O Coração de Ouro da Educação

Por que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus faz parte do DNA da Congregação Salesiana

Uma grande e bela igreja que custou “sangue e lágrimas” a Dom Bosco, que, já consumido pelo cansaço, gastou suas últimas energias e anos na construção desse templo solicitado pelo Papa.
É também um lugar caro a todos os salesianos por muitas outras razões.

A estátua dourada do campanário, por exemplo, é um sinal de gratidão: foi doada por ex-alunos da Argentina para agradecer aos salesianos por terem ido à sua terra.
Também porque, em uma carta de 1883, Dom Bosco escreveu a memorável frase: “Lembrem-se de que a educação é coisa do coração e que só Deus é o seu mestre, e não seremos capazes de ter sucesso em nada, se Deus não nos ensinar a arte e não nos der as chaves em nossas mãos”. A carta terminava: “Rezem por mim e creiam-me sempre no Sagrado Coração de Jesus”.
Porque a devoção ao Sagrado Coração de Jesus faz parte do DNA salesiano.
A festa do Sagrado Coração de Jesus quer nos encorajar a ter um coração vulnerável. Somente um coração que pode ser ferido é capaz de amar. Assim, nessa festa, contemplamos o coração aberto de Jesus para abrir também os nossos corações ao amor. O coração é o símbolo ancestral do amor e muitos artistas pintaram com ouro a ferida no coração de Jesus. Do coração aberto se irradia para nós o brilho dourado do amor, e o dourado também nos mostra que nossos trabalhos e feridas podem ser transformados em algo precioso.
Todo templo e toda devoção ao Sagrado Coração de Jesus fala do amor desse coração divino, o coração do Filho de Deus, por todos os seus filhos e filhas desta humanidade. E fala de dor, fala de um amor de Deus que nem sempre é correspondido. Hoje acrescento outro aspecto. Acho que também fala da dor desse Senhor Jesus diante do sofrimento de muitas pessoas, do descarte de outras, da imigração de outras pessoas sem horizonte, da solidão, da violência que muitas pessoas sofrem.

A estátua de Jesus Abençoador que fica no campanário da Basílica do Sagrado Coração em Roma

Creio que se pode dizer que fala de tudo isso e, ao mesmo tempo, abençoa, sem dúvida, tudo o que se faz em favor dos últimos, ou seja, o mesmo que Jesus fazia quando percorria as estradas da Judeia e da Galileia.
É por isso que é um belo sinal o fato de a Casa do Sagrado Coração ser agora a sede da Congregação.

Tantos corações de prata
Uma dessas alegres realidades que, sem dúvida, alegram o “próprio Coração de Deus” é uma que pude ver pessoalmente, ou seja, o que está sendo feito na Fundação Salesiana Dom Bosco nas ilhas de Tenerife e Grã Canária. Estive lá na semana passada e, entre as muitas coisas que vivenciei, pude ver os 140 educadores trabalhando nos vários projetos da Fundação (recepção, acomodação, treinamento profissional e posterior colocação no mercado de trabalho). E depois conheci mais uma centena de adolescentes e jovens que se beneficiam desse serviço de Dom Bosco em favor dos últimos. No final de nosso precioso encontro, eles me deram um presente.
Fiquei comovido porque, em 1849, dois jovens, Carlos Gastini e Félix Reviglio, tiveram a mesma ideia e, em grande segredo, economizando na comida e guardando zelosamente suas pequenas gorjetas, conseguiram comprar um presente para o dia do onomástico de Dom Bosco. Na noite de São João, foram bater à porta do quarto de Dom Bosco. Imaginem sua admiração e a emoção ao ser presenteado com dois pequenos corações de prata, acompanhados de algumas palavras bem desajeitadas.
Os corações dos jovens são sempre os mesmos, e ainda hoje, nas Ilhas Canárias, em uma pequena caixa de papelão em forma de coração, eles colocaram mais de cem corações com os nomes de Nain, Rocio, Armiche, Mustapha, Xousef, Ainoha, Desiree, Abdjalil, Beatrice e Ibrahim, Yone e Mohamed e uma centena de outros, simplesmente expressando algo que veio do coração; coisas sinceras de grande valor como essas:
– Obrigado por tornar possível tudo isso.
– Obrigado pela segunda chance que o senhor me deu na vida.
– Eu continuo lutando. Com o senhor é mais fácil.
– Obrigado por me devolver a alegria.
– Obrigado por me ter ajudado a acreditar que posso fazer tudo o que eu quiser.
– Obrigado pela comida e pelo lar.
– Obrigado do fundo do meu coração.
– Obrigado por me ter ajudado.
– Obrigado por esta oportunidade de crescer.
– Obrigado por acreditar em nós, jovens, apesar de nossa situação…
E centenas de expressões semelhantes, dirigidas a Dom Bosco e aos educadores que, em nome de Dom Bosco, estão com eles todos os dias.
Escutei o que partilharam comigo, ouvi algumas de suas histórias (muitas delas cheias de dor); vi seus olhares e seus sorrisos; e me senti muito orgulhoso de ser salesiano e de pertencer a uma família de irmãos, educadores e jovens tão esplêndidos.
Pensei, mais uma vez, que Dom Bosco é mais relevante e necessário do que nunca; e pensei na delicadeza educativa com que acompanhamos tantos jovens com grande respeito e sensibilidade aos seus sonhos.
Juntos, recitamos uma oração dirigida ao Deus que nos ama a todos, ao Deus que abençoa seus filhos e filhas. Uma oração que fez com que cristãos, muçulmanos e hindus se sentissem à vontade. Naquele momento, sem dúvida alguma, o Espírito de Deus nos envolveu a todos.
Fiquei feliz porque, assim como Dom Bosco acolhia seus primeiros meninos em Valdocco, hoje está acontecendo a mesma coisa em muitas Valdoccos ao redor do mundo.
Quando falamos do amor de Deus, para muitos esse é um conceito abstrato demais. No Sagrado Coração de Jesus, o amor de Deus por nós se tornou concreto, visível e perceptível. Para nós, Deus assumiu um coração humano e, no Coração de Jesus, ele abriu seu coração para nós. Assim, por meio de Jesus, podemos levar nossos destinatários ao coração de Deus.




Maria Auxiliadora na cidade de eterno calor

“Mais uma vez pude constatar pessoalmente, viajando pelo mundo salesiano, que Maria Auxiliadora – como prometeu Dom Bosco – é um farol de luz, um porto seguro, o amor materno de seu filho e de todos nós”.

Caros amigos de Dom Bosco, do Boletim Salesiano e de seu precioso carisma, como costumo fazer, quero partilhar com vocês, neste mês de maio, um acontecimento que vivi recentemente e me tocou o coração e, ao mesmo tempo, me fez pensar muito na responsabilidade que temos para com a devoção a Maria Auxiliadora.
No dia em que João Bosco entrou no seminário, Mamãe Margarida disse-lhe: “Quando você veio ao mundo, eu o consagrei à Santíssima Virgem; quando você começou seus estudos, recomendei-lhe a devoção à nossa Mãe: agora o recomendo a ser todo dela: ame os devotos companheiros de Maria; e se você se tornar sacerdote, recomende e propague sempre a devoção a Maria. Ao terminar estas palavras, minha mãe ficou emocionada: “Mãe, eu lhe respondi, agradeço por tudo o que a senhora disse e fez por mim; estas suas palavras não serão ditas em vão e eu as guardarei em toda a minha vida”.
Como recordam com frequência as nossas Memórias, Dom Bosco lançou-se nos braços da divina Providência, como uma criança nos braços de sua mãe.

Uma cidade salesiana

No final de março, quando fui novamente ao Peru – na América Latina – quis ir ao noroeste do país para visitar uma cidade e uma presença salesiana muito significativa. Por várias razões.
Em primeiro lugar, porque Piura é chamada pelos seus habitantes de “a cidade do calor eterno” ou também “a cidade onde o verão nunca termina”, é certamente muito quente e a umidade faz com que seja ainda mais quente.
Mas, ao mesmo tempo, é uma cidade muito salesiana. Mais de um século de presença marcou ali o espírito do povo com um estilo de relação e ligações educativas e relacionais muito familiar, muito simples, enfim, muito salesiano.
Sobretudo, é uma cidade muito mariana e, na órbita das duas presenças salesianas, é muito devota de Maria Auxiliadora.

Enfim, gostaria de destacar o magnífico serviço educativo prestado desde o início da presença com a escola Dom Bosco e, sobretudo, nas últimas décadas, com a presença salesiana na Boscônia, uma presença humilde e bela num dos bairros mais conturbados, periféricos e pobres, e onde, graças ao empenho de tantas pessoas (tanto na sociedade civil como na Igreja) E, sobretudo graças ao carisma de Dom Bosco, esta parte da cidade continua a ser transformada, dando oportunidades de formação profissional a centenas de meninos e meninas que, onde não poderiam ter qualquer oportunidade, deixam hoje esta casa salesiana com uma profissão aprendida, praticada e formada para o mundo do trabalho.
Na Boscônia há até um magnífico centro médico salesiano dirigido por um ramo de nossa família, as Salesianas.
Creio ter descrito rapidamente o que encontrei na “cidade do eterno calor”. Tudo é digno de nota, mas fiquei particularmente tocado pela profunda devoção a Maria Auxiliadora. Quase inesperadamente – porque apenas algumas semanas antes eu havia anunciado que gostaria de conhecê-los – encontrando-me às 18 horas de um dia normal da semana, no meio de uma multidão de mais de três mil pessoas que se haviam reunido para celebrar a Eucaristia em honra de nossa Mãe Auxiliadora.
Vi centenas de crianças e jovens com seus pais, dezenas e dezenas de meninos, meninas e adolescentes dos diversos oratórios salesianos locais, professores, educadores, etc.
O “calor eterno da cidade” parecia pouco em comparação com a fé, a devoção, a interioridade e a oração, o canto e tudo o mais que eu imaginava enchia o coração daquelas pessoas, assim como enchia o meu.
Mais uma vez pude ver pessoalmente, viajando pelo mundo salesiano, que Maria Auxiliadora – como prometeu Dom Bosco – é um farol de luz, um porto seguro, o amor materno de seu filho e de todos nós, seus filhos e filhas. Ela é em última análise a MÃE na qual nos abandonamos e que sempre nos conduzirá a seu amado Filho. Vi isso também em Piura.

Nossa Senhora na varanda
E, ao mesmo tempo, gostaria de acrescentar outro pequeno comentário com uma necessária autocrítica para todos nós que somos filhos e filhas de Dom Bosco. O espírito de Deus chega aonde quer e toca o coração de seus fiéis de uma maneira que só ele sabe como. Este é o caso da devoção à Mãe do Filho de Deus, e minha nota crítica é que nem em todas as partes do mundo a Mãe do Céu, nossa Mãe Auxiliadora dos Cristãos, se fez conhecer da mesma maneira, com a mesma intensidade, com a mesma paixão apostólica. Há lugares onde desenvolvemos escolas, onde fomos adiante, onde certamente servimos ao bem do povo, mas não conseguimos torná-la conhecida e amada.
Isso seria incompreensível para Dom Bosco. Digo-lhes que para mim é igualmente incompreensível e inaceitável. Porque, além disso, se houvesse pessoas na família de Dom Bosco que não se referissem a Maria Auxiliadora, elas seriam outra coisa, mas não seriam filhos e filhas de Dom Bosco. Ela, a Mãe, e a devoção a Maria Auxiliadora como Mãe do Senhor e nossa Mãe não é opcional no carisma salesiano, como não o era para Dom Bosco. É, muito simplesmente, essencial. Maria Santíssima é a fundadora e ela será a apoiadora de nossas obras”, repetia continuamente Dom Bosco, “Ela será larga conosco de dons temporais e espirituais, ela será nossa guia, nossa mestra, nossa mãe”. Todos os bens do Senhor chegam até nós por Maria”.
Em um de seus sonhos, Dom Bosco viu uma senhora muito nobre, vestida de realeza, que saiu da sua varanda gritando: “Meus filhos, venham, abriguem-se sob o meu manto”.
É meu ardente desejo que ela, a Mãe do Filho predileto, ela, a Auxiliadora, continue sendo tão especial em todas as partes do mundo quanto na “cidade do eterno calor” (Piura-Peru).
Feliz festa de Maria Auxiliadora para todos no mundo inteiro.




Deus deu a Dom Bosco um grande coração…

… sem fronteiras, como as margens do mar. Todos os dias eu sinto o palpitar desse coração.

Seu nome é Alberto. Dela, uma jovem mãe, eu não sei o nome.
Ele vive no Peru. Ela mora em Hyderabad (Índia).
O que une essas duas histórias, duas vidas, é que eu as conheci durante meu serviço: Alberto no Peru e a jovem mãe na Índia, na semana seguinte.
O que elas têm em comum é o precioso fio de ouro da carícia de Deus através da acolhida que Dom Bosco lhes deu em uma de suas casas. O coração dos Salesianos mudou suas vidas, salvando-os da situação de pobreza e talvez da morte a que estavam condenados. E creio poder dizer que o fruto da Páscoa do Senhor também passa por gestos humanos que curam e salvam.
Estas são as duas histórias.

Um jovem agradecido
Há algumas semanas atrás eu estava em Huancayo (Peru). Estava para celebrar a Eucaristia com mais de 680 jovens do movimento juvenil salesiano da Inspetoria, junto com várias centenas de pessoas daquela cidade, a 3200 metros acima do nível do mar, nas altas montanhas do Peru, e me disseram que um ex-aluno queria cumprimentar-me. Tinha levado quase cinco horas de viagem para chegar aí e devia enfrentar outras cinco horas para voltar.
“Terei muito prazer em conhecê-lo e agradecer-lhe por seu gesto simpático”, respondi.
Pouco antes do início da Eucaristia, aquele jovem se aproximou de mim e disse que estava muito feliz em me cumprimentar. “Meu nome é Alberto e quis fazer esta viagem para agradecer pessoalmente a Dom Bosco porque os salesianos me salvaram a vida”.
Eu lhe agradeci e lhe perguntei porque me dizia isso. Ele continuou com seu testemunho, e cada palavra me tocou cada vez mais o coração. Disse-me que era um rapaz difícil; que tinha dado muito trabalho aos Salesianos que o tinham levado para uma das casas de meninos em dificuldade. Acrescentou que eles teriam tido dezenas de razões para se livrarem dele, porque “eu era um pobre diabo, e só podia esperar algo mau do mundo e da vida; mas eles foram muito pacientes comigo”.
E continuou: “Consegui seguir meu caminho, continuei estudando e, apesar de minha rebeldia, cada vez me deram novas oportunidades, e hoje sou um pai de família, tenho uma linda menina e sou um educador social. Se não fosse pelo que os Salesianos fizeram por mim, minha vida seria muito diferente, talvez até já estivesse terminada.”
Fiquei sem palavras e muito emocionado. Disse-lhe que era muito grato por seu gesto, suas palavras e seu caminho, e que seu testemunho de vida era a maior satisfação para um coração salesiano.
Ele fez um gesto discreto e me indicou um salesiano que estava ali naquele momento, que tinha sido um de seus educadores e um dos que tinham sido muito pacientes com ele. O salesiano apareceu sorridente e, creio que com grande alegria no coração, me confirmou que este era de fato o caso. Partilhamos o almoço juntos e depois o Alberto voltou para sua família.

Uma mãe feliz
Cinco dias depois deste encontro, eu estava no sul da Índia, no estado de Hyderabad. Em meio a muitas saudações e atividades, uma tarde me anunciaram que teria uma visita. Era uma jovem mãe com sua filha de seis meses que me esperava na recepção da casa salesiana. Ela queria me cumprimentar.
A menina era linda e, como ela não se assustou, não pude resistir a tomá-la nos braços e abençoá-la também. Tiramos algumas fotos de lembrança, como a jovem mãe havia desejado. Isso foi tudo nessa reunião.
Não houve mais palavras, mas a história era dolorosa e bela ao mesmo tempo. Tempos atrás aquela jovem mãe tinha sido uma criança “rejeitada”, vivendo nas ruas sem ninguém. É fácil imaginar o destino dela.
Mas um dia, na providência do bom Deus, ela foi encontrada por um salesiano que tinha começado a acolher crianças de rua no estado de Hyderabad. Ela foi uma das meninas que conseguiu um lar com outras meninas. Junto com os educadores, meus irmãos salesianos se asseguraram de que todas as necessidades básicas fossem satisfeitas e cuidadas.
Assim, essa menininha, que foi resgatada da rua, pôde voltar a florescer, a empreender uma jornada de vida que a levou a ser hoje esposa e mãe e, algo incrivelmente inestimável para mim, professora na grande escola salesiana onde estávamos naquele momento.
Não pude deixar de pensar em quantas outras vidas assim, salvas do desespero e da angústia, há no mundo salesiano, quantos dos meus bons irmãos e irmãs salesianos se ajoelham todos os dias para “lavar os pés” de Jesus, nos pequenos e grandes das nossas ruas.
Esta é a chave para entender como tantas vidas podem ser transformadas para melhor.
Como não ver nesses dois fatos a “mão de Deus” que nos alcança, através do bem que podemos fazer? E que somos todos nós que, em qualquer parte do mundo, em qualquer situação de vida e de profissão, acreditamos na humanidade e na dignidade de cada pessoa, e acreditamos que devemos continuar a construir um mundo melhor.
Escrevo isto porque também é preciso dar a conhecer boas notícias. As más notícias se espalham por si ou encontram pessoas interessadas. Essas duas histórias de vida real, para mim tão próximas no tempo, confirmam uma e mil vezes o quanto é valioso o bem que todos nós tentamos fazer juntos.
E também o que uma canção salesiana expressou poeticamente: “Eu digo que João Bosco está vivo, não pense que um Pai assim possa nos abandonar. Ele não está morto, o Pai vive, sempre esteve conosco e permanece, ele que cuidou de jovens abandonados e órfãos, de meninos de rua, sozinhos, que ajudava a mudar… Digo que João Bosco está vivo e já tomou milhares de iniciativas. Você não vê a solicitude dele como pai que agora trabalha em todo o mundo? Não o ouve entoando seu canto a tantas filhas, a tantos filhos, que trazem esses reflexos do Pai que amamos? Ele vive, quando seus salesianos são assim.”
Desejo a todos vós uma Feliz Páscoa; e àqueles que se sentem distantes dessa certeza de fé, desejo todo bem, com muita cordialidade.




Eu entendi como Dom Bosco se sentia

No dia seguinte à celebração solene de Dom Bosco, eu senti uma emoção intensa. Depois de controles bastante rígidos, eu cruzei o limiar do Instituto Penitenciário Juvenil “Ferrante Aporti” em Turim, aquele que costumava ser chamado de “La Generala”.

Em uma das paredes há uma grande placa lembrando as visitas de Dom Bosco aos jovens na prisão. Quantas vezes, com os bolsos de sua batina remendada cheios de frutas, chocolates, fumo, ele havia passado por portas pesadas como estas, no Senado, no Centro Correcional, nas Torres e depois aqui na Generala, para visitar seus “amigos”, os jovens prisioneiros. Ele falou sobre o valor e a dignidade de cada pessoa, mas muitas vezes quando ele voltava, tudo estava destruído. O que parecia ser amizades nascentes tinha morrido. Os rostos tinham se tornado duros novamente, vozes sarcásticas assobiavam blasfêmias. Dom Bosco nem sempre conseguia superar seu desânimo. Um dia, ele prorrompeu em lágrimas. Na sala sombria, houve um momento de hesitação. Alguém perguntou: “Por que aquele padre está chorando?”. “Porque ele nos ama. Minha mãe também choraria se me visse aqui dentro”.

O impacto dessas visitas em sua alma foi tão grande que ele prometeu ao Senhor que faria todo o possível para garantir que os meninos não fossem enviados para lá. Assim nasceram o oratório e o sistema preventivo.

Muitas coisas mudaram. Os filhos de Dom Bosco não abandonaram o caminho traçado pelo Pai. É tradicional que os capelães sejam salesianos. Entre os capelães “históricos” está o amado Padre Domingos Ricca, que se aposentou no ano passado, após mais de 40 anos de serviço. Outro salesiano, P. Silvano Oni, tomou seu lugar, e os noviços salesianos, sob a orientação do mestre de noviciado, vão todas as semanas ao encontro dos jovens internos do Instituto Penitenciário, com uma iniciativa chamada “o pátio atrás das grades”. Todos os “internos” são muito mais jovens do que os noviços de Dom Bosco. E a grande maioria não tem pais.

É por isso que nós, salesianos, amamos tanto os jovens
Como Dom Bosco, deixei meu coração falar. Os educadores que acompanham esses jovens diariamente também estavam lá. Eu cumprimentei a todos, incluindo os muitos jovens estrangeiros. Eu senti que a comunicação era possível. Antes, três noviços haviam encenado um pequeno fato da vida de Dom Bosco. Depois eles me deram a palavra e também deram aos jovens a oportunidade de me fazer três ou quatro perguntas. E assim foi. Eles me perguntaram quem era Don Bosco para mim, por que eu era salesiano, como era viver o que eu vivo e por que eu tinha ido vê-los.

Eu lhes falei sobre mim mesmo, minha origem e minha nacionalidade. “Sou espanhol, nascido na Galícia, filho de um pescador. Eu estudei teologia e filosofia, mas eu sei muito mais sobre a pesca porque meu pai me ensinou. Eu escolhi me tornar salesiano há 43 anos; eu queria ser médico, mas então eu percebi que Dom Bosco estava me chamando para cuidar das almas dos mais jovens. Porque não há bons e maus jovens, mas jovens que tiveram menos oportunidades, e, como dizia nosso santo, em cada jovem, mesmo nos mais infelizes, há um ponto acessível ao bem, e o primeiro dever do educador é buscar este ponto, a corda sensível deste coração, e fazer florescer uma vida. É por isso que nós salesianos amamos tanto os jovens. Todos nós podemos cometer erros, mas se vocês acreditarem em si mesmos, se confiarem em seus educadores, vocês se tornarão melhores. Meu sonho é encontrar todos vocês um dia em Valdocco com os jovens que eu cumprimentei ontem na festa do nosso Santo”.

Durante o almoço, um jovem perguntou se ele poderia me fazer uma pergunta em particular. Nós nos separamos um pouco do grupo grande para não sermos interrompidos. “Para que serve a minha presença aqui?” ele me perguntou de improviso. Eu disse a ele: “Eu sinceramente acredito por nada e por muito. Por nada, porque a prisão, a internação não pode ser um destino ou um lugar de chegada, apenas um lugar de passagem. Mas, acrescentei, eu acho que isso lhe fará muito bem porque o ajudará a decidir que você não quer mais voltar aqui, que você tem a possibilidade de um futuro melhor, que depois de alguns meses aqui há a possibilidade de ir para uma das comunidades de acolhida que nós salesianos temos, por exemplo, em Casale, não muito longe daqui…”.

Logo que eu disse isto, o jovem acrescentou, sem me deixar terminar: “Eu quero, eu preciso, porque estive no lugar errado e com as pessoas erradas”.

Nós conversamos. Eles conversaram. E eu percebi como é verdade que, como dizia Dom Bosco, no coração de cada jovem há sempre sementes de bondade. Aquele jovem, e muitos outros que encontrei, são totalmente “recuperáveis”, se lhes for dada a oportunidade certa, depois dos erros cometidos.

Eu cumprimentei novamente os jovens, um por um. Nós nos cumprimentamos com muita cordialidade. Seus olhares eram limpos, seus sorrisos eram os sorrisos dos jovens castigados pela vida, jovens que tinham cometido erros, mas cheios de vida. Percebi nos educadores um grande sentido de vocação. Gostei.

No final do tempo estabelecido – como havia sido acordado – eu me despedi e um deles se aproximou de mim e disse: “Quando o senhor vai voltar?”. Fiquei comovido. Sorri e lhe disse: “Da próxima vez que você me convidar, eu estarei aqui; e, enquanto isso, esperarei por você, como Dom Bosco, em Valdocco”.

Isto foi o que eu vivenciei ontem.

Amigos do Boletim Salesiano, amigos do carisma de Dom Bosco, como ontem, hoje também é possível alcançar o coração de cada jovem. Mesmo nas maiores dificuldades, é possível melhorar, é possível mudar para viver honestamente. Dom Bosco sabia disso e trabalhou nisso durante toda a sua vida.




Há muito mais “sede de Deus” do que se poderia pensar

Hoje há tanta necessidade de escuta, de diálogo livre e gratuito, de encontros pessoais que não julgam e não condenam, e tanta necessidade de silêncio e de presença em Deus.

Caros amigos do Boletim Salesiano, não há muito tempo, assisti ao funeral do Papa emérito Bento XVI. Foi ele mesmo quem, um ano após o início de seu serviço como Pontífice, escreveu a magnífica Encíclica “Deus Caritas est”, e nela esta afirmação que me parece a essência da magnífica fragrância do pensamento cristão: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo.” (Deus Caritas est, 1). Certamente essa Pessoa é Jesus Cristo.
E a partir desta afirmação, Bento XVI nos deixa com declarações como estas:
            – «Jesus Cristo é a Verdade feita Pessoa, que atrai o mundo para si.
            – A luz irradiada por Jesus é a luz da verdade. Toda outra verdade é um fragmento da Verdade que é ele e ao qual se refere.
            – Jesus é a estrela polar da liberdade humana: sem ele, perde sua orientação, porque sem o conhecimento da verdade, a liberdade é desvirtuada, isolada e reduzida a arbitrariedades estéreis.
            – Com ele, redescobre-se a liberdade, ela é reconhecida como criada para o bem e é manifestada através de ações e comportamentos caritativos.
            – É por isso que Jesus dá ao homem plena familiaridade com a verdade e o convida continuamente a viver nela.
            – E somente o amor à verdade pode impulsionar a inteligência humana para horizontes inexplorados.
            – Jesus Cristo, que é a plenitude da verdade, atrai para si o coração de cada homem, expande-o e enche-o de alegria”.
Em algumas frases, sólidas e densas, há todo um ensinamento cristão que está longe de ser uma “moral” ou um conjunto de regras frias e rígidas, desprovidas de vida. A vida cristã é, antes de tudo, um verdadeiro encontro com Deus.

E isso foi o que eu disse no título desta mensagem. Em minha opinião e convicção profunda, há muito mais “sede de Deus” do que imaginamos, do que parece. Não é que eu queira mudar as estatísticas dos estudos sociológicos ou desenhar uma realidade fictícia. Certamente não pretendo fazê-lo, mas gostaria de fazer compreender que no encontro “visa vis”, no encontro “face a face” com a vida real de tantas pessoas, de tantos pais e mães, de tantas famílias, de tantos adolescentes e jovens, o que se encontra, muitas vezes, é uma vida que não é fácil, uma vida que precisa ser “curada” todos os dias, relações humanas nas quais o amor é desejado e necessário e que deve ser cuidado em cada pequeno gesto, em cada pequeno detalhe, em cada ação. E nesse “face a face” há tanta necessidade de escuta, de diálogo livre e gratuito, de encontros pessoais que não julgam e não condenam, e tanta necessidade de silêncio e de presença em Deus.
Digo isto com grande convicção. Aqui mesmo em Valdocco-Turim, onde estou, me surpreende e me enche de alegria quando um grupo de jovens toma a iniciativa de convidar outros jovens para uma hora de presença, de silêncio e de oração diante de Jesus na Eucaristia, ou seja, uma hora de adoração eucarística, e uma centena de pessoas – tantos são os jovens – respondem à convocação. Ou em Roma, no Sagrado Coração de Jesus, em que costumávamos nos encontrar às quintas-feiras à noite, em que jovens e casais jovens, alguns com seus filhos, e até noivos, estavam presentes nesse momento porque sentiam que sua vida precisava desse encontro com uma Pessoa que dá sentido à nossa vida.

E tenho experimentado isso como um exemplo em muitos países e lugares. É por isso que com esta página os convido a fazer como faria Dom Bosco. Ele não hesitou por um momento em propor a seus meninos a experiência do encontro com Jesus. E aquele Deus que é presença, que é Deus conosco, como celebramos no Natal, é ainda o mesmo Deus que chama, que convida, que tranquiliza em cada encontro pessoal, em cada momento de descanso Nele.

Lembro-me de uma das muitas “surpresas” de Dom Bosco. Ele conta em suas Memórias: “Eu estava entrando na igreja pela sacristia e vi um jovem elevado à altura do santo Tabernáculo atrás do coro, no ato de adoração ao Santíssimo Sacramento, ajoelhado no ar, com a cabeça inclinada e encostada à porta do Tabernáculo, num doce êxtase de amor como um Serafim do céu. Chamei-o pelo seu nome e ele logo se levantou e desceu ao chão todo perturbado, rogando-me que não o revelasse a ninguém. Repito que eu poderia contar muitos outros fatos semelhantes para fazer saber que todo o bem que Dom Bosco faz, ele o deve especialmente a seus filhos”.
É possível que Jesus ainda seja o mesmo Deus que quer nos encontrar a todos hoje e a muitos outros, ou será que temos vergonha e medo de seguir por esse caminho? É possível que muitos de nós não ousem convidar outros a experimentar o que estamos experimentando e que nos foi dado e oferecido gratuitamente? É possível que, por nos dizerem que isso é antiquado e desatualizado, acreditemos que há demasiadas mensagens negativas e percamos a força para testemunhar que muitos de nós continuamos a desfrutar de cada encontro pessoal com Aquele que é o Senhor da vida?

O Papa Bento XVI estava convicto de que sua vida e sua fé eram “certas” e isso é grande, um encontro com seu Senhor, e é assim que o Papa Francisco se despede nas últimas palavras de sua homilia: “Bento, fiel amigo do Esposo, que sua alegria seja perfeita ao ouvir sua voz definitiva e para sempre”.
Continuemos, portanto, meus amigos, a promover esses encontros da Vida que nos dão vida profunda, porque há mais “sede de Deus” do que dizemos, do que nos fazem crer.




Mensagem do Reitor-Mor. Aquele jovem me disse: “Minha paixão é Cristo”

Fazia muitos anos que eu não ouvia essa expressão de um jovem em um contexto tão descontraído, na presença de todos os seus companheiros que se apinhavam ao nosso redor.

Caros amigos do Boletim Salesiano, “ultrapassamos” o início do ano, como se diz no linguajar marítimo, e enfrentamos o Ano Novo. Cada começo possui algo mágico, e o novo sempre tem seu encanto especial. O ano de 2023 parecia distante, e, no entanto, aqui está. O Ano Novo é cada vez mais uma promessa de que uma boa notícia virá também para nós. O Ano Novo brota da luz e do entusiasmo que nos foram doados no Natal.

«Há um tempo para nascer», diz o Qoelet na Bíblia (cf. Ecl 3,2). Nunca é tarde demais para recomeçar. Deus começa sempre de novo conosco, cumulando-nos com a sua bênção.

Uma lição que aprendi nesses últimos anos: preparar-nos para as surpresas e para o inesperado. Como diz São Paulo em uma carta: “Nunca um coração humano pôde provar o que Deus preparou para os que o amam” (cf. 1Cor 2,9). O conteúdo da esperança cristã é viver abandonado nos braços de Deus. Hoje, mudaram muitas maneiras de viver, de se expressar, de se comunicar. Mas o coração humano, especialmente o dos jovens, é sempre o mesmo, como um rebento na primavera, cheio de vida pronta para irromper. Os jovens “são” a esperança que caminha. O que lhes estou dizendo agora me parece muito apropriado para esta saudação do Boletim Salesiano do mês de janeiro, o “mês de Dom Bosco”.

Há algumas semanas, visitei as presenças salesianas nos Estados Unidos da América (EUA); e um dia, de manhã cedo, cheguei à St Dominic Savio Middle and High School, em Los Angeles. Passei várias horas com centenas de alunos, seguidas de um painel de discussão com quarenta e cinco jovens da escola secundária. Falamos de seus planos e sonhos pessoais. Foi uma hora muito agradável e enriquecedora.

No final da manhã, partilhei um sanduíche com os jovens no pátio. Eu estava sentado em uma mesa de madeira no pátio, com meu sanduíche e uma garrafa de água. Quatro outros salesianos estavam comigo naquele momento; eu tinha cumprimentado muitos jovens, alguns sentados às mesas, outros de pé. Foi um almoço alegre. Em minha mesa havia dois assentos vazios, e em certo momento dois jovens se aproximaram e se sentaram conosco. Naturalmente, comecei a conversar com eles. Depois de alguns minutos, um dos jovens me disse: “Quero fazer-lhe uma pergunta”. “É claro, diga”.

O jovem disse: “O que tenho que fazer para ser Papa? Eu quero ser Papa”.

Fiquei surpreso, mas sorri. Respondi que nunca me haviam feito tal pergunta e que fiquei surpreso com sua clareza e determinação. Espontaneamente tentei explicar-lhe que entre tantos milhões de católicos há muita concorrência e que não é tão fácil ser eleito Papa.

Reitor-Mor no Centro Juvenil da Família Salesiana localizado em Boyle Heights, leste de Los Angeles, EUA, novembro de 2022

Eu lhe propus: “Escute, você poderia começar se tornando salesiano”.

O jovem disse sorridente: “Bem, não estou dizendo não” e acrescentou, muito seriamente: “porque o que é certo é que minha paixão é Cristo”. Devo dizer que fiquei impressionado e agradavelmente surpreso. Creio que já faz muitos anos que eu não ouvia essa expressão de um jovem em um contexto tão descontraído, na presença de todos os seus companheiros, que agora se apinhavam ao nosso redor.

O jovem tinha um sorriso genuíno em seu rosto e eu lhe disse que gostava muito de sua resposta, porque entendi que era absolutamente sincera. Acrescentei que, se ele concordasse, gostaria de contar nosso diálogo em outro momento e em outro lugar, e assim estou fazendo.

Mas já naquele momento meus pensamentos haviam voado para Dom Bosco. Certamente Dom Bosco teria apreciado um diálogo com um jovem como este. Não há dúvida de que em muitos diálogos que ele manteve com Sávio, Besucco, Magone, Rua, Cagliero, Francesia e muitos outros houve muito disso, o desejo desses jovens de fazer algo de belo com suas vidas.

E pensei como é importante hoje, 163 anos depois do início da Congregação Salesiana, continuar acreditando profundamente que os jovens são bons, que têm tantas sementes de bondade no coração, que têm sonhos e projetos que muitas vezes trazem consigo tanta generosidade e doação.

Como é importante continuar acreditando que é Deus quem age no coração de cada um de nós, de cada um de seus filhos e filhas.

Parece-me que hoje, em nosso tempo, corremos o risco de nos tornarmos tão práticos e eficientes em olhar tudo o que nos acontece e o que experimentamos que corremos o risco de perder a capacidade de surpreender-nos a nós mesmos e aos outros e, mais preocupantemente, de não nos deixarmos “surpreender por Deus”.

A esperança é como um vulcão dentro de nós, como uma fonte secreta que jorra em nossos corações, como uma fonte que irrompe no fundo de nossas almas: envolve-nos como um vórtice divino no qual estamos inseridos, pela graça de Deus. Penso que, como ontem com Dom Bosco, hoje há milhares e milhares de jovens que querem ver Jesus, que precisam fazer amizade com ele, que procuram alguém que os acompanhe nessa bela viagem.

Convido-os a juntarem-se a eles, caros amigos do Boletim, e desejo que tenham tempo para se maravilhar e tempo para confiar, tempo para olhar para as estrelas, tempo para crescer e amadurecer, tempo para ter esperança novamente e para amar. Desejo que vocês tenham tempo para viver cada dia, cada hora, como um presente. Desejo-lhes também tempo para perdoar, tempo para doar-se aos outros e muito tempo para rezar, sonhar e ser feliz.




Novos missionários

A mensagem do Reitor-Mor, Padre Ángel FERNÁNDEZ ARTIME

A primeira expedição missionária foi abençoada pelas lágrimas de Dom Bosco, que disse:

“Estamos iniciando uma grande obra. Quem sabe, se esta partida não possa ser como uma semente da qual surgirá uma grande planta?”.

A profecia se tornou realidade.

A primeira vez foi inesquecível. Era a festa de São Martinho, em 1875. O mundo não sabia, mas naquele bairro de Turim chamado Valdocco estava começando um empreendimento extraordinário: dez jovens salesianos estavam partindo para a Argentina. Eles foram os primeiros missionários salesianos.

As Memórias Biográficas narram aquele momento com acentos épicos: “Eram 4 horas e as primeiras notas dos sinos tocavam, quando um barulho impetuoso surgiu na Casa com um violento bater de portas e janelas. Tinha se levantado um vento tão forte que parecia que iria derrubar o Oratório. Pode ter sido um acaso; mas o fato é que um vento semelhante soprou na hora em que a pedra angular da Igreja de Maria Auxiliadora foi colocada; um vento semelhante se repetiu na consagração do Santuário”.

A Basílica estava lotada. Dom Bosco subiu ao púlpito. “Ao seu aparecimento, houve um profundo silêncio naquele mar de gente; um tremor de emoção passou por toda a audiência, que avidamente bebeu suas palavras. Sempre que ele acenava diretamente aos Missionários, sua voz se embargava até quase morrer nos seus lábios. Com esforços viris ele retinha as lágrimas, mas o público chorava”.

“A voz me falha, as lágrimas sufocam a palavra”. Só posso lhes dizer que se neste momento minha alma está emocionada com vossa partida, meu coração sente grande consolo em ver nossa Congregação fortalecida; em ver que, em nossa pobreza, também nós estamos neste momento colocando nossa pedrinha no grande edifício da Igreja. Sim, parti corajosos; mas lembrai-vos que existe apenas uma Igreja que se estende pela Europa, na América e pelo mundo todo, e recebe os habitantes de todas as nações que desejam vir se refugiar em seu abraço materno. Como Salesianos, em qualquer parte remota do globo vos encontreis, não esqueçais que aqui na Itália tendes um Pai que vos ama no Senhor, uma Congregação que em qualquer contingência pensa em vós, vos sustenta e sempre vos acolherá como irmãos. Ide, então; vós tereis que enfrentar todos os tipos de cansaço, de dificuldades, de perigos. Mas não tenhais medo, Deus está convosco. Ireis, mas não ireis sozinhos; todos vos acompanharão. Adeus! Talvez nem todos poderemos mais nos ver nesta terra” (MB XI, 381-390). Abraçando-os, Dom Bosco deu a cada um uma pequena folha de papel com vinte lembranças especiais, quase um testamento paternal para os filhos que ele talvez nunca mais volte a ver. Ele os havia escrito a lápis em seu caderno de anotações durante uma recente viagem de trem.

A árvore cresce

Em 25 de setembro, revivemos esse momento de graça pela 153ª vez. Hoje eles se chamam Oscar, Sebastião, João-Maria, Antônio, Carlos… São 25, jovens, preparados, mas carregam nos olhos e no coração a consciência e a coragem dos primeiros. Eles são a vanguarda daquilo que eu pedi a toda a Família Salesiana para este sexênio: audácia, profecia e fidelidade.

Dom Bosco tinha feito uma pequena profecia: “Estamos começando uma grande obra, não porque tenhamos pretensões ou a crença de que converteremos todo o universo em poucos dias, não; mas quem sabe, que não seja esta partida e este pouco como uma semente da qual surgirá uma grande planta? Quem sabe, que não seja como um pequeno grão de milho ou uma semente de mostarda, que pouco a pouco vai avançando e possa fazer um grande bem? Quem sabe, que esta partida não tenha despertado no coração de muitos o desejo de se consagrar a Deus nas Missões, unindo-se a nós e fortalecendo nossas fileiras? Espero que sim. Vi o número imenso daqueles que pediram para ser escolhidos” (MB XI, 385).

“Ser missionário. Que palavra!” testemunha um salesiano após quarenta anos de vida missionária. “Uma pessoa idosa me disse: «Não me fale de Cristo; sente-se aqui ao meu lado, quero sentir o seu cheiro e se este é o cheiro do Senhor, então você pode me batizar»”.

O quinto conselho de Dom Bosco aos missionários era: “Cuidai especialmente dos doentes, das crianças, dos idosos e dos pobres”.

Vivemos numa época que deve ser enfrentada com uma mentalidade renovada, uma mentalidade que “saiba como superar as fronteiras”. Em um mundo onde as fronteiras correm o risco de se tornarem cada vez mais fechadas, a profecia de nossa vida consiste também nisto: mostrar que para nós não há fronteiras. A única realidade que temos é Deus, o Evangelho e a missão.

Sonho que, hoje e nos próximos anos, dizer ‘Salesianos de Dom Bosco’ signifique, para as pessoas que ouvem nosso nome, que somos consagrados um tanto ‘loucos’, ou seja, ‘loucos’ porque amamos os jovens, especialmente os mais pobres, os mais abandonados e indefesos, com um verdadeiro coração salesiano. Esta me parece a mais bela definição que pode ser dada hoje dos filhos de Dom Bosco. Estou convencido de que nosso Pai quereria exatamente isto.

Eles ainda partem para dar suas vidas a Deus. Não apenas com palavras. A Congregação também pagou o tributo do sangue. O lema sacerdotal que o mártir Rodolfo Lunkenbein escolheu para sua ordenação foi “Eu vim para servir e dar minha vida”. Em sua última visita à Alemanha em 1974, sua mãe implorou-lhe que tivesse cuidado, pois eles a haviam informado dos riscos que seu filho corria. Ele respondeu: “Mãe, por que você se preocupa? Não há nada mais belo do que morrer pela causa de Deus. Esse seria o meu sonho”.

Tenho a firme convicção de que nossa Família deve caminhar nos próximos seis anos em direção a uma maior universalidade e sem fronteiras. As nações têm fronteiras. Nossa generosidade, que sustenta a missão, não pode e não deve conhecer limites. A profecia que devemos testemunhar como Congregação não inclui fronteiras.

Um missionário contava que ele havia celebrado a missa para os indígenas das montanhas perto de Cochabamba, Bolívia. Ele era um padre jovem e mal conhecia a língua quíchua; e, no final, enquanto se dirigia para casa, sentiu que tinha sido um fracasso e não tinha conseguido se comunicar de maneira alguma. Mas um velho camponês, mal vestido, apareceu e agradeceu ao jovem missionário por ter vindo.

Depois ele fez um movimento incrível: “Antes que eu pudesse abrir a boca, o velho camponês coloca as mãos nos bolsos de seu casaco e tira dois punhados de pétalas de rosas coloridas. Ele se levanta na ponta dos pés e, com gestos, pede que eu o ajude, abaixando a cabeça. Então ele deixa cair as pétalas na minha cabeça, e eu fico sem palavras. Ele volta a colocar as mãos em seus bolsos e consegue tirar mais dois punhados de pétalas. Continua a repetir o gesto, e a reserva de pétalas de rosas vermelhas, rosas e amarelas parecia não ter fim. Eu fico apenas ali parado e o deixo fazer isso, olhando para minhas sandálias de couro, molhadas de minhas lágrimas e cobertas com pétalas de rosa. Por fim, ele se despede e eu fico sozinho. Sozinho com a suave fragrância das rosas”. Posso dizer-lhes por experiência própria que milhões de famílias no mundo inteiro estão cheias de gratidão para com os salesianos que se tornaram o “evangelho” no meio deles.




Carta do Reitor-Mor. Apelo missionário 2023

Recordamos o dia em que há 163 anos -18 de dezembro de 1859 – Dom Bosco fundou a nossa “Pia Sociedade de São Francisco de Sales”. Desde então, ela nunca deixou de se difundir. Graças aos nossos missionários, hoje o carisma de Dom Bosco está presente em 134 países, e estamos a iniciar novas presenças na Nigéria e na Argélia no próximo ano. Já o 6º sucessor de Dom Bosco, padre Luís Ricceri, nos recordou que o espírito e o compromisso missionário não eram só um interesse pessoal do nosso Fundador, mas um verdadeiro charisma fundationis que ele nos transmitiu e a toda a Família Salesiana (ACG 267, p.14). Por isso hoje é uma bela ocasião para vos enviar este apelo missionário.

Ao enviar a primeira expedição missionária, em 1875, Dom Bosco havia feito uma profecia: “… Quem sabe, se esta partida e este pouco não será como uma semente da qual surgirá uma grande planta?… Quem sabe, se esta partida não despertará no coração de muitos o desejo de se consagrar a Deus nas Missões, juntando-se a nós e reforçando as nossas fileiras? É o que eu espero. …” (MB XI, 385). Com efeito, apesar de em 1875 haver só 171 salesianos (64 professos perpétuos, 49 dos quais sacerdotes, e 107 professos temporários) e 81 noviços, Dom Bosco havia enviado 11 salesianos para a Argentina. À sua morte havia 773 salesianos, 137 dos quais eram missionários enviados por Dom Bosco mesmo em 11 expedições missionárias. Hoje encontramo-nos num contexto muito diferente do tempo de Dom Bosco. Hoje ‘as missões’ não podem ser compreendidas só como movimento para ‘as terras de missão’, como outrora. Hoje os missionários salesianos provêm dos cinco continentes e são enviados pelo Reitor-Mor para os cinco continentes. Num mundo em que as fronteiras correm risco de se fechar cada vez mais, os missionários salesianos são enviados não só para responder à necessidade de pessoal, mas, sobretudo, para testemunhar que para nós não há fronteiras, para contribuir para o diálogo intercultural, para a inculturação da fé e do nosso carisma e para desencadear processos que possam gerar novas vocações locais.

Na minha primeira carta como Reitor-Mor manifestei a minha convicção de que “uma grande riqueza da nossa Congregação é mesmo a sua capacidade missionária” (ACG 419, p. 24). Estou firmemente convicto de que nós salesianos temos necessidade de caminhar para uma maior consciência da nossa intemacionalidade. E a generosidade missionária dos irmãos é um testemunho profético de que a nossa Congregação é sem fronteiras.

Com efeito, a presença dos missionários na Inspetoria ajuda a refletir melhor a intemacionalidade da nossa Congregação e a compreender que o carisma salesiano não é monocolor e que as diferenças e a multiculturalidade enriquecem a Inspetoria e a toda a nossa Congregação.

Pelo contrário, uma Inspetoria composta só de irmãos da mesma cultura corre o risco de se reduzir a um enclave étnico, menos sensível ao desafio da interculturalidade e menos capaz de ver para lá das fronteiras do seu mundo cultural. É por isso que insisti várias vezes que nós não fazemos profissão religiosa para um país ou para uma Inspetoria. Somos salesianos de Dom Bosco na Congregação e para a missão, lá onde houver mais necessidade de nós e onde for possível o nosso serviço.

Já em 1972 o nosso Capítulo Geral Especial havia considerado o relançamento missionário como “um termômetro da vitalidade pastoral da Congregação e um meio eficaz contra o perigo do aburguesamento” (CGE, 296). A capacidade dos irmãos de acolher e acompanhar os novos missionários enviados à sua Inspetoria é também um termômetro do seu espírito missionário.

Graças ao espírito missionário na nossa Congregação, há ainda irmãos que partem para dar a sua vida a Deus como missionários. Ao meu apelo de 2021 passado, 36 salesianos responderam enviando-me a carta da sua disponibilidade missionária. Após um atento discernimento, 25 foram escolhidos como membros da 153a expedição missionária deste ano. Os outros continuam o seu discernimento.

Portanto, com esta carta, convido-vos, queridos irmãos, a rezar e a realizar um atento discernimento para descobrir se o Senhor vos chama, dentro da nossa vocação salesiana, a ser missionários, escolha que implica um compromisso por toda a vida (ad vitam).

Convido os Inspetorias, com os seus Delegados para a animação missionária (DIAM), a ser os primeiros a ajudar os irmãos a cultivar o desejo missionário e a facilitar o seu discernimento, convidando-os, após o diálogo pessoal, a colocar-se à disposição do Reitor-Mor para responder às necessidades missionárias da Congregação. Depois o Conselheiro Geral para as Missões, em meu nome, continuará o discernimento que conduzirá à escolha dos missionários para a 154a expedição missionária que terá lugar, se Deus quiser, no domingo 24 de setembro de 2023, na Basílica de Maria Auxiliadora de Valdocco, como se fez desde o tempo de Dom Bosco.

O diálogo com o Conselheiro Geral para as Missões e a reflexão partilhada no Conselho Geral permitem-me precisar as urgências e identificar para 2023, para onde eu quereria que um número significativo de irmãos pudesse ser enviado:
• para a África do Sul, Moçambique e para as novas fronteiras do continente africano;
• para a Albânia, Kosovo, Eslovênia e para outras novas fronteiras do Projeto Europa;
• para o Azerbaijão, Bangladexe, Nepal, Mongólia e Yakutia;
• para as nossas numerosas presenças nas ilhas da Oceania;
• para as fronteiras missionárias da América Latina e com os povos indígenas.

Saúdo-vos, queridos irmãos, com verdadeiro afeto e com uma lembrança diante da Auxiliadora e de Dom Bosco aqui em Valdodeo,

Turim Valdocco, 18 de dezembro de 2022




Carta do Reitor-Mor. Artêmides ZATTI

«ACREDITEI, PROMETI, SAREI!»
Artêmides Zatti: Evangelho da Vocação e Igreja do Cuidado


«O
mosaico dos nossos santos e beatos, embora muito rico em termos de
representatividade – Fundador, Cofundadora, Reitores-Mores,
missionários, mártires, sacerdotes, jovens –
carecia da peça preciosa da figura de um Coadjutor. Agora,
isto também está acontecendo»1.

Assim começava
o P. João Edmundo Vecchi, oitavo Sucessor de Dom Bosco, sua
carta por ocasião da beatificação de Artêmides
Zatti.

Se ao «mosaico
de nossos santos» faltava uma peça, hoje esse mosaico
brilha de maneira muito especial porque, dentro de algumas semanas,
receberemos um grande presente do Senhor: ver um dos filhos de Dom
Bosco, Coadjutor salesiano, emigrado italiano na Argentina e
enfermeiro, canonizado pelo Papa Francisco no próximo dia 9 de
outubro de 2022.

Artêmides
Zatti será, portanto, o
primeiro santo salesiano não mártir a ser canonizado.
Sem dúvida, a canonização do primeiro santo
salesiano [não mártir] e de um salesiano Coadjutor
confere e conferirá um toque de plenitude à série
de modelos de espiritualidade salesiana que a Igreja declara
oficialmente como tais.

Apresento o
esplêndido testemunho pessoal, repleto de profundidade
espiritual e de fé, dado por Artêmides Zatti em 1915 em
Viedma, por ocasião da inauguração do monumento
fúnebre colocado sobre o túmulo do P. Evásio
Garrone (1861-1911), um salesiano missionário benemérito
e considerado por Artêmides insigne benfeitor.

«Se
estou bem e com saúde e em situação de poder
fazer algum bem a meu próximo enfermo, devo-o ao P. Garrone,
Médico, que vendo minha saúde piorar cada dia, pois eu
estava tuberculoso com frequentes hemoptises, ele me disse
terminantemente que, se eu não queria terminar meus dias como
tantos outros, fizesse uma promessa a Maria Auxiliadora de ficar
sempre a seu lado, ajudando-o a curar os enfermos, e ele, confiando
em Maria, haveria de me curar. ACREDITEI, porque eu sabia por fama
que Maria Auxiliadora o ajudava de forma visível. PROMETI,
pois sempre foi meu desejo ser útil de alguma forma ao
próximo. E, tendo Deus ouvido seu servo, SAREI. [Assinado]
Artêmides Zatti».

Vemos que a
vida salesiana de Artêmides Zatti, segundo esse depoimento, se
baseia em três verbos que testemunham sua solidez generosa e
confiante. Para avaliar o dom da santidade deste grande salesiano
Coadjutor, queremos meditar estes três verbos e seus
extraordinários frutos de bem, para que toquem profundamente
os anseios, os sonhos e os compromissos de nossa Congregação
e de cada um de nós, e promovam em todos uma renovada e
fecunda fidelidade ao carisma de Dom Bosco.

Perfil de Artêmides Zatti2

Artêmides
Zatti nasceu em Boretto (Reggio Emilia) no dia 12 de outubro de 1880
de Albina Vecchi e Luís Zatti. A família camponesa o
educa para uma vida pobre e laboriosa, iluminada por uma fé
simples, sincera e robusta, que orienta e nutre a vida.

Com nove anos,
Artêmides, para contribuir com a economia familiar, trabalha
como camponês para uma família bem colocada socialmente.

Em 1897 os
Zatti emigraram para a Argentina e se estabeleceram em Bahía
Blanca. Artêmides chega a esta cidade com a idade de dezessete
anos e, no âmbito familiar, aprende rapidamente a enfrentar as
penúrias e responsabilidades do trabalho. Encontra trabalho
numa fábrica de ladrilhos e, ao mesmo tempo, cultiva e
amadurece uma profunda relação com Deus, sob a guia do
salesiano P. Carlos Cavalli, seu pároco e diretor espiritual.
Artêmides encontra nele um verdadeiro amigo, um confessor sábio
e um autêntico e experimentado diretor espiritual, que o educa
no ritmo diário da oração e na vida sacramental
semanal. Com o P. Cavalli estabelece uma relação
espiritual e de colaboração.3
Na biblioteca de seu pároco teve a oportunidade de ler a
biografia de Dom Bosco e ficou fascinado. Foi
o verdadeiro início de sua vocação salesiana.

Em 1900, com
vinte anos de idade, Artêmides, convidado pelo P. Cavalli,
pediu para entrar para o aspirantado salesiano de Bernal, localidade
próxima de Buenos Aires.

Todavia, em
1902, pouco antes de entrar para o noviciado, Artêmides
contraiu a tuberculose. O P. Vecchi escreve em sua carta: «Convictos
de sua responsabilidade, os superiores lhe confiaram a assistência
de um sacerdote enfermo de tuberculose. Zatti desempenhou com
generosidade o encargo, porém, pouco depois acusou a mesma
enfermidade».4

Gravemente
enfermo, regressou a Bahía Blanca e o P. Cavalli o enviou a
Viedma, recomendando-o aos cuidados do salesiano P. Evásio
Garrone, que – graças à sua grande experiência
– era competente no exercício da medicina e diretor do
hospital São José fundado por D. Cagliero.

Parece-me
muito significativo recordar que Artêmides, em Viedma, se
encontrou com Zeferino Namuncurá – hoje beato –
vindo de Buenos Aires e que, como ele, sofria de tuberculose. Os
dois, embora com idades diferentes, vivem uma relação
cordial e amiga, até que em 1904 Zeferino viaja para a Itália
com D. João Cagliero.

Depois de dois
anos de tratamento em Viedma com resultados insatisfatórios, o
P. Garrone convence Artêmides a pedir a cura por intercessão
da Santíssima Virgem, prometendo dedicar toda a sua vida aos
enfermos. Feito esse voto com fé viva, Artêmides obtém
a cura e, em 1906, começa o noviciado.

Por causa dos
riscos associados a seu estado de saúde anterior, Artêmides
teve que renunciar a sua intenção de ser sacerdote e
professar como Coadjutor entre os Salesianos de Dom Bosco, no dia 11
de janeiro de 1908. Esse fato representou para Artêmides um
grande crescimento na fé. De fato, ele não abandona o
desejo de ser salesiano sacerdote e continua pensando na vocação
sacerdotal na Congregação Salesiana, especialmente
quando sua saúde parecia melhorar. É comovedor
constatar o apego inquebrantável à própria
vocação, manifestado inclusive quando a enfermidade
parecia impedir absolutamente esse caminho.

Vejamos, por
exemplo, o que ele escreve a seus familiares no dia 7 de agosto de
1902:

«Faço-lhes
saber que não era só meu desejo, mas também o de
meus Superiores, de vestir a batina; no entanto, há um artigo
na Santa Regra que diz que não pode receber a batina alguém
que esteja sofrendo o menor problema de saúde. De modo que, se
Deus não me considerou digno da batina até agora,
confio em suas orações para curar-me quanto antes e
desse modo satisfazer meus desejos».5

No fim de
tudo, porém, dadas as circunstâncias da enfermidade e
também da idade (23-24 anos), os superiores propõem a
Artêmides que faça a profissão como salesiano
Coadjutor. Mas não há dúvidas de que «era
a entrega total a Deus na vida salesiana o que Artêmides
aspirava acima de tudo».6

Também
neste ponto decisivo de sua vida Zatti percorre um caminho de
maturidade. Lemos novamente na carta do P. Vecchi: «Sacerdote?
Coadjutor? Dizia ele mesmo a um seu irmão: "Pode-se
servir a Deus tanto como sacerdote quanto como Coadjutor: diante de
Deus uma coisa vale pela outra, contanto que seja vivida como uma
vocação e com amor"».7

No dia 11 de
fevereiro de 1911 fez seus votos perpétuos e, no mesmo ano,
após a morte do P. Garrone, assumiu, primeiro, como
encarregado da farmácia anexa ao hospital São José
de Viedma e, em seguida, – a partir de 1915 – como
responsável pelo próprio hospital. O hospital e a
farmácia se converterão no campo de trabalho de
Artêmides.

Assim, a
partir de 1915, durante 25 anos, com grande empenho, sacrifício
e profissionalismo, Artêmides será a alma do hospital
que, todavia, deverá ser demolido em 1941: os superiores
salesianos decidem usar o terreno ocupado até então
pela estrutura sanitária para a construção do
palácio episcopal. Artêmides sofre intensamente diante
da proposta de derrubar o hospital, mas com espírito de
obediência aceita a decisão e transfere os doentes para
as instalações da Escola Agrícola de Santo
Isidoro, onde cria uma nova estrutura para atender e cuidar dos
enfermos e pobres.

Depois de
muitos anos de intensa dedicação, já exonerado
das responsabilidades da administração sanitária,
em 1950, uma queda durante um trabalho de reparo do prédio, os
exames clínicos detectaram um tumor no fígado para o
qual não havia cura. Ele acolhe e vive com consciência a
evolução da enfermidade. De fato, ele mesmo redige para
o médico o certificado de sua própria morte! Os
sofrimentos não foram poucos, porém, passou os últimos
meses esperando o momento final preparado para o encontro com o
Senhor. Ele mesmo diz: «Faz cinquenta anos que vim para cá
para morrer e cheguei até este momento. Que mais posso ainda
desejar? Por outro lado, passei toda minha vida preparando-me para
este momento…».8

Sua morte
ocorreu no dia 15 de março de 1951 e a difusão da
notícia mobilizou a população de toda Viedma
para uma homenagem de agradecimento a este salesiano que dedicou toda
sua vida aos enfermos, especialmente aos mais pobres. De fato, «toda
Viedma se despediu do "parente
de todos os pobres",
como o chamavam desde muito tempo; aquele que sempre estava
disponível para acolher os enfermos especiais e aos camponeses
que chegavam do mais distante interior; aquele que podia entrar na
mais duvidosa das casas a qualquer hora do dia ou da noite, sem que
ninguém pudesse insinuar a mínima suspeita a respeito
dele; aquele que, apesar de estar sempre "no vermelho",
tinha mantido um relacionamento singular com as instituições
financeiras da cidade, sempre abertas à amizade e à
colaboração generosa com o que compunham o corpo médico
da pequena cidade».9

O funeral, com
a impressionante afluência de público, confirmou a fama
de santidade que rodeava Artêmides Zatti, que levou à
abertura do processo diocesano em Viedma (22 de março de
1980). No dia 7 de julho de 1997 foi declarado venerável e em
14 de abril de 2002 foi proclamado beato por São João
Paulo II.

A pedagogia de Deus em seus santos

Para abordar a
figura de Artêmides Zatti, é preciosa a guia de um
princípio teológico, denso de significado e repetido
por Hans Urs von Balthasar.

«Só
a imagem [de Jesus] que o Espírito apresenta à Igreja
foi capaz, ao longo de milênios de história, transformar
os homens pecadores em santos. Precisamente sobre a base desse
critério do poder de transformação se deveria
medir o valor de uma interpretação de Jesus que
pretenda transmitir-nos um conhecimento dEle».10

Com essas
palavras, Balthasar sublinha uma evidência que sempre
acompanhou a história da Igreja: a ação do
Espírito se manifesta como força transformadora da vida
humana, dando testemunho da perene atualidade e vitalidade do
Evangelho.

Dessa forma, a
boa notícia de Jesus continua vivendo e difundindo-se de
acordo com a regra da encarnação e, especialmente na
carne e na vida dos santos, por sua profunda adesão ao
Espírito, a Páscoa resplandece na atualidade histórica
do aqui
e do agora
sempre novos, onde amadurecem os prodígios que confirmam a fé
da Igreja.

Os santos são,
portanto, realizações do Espírito que oferecem,
com a simplicidade de uma vida transfigurada, os lineamentos da
imagem do Filho, doados pelo Pai à fadiga do mundo, na
atualidade de um tempo e na proximidade de lugares necessitados de
salvação e de esperança.

Se Deus guia
sua Igreja através da vida obediente de seus filhos mais
dóceis e audazes, na história de cada um deles devem
resplandecer, antes de tudo, reflexos do Evangelho que transformam
uma
biografia normal em hagiografia
e a seguir se devem reconhecer as sementes pascais, capazes de
suscitar caminhos eclesiais renovados no povo de Deus.

Artêmides
Zatti confirma esta regra da santidade: a hagiografia é a luz
do Espírito liberada pela simplicidade de sua biografia, tão
convincente porque habitada em plenitude de humanidade, e tão
surpreendente a ponto de tornar visível «um novo céu
e uma nova terra» (Ap 21, 1); assim, as sementes pascais,
doadas pela vida deste salesiano Coadjutor ao campo do mundo,
transformaram lugares de sofrimento – os hospitais de São
José e de Santo Isidoro – em viveiros da esperança
cristã, extraordinariamente radiantes. «Trata-se de uma
presença no social, toda animada pela caridade de Cristo que o
impelia interiormente».11

É
possível, então, meditar sobre o dom que o Espírito
está dando ao mundo, à Igreja, à Família
Salesiana mediante a santidade de Zatti, detendo-nos primeiro na
luminosidade de sua biografia – um Evangelho, plenamente
encarnado, da vocação, da confiança e da
dedicação – para considerar depois a força
pascal de seu apostolado que, nos seus hospitais, edificou a Igreja
do cuidado, da proximidade, da salvação, da
corredenção, para nutrir a fé do povo de Deus.

Se quisermos
exprimir de forma sintética o segredo que inspirou e guiou a
vida, os passos, os compromissos, a alegria, as lágrimas… de
Artêmides Zatti, as palavras do P. Vecchi, neste sentido, são
exaustivas: «No seguimento de Jesus, com Dom Bosco e como Dom
Bosco, em toda parte e sempre».12

1. UM HOMEM DO EVANGELHO

1.1 O
Evangelho da vocação: «Acreditei»

A história
de Artêmides Zatti impressiona em primeiro lugar pela sua
particularidade vocacional. Uma vocação luminosa porque
purificada por uma misteriosa pedagogia de Deus que se desdobra em
sua vida através de mediações e situações
diferentes e comprometedoras. A vida cristã é o respiro
partilhado da família de Artêmides, que tudo vê à
luz do mistério de Deus; será sua segunda pátria,
a Argentina, meta da imigração, a mostrar o
enraizamento dos Zatti numa fé não comum. O Card.
Cagliero escreve:

«Nossos
compatriotas, inclusive os que provêm dos lugares mais
religiosos da Itália, chegando aqui, parece que mudam de
natureza. O amor desmedido ao trabalho, a indiferença
religiosa dominante nestes povoados, os frequentíssimos
péssimos exemplos […] operam uma incrível
transformação no espírito e no coração
dos nossos bons camponeses e trabalhadores, que em troca de qualquer
escudo que ganham, perdem a fé, a moralidade, a religião».12

A família
Zatti não cederá ao influxo do ambiente,
distinguindo-se pelo contrário por uma prática
religiosa fervorosa, simples, corajosa, livre do respeito humano; e
Artêmides continuará a nutrir na família uma
intensa relação com Deus, feita de oração,
laboriosidade, retidão, de modo que «tudo
leva a crer […] que a formação religiosa do
Servo de Deus recebida quando menino e na primeira juventude […]
deve ter sido de tal modo privilegiada que explique as atitudes
espirituais que ele conservou por toda a vida».14

A experiência
de Artêmides reflete o discernimento luminoso da «"medida
alta" da vida cristã ordinária» (Novo
Millennio ineunte,
31), fruto de um exclusivo enraizamento em Deus, de uma fé
vivida como obediência corajosa e irradiante porque livre,
alegre e fecunda.

Quando o
salesiano P. Cavalli, pároco e guia de Artêmides pelos
caminhos do Espírito, irá incentivar sua orientação
definitiva de vida, o discernimento será sóbrio e
límpido: constatará que o chamado de se entregar a Deus
totalmente, como sacerdote, ressoa no coração daquele
jovem de forma íntegra e pura, não contaminada pela
busca de si mesmo e do próprio interesse, mas acesa pelo
desejo de servir ao Evangelho do Reino.

Deus, diante
da singular disponibilidade de Artêmides a se entregar, não
se limita a chamar, mas confirma o chamado mediante o sinal
incontestável de sua presença: a cruz do Filho. Assim,
o selo da predileção de Deus se torna reconhecível
no coração do discernimento vocacional deste jovem
desejoso de ser sacerdote: Artêmides, acolhido em Bernal como
aspirante, é solicitado a cumprir uma tarefa arriscada, cuidar
de um sacerdote doente de tuberculose – como recordamos acima.

O serviço
sem maiores cuidados, levou Artêmides a contrair por sua vez a
doença que exigirá o sacrifício do sonho
vocacional: Artêmides será salesiano, não, porém,
sacerdote.

Aqui
reconhecemos o poder do Evangelho acolhido sem condições
na vida dos santos; uma presença que suscita uma resposta
vocacional pura porque guardada por um coração, não
somente desapegado do mal – condição essencial
para a escuta da voz de Deus – mas também capaz de
liberdade a respeito do bem, condição essencial para
uma fé inquebrantável no Absoluto de Deus.

Caminhando na
obscuridade luminosa da fé, Artêmides sacrifica o desejo
de servir à Igreja na forma ministerial do sacerdócio,
abraçando-lhe, porém, a essência, segundo Cristo,
«que, movido pelo Espírito eterno, ofereceu a si mesmo
sem mancha a Deus» (Hb 9,14).

As
características do Evangelho
da vocação
reconhecem-se assim, indeléveis, na plenitude do sacrifício
de si mesmo que sela o princípio da vida salesiana de Zatti
muito antes de coroar sua plenitude.

E a fidelidade
à forma laical da vida salesiana, abraçada por puro
amor de Deus, será plena e convicta, longe de toda lamentação,
vivida numa existência convincente e feliz.

Este é
o Evangelho
da vocação,
a boa notícia do chamado de Deus reservada singularmente a
cada um de seus filhos, chamado do qual somente Deus conhece o
alcance, as razões, a destinação, o
desenvolvimento concreto. Chamado que se torna perceptível
somente na correspondência pura do amor que, por sua vez «quer
desfazer-se do adversário mais perigoso: a própria
liberdade de opção. Todo verdadeiro amor, por isso,
assume a forma interior do voto: liga-se ao amado, por causa 13do
amor e no espírito do amor».[15].

O Evangelho
da vocação
na santidade de Artêmides é o evangelho da pura fé:
a boa notícia do respiro sadio do coração que
saboreia a liberdade na obediência ao plano de Deus, guarda do
mistério de toda vida chamada a ser ramo fecundo da verdadeira
Vide, confiada à sabedoria do «Agricultor» (Jo
15,1).

Lida com as
"categorias" do nosso tempo, a santidade de Artêmides
Zatti desafia o "medo vocacional", medo que oprime o
coração na desconfiança perante o mistério
de Deus. O Evangelho
da vocação
anunciado pela vida deste santo salesiano Coadjutor mostra que
somente correspondendo ao sonho de Deus é possível, em
qualquer idade e situação, vencer a paralisia do eu,
mediante a pobreza de seu olhar e de suas medidas, com a angústia
de sua incerteza e de seu temor.

Quando o P.
Garrone – ele mesmo salesiano de virtude eminente, além
de grande competente em medicina, competência, adquirida por
meio do serviço generoso aos doentes – exorta Artêmides,
enfermo de tuberculose, a pedir a graça da cura por
intercessão da Virgem Maria, com o voto de se dedicar por toda
sua vida aos enfermos, a fé de Zatti dá boa prova de
si: simples, desinteressada, sem reservas, encerrada numa palavra:
«Acreditei!».

«Acreditei»,
ou quando é suficiente uma palavra para exprimir a fé,
porque a fé é pura; somente essa fé é
vocacionalmente generosa, pela leveza de sua pureza que «dá
asas ao coração e não cadeias aos pés».

A santidade de
Artêmides Zatti atinge nossos caminhos vocacionais, às
vezes cansados e pesados, com a força explosiva de um
«acreditei» que jamais falhou: o presente da fé
que se dilata ao longo da vida e torna a pessoa credível. Sua
fé foi uma contínua união com Deus. Nos
depoimentos recolhidos, assim se expressou D. M. Pérez:

«A
impressão que eu recebi foi a de um homem muito unido ao
Senhor. A oração era como o respiro de sua alma, todo
seu comportamento demonstrava que vivia plenamente o primeiro
mandamento de Deus: amava-o com todo seu coração, com
toda sua mente e com toda sua alma».14

Somos chamados
a valorizar o testemunho de Artêmides, para renovar o ardor de
nossa pastoral vocacional e oferecer aos jovens o exemplo de uma vida
que a solidez da fé torna plena, simples, corajosa, pelo poder
do Espírito e pela docilidade ao chamado.

1.2 O Evangelho da confiança: «Prometi»

O Evangelho
da vocação,
do qual Zatti é testemunha, anima um segundo verbo de
importância fundamental: prometer.

Hoje sentimos
com frequência a fragilidade das promessas humanas, receamos a
falta de confiabilidade, constatamos a incapacidade de tais promessas
serem definitivas: daqui os invernos vocacionais atingem a família,
a Congregação em muitas partes do mundo, a Igreja, e
que tornam urgente o anúncio do Evangelho do chamado de Deus e
da resposta de quem crê.

Von Balthasar,
refletindo sobre a essência da vocação, fruto de
uma fé autêntica, escreve:

«Não
há nenhum caminho para o amor sem pelo menos um indício
de um gesto
de entrega.
[…] [O amor] quer definitivamente dar-se, entregar-se, confiar-se,
encerrar-se. Quer depositar no amado, uma vez por todas, sua
liberdade de movimento, para oferecer-lhe um penhor de seu amor. Logo
que o amor desperta verdadeiramente para a vida, o momento temporal
quer
ser superado por uma forma de eternidade.
Amor por certo tempo, amor descontínuo nunca é
verdadeiro amor».15

Artêmides
Zatti, embora jovem de idade e precisamente num grande momento de
provação, sente o chamado à plenitude da entrega
de si mesmo numa promessa irrevogável e radical; quando em
idade madura, testemunhando sua gratidão ao P. Evásio
Garrone, seu benfeitor, recorda os primórdios do próprio
caminho de consagração; então ele pode ser
conciso em apresentar o coração de sua adesão
juvenil ao chamado do Senhor: «Acreditei, prometi».

O "prometi"
de Artêmides segue seu "acreditei", mas também
plasma sua radicalidade e sua qualidade humana e cristã.
Artêmides crê porque promete e não só
promete porque crê: nele vemos realizada a regra da fé
que, se não pode contar com a disponibilidade da promessa, da
entrega de si, decai para um tipo de interesse espiritual, de
previdência e de contrato religioso.

Zatti não
espera garantias para dedicar arriscadamente sua vida, não
pede para cobrar o direito ao "cêntuplo nesta vida"
como condição prévia para lançar as
redes; antes, «ofereceu-se com pronta disponibilidade para
assistir a um sacerdote enfermo de tuberculose e contraiu ele também
o mesmo mal: não disse uma palavra de queixa, aceitou a doença
como dom de Deus e suportou com fortaleza e serenidade suas
consequências».16

Assim, a
generosidade de Artêmides é recompensada ainda antes da
profissão religiosa, e o preço é elevado: uma
enfermidade debilitante, um sonho vocacional naufragado, um
sofrimento agudo e – mais do que tudo – uma total
incerteza. Mas a encruzilhada da fé e a promessa do Evangelho
da vocação
realiza nessa vida, desde a juventude, prodígios de santidade.

A promessa de
Artêmides é pura, desinteressada, como sua fé e
faz brilhar a integridade do abandono ao plano de Deus e a
generosidade do dom e da entrega de si que mostram autêntica
espessura teologal: Artêmides faz sua a vida do Filho obediente
que se entrega totalmente ao que o amor do Pai decidir e determinar
para a salvação do mundo. O alfabeto vocacional de
Zatti é tão profundo quanto simples e claro:

«Acreditei,
prometi. Ele crê e promete com radicalidade evangélica
porque já assumiu a Paixão do Senhor como regra de sua
fé e de sua doação, como não se cansa de
repetir em suas cartas aos familiares: "Nossas alegrias são
as cruzes, nosso conforto é o sofrimento, nossa vida são
as lágrimas, mas tendo sempre ao lado, como querida e
inseparável companheira, a esperança de alcançar
o belo paraíso, quando terminar nossa peregrinação
sobre a terra"».19

A cruz é
a regra da fé e ensina como o crer cristão não
consiste simplesmente em conhecer alguma coisa, mas em entregar-se a
Alguém, não prometendo alguma coisa, mas entregando-nos
a nós mesmos. Formado pela cruz, Artêmides, antes ainda
de empreender o caminho da vida religiosa, não
promete alguma coisa, mas promete a si mesmo, não faz votos,
vota a si mesmo,
e desse modo reproduz a fisionomia do Filho que «entrando no
mundo, […] diz: Tu não quiseste vítimas nem
sacrifícios, mas me preparaste um corpo. Não te
agradaram holocaustos ou sacrifícios pelos pecados. Então
eu disse: "Eis que eu venho – pois assim está
escrito no livro – para fazer, ó Deus, a tua vontade"»
(Hb 10, 5-7).

Sempre na
escola do Senhor Jesus, Artêmides aprende que a radicalidade da
promessa de si mesmo corresponde à audácia crescente da
fé. Quem se dá completamente a Deus pode abandonar-se à
certeza de receber tudo da parte dEle, e Artêmides não
se cansa de recordá-lo em suas cartas:

«Recomendo
que não tenhais medo ou vergonha de pedir graças. Pedi
e recebereis; quanto mais pedirdes, mais recebereis; pois quem muito
pede, muito recebe; e quem pouco pede, pouco recebe; e quem nada
pede, nada recebe. […] Eu não ficarei a elencar as graças
que deveis pedir; vós sabeis muito bem. Só quero
colocar diante de seus olhos uma delas: a de que todos nós
possamos amar e servir a Deus neste mundo e depois poder ser felizes
com Ele no outro».17

1.3 O
Evangelho da doação: «Sarei»

«Sarei»
é o verbo com que Zatti sela o acontecimento que o introduz na
vida salesiana.

O que
significa «Sarei»?
Certamente a tuberculose que lhe minara a saúde foi superada
por Artêmides, inclusive de uma forma que surpreendeu os
médicos:

«No
processo de Viedma o Tribunal perguntou se a cura foi milagrosa. Pelo
que nos é dado saber, só faltou a instantaneidade para
qualificá-la como milagrosa, mas, pelo que dizem os médicos
[…] que conheceram muito bem Zatti até à morte, foi
extraordinária pela ausência e pouca eficácia dos
cuidados de então, pela continuidade da cura e pela mais do
que normal robustez física de que sempre gozou o Servo de
Deus, apesar de sua vida de penúrias. A intervenção
de Nossa Senhora parece inegável, quer seja milagre, quer seja
uma graça extraordinária».21

Seja como for,
o dedo de Deus agiu segundo seu estilo inconfundível: não
extirpou o mal ao reconduzir a vida de Artêmides às
condições anteriores à doença, e também
não desfez o típico mistério de todo plano
divino e de cada existência humana. Assim, como já
observamos,

«os
superiores, embora constatando melhoras na saúde do Servo de
Deus, não devem ter ficado plenamente persuadidos a respeito
de suas futuras possibilidades. A tuberculose, naqueles tempos, nunca
dava garantia plena de cura ou de cura definitiva; o currículo
de estudos que o Servo de Deus deveria enfrentar na sua idade (23-24
anos) era ainda longo e, sem dúvida, não apropriado
para um tuberculoso; por sua vez, ele já tinha começado
a trabalhar, e tudo leva a crer que sempre com sucesso e recíproca
satisfação. Os superiores, dadas todas essas
circunstâncias, tiveram que propor ao Servo de Deus –
que, por tudo o que consta de seus escritos, certamente tinha
decidido deixar o mundo e consagrar-se a Deus – fazer-se
religioso salesiano, mas como Coadjutor (irmão leigo): a
solução parecia ser a mais prudente em vista de sua
saúde ainda incerta: um trabalho material exigiria menos
esforços do que os de um longo período de estudos
sérios».18

O mistério
de Deus tornou-se ainda mais espesso com a cura, e à fé
de Artêmides foi solicitada uma purificação
talvez mais severa da imposta pela perda da saúde: o
sacrifício da orientação vocacional. Assim,
Artêmides é levado a aprofundar o caminho do
esvaziamento que Deus lhe pede: a libertação da
enfermidade não é mais do que a reconquista de forças,
que permite a um jovem empreendedor «recuperar a vida». A
cura, a seu modo, é o deserto de uma nova pobreza, para que a
vida de Artêmides seja um espaço livre para Deus, na
radicalidade de um novo abandono.

Deus cura
Artêmides da tuberculose para renovar nele o prodígio de
salvá-lo do apego a si mesmo, do afastamento inclusive dos
próprios projetos de fazer o bem:

«Deve-se
crer que abandonar a aspiração ao sacerdócio
tenha sido para o Servo de Deus um grande sofrimento espiritual, tal
era o elã e o espírito de sacrifício com que
tinha iniciado o caminho para essa meta. É maravilhoso, porém,
e sinal de extraordinária força espiritual, o fato de
que jamais se encontra uma palavra de queixa ou mesmo de desgosto ou
de saudades […] em relação a toda essa reviravolta na
perspectiva de sua vida».19

«Sarei»
é, então, a voz da coerência do alfabeto
vocacional de Zatti. Quando Deus chama e sua criatura responde, o
Espírito não se limita a sanar a precariedade humana,
mas realiza o sonho de Deus: «Eis que eu faço novas
todas as coisas» (Ap 21,5). Assim, se a enfermidade inclina o
coração humano a dobrar-se sobre si mesmo, o "crer"
e o "prometer" de Artêmides, alimentados pelo amor ao
Senhor Jesus e à Cruz, produzem verdadeira saúde: um
maior esquecimento de si e condescendência incondicionada a
Deus, que o leva a ser o humilde apóstolo dos mais pobres, dos
doentes e, entre estes, a tornar-se o apóstolo dos casos mais
especiais, quer dizer, dos abandonados e dos descartados deste mundo.

Artêmides,
renascido para uma pobreza maior, entrega-se por completo, em plena e
operosa confiança no plano do Pai: «Ex
auditu
posso dizer que [na vida do Servo de Deus] houve uma vontade geral de
que Deus fosse glorificado. Por tudo o que conheci a seu respeito,
posso assegurar que vivia para a glória de Deus».20

A subordinação
de tudo à glória de Deus e o sacrifício dos
próprios pontos de vista – incluindo os projetos de
fazer o bem – a fim de atender à sabedoria de Deus, que
é a única que realiza a plenitude do Amor, serão
essenciais, não somente para a experiência espiritual
deste salesiano extraordinário, mas também para a
pedagogia da dor que ele deverá praticar pela especificidade
de sua missão.

No «Sarei»
de Zatti se realiza, não somente uma graça, mas uma
escola, ambas plasmadas pelo dedo de Deus para o bem dos irmãos:
livre da doença, Artêmides servirá aos doentes
durante uma vida inteira, depois de ter passado ele mesmo por uma
verdadeira
cura que
o fará verdadeiro
médico
das criaturas sobre as quais haverá de se inclinar.

«Fazia
com frequência o Sinal da Santa Cruz e levava os enfermos a
fazê-lo, gostava de ensiná-lo às crianças.
Nele a fé e os remédios formavam uma simbiose: sem a fé
não curava, como também não sem remédios.
Igualmente não via uma dicotomia entre a alma e o corpo: era
uma coisa só, o homem, e ele curava este homem: corpo e
alma».21

Somente por
ser conduzido pela mão de Deus a viver a cura, bem como a
morrer para si mesmo, Artêmides poderá tornar-se próximo
dos enfermos com o remédio do Amor Encarnado e Crucificado,
difundindo conforto, luz e esperança.

2. UMA TESTEMUNHA DA PÁSCOA

Se na vida de
Zatti – pelo modo com que alcançado pelo chamado de Deus
– brilha de forma original e atualíssima o Evangelho
da vocação,
sua semeadura apostólica se realiza como arte do cuidado na
luz da Páscoa.

A coerência
pascal é a regra de fidelidade de todo apostolado cristão:
nos santos, a prática dessa regra alcança o fulgor,
introduzindo a vida de Deus dentro das fadigas dos homens, da
história, do mundo, edificando assim a Igreja.

Artêmides
praticou com paixão pascal a fadiga do sofrimento humano e
assim edificou a Igreja como verdadeiro hospital de campanha (como
continuamente repete o Papa Francisco), precisamente transformando
dois hospitais que surgiram «lá no fim do mundo»
em células vivas da Igreja.

Entre o fim de
1800 e os primeiros decênios de 1900, os hospitais de São
José, antes, e o de Santo Isidoro, depois, foram um recurso
sanitário precioso e único para a cura particularmente
dos pobres de Viedma e da região do Rio Negro: o heroísmo
de Zatti transformou-os em lugares de irradiação do
amor de Deus, onde o cuidado da saúde se torna experiência
de salvação.

Artêmides
praticou em sua vida a parábola
do Bom Samaritano.
O Samaritano é Cristo, o Deus próximo de nós (no
seu Filho Amado), que não conhece a indiferença e o
desprezo, pelo contrário, que se oferece a si mesmo de antemão
para curar até o último de seus filhos e filhas, por
meio da proximidade do amor, para que o mal da história não
condene nenhum destes pequenos a perecer fora de Jerusalém.

Eis o milagre
de Deus: naquele pedaço de terra patagônica, onde
transcorre a vida de Zatti, começou a viver uma página
do Evangelho. O Bom Samaritano encontrou rosto, mãos e paixão,
antes de tudo, em favor dos pequenos, dos pobres, dos pecadores, dos
últimos. Assim, um hospital se tornou o Albergue do Pai, o
sinal de uma Igreja que quis ser rica de dons de humanidade e de
Graça, mediante a doação, o serviço e a
fidelidade ao mandamento do amor de Deus e do irmão.

São
numerosas as testemunhas que permitem contemplar a experiência
de Igreja que tomou forma naquele hospital de campanha vivificado
pelo coração inflamado de Artêmides: dando-lhes
novamente a palavra, emerge novamente o fascínio de Artêmides
preocupado em curar todos que lhe eram confiados, seja mediante os
remédios da arte médica, seja mediante sua presença,
simpatia, oração por todos e com todos, e mediante a
expressão de fé de todos os dias deste humilde
salesiano. Tudo isto certamente mostrou-se mais eficaz do que muitos
remédios.

2.1. Cuidado pascal e serviço (diakonia) da vida ferida

Onde há
santidade ali a Igreja cresce, e onde se edifica a Igreja, ali há
santidade. Quem se encontrou com Zatti, quem foi acolhido no seu
hospital, fez experiência de fraternidade e nessa fraternidade,
experiência de Igreja.

Artêmides
viveu com radicalidade evangélica a certeza de que o serviço,
que foi sua característica vocacional – a diakonia
– torna credível, reconhecível, amável, o
semblante da Igreja. A porta do serviço fraterno atrai o
coração humano, especialmente quando é provado
pela vida e pelo sofrimento, e abre à experiência do
encontro com Jesus, o verdadeiro Bom Samaritano: Zatti fez tudo o que
podia para viver como um bom samaritano.

«O
hospital e as casas dos pobres, visitados de noite e de dia, sempre
de bicicleta, já considerada um elemento histórico da
cidade de Viedma, foram a fronteira da sua missão. Viveu a
doação total de si a Deus e a consagração
de todas as suas forças para o bem do próximo».22

Artêmides
é testemunha de serviço, e assim como Jesus entregou a
si mesmo até o fim, Zatti, seguindo os passos de seu Senhor,
fez até o heroísmo uma doação de si e uma
diakonia
plenamente cristãs. Merecem ser sublinhadas, mediante as
palavras unânimes das testemunhas, as características
extraordinárias da diakonia
evangélica de Artêmides: a universalidade da dedicação,
a totalidade do dom de si, a generosidade que nasceu da proximidade
com Deus, em obediência a Ele, realizada nEle e por Ele.

Que o serviço
de Zatti não conhecesse particularismos e não desse
preferências a pessoa está diante dos olhos de todos que
o conheceram:

«Sei
que visitava a penitenciária para cuidar de doentes. Com os
incrédulos e os inimigos da Igreja era sempre disponível
e amável. Recordo a frase de um médico que, comentando
o título do livro do P. Raul Entraigas "O parente de
todos os pobres", dizia que deveria ter corrigido o título
para "o parente de todos", pela equidade com que ele não
fazia a mínima distinção entre quem o
procurava».23

Se no serviço
e na doação de si mesmo por parte de Zatti havia uma
preferência por alguém, era a preferência ensinada
pelo Bom Pastor, sensível particularmente com a sorte das
ovelhas mais feridas e perdidas:

«Uma
das predileções [de Artêmides] era sua total
doação a Deus nessas pessoas humildes, indefesas ou com
enfermidades repugnantes, a tal ponto que quando alguém queria
mandá-las para algum outro hospital porque havia muitos anos
que estavam no Hospital São José, ele respondia que não
se devem abandonar esses verdadeiros para-raios
do Hospital».24

Zatti servia
doando-se por inteiro, consumando-se numa generosidade sem medidas,
nas formas mais diversificadas de uma atividade febril, com o único
objetivo de corresponder às solicitações de
todos:

«Como
era conhecida sua bondade e boa vontade em servir aos outros, todos
recorriam a ele para qualquer tipo de necessidade. […] Os diretores
das casas salesianas da inspetoria lhe escreviam para ter conselhos
médicos, enviavam-lhe coirmãos para cuidar, confiavam a
seu hospital pessoas de serviço já incapacitadas. As
Filhas de Maria Auxiliadora não ficavam atrás dos
salesianos em pedir favores. Os emigrantes italianos solicitavam-lhe
ajuda para que escrevesse para a Itália, que encaminhasse
práticas. Os que tinham sido curados no hospital,
enviavam-lhe, como forma de agradecimento, parentes e amigos para
assistir, por causa do apreço que tinham por seus cuidados. As
autoridades civis com frequência deviam providenciar soluções
para pessoas incapacitadas para o trabalho e recorriam a Artêmides.
Os presos e outras pessoas, vendo sua boa relação com
as autoridades, se recomendavam a ele para que pedisse clemência
em seu favor ou fizesse encaminhar a solução de seus
problemas».29

O serviço
de Zatti era contínuo, com total esquecimento de si mesmo.
Precisamente por isso, não afetado por suscetibilidades,
ingratidões, faltas de correspondência ou solicitações
prementes:

«No
Servo de Deus a preocupação pelo próximo era
extraordinária no trabalho diário; da manhã à
noite ele vivia para seus queridos enfermos.

Essas
circunstâncias se multiplicavam à noite, quando,
independentemente da hora em que fosse chamado, ele acorria
rapidamente. […]. Sei que com frequência sofreu por
causa de pretensões excessivas de alguns enfermos, exigências
demasiadas, caprichos, como no caso […] de pacientes com
enfermidades mentais. O Servo de Deus nunca perdia a paciência.
Recordo tê-lo visto em diversas oportunidades sair de casa
durante mau tempo, frio e chuva, com seu veículo, a bicicleta,
que não era do último modelo, para atender enfermos
entre o povo, indo por caminhos muito pouco transitáveis».25

O que em
Artêmides marcou profundamente sua diakonia,
seu serviço a todos, era que tudo ele fazia na companhia do
Senhor. Todos admiravam a competência desse generoso
enfermeiro, bem como era evidente seu sentir-se em missão
junto com Jesus:

«Um
episódio pessoal muito concreto: sendo eu noviço e
depois padre novo, vim a Viedma por causa de algumas pústulas
que me apareciam particularmente no pescoço e no rosto. O
Servo de Deus sempre me acolhia sorridente, curava os furúnculos,
cauterizando-os com a ponta de um ferro em brasa, enquanto
cantarolava o Magnificat
e ao mesmo tempo me encorajava a oferecer aqueles sofrimentos pela
santa perseverança na vocação».26

Além
disso, em Zatti refulgia a obediência a Deus e a seu plano: ela
era como a alma de um serviço humilde e confiante, que devia
inspirar nos pobres e nos enfermos sentimentos de entrega a Deus.
Tudo encontrava em Deus inspiração e tudo Artêmides
cumpria conforme o mandato de Deus, de tal modo que o serviço
deste grande salesiano era uma prática contínua e
fascinante do preceito do amor:

«Ele
amou a Deus sobre todas as coisas. Para ele, todas as coisas desta
terra eram transitórias e secundárias. Para mim, Zatti
era constante, sem cedimentos em seu amor a Deus e em sua piedade.
Não somente nos atos de piedade, mas em todo o serviço
ao próximo ele tinha sempre o nome de Deus sobre os lábios.
Exortou a todos que lhe foram próximos a viver a piedade.
Artêmides era permanentemente um exemplo, sua piedade era
superior ao normal».32

Como sempre
acontece com os santos, a diakonia
de Zatti era um serviço realizado em obediência a Deus,
mas particularmente em nome de Deus: ele emprestava a Deus seu rosto,
seu coração, suas mãos, na certeza – fonte
de grande audácia – de ser um pequeno instrumento de seu
grande Poder e de sua Providência. Assim, Artêmides
trabalha com extraordinária generosidade, mas com abandono
total, porque sabe que a agir, nele, é seu Senhor: «Esperou
e sempre confiou em Deus. A serenidade com que superava as
dificuldades era uma demonstração de sua esperança
em Deus. Dizia sempre: "Deus proverá", porém,
ele o dizia com plena confiança e esperança».27
Zatti, crente e homem autêntico,

«era
movido pela caridade para com o próximo porque em cada enfermo
via Cristo sofredor. Tão grande era sua bondade que usava para
com os enfermos que nunca lhes negava nada»;28
«para o Servo de Deus, o amor se manifestava na caridade com
que cuidava dos "outros Cristos". No seu conceito
evangélico de que tudo o que seus discípulos fizessem
ao próximo é feito ao próprio Cristo, o Servo de
Deus sempre usou de grande caridade para com todos, mesmo quando se
tratava de incrédulos ou indiferentes».35

Quer vivendo
numa Igreja "em saída", numa Igreja do serviço,
capaz de visitar de bicicleta seus pobres, quer servindo a quantos
batiam à porta do seu hospital – de São José,
antes, e de Santo Isidoro, depois – para que encontrassem o
amor de Deus, Artêmides deu-se por inteiro a Deus, tornando-se
servo do Senhor, missionário autêntico da Igreja em nome
do Senhor Jesus.

2.2 Fraternidade pascal e comunhão (koinonia) na vida compartilhada

A santidade de
Zatti nos leva ao coração da Igreja, não só
pela singularidade de sua diakonia,
mas também pela qualidade da comunhão florescida graças
à sua doação aos outros. O que fosse a comunhão
para Artêmides é testemunhado tanto pelos testemunhos de
quem o viu no trabalho, quanto pelo modo com que passou por momentos
mais difíceis que assinalaram sua vida.

Um
acontecimento particularmente doloroso para ele ocorreu quando os
superiores decidiram demolir o Hospital São José, ao
qual Artêmides tinha consagrado todas as suas energias. Em
Viedma, faltando ambientes para o palácio episcopal,
decidiu-se demolir o velho hospital; a isto somou-se o peso da
transferência de todos os serviços sanitários
para os espaços da Escola Agrícola de Santo Isidoro,
sede de outra obra salesiana em Viedma.

Para Zatti, a
demolição do hospital não era uma simples
operação edilícia, era uma prova cruel e
crucificadora: diante de seus olhos não estava somente a
caliça de um velho hospital, mas a dúvida de que, com
aqueles muros, tivesse desmoronado também sua vida e ali
tivessem terminado também suas renúncias e privações,
incompreensões e vigílias, problemas e suores, doação
aos outros e sacrifício de si mesmo. A Artêmides não
foi poupado o cálice amargo, mas ele ficou em pé, com
fortaleza e doçura cristã:

«Antes
que o Hospital São José fosse demolido, ele tinha
proposto construir o palácio episcopal em outro lugar e o
terreno ser objeto de uma permuta; depois, dada a inexorabilidade da
demolição, pela qual […] ele sofreu enormemente por
causa de sua extrema sensibilidade humana, não se revoltou,
nem protestou; pelo contrário, acalmava os que pretendiam
levá-lo a rebelar-se».29

Como sempre
acontece na vida dos santos, a provação é ao
mesmo tempo um cadinho obscuro e uma demonstração
luminosa: Zatti, com sua serenidade de ânimo e a alacridade em
preparar a nova sede dos serviços sanitários, demostrou
qual era o fundamento de sua doação: o verdadeiro
hospital edificado por ele não podia ser reduzido a um monte
de caliça, porque era uma invenção da caridade,
daquela caridade que «jamais terá fim» (1Cor
13,8), e que exprime o milagre da comunhão, reflexo da eterna
Vida de Deus. O verdadeiro hospital de Artêmides não era
um edifício terreno, dedicado a São José ou a
Santo Isidoro: naqueles ambientes, seu profissionalismo acolhia a
todos, através da porta do serviço fraterno, para que
fizessem a verdadeira e plena experiência da ternura de Deus.

Zatti não
pregou o catecismo da comunhão, mas com sua santidade o
encarnou: e seu hospital não era um prédio imponente,
mas um milagre evidente, diário, de serviço e comunhão.

«O
Servo de Deus dirigia todo o pessoal, que era composto por diversas
pessoas que moravam no hospital, como fosse um superior de uma
comunidade religiosa. […] As pessoas o amavam e veneravam, e
seguiam ao pé da letra as regras. Nunca faltou o necessário
a nenhuma delas, no campo moral, espiritual e técnico, para o
cumprimento das próprias tarefas, e isto pela preocupação
pessoal do Servo de Deus».30

Todos estavam
persuadidos de que era precisamente a estatura espiritual de Zatti a
criar a comunhão.

«Nos
anos em que fui aluno do Colégio de São Francisco de
Sales, o hospital era uma dependência do colégio e se
sabia tudo o que acontecia tanto lá como cá. Jamais
ouvi falar de algum desentendimento ou incompreensão entre os
colaboradores de Artêmides que pudesse ter alguma importância
e ser causa de fofocas no povoado ou na escola».38

A comunhão
cristã, quando se realiza, não deixa de ser admirada
pela sua beleza que impressiona um mundo prostrado pelo rancor e pela
divisão; somente os santos, porém, conhecem em
profundidade o preço da comunhão, sua isenção
de toda artificialidade, da sua simpatia à primeira vista, da
facilidade sem sacrifício. Os santos sabem quanto custa a
comunhão porque sabem qual é sua fonte: o Coração
transpassado do Senhor, que realiza a obra da reconciliação
entre os homens e com os homens.

Zatti sabe que
somente o Sangue do Senhor cria comunhão, e ele escolhe o
caminho da participação fiel e diária ao
sacrifício do Filho, com o sorriso nos lábios, a
fortaleza na alma, a paz no coração, as mãos
calejadas pelo trabalho e pela fadiga. Tornando quase imperceptível
o empenho exigido pela sua imolação, Artêmides

«era
um homem que irradiava paz, [homem] de ação, dinâmico,
não mostrava nervosismo, sempre alegre. Eram frequentes nele
as anedotas […] para alegrar um enfermo. […] Era um homem que não
vacilava nas práticas religiosas […], sinal do seu esforço
para melhorar a si mesmo. Pessoalmente, o que mais observei nele foi
sua caridade e humildade».31

A humildade de
Artêmides constrói a Igreja e torna cristã a
comunhão da qual ele mesmo é artífice; quem não
morre todos os dias a si mesmo carrega consigo o peso do egoísmo
que fere a comunhão; somente a humildade cura as relações
e vence as bajulações do poder, do controle, da
sedução, da prevaricação. Zatti, sem
multiplicar palavras ou discursos, sabe que só a humildade
pode ser artífice da verdadeira koinonia,
fruto e condição de uma diakonia
eficaz e discreta, que não cria dependência, mas
restitui a dignidade; só a humildade serve de forma
generativa, promovendo uma comunhão que cura o liame e promove
a autonomia. A humildade é a virtude de Deus porque é o
segredo de todo pai, a esperança de todo filho, o espírito
de toda verdadeira vida.

Artêmides
pode ser servo e artífice de comunhão pela humildade
que o torna simples filho de Deus, vivo pela Vida do Espírito
e pai de todos:

«Penso
que no relacionamento de Artêmides com os colaboradores nunca
houve problemas, porque ele era como o pai de todos. Recordo que a
todos parecia faltar alguma coisa quando ele se ausentou por ter ido
a Roma para a Canonização de Dom Bosco»;32
«o relacionamento de Artêmides com o hospital era como o
de um pai. Não me constam desentendimentos ou dificuldades: se
houve, creio que não tenham vindo da parte dele. Das
enfermeiras com quem lidei, […] só ouvi louvores, nunca
algum tipo de queixa».33

2.3 Proximidade pascal e martyria da vida sem fim

Nosso coirmão
Artêmides Zatti realmente testemunhou com sua vida (martyria)
que o Senhor ressuscitou. «Eu sou a luz do mundo» (Jo
8,12), diz de si o Senhor. O Evangelho é Luz que quer penetrar
na vida dos homens, e Luz para o mundo é a Igreja, sacramento
vivo de Deus. Também a santidade de Artêmides,
alimentada pela Páscoa de Jesus, é luz, e dela fizeram
experiência particularmente os pobres e os doentes de Viedma.
Artêmides acolhe-os por meio da porta do serviço
fraterno. Guarda-os entre os muros da comunhão, a fim de
oferecer-lhes, mediante seu testemunho de vida, a luz do Evangelho, o
esplendor da Páscoa que ilumina a Igreja.

Crentes e não
crentes sentem-se como que tocados em seu íntimo pelas
palavras e gestos de Artêmides; seu testemunho é, sem
sombra de dúvidas, extraordinariamente salesiano, atinge a
todos e anuncia, por meio de duas palavras, dois traços
decisivos do Deus de Jesus: Providência e Paraíso.

Não há
Igreja onde não há anúncio explícito do
nome de Deus, anúncio que se paga mediante o martírio
da vida, no sinal do sangue ou da caridade; onde se verifica o
serviço e a comunhão de Artêmides ressoa o
anúncio do nome de Deus, destas duas palavras, tanto cristãs,
quanto salesianas: Providência e Paraíso.

Artêmides
anuncia com sua vida que tudo em Deus é amor, mas amor
concreto, atento, sem fim e minucioso, em favor de cada criatura: o
amor de Deus é Providência. A Providência de Deus,
porém, não é por certo tempo, mas eterna, e eis,
então, o segundo nome: Paraíso. Paraíso é
o nome próprio do desejo de Deus que na história provê
suas criaturas para tê-las consigo para sempre, por toda a
eternidade.

Artêmides
é mestre nesse alfabeto cristão:

«Era
seu constante desejo que o Senhor fosse conhecido e amado.
Testemunhava-o a alegria que expressava quando um novo paciente, que
nada sabia de Deus, se tornava um devoto cristão. Sua primeira
solicitude era curar com cuidado o corpo e inspirar confiança
na divina Providência».34

O sentido da
Providência não era a resposta obrigatória a
condições de precariedade, uma espécie de última
praia oferecida aos náufragos para não afundar nos
momentos difíceis. Testemunhar a Providência, para
Zatti, significava ensinar a falar com Deus, a chamá-lo pelo
nome, com confiança cristã, porque

«estava
muito convencido dos princípios evangélicos e um deles,
muito bem esculpido em seu coração e em sua mente:
"Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça, e tudo o
mais vos será dado por acréscimo" (Mt 6,33).
Aprendeu na escola de Dom Bosco – tinha lido muito sua vida –
a nunca desconfiar da ajuda de Deus, particularmente quando Ele é
honrado como deseja em cada pessoa do nosso próximo».35

Mas uma
Providência sem Paraíso não permitiria ao anúncio
do nome de Deus de suportar o contragolpe da história, com sua
carga de fadiga, sofrimento e morte. Artêmides animava, dentro
e fora do hospital, uma Igreja sempre visitada pela dor e pela morte,
e isto exigia plenitude de fé e de testemunho, exigia anunciar
o nome do único desejo de Deus para o homem: Paraíso.
Quando testemunhava o Paraíso, Zatti mostrava a certeza

«da
vida eterna e da sua conquista pela graça e pelas boas obras,
o que ele manifestava particularmente perante a morte. […] Ouvi-o
pessoalmente alegrar-se por poder prestar ajuda aos doentes e
exclamar: "Hoje enviamos dois ou três para o paraíso"».36

Com esses dois
nomes de Deus, Artêmides evangelizou a vida e a morte, a
alegria e a dor, a saúde e a doença como verdadeira
testemunha cristã, como mártir, no martírio
quotidiano da caridade. O anúncio e a martyria
de Artêmides não divulgam um evangelho de circunstância
ou de oportunidade, mas difundem Sal, Luz, Fermento, propiciam rosto,
coração e mãos a um Evangelho que pede vida e a
impregna totalmente, resolve os enigmas e vence a angústia com
o calor da Verdade:

«Desde
quando eu o conheci, ele sempre deu mais importância às
práticas religiosas do que a seu trabalho, embora o fizesse
com perseverança. Citava com frequência as Escrituras,
particularmente os evangelhos, para consolar os enfermos ou encorajar
à virtude […]. Era muito raro não inserir um
pensamento espiritual em suas conversas. Uma vez, falando com ele, eu
acenei às descobertas de alguns novos remédios, como a
penicilina e a sulfamida; o Servo de Deus me ouviu e quando terminei
de falar disse: "É verdade, sim, mas as pessoas
continuarão a morrer do mesmo modo"».37

A verdade do
Evangelho ilumina por inteiro o hospital de Artêmides, como
iluminou o Oratório no tempo de Dom Bosco: por isso no
hospital de Viedma, como entre os muros de Valdocco, não se
tem medo da morte e não se multiplicam os expedientes para
adoçar o escândalo ou esconder a evidência,
enganos perigosos para o coração humano. Zatti
enfrentava a morte com o testemunho do Evangelho da vida: uma vida
com os pés no chão, por isso operosa e concreta, mas
com o coração no céu, e por isso confiante e
serena: «A única razão de sua vida foi mesmo a
espera do prêmio celeste; nunca fez nada para ganhar dinheiro
ou fama, tudo fez na esperança da felicidade futura».46

Embora na
simplicidade, seu empenho foi de viver o Evangelho com o coração
enraizado no Prêmio final e levar o Deus da Providência e
do Paraíso para dentro de toda chaga e de cada morte humana,
para que ali florescessem a Vida e Ressurreição. Era
isto que tornava abençoado o testemunho de Artêmides e
invocava a sua presença, precisamente quando eram
indispensáveis os remédios preciosos e raros da
esperança e da consolação.

Toda a cidade
de Viedma o sabia, como confirmaram com surpreendente unanimidade as
testemunhas: chamava-se sempre Zatti, e ele corria a confortar e
consolar, dando esse remédio cristão que ele hauria,
pela sua vida na Graça de Deus, do próprio Espírito,
o Consolador. Assim se tornava «extraordinária no Servo
de Deus a capacidade de infundir esperança nos enfermos, o que
contribuía quase milagrosamente com a cura, aliviando o ânimo
do paciente».38
Zatti testemunha, até o martírio da caridade, que o
Senhor é Deus do céu e da terra. Ele é
testemunha disso, com a paixão dos santos, que não
conhece medidas:

«Recordo
que um paciente disse a Artêmides que ele o preparava sempre
para o céu, mas que devia também prepará-lo um
pouco para a terra. Outro fato mostra a atmosfera do hospital: uma
enfermeira, uma vez, insistiu para preparar para a morte um paciente
que não estava tão mal, e que de fato ainda vive».48

2.4 Alegria pascal e liturgia da vida redimida

Artêmides
Zatti, com sua fidelidade extraordinária aos compromissos
centrais da vida cristã, nutre-se do Pão da Palavra, do
Pão do Perdão, do Pão do Céu, e sua vida
se transfigura sempre mais profundamente, em benefício de uma
missão rica de frutos que crescem continuamente. Assim, a vida
da Graça, intensamente vivida por este filho de Dom Bosco,
alcança a todos os que se encontram com ele, indistintamente:
enfermos e colaboradores, irmãos e autoridades, pobres e
benfeitores, em Artêmides entram em contato com a vida do
Senhor, pela força do mistério sacramental que se
comunica entre as pessoas na comunhão do povo de Deus. Assim,
toda a Igreja, nos sacramentos, pela potência do Espírito
Santo, celebra o Mistério Pascal e garante aos homens o
alimento para o caminho e os remédios que curam as feridas do
mal e da morte.

Esta é
a Igreja: ela floresce e cresce onde o serviço e a comunhão
anunciam o nome de Deus, testemunham a Palavra de Jesus, somos
nutridos pelo seu Corpo, curados pelo seu Perdão. Zatti, não
simplesmente faz tudo isto, mas ele é tudo isto; pela
correspondência à Graça, que torna santa sua
vida, nele se reconhecem, não somente os gestos e as palavras
do Senhor, mas faz-se experiência de mesma Vida do Senhor.
Artêmides é um "tabernáculo vivo", e
seu testemunho irradiante suscita perguntas, propósitos,
conversão, mesmo em quem não vive uma participação
íntima ao mistério do Senhor.

A doação
de Artêmides, revelando uma raiz mais do que humana, se torna
uma prova, universalmente convincente, da força sobrenatural
dos sacramentos; de fato, o seu é

«um
amor sobrenatural e extraordinário ao próximo. […]
Ele estava disposto a qualquer sacrifício: é por isso
que nele o difícil parecia fácil. Penso que as
circunstâncias árduas de sua ação
caritativa tenham sido: carência de pessoal, ser chamado a todo
momento para dar assistência, não se deixar condicionar
pelas intempéries, servir todo tipo de pessoas. Recordo-me de
que ele veio visitar um parente meu, doente, num dia em que o tempo
era péssimo.

Quando
lhe dissemos: "Com esse tempo feio, o senhor sai de casa, senhor
Zatti?", ele respondeu: "Não havia outro!"».39

Faz parte da
liturgia cristã que o crente, mediante sua vida, dê
testemunho de si, por meio da ordem, da harmonia, de um dinamismo
eficaz, particularmente sobrenatural. Artêmides é um
cristão, um consagrado leigo salesiano de Dom Bosco, é
uma pedra viva da Igreja, é uma testemunha da Páscoa,
porque nas suas obras se torna visível o mandamento do Amor,
que faz reconhecer Deus no próximo e o próximo em Deus;
mas Artêmides ensina, com sua vida, que a força
necessária para a prática desse mandamento é
sobrenatural, e só pode vir de Deus, dos seus sacramentos, da
oração e da união com Ele.

«Zatti
exerceu a caridade em circunstâncias difíceis por causa
da carência de recursos econômicos. Também porque
sua atividade ia muito além do ordinário, dada a
quantidade de horas que dedicava a seus compromissos sem omitir suas
obrigações religiosas. Como nós sabíamos
disso, nos perguntávamos como ele podia aguentar um esforço
tão grande sem o repouso que normalmente se considera
necessário».50

Dois episódios
merecem ser lembrados como exemplos da liturgia da vida, pela qual
Artêmides, antes, se torna discípulo, depois, apóstolo
do Senhor Crucificado e Ressuscitado. Em primeiro lugar, o episódio
da demolição do velho Hospital São José,
precisando transferir os enfermos para a Escola Agrícola Santo
Isidoro:

«Não
tenho notícias de que Zatti tenha sido informado com
antecedência quanto a uma data para a desocupação
do hospital: certamente não tinha recebido nada do Inspetor,
do contrário eu o teria sabido. […]. O estado emocional
enfrentado por ele quando foi necessário remover os enfermos
para evitar que a caliça caísse sobre eles, podia ser
psicologicamente fatal. Chorou amargamente, mas depois de rezar
diante do Santíssimo, pôs-se ao trabalho com serena
energia».40

Depois, o
serviço aos moribundos:

«Estava
para morrer um jovem, e Zatti conversava com ele depois de ajudá-lo
a fazer a comunhão. Em dado momento o rapaz começou a
gritar: "Zatti, estou morrendo!", e ao mesmo tempo tentava
se levantar na cama. Artêmides, olhando-o nos olhos e sorrindo,
disse-lhe: "Que bonito, você está indo para o
paraíso!" O jovem se deixou cair novamente na cama com um
sorriso nos lábios, como que retratando o sorriso de Zatti e
que ficou impresso no seu rosto mesmo depois de morto».41

Eis o que
acontece quando a Eucaristia passa a ser vida e o Mistério
Pascal se torna prática diária: as grandezas humanas se
transformam pelo poder do Espírito, e cada ação
do crente se realiza em Cristo, por Cristo e com Cristo, fazendo da
vida uma liturgia e transfundindo os santos dons da liturgia na vida.

Nosso querido
Artêmides Zatti, devedor de tudo aos Mistério dos
Senhor, sabe que tudo pode somente graças a Ele; daí
sua humildade:

«Recordo
que meu irmão Salvador, estando muito doente de febre tifoide,
o Servo de Deus ia cuidar dele várias vezes por dia. Numa
ocasião, encontrando-me com ele no momento em que ia para a
casa de Salvador, aflito, eu lhe disse: "Senhor Zatti, por
favor, salve meu irmão!". Ele, voltando-se e fixando-me
nos olhos, disse-me severamente: "Não blasfeme, só
Deus salva!"».42

A vida de
Artêmides Zatti foi uma vida feita de doação,
comunhão, testemunho do Senhor Ressuscitado. Uma vida cheia de
graças que o levou a uma morte plenamente cristã:

«Perguntando-lhe
se seus sofrimentos eram contínuos, fortes ou não, sem
responder diretamente, disse-me: "São um meio de
purificação e estou contente porque percebo que estou
completando a Paixão de Cristo, que tantas vezes inculquei aos
enfermos"».43

A oferenda de
Artêmides foi plena, discreta, serena, alegre, como chancela de
sua liturgia. Merece ser retomado aqui um pequeno episódio, no
qual, por trás do véu da simpatia, Zatti oferece a quem
o assiste o sentido de sua vida, que Deus pôde espremer até
o fim, pois estava madura e completa. Poucos meses antes da morte,
sorrindo por causa de sua enfermidade – um tumor no fígado
que faz o rosto amarelecer – Artêmides diz a uma
enfermeira que logo mais também ele estará com o rosto
bem maquiado! Sua cor, porém, será como nos limões,
a cor da maturidade, que deixa o fruto pronto para se espremido até
a última gota: «Você se maquia? Também eu!
Dentro de seis meses irei demonstrá-lo. O limão só
serve se for amarelo».44

UM CONVITE A
UM COMPROMISSO EXTRAORDINÁRIO

Este era o
título da última parte da carta do P. Vecchi, a que me
referi diversas vezes e que agora eu gostaria de comentar e
compartilhar. Nas páginas anteriores procurei delinear de
forma simples, mas incisiva, a extraordinária figura do nosso
coirmão salesiano Coadjutor Artêmides Zatti. O percurso
de sua vida, impregnado e repleto de Deus, é brilhante, como
sua santidade. Diante desta grande figura, na nossa Congregação
se acende a consciência mais viva da necessidade e da
importância de um compromisso especial para promover, hoje,
esta bela vocação.

Faço
minhas as palavras do P. Vecchi, para pedir a cada inspetoria, a cada
comunidade, a cada irmão que, nos próximos anos, desde
agora, assumamos «um compromisso renovado, extraordinário
e específico em favor da vocação do salesiano
Coadjutor, no contexto da pastoral vocacional: rezando por ela,
anunciando-a e propondo-a, chamando, acolhendo e acompanhando,
vivendo-a pessoalmente e juntos na comunidade».45

Não
faltam ricas publicações a respeito da figura do
salesiano Coadjutor.46
Talvez tenhamos necessidade de neste momento tornar nosso compromisso
mais convincente. Lembrei com frequência em minhas visitas às
inspetorias e também em minhas cartas que devemos ser,
primeiro, homens de fé, hoje mais do que nunca, totalmente
entregues ao Senhor. Muitas outras estratégias e planos podem
ajudar-nos, porém não nos farão sair de uma
dificuldade profunda: só
a confiança no Senhor e o recurso a Ele.

O seguinte
testemunho de um irmão Coadjutor possui, segundo penso, uma
força particular:

«Também
hoje ressoa o "Vem e segue-me". É sempre
impressionante constatar que também hoje há jovens aos
quais não faltaria nada para orientar-se para o sacerdócio,
no entanto, fazem a opção do leigo consagrado, também
na Congregação Salesiana. Por isso, na pastoral
vocacional é preciso acreditar nesta vocação, em
si completa, e transmitir por osmose a estima, sem apelar para
forçamentos e distorções em favor da figura
clerical. É preciso que estejamos convencidos de que há
jovens que não se identificam com o modelo presbiteral,
enquanto se sentem atraídos pelo modelo do leigo consagrado.
Quais são os motivos para essa opção? Todas as
motivações são insuficientes: no fundo permanece
o mistério da Graça e da liberdade».47

Neste sentido,
gostaria de convidar-vos a aprofundar as próximas publicações
que sairão, tanto sobre Santo Artêmides Zatti, quanto
sobre a vocação do salesiano Coadjutor em nossa
Congregação, nas diversas Regiões e nas
propostas dos Setores da Pastoral Juvenil e da Formação.
Não faltarão estímulos e reflexões;
particularmente não faltará a intercessão do
novo santo, de modo particular em favor de seus coirmãos
Coadjutores no mundo, por aqueles que já o são e pelos
que o serão com a Graça de Deus.

A força
e a beleza de um convite

Creio não
ser possível terminar o confronto com a vida de Artêmides
Zatti sem evocar, ainda uma vez, a carta de 1986, do Card. Jorge
Mário Bergolio, hoje Papa Francisco, escrita a um salesiano,
como testemunho de uma graça recebida por intercessão
de Artêmides Zatti.

A história
é bem conhecida: quando era provincial dos Jesuítas da
Argentina, o P. Bergoglio confiou à intercessão de
Zatti seu pedido ao Senhor de santas vocações para a
vida consagrada laical na Companhia de Jesus. Pois bem, sua
província, num decênio, obteve a graça de vinte e
três novas vocações de religiosos irmãos.

O episódio
é relevante, não só pelos protagonistas do
acontecimento – o Dono da Messe, um santo Coadjutor salesiano,
o atual Sucessor de Pedro – mas por seu conteúdo: a
força vocacional do testemunho de Artêmides Zatti.

É
surpreendente que o primeiro salesiano canonizado, não mártir,
seja um Coadjutor, e um Coadjutor que renuncia, em radical obediência
a Deus, à forma da vocação que o tinha
fascinado, a presbiteral, a fim de estar com Dom Bosco, desempenhando
um serviço sacrificado no mundo da enfermidade e do
sofrimento.

Não
podemos ignorar, porém, a irradiante beleza deste testemunho;
nele brilham os amores fundamentais que devem inflamar o coração
do salesiano: o amor a Deus e à sua vontade, o amor ao
próximo, que em seus membros sofredores é o Rosto
próximo de Jesus, o amor à Mãe do Senhor,
Mediadora de toda a Graça, o amor a Dom Bosco que a cada
salesiano promete pão, trabalho e Paraíso.

Esses amores
brilham na luminosa grandeza da vida religiosa de Artêmides,
abraçada com alegre radicalidade e disponibilidade generosa.
Nosso coirmão nos mostra como o mundo é sensível
ao testemunho da vida religiosa, contanto que esse testemunho seja
verdadeiro, credível, autêntico. O triunfo de seus
funerais, a fama de santidade, a veneração de sua tumba
são sinais claros de como todos reconheceram o dedo de Deus na
ação deste salesiano generoso e fiel:

«em
proporção aos habitantes de Viedma, foi impressionante
o número de pessoas que participou dos funerais. De todas as
partes chegava gente humilde, com pequenos maços de flores;
além das autoridades, muitas outras pessoas. Já nos
dias [seguintes à morte] as pessoas se diziam convencidas de
que tinha morrido um santo; alguns visitavam o túmulo
esperando milagres: rezavam, levavam-lhe flores».48

A vida de
Artêmides Zatti despertou a cidade, e hoje atinge o mundo
inteiro, porque ele falou de Deus: levou para junto dos pobres e
enfermos, com uma prática exemplar da castidade, o perfume do
amor virginal e fecundo de Deus; partilhou com todos a riqueza da fé,
pagando seu preço com uma pobreza amada, a ponto de ceder o
próprio quarto a um enfermo ou ali colocar um morto, a fim de
subtraí-lo à vista dos outros doentes, num último
gesto de ternura e piedade; ensinou a liberdade verdadeira,
obedecendo, mesmo que à custa de lágrimas amargas à
vontade dos superiores, reconhecendo-os como mediadores do plano de
Deus.

Religioso
exemplar, com esse testemunho, Artêmides ensina a todos que a
saúde a cuidar acima de qualquer outro bem é a saúde
da alma, da nossa alma, tão preciosa porque vem de Deus e a
Ele aspira, muitas vezes inconscientemente, no desejo de encontrar em
seus braços o Amor eterno.

Que os amores
de Artêmides Zatti acendam os nossos amores; que seu testemunho
do Absoluto de Deus, da grandeza da alma e da nossa verdadeira Pátria
inspire nossos gestos e nossa paixão pastoral, para uma nova
fidelidade apostólica e uma renovada fecundidade vocacional.
Que nunca nos falte – como Artêmides Zatti cuidou que
nunca lhe faltasse – a proteção materna da
Auxiliadora, e que a devoção à Mãe, em
cada casa salesiana e em todo lugar onde vive a Família de Dom
Bosco, seja um caminho seguro que nos ajude a viver uma santidade
como a deste nosso coirmão.

Concluo estas
palavras propondo uma oração ao Pai, por intercessão
do novo santo Coadjutor salesiano, Santo Artêmides Zatti.

Oração
de intercessão

para pedir
vocações de salesianos leigos

Ó
Deus, que em Santo Artêmides Zatti nos deste um modelo de
salesiano Coadjutor, que, dócil a teu chamado, com a compaixão
do Bom Samaritano, se fez próximo de cada ser humano,
ajuda-nos a reconhecer o dom desta vocação, que
testemunha para o mundo a beleza da vida consagrada.
Dá-nos
a coragem de propor aos jovens esta forma de vida evangélica a
serviço dos pequenos e dos pobres, e faze com que os que
chamares a percorrer este caminho, correspondam generosamente a teu
convite. Nós te pedimos pela intercessão de Santo
Artêmides
Zatti
e pela mediação de Cristo Nosso Senhor.
Amém.

Com verdadeiro
afeto e unidos no Senhor com a mútua oração,
saúdo-vos.

P.
Ángel
Fernández Artime, SDB

Reitor-Mor

1
J. E. VECCHI, Beatificação
do Coadjutor Artêmides Zatti: uma novidade que interpela
,
em ACG 376 (2001), 3.
2
Decidi traçar um perfil breve e sóbrio. Os que
quiserem conhecer mais a respeito da vida de Artêmides Zatti
podem encontrar várias biografias sobre o próximo
santo e também ler o perfil biográfico da carta do P.
Vecchi a que me referi anteriormente.
3
Cf. Positio, p. 35.
4
Cf. J. E. VECCHI, o.c., p. 15 e Cf. Positio, p. 47.
5
Cf. J. E. VECCHI, o.c., p. 18 e Cf. Positio, p. 79.
6
Cf. J. E. VECCHI, o.c., p. 18.
7
Cf. J. E. VECCHI, o.c., p. 20 e Cf. Summarium, p. 310,
n. 1224.
8
Cf. J. E. VECCHI, o.c., p. 25.
9
Ibidem, p. 27-28.
10
H. U. VON BALTHASAR, Gesù ci conosce? Noi conosciamo
Gesù?
, Morcelliana (= Il Pellicano), Brescia 1981, 95.
11
J. E. VECCHI, o.c., p. 27. 12 Ibidem, 28.
12
Positio, 31. 14 IIbidem.
13
H. U. VON BALTHASAR, Gli stati di vita del Cristiano, Jaca
Book, Milano 1985, 34.
14
Summarium, p. 43, n. 160.
15
H. U. VON BALTHASAR, Gli stati di vita del Cristiano, 34.
16
Positio,
206 (Perfil espiritual do Servo de Deus). 19
Positio super scriptis
12.
17
Carta ao pai, Viedma,
15 de junho de 1908. 21 Positio, 75-76.
18
Positio, 80; cf. J. E. VECCHI, o.c., p. 19-20.
19
Positio
81.
20
Summarium
15.
21
Ibidem,
80.
22
J. E. VECCHI, o.c.,
p. 21.
23
Testemunho de Carlos Tassara, Summarium,
126-127.
24
Testemunho de D. Carlos Mariano Pérez, Summarium
52. 29 LUIGI
FIORA, Biografia,
Positio
132.
25
Testemunho de D. Carlos Mariano Pérez, Summarium
43-47.
26
Testemunho de D. Carlos Mariano Pérez, Summarium
43. 32 Testemunho
de Óscar Juan García, Summarium
113.
27
Testemunho de Fernando Enrique Molinari, Summarium
151.
28
Tetemunho de Noelia de Tofoni Morero, Summarium
259. 35 Testemunho
do P. Luis De Roia, Summarium
271.
29
Testemunho de Enrique Mario Kossman, Summarium
10.
30
Testemunho do P. Pedro Antonio F. Fernández, Summarium
61. 38 Testemunho
do P. Mario Brizzola, Summarium
75.
31
Testemunho de Óscar Juan García, Summarium
113.
32
Testemunho de José Nicolás Costanzo, Summarium
103.
33
Testemunho de Amalia Teresa Giraudini, Summarium
117.
34
Testemunho de Manuel Linares, Summarium
92.
35
Testemunho de D. Carlos Mariano Pérez, Summarium
36.
36
Testemunho de Enrique Mario Kossman, Summarium
14.
37
Testemunho de P. Mario Brizzola, Summarium
79-80. 46
Ibidem,
80.
38
Testemunho de Giovanni Cadorna Buidi, Summarium
218. 48
Testemunho do Dr. Pascual Atilio Guidi, Summarium
100.
39
Testemunho de Óscar Juan García, Summarium
114. 50
Testemunhno de Luis de Palma, Summarium
135.
40
Testemunho do P. Feliciano López, Summarium
178.
41
Ibidem,
174.
42
Testemunho de Pedro Echay, Summarium
211-212.
43
Testemunho de Francisco Erasmo Geronazzo, Summarium
274.
44
Testemunho de P. Feliciano López, Summarium
193.
45
J. E. VECCHI, o.c., p. 49.
46
As oferecidas pelo P. Vecchi estão disponíveis em ACG
373 (2000) e em «La Vocación del Salesiano
Coadjutor en la pastoral vocacional
», em El Salesiano
Coadjutor: historia, identidad, pastoral vocacional y formación,

Editorial CCS (Madrid), Roma, 1989, pp. 167-201.
47
J. E. VECCHI, o.c., p. 52
48
Testemunho de Amalia Teresa Giraudini, Summarium 115-116.