunidade.

3.2 A Universidade Pontifícia Salesiana
A Universidade Pontifícia Salesiana (UPS) é a Universidade da Congregação Salesiana, de todos nós. Ela constitui uma estrutura de grande e estratégica importância para a Congregação. A sua missão consiste em fazer o carisma dialogar com a cultura, a energia da experiência educativo-pastoral de Dom Bosco com a pesquisa acadêmica, de modo a desenvolver uma proposta educativa de alto nível a serviço da Congregação, da Igreja e da sociedade.
Desde o início, a nossa Universidade desempenhou um papel insubstituível na formação de muitos irmãos para funções de animação e governo, e ainda desempenha essa valiosa tarefa. Em uma época marcada pela desorientação generalizada em relação à gramática do ser humano e ao significado da existência, pela desintegração do vínculo social e pela fragmentação da experiência religiosa, pelas crises internacionais e pelos fenômenos migratórios, uma Congregação como a nossa é chamada com urgência a enfrentar a missão educativo-pastoral, servindo-se dos sólidos recursos intelectuais que se desenvolvem em uma universidade.
Como Reitor-Mor e como Grão-Chanceler da UPS, desejo reiterar que as duas prioridades fundamentais da Universidade da Congregação são a formação de educadores e pastores, salesianos e leigos, a serviço dos jovens, e o aprofundamento cultural – histórico, pedagógico e teológico – do carisma. Ao redor desses dois pilares, que requerem diálogo interdisciplinar e atenção intercultural, a UPS é chamada a cumprir com o seu compromisso com a pesquisa, o ensino e a transmissão do conhecimento. Por isso, estou muito contente que, em vista do 150º aniversário do texto de Dom Bosco sobre o Sistema Preventivo, tenha sido lançado um projeto sério de pesquisa, em colaboração com a Faculdade “Auxilium” das FMA, para focalizar a inspiração original da práxis educativa de Dom Bosco e examinar o modo como ela inspira as práticas pedagógicas e pastorais de hoje na diversidade dos contextos e das culturas.
O governo e a animação da Congregação e da Família Salesiana serão certamente beneficiados com o trabalho cultural da Universidade, como também, com o estudo acadêmico, receberão uma linfa preciosa ao manter contato estreito com a vida da Congregação e o seu serviço cotidiano aos jovens mais pobres em todas as partes do mundo.

3.3 150 anos – a viagem continua
Somos chamados a dar graças e louvar a Deus neste Ano Jubilar da Esperança, porque neste ano recordamos o empenho missionário de Dom Bosco, que encontrou um momento muito significativo de desenvolvimento no ano de 1875. A reflexão que nos é oferecida na Estreia 2025 pelo Vigário do Reitor-Mor, P. Stefano Martoglio, recorda-nos o tema central do 150º aniversário da primeira expedição missionária de Dom Bosco: reconhecer, repensar e relançar.
À luz do 29º Capítulo Geral que estamos a concluir, isso nos ajuda a situar esse convite no sexênio que temos pela frente. Somos chamados a ser reconhecidos porque “a gratidão torna evidente a paternidade de toda bela realização. Sem gratidão não há capacidade de acolher”.
Ao reconhecimento, acrescentamos o dever de repensar a nossa fidelidade, porque “a fidelidade envolve a capacidade de mudar, na obediência, para uma visão que vem de Deus e da leitura dos «sinais dos tempos»… Repensar torna-se, então, um ato gerador, em que se unem fé e vida; um momento em que nos perguntamos: o que queres dizer-nos, Senhor?”
Enfim, a coragem de relançar, de recomeçar todos os dias. Como estamos a fazer nestes dias, olhamos adiante para “acolher os novos desafios, relançando a missão com esperança”. (Porque a) Missão é levar a esperança de Cristo com uma consciência clara e lúcida, unida à fé”.

4. Conclusão
Ao final deste discurso de encerramento, gostaria de apresentar uma reflexão de Tomáš HALÍK, tirada do seu livro Il pomeriggio del cristianesimo[A tarde do cristianismo] (HALÍK, Tomáš, Pomeriggio del cristianesimo. Il coraggio di cambiare. Edizioni Vita e Pensiero, Milano 2022). No último capítulo do livro, que traz o título de “A Sociedade do caminho”, o autor apresenta quatro conceitos eclesiológicos.
Acredito que esses quatro conceitos eclesiológicos podem ajudar-nos a interpretar positivamente as grandes oportunidades pastorais que nos aguardam. Proponho esta reflexão com a consciência de que aquilo que o autor propõe está intimamente ligado ao coração do carisma salesiano. É impressionante e surpreendente que, quanto mais nos empenhamos em fazer uma leitura pastoral carismática, pedagógica e cultural da realidade de hoje, a convicção de que o nosso carisma nos dá uma base sólida para que os vários processos que estamos a acompanhar possam encontrar o seu devido lugar em um mundo onde os jovens esperam que lhes seja oferecida esperança, alegria e otimismo. É bom reconhecer com grande humildade, mas ao mesmo tempo com grande senso de responsabilidade, que o carisma de Dom Bosco continua a oferecer hoje diretrizes, não só para nós, como também para toda a Igreja.

4.1 A Igreja como povo de Deus em peregrinação pela história. Essa imagem descreve uma Igreja em movimento e em luta contra as incessantes mudanças. Deus plasma a forma da Igreja na história, revela-se a ela por meio da história e transmite-lhe os seus ensinamentos por meio de eventos históricos. Deus está na história. (HALÍK, Tomáš, Pomeriggio del cristianesimo, p. 229)

O nosso chamado a ser educadores e pastores consiste precisamente em caminhar com o rebanho nessa história, nessa sociedade em constante mudança. A nossa presença nos vários “pátios da vida das pessoas” é a presença sacramental de um Deus que quer encontrar aqueles que o buscam, sem o saber. Nesse contexto, “o sacramento da presença” adquire para nós um valor inestimável, porque se entrelaça com as eventualidades históricas dos nossos jovens e de todos aqueles que vêm até nós nas várias expressões da missão salesiana – o PÁTIO.

4.2 A ‘escola’ é a segunda visão da Igreja – escola de vida e escola de sabedoria. Vivemos em uma época em que nem a religião tradicional nem o ateísmo dominam o espaço público de muitos países europeus, mas sim o agnosticismo, o apateísmo e o analfabetismo religioso… Há, nesta época, uma necessidade urgente de que a sociedade cristã se transforme em uma “escola”, seguindo o ideal original das universidades medievais, que foram estabelecidas como comunidades de professores e alunos, comunidades de vida, oração e ensino. (Ibid., pp. 231-232)

Ao fazer uma retrospectiva do projeto educativo-pastoral de Dom Bosco desde as suas origens, descobrimos como essa segunda proposta toca diretamente a experiência que oferecemos hoje aos nossos jovens: a escola e a formação profissional. São itinerários educativos como instrumento indispensável para dar vida a um processo integral onde se encontrem cultura e fé. Para nós, hoje, esse espaço é uma excelente oportunidade para dar testemunho da boa nova em encontros humanos e fraternos, educativos e pastorais com muitas pessoas e, sobretudo, com muitas crianças e muitos jovens que se sentem acompanhados para um futuro digno. Para nós, pastores, a experiência educativa é um modo de vida que comunica sabedoria e valores em um contexto que encontra e vai além da resistência e derrete a indiferença com empatia e proximidade. Caminhar juntos promove um espaço de crescimento integral inspirado na sabedoria e nos valores do Evangelho – a ESCOLA.

4.3 A Igreja como hospital de campanha… Por muito tempo, face a face com as doenças da sociedade, a Igreja limitou-se à moralidade; agora ela se depara com a tarefa de redescobrir e aplicar o potencial terapêutico da fé. A missão diagnóstica deveria ser realizada por aquela disciplina para a qual propus o nome de cairologia – a arte de ler e interpretar os sinais dos tempos, a hermenêutica teológica dos fatos da sociedade e da cultura. A cairologia deve dedicar a sua atenção aos tempos de crise e às mudanças de paradigmas culturais. Deveria senti-las como parte de uma ‘pedagogia de Deus’, como um momento oportuno para aprofundar a reflexão sobre a fé e renovar a sua prática. De certa forma, a cairologia desenvolve o método de discernimento espiritual, que é um componente importante da espiritualidade de Santo Inácio e seus discípulos; ela aplica-o ao aprofundar e avaliar o estado atual do mundo e as nossas tarefas nele. (Ibid., pp. 233-234)

Este terceiro critério eclesiológico vai ao coração da abordagem salesiana. Não estamos presentes na vida das crianças e dos jovens para condená-los. Nos tornamos disponíveis para oferecer-lhes um espaço saudável de comunhão (eclesial), iluminado pela presença de um Deus misericordioso que não impõe condições a ninguém.Elaboramos e comunicamos as várias propostas pastorais justamente com esta visão de facilitar o encontro dos jovens com uma proposta espiritual capaz de iluminar os tempos em que vivem, de oferecer-lhes uma esperança para o futuro. A proposta da pessoa de Jesus Cristo não é fruto de um estéril confessionalismo ou cego proselitismo, mas a descoberta de uma relação com uma pessoa que oferece amor incondicional a todos. Nosso testemunho e o de todos aqueles que vivem a experiência educativo-pastoral, como comunidade, é o sinal mais eloquente e a mensagem mais crível dos valores que queremos comunicar para poder compartilhá-los – a IGREJA.

4.4 O quarto modelo de Igreja… é necessário que a Igreja institua centros espirituais, lugares de adoração e contemplação, mas também de encontro e diálogo, onde a experiência da fé possa ser compartilhada. Muitos cristãos estão preocupados com o fato de que, em um grande número de países, está se desgastando a rede de paróquias, estabelecida há alguns séculos em uma situação sociocultural e pastoral completamente diferente e dentro de uma autocompreensão diferente de Igreja. (Ibid., pp. 236-237)

O quarto conceito é o de uma “casa” capaz de comunicar acolhimento, escuta e acompanhamento. Uma “casa” onde é reconhecida a dimensão humana da história de cada pessoa e, ao mesmo tempo, é oferecida a possibilidade de permitir a esta humanidade chegar à maturidade. Dom Bosco chama justamente de “casa” o lugar onde a comunidade vive o seu chamado porque, acolhendo as nossas crianças e os nossos jovens, sabe garantir as condições e as propostas pastorais necessárias para que essa humanidade cresça de modo integral. A nossa comunidade, “casa”, é chamada a dar testemunho da originalidade da experiência de Valdocco: uma “casa” que se encontra com a história dos nossos jovens, oferecendo-lhes um futuro digno – a CASA.

Temos em nossas Constituições, Art. 40,a síntese destes “quatro conceitos eclesiológicos”. É uma síntese que serve de convite e também de encorajamento para o presente e o futuro das nossas comunidades educativo-pastorais, das nossas inspetorias, da nossa amada Congregação Salesiana:

O Oratório de Dom Bosco, critério permanente
Dom Bosco viveu uma típica experiência pastoral no seu primeiro Oratório, que foi para os jovens casa que acolhe, paróquia que evangeliza, escola que encaminha para a vida, e pátio para se encontrarem como amigos e viverem com alegria.
Ao realizarmos hoje nossa missão, a experiência de Valdocco continua critério permanente de discernimento e renovação de cada atividade e obra.

Obrigado.
Roma, 12 de abril de 2025