E a estrela parou sobre uma cadeira de rodas

Encontros na Epifania com pessoas maravilhosas, de bom coração e fé radiante

Queridos amigos do Boletim Salesiano, junto com as minhas afetuosas saudações, formulo-lhes os meus melhores votos para o novo ano de 2024 que acabamos de iniciar. Espero sinceramente que seja um ano cheio da presença de Deus em nossas vidas e rico em bênçãos.
Tenho o hábito, sempre que possível, de escrever esta saudação compartilhando algo que vivenciei e que me afetou por um motivo ou outro. Bem, na Epifania do Senhor, eu estava em minha cidade natal, Luanco-Astúrias. Naquele magnífico canto da terra, tive um agradável contato com minhas raízes, com o mar e a natureza que me viram nascer e crescer, bem como com meus compatrícios.  Naquele dia, fui celebrar a Eucaristia. O pároco do vilarejo havia gentilmente me concedido esse privilégio, enquanto ele ia para outra paróquia que lhe havia sido confiada. Assim, pudemos celebrar essa solenidade em várias comunidades cristãs.
Bem, o que quero lhes dizer é que foi uma manhã em que o Senhor preparou para mim alguns encontros inesperados, nos quais, ao conhecer a situação de algumas pessoas, meu coração se encheu da certeza de como o Senhor consola e conforta mesmo quando a dor, a doença ou a limitação se instalam em algumas vidas.
Comecei meu dia, antes de celebrar a Eucaristia, visitando um idoso que foi médico em meu vilarejo por muitos anos. Ele era um excelente médico de família e um crente. Entre outras coisas, ele havia sido estudante salesiano em Salamanca. Durante anos e anos, ele foi uma das pessoas de quem meus pais me falavam quando iam ao médico.
Bem, nessa visita familiar que fiz a ele, atendendo ao convite de sua filha, encontrei um homem de fé que me disse que, como médico, só podia dar uma parte do muito que havia recebido de Deus e que agora, com uma doença grave, só estava pedindo ao bom Deus que o preparasse para o encontro com Ele. Tamanha era sua convicção e sua paz que fui celebrar a Eucaristia já tendo recebido minha dose da “boa palavra em meu ouvido”.

Nas mãos de Deus
E na Eucaristia encontrei, como em outras ocasiões, um jovem de trinta e poucos anos que, devido a um acidente, está em uma cadeira de rodas há anos. Mesmo em uma cadeira de rodas, ele foi com sua mãe para a Índia para entrar em contato com os mais pobres entre os pobres. E meu jovem amigo me impressiona com a serenidade, o sorriso e a alegria com que vive em seu coração; a mesma alegria com que participa da Eucaristia diária e com que recebe o Senhor. E esse jovem amigo certamente teria tudo para se queixar de “seu infortúnio”, ou pior ainda: poderia culpar a Deus, como costumamos fazer quando algo nos atinge. Mas não, ele simplesmente vive sem sentir pena de si mesmo e é grato pela dádiva da vida, mesmo em uma cadeira de rodas. No final das celebrações, quando o vejo, sempre nos cumprimentamos e suas palavras são sempre de agradecimento; mas sou eu quem deveria agradecer-lhe pelo grande testemunho de vida e fé no Senhor da vida que ele dá a todos nós.
Foi muito bonito e sugestivo o meu dia de Epifania quando, ao sair da igreja, um casal de meia-idade me cumprimentou e me desejou felicidades para o Ano Novo. Eles também tinham rostos alegres; vi mais alegria e serenidade no marido (que sofria de câncer) do que em sua amada esposa (que sofria por ele). Mas ambos me falaram de sua certeza de que precisavam atravessar esse período e essa doença confiando e se abandonando a Deus.

A fé de uma mãe
Por fim, entre todas as saudações, perdi uma última. Uma mãe idosa, que se apresentou, lembrou-me que há alguns anos ela havia perdido um de seus filhos, que morreu de uma doença, e que atualmente estava com câncer. Ela me pediu que a mantivesse presente diante do Senhor. Perguntei-lhe como estava se sentindo e ela me disse que estava sofrendo, mas que era muito confortada pela fé. Garanto que não tive palavras para dizer, porque a emoção que senti durante a manhã e os testemunhos de vida que vieram e me dominaram foram muito intensos.
E eu não poderia deixar de prometer minhas orações a cada um, e assim o fiz, e ao mesmo tempo percebi, mais uma vez e de forma mais forte, como o Senhor continua a fazer grandes coisas nos humildes, nas pessoas mais afetadas pelas situações da vida, naqueles que sentem que somente Ele é verdadeiramente consolo e ajuda.
E tudo isso me parece tão importante que não consigo guardar para mim. Parece até que não é algo para se escrever, talvez porque não esteja na moda, talvez porque hoje se fala de outras coisas; mas eu me rebelo contra tudo o que me impede de compartilhar e testemunhar o que é importante, profundo e esperançoso em nossa vida.
E não sei por que, mas tenho a intuição de que muitos leitores se sentirão em sintonia com o que estou contando e com o que eu mesmo vivi, porque o que estou contando, que aconteceu em uma manhã de Epifania em uma pequena cidade perto do mar, não acontece apenas lá. Em outras palavras, faz parte de nossa condição humana e nela o Senhor está sempre ao nosso lado, se o permitirmos.
Desejo a vocês tudo de bom, queridos amigos. E continuemos a acreditar que em todos os momentos, mesmo nos mais difíceis, temos motivos para ter esperança.




Estreia 2024. «O sonho que faz sonhar»

Um coração que transforma “lobos” em “cordeiros”

Durante o meu serviço como Reitor-Mor pude constatar que a Estreia de todos os anos é um dos mais belos presentes que Dom Bosco e seus sucessores oferecem à Família Salesiana: ela é uma ajuda para caminhar juntos, chegando capilarmente até os lugares mais distantes, deixando, ao mesmo tempo, a liberdade de a acolher, integrar e valorizar “quando”, “como” e “com quem” cada CEP julgar oportuno.
Neste novo ano de 2024, celebraremos o segundo centenário do «sonho-visão que João teve entre os nove e dez anos de idade na pequena casa dos Becchi»[1] em 1824. Na verdade, ele é bem conhecido em nossa Família Salesiana como o sonho dos nove anos.
Considero que a ocorrência dos 200 anos do sonho que «condicionou todo o modo de viver e de pensar de Dom Bosco e, em particular, o modo de sentir a presença de Deus na vida de cada um e na história do mundo»,[2] merece ser colocado no centro da Estreia, que guiará o ano educativo-pastoral de toda a nossa Família Salesiana. O Sonho poderá ser assumido e aprofundado na missão evangelizadora, nas intervenções educativas e nas ações de promoção social que em todas as partes do mundo se referem à nossa Família, que tem em Dom Bosco o pai inspirador.
«Gostaria de recordar aqui o “sonho dos 9 anos”. De fato, parece-me que essa página autobiográfica ofereça uma apresentação simples, mas ao mesmo tempo profética, do espírito e da missão de Dom Bosco. Nele é definido o campo de ação que lhe é confiado: os jovens; é indicado o objetivo da sua ação apostólica: fazê-los crescer como pessoas por meio da educação; é apresentado o horizonte em que se move todo o seu e o nosso agir: o plano maravilhoso de Deus que, antes de todos e mais do que todos, ama os jovens».[3] Assim escrevia o Reitor-Mor Emérito, P. Pascual Chávez Villanueva, na conclusão da Estreia para 2012, oferecida à Família Salesiana por ocasião do primeiro ano do triênio em preparação ao bicentenário do nascimento de Dom Bosco em 2015.
Uma bela síntese que nos oferece em poucas linhas a essência do que foi e é o sonho dos nove anos em sua simplicidade e profecia, em seu valor carismático e educativo. Um sonho sem dúvida emblemático que, 200 anos depois de ocorrido, tentaremos aproximar do coração e da vida de toda a Família de Dom Bosco. Um sonho definido, às vezes, como «o famosíssimo sonho-visão que seria e ainda é uma importante coluna, quase um mito fundador, no imaginário da Família Salesiana».[4] Ele exige certamente uma contextualização e uma abordagem crítica quanto à redação feita pelo próprio Dom Bosco e que os nossos especialistas em história salesiana sempre fazem com o objetivo de se ter uma sua leitura e interpretação atual, vital e existencial. Todavia, sem dúvida, é um sonho que Dom Bosco reteve na mente e no coração durante toda a vida, como ele mesmo diz: «Nessa idade tive um sonho, que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida».[5] Ou seja, é um sonho que esteve presente nele e em todo o caminho da Congregação Salesiana até hoje (e que de uma forma ou de outra chega, sem dúvida, à nossa Família Salesiana).
Lemos nas palavras do P. Rinaldi, por ocasião do primeiro centenário do sonho: «o seu conteúdo é de tal importância que, nesta memória centenária, se quisermos merecer o nome de filhos de Dom Bosco e perfeitos salesianos, faremos o esforço de aprofundá-lo com uma meditação mais assídua de cada particular para colocar em prática com generosidade os seus ensinamentos».[6] Quanto a nós, estamos a viver o extraordinário evento deste segundo centenário que, sem dúvida, contará com muitas expressões em todo o mundo salesiano. Esperamos que as suas expressões alcancem o mais celebrativo e festivo e também o mais profundo da auspiciosa revisão das nossas vidas e das propostas corajosas aos jovens para ajudá-los a sonhar “grande” em suas vidas com a presença do Senhor Jesus e de mãos dadas com a Mestra, a Senhora nossa Mãe.

1. «TIVE UM SONHO…»: UM SONHO MUITO ESPECIAL
É isso mesmo, há 200 anos, João Bosco teve um sonho que o “marcaria” para por toda a sua vida. Um sonho que deixaria nele uma marca indelével, cujo significado ele só compreendeu plenamente no final da vida. Eis o sonho narrado pelo próprio Dom Bosco, «de acordo com a edição crítica de Antônio da Silva Ferreira, da qual nos afastamos apenas por duas pequenas variantes».[7]
[Quadro inicial] Nessa idade tive um sonho, que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida.
[Visão dos meninos e intervenção de João] No sonho, pareceu-me estar perto de casa, numa área bastante espaçosa, onde uma multidão de meninos estava a brincar. Alguns riam, outros divertiam-se, não poucos blasfemavam. Ao ouvir as blasfêmias, lancei-me de pronto no meio deles, tentando, com socos e palavras, fazê-los calar.
[Aparição do Homem venerando] Nesse momento apareceu um Homem venerando, de aspecto varonil, nobremente vestido. Um manto branco cobria-lhe o corpo; seu rosto, porém, era tão luminoso que eu não conseguia fitá-lo. Chamou-me pelo nome e mandou que me pusesse à frente daqueles meninos, acrescentando estas palavras: “Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a fealdade do pecado e a preciosidade da virtude”. Confuso e assustado, repliquei que eu era um menino pobre e ignorante, incapaz de lhes falar de religião. Senão quando aqueles meninos, parando de brigar, de gritar e blasfemar, juntaram-se ao redor do personagem que estava a falar.
[Diálogo sobre a identidade do personagem] Quase sem saber o que dizer, acrescentei: «Quem sois vós que me ordenais coisas impossíveis?». «Justamente porque te parecem impossíveis, deves torná-las possíveis com a obediência e a aquisição da ciência». «Onde, com que meios poderei adquirir a ciência?». «Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, e sem a qual toda sabedoria se converte em estultice». «Mas quem sois vós que assim falais?» «Sou o filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia». «Minha mãe diz que sem sua licença não devo estar com gente que não conheço; dizei-me, pois, vosso nome». «Pergunta-o a minha Mãe».
[Aparição da Senhora de aspecto majestoso] Nesse momento vi a seu lado uma Senhora de aspecto majestoso, vestida de um manto todo resplandecente, como se cada uma de suas partes fosse fulgidíssima estrela. Percebendo-me cada vez mais confuso em minhas perguntas e respostas, acenou para que me aproximasse e, tomando-me com bondade pela mão, disse: «Olha». Vi então que todos os meninos haviam fugido, e em lugar deles estava uma multidão de cabritos, cães, gatos, ursos e outros animais. «Eis o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte, robusto; e o que agora vês acontecer a esses animais, deves fazê-lo aos meus filhos». Tornei então a olhar, e em vez de animais ferozes apareceram mansos cordeirinhos que, saltitando e balindo, corriam ao redor daquele Homem e daquela Senhora, como a fazer-lhes festa. Neste ponto, sempre no sonho, desatei a chorar, e pedi que falassem de maneira que pudesse compreender, porque não sabia o que significava tudo aquilo. A Senhora descansou a mão em minha cabeça, dizendo: «A seu tempo tudo compreenderás».
[Quadro conclusivo] Após essas palavras, um ruído qualquer me acordou, e tudo desapareceu. Fiquei transtornado. Parecia-me ter as mãos doloridas pelos socos que desferira e doer-me o rosto pelos tapas recebidos; além disso, Aquele Personagem, a Senhora, as coisas ditas e ouvidas de tal modo me encheram a cabeça que naquela noite não pude mais conciliar o sono. De manhãzinha contei logo o sonho, primeiro aos meus irmãos, que se puseram a rir, depois à mamãe e à vovó. Cada um dava o seu palpite. O irmão José dizia: «Vais ser pastor de cabras, de ovelhas e de outros animais». Mamãe: «Quem sabe se um dia não serás sacerdote». Antônio, secamente: «Chefe de bandidos, isso sim». Mas a avó que, de todo analfabeta, entendia muito de teologia, deu a sentença definitiva: «Não se deve fazer caso dos sonhos». Eu era do parecer de minha avó, todavia não pude nunca tirar aquele sonho da minha cabeça. O que vou doravante expor dará a isso alguma explicação. Mantive-me sempre calado; meus parentes não lhe deram importância. Mas quando, em 1858, fui a Roma para falar com o Papa sobre a Congregação Salesiana, ele me fez contar pormenorizadamente tudo quanto tivesse ainda que só a aparência de sobrenatural. Contei então pela primeira vez o sonho que tive na idade de 9 a 10 anos. O Papa mandou-me escrevê-lo literalmente e com pormenores, e deixá-lo como estímulo aos filhos da Congregação, a qual era precisamente o objetivo de minha viagem a Roma.
O mesmo sonho será repetido várias vezes na vida de Dom Bosco; ele mesmo, que narrou nas suas Memórias aquele primeiro evento – cujo bicentenário estamos a celebrar – relata em várias ocasiões, muitos anos depois, aquilo que sonhara. Na verdade, o sonho dos 9 anos não é um sonho isolado, mas faz parte de uma sequência prolongada e complementar de episódios oníricos na vida de Dom Bosco. Ele mesmo conecta, integrando-os, três sonhos fundamentais: o de 1824 (nos Becchi), o de 1844 (no Colégio Eclesiástico) e o de 1845 (nas obras da Marquesa di Barolo); encontram-se neles alguns elementos de continuidade e outros, de novidade, mas sempre se reconhece, em filigrana, o primeiro quadro e a cena da «área bastante espaçosa» dos Becchi, embora com novos detalhes, reações e mensagens ligados à estação da vida, não mais a de João de nove anos, mas a de Dom Bosco no pleno desenvolvimento da sua missão.
Em outra ocasião, muitos anos depois, em 1875, já aos sessenta anos, é o próprio Dom Bosco quem conta o sonho ao P. Barberis. Nessa época, Dom Bosco já assistira ao nascimento da Congregação Salesiana (18 de dezembro de 1859), da Arquiconfraria de Maria Auxiliadora (18 de abril de 1869), do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (5 de agosto de 1872) e da Pia Sociedade dos Cooperadores Salesianos – nome original dado por Dom Bosco –, aprovada em 9 de maio de 1876.
Quando o sonho aconteceu pela última vez, Dom Bosco era, como eu já disse, um homem maduro: vivera muitas situações, enfrentara e superara muitas dificuldades, vira com seus olhos o que a Graça e o Amor da Virgem Maria operaram em seus meninos, vira muitos milagres da Providência e sofrera não pouco. «´Um dia tudo compreenderás`, profetizara-lhe o primeiro sonho; e em 1887, na missa de consagração do templo do Sagrado Coração em Roma, ele ouviu aquela voz ecoando em seus ouvidos e chorou de alegria, chorou ao contemplar os admiráveis efeitos da sua fé invicta».[8]

2. UM SONHO AO QUAL TODOS OS REITORES-MORES SE REFERIRAM
Chama particularmente a minha atenção o fato de todos os Reitores-Mores, à exceção do P. Rua, de quem não consegui nenhuma citação, se referirem ao sonho, a este sonho de Dom Bosco que marcou a nossa Congregação e a Família Salesiana. Valho-me neste momento de um magnífico trabalho de pesquisa feito pelo Sr. Marco Bay.[9]
O P. Paulo Álbera, segundo sucessor de Dom Bosco, referindo-se ao Oratório de Valdocco como o Oratório de Dom Bosco, a Obra primeira e por muitos anos única, refere-se ao Sonho como o misterioso sonho em que a Providência lhe confia a missão:
«A primeira Obra de Dom Bosco, na verdade por muitos anos a única, foi o Oratório Festivo, o seu Oratório Festivo, já vislumbrado por ele no misterioso sonho que teve aos nove anos e nos subsequentes que progressivamente ilustraram a sua mente sobre a Obra da Providência a ele confiada».[10]
O P. Filipe Rinaldi, terceiro sucessor de Dom Bosco, é quem teve a oportunidade de viver o primeiro centenário do sonho, e pretende que a Congregação inteira fique impregnada da graça de viver esse evento. Por isso, ele assim incentiva:
«[…] Na minha circular sobre o Jubileu das nossas Constituições já vos mencionei, meus queridos filhos, o centenário do primeiro sonho de Dom Bosco, convidando-vos a meditar sobre esse sonho e praticá-lo. (…) Releiamos juntos, meus queridos filhos, a página escrita para nossa instrução pelo venerável Pai, em obediência ao Vigário de Jesus Cristo; sim, releiamo-la com grande veneração e fixemos em nossas mentes, palavra por palavra, essa página que nos descreve evangelicamente a origem sobrenatural, a natureza íntima e a forma específica da nossa vocação. Quanto mais for lida, mais nova e luminosa ela será».[11]
No mesmo texto, o P. Rinaldi faz os irmãos entenderem que, assim como Dom Bosco foi chamado para uma missão com o sonho dos nove anos, também nós fomos chamados sob a guia da Santíssima Virgem. E, conduzidos com bondade pela sua mão, a mesma Virgem Santíssima mostra-nos o campo da nossa ação e estimula-nos de mil maneiras a adquirir os dons da humildade, da fortaleza e da saúde. Compreendemos perfeitamente que ele aplica para nós o mandato de ser fortes, humildes e robustos que a Senhora do sonho deixou a Joãozinho Bosco.
«Nós também recebemos o mandato de adquirir os meios necessários para pôr esse método em prática, ou seja, a obediência e a ciência, sob a guia da Virgem, o que fizemos (ou estamos a fazer) durante os anos da nossa formação religiosa e sacerdotal. Durante todos esses felizes anos, a Santíssima Virgem também nos tomou com bondade pela mão e, indicando-nos o futuro campo da nossa ação, estimulou-nos, de todas as maneiras, à aquisição da humildade, da fortaleza e da saúde, qualidades estritamente necessárias a todo verdadeiro filho de Dom Bosco. Nós também veremos multidões de jovens, antes completamente ignorantes das coisas de Deus, e talvez já vítimas infelizes do mal, correrem iluminados, curados e alegres para celebrar Jesus e Maria Santíssima Auxiliadora».[12]
E, quase como um incentivo para celebrar este bicentenário de maneira grandiosa e significativa, cito o Boletim Salesiano da época do Padre Rinaldi, que relata a celebração em Roma que ocorreu na sua presença:
«Por um sonho – escrevia o Corriere d’Italia em 2 de maio passado –, pela beleza ideal de um sonho, milhares de almas que anseiam e aplaudem reuniram-se ontem no grande pátio das Obras de Dom Bosco em Roma com o venerando missionário Cardeal Cagliero, o próprio sucessor de Dom Bosco, P. Rinaldi, e o ministro da Instrução Pública, Pedro Fedele, para prestar uma homenagem sincera ao incomparável Mestre que, na humildade luminosa da Fé, seguira os caminhos irradiantes daquele sonho sublime.
Uma coroa viva de jovens, de meninos e de meninas, alunos de Dom Bosco; uma multidão de homens de todas as classes – trabalhadores, professores, soldados, sacerdotes – todos reunidos em nome do doce Mestre. (…)
Há cem anos (outro Ano Santo, por que esquecer?), Dom Bosco, ainda criança, sonhava o doce e misterioso sonho; ele via, primeiramente, um grupo de meninos de rua brigando uns com os outros, blasfemando e praguejando; e, com um bastão, tentava chamá-los à ordem; em seguida, via uma Senhora e um Senhor que o conduziam a outro grupo, agora de animais, cães e gatos que também brigavam, latindo e zombando – mas, a um sinal arcano dos Dois, transformaram-se em rebanho de pacíficos cordeiros…
Depois de cem anos, este sonho é uma realidade – esplêndida, palpitante, grandiosa –, uma história admirável que já reveste o destino de milhões de criaturas nas Escolas, nas Missões, na vida, na oração, na esperança; todas as criaturas que saudaram e saúdam Dom Bosco, o maior e mais santo mestre de vida que a Igreja e a Itália deram ao mundo em nosso século…».
[13]
O P. Pedro Ricaldone, quarto sucessor de Dom Bosco, vê o germe do Oratório Festivo e de toda a obra salesiana no sonho de Joãozinho aos nove anos de idade. Seguiram-se muitas outras etapas, diz o Padre Ricaldone, muitas estações de uma peregrinação, antes de chegar à casa Pinardi, um terreno seu.
«Não há dúvida de que a primeira semente do Oratório Festivo e de toda a Obra Salesiana deve ser encontrada, como disse há pouco, no sonho profético que Joãozinho teve aos nove anos. Desde então, a Senhora de aspecto majestoso falou ao pastorzinho dos Becchi: “Eis o teu campo. Torna-te humilde, forte, robusto; e o que agora vês acontecer a esses animais, tu deverás fazê-lo aos meus filhos”.
Os Becchi, Moncucco, Castelnuovo, Chieri, são muitas outras etapas e Joãozinho Bosco está apenas a caminho, caminhando para outro objetivo. 8 de dezembro de 1841 é, mais do que um ponto de chegada, outro ponto de partida. Ele deve fazer outras peregrinações antes de chegar ao telheiro Pinardi, a Valdocco, à sua terra prometida. Para voltar à primeira imagem, a pequena e tenra planta encontrou finalmente o seu terreno; de agora em diante, nós a veremos crescer mais forte e maior do que todas as previsões humanas».
[14]
O P. Ricaldone considera até mesmo que o amor e o zelo de Dom Bosco pelas vocações também têm sua origem no sonho dos nove anos:
«O amor e o zelo de Dom Bosco pelas vocações têm a sua primeira origem no sonho profético que ele teve aos nove anos e que se reproduziu de modos substancialmente uniformes por quase vinte anos. (…) De fato, depois daquele sonho, cresceu em João o desejo de estudar para tornar-se sacerdote e consagrar-se à salvação dos jovens».[15]
O P. Renato Ziggiotti, quinto sucessor de Dom Bosco, também evidencia de modo muito particular o grande dom que a Mestra foi para Dom Bosco, pois é o próprio Senhor quem oferece a Joãozinho a sua Mãe, sobretudo como guia. Assim ele se expressa:
«´Eu te darei a Mestra, sob cuja disciplina poderás tornar-te sábio, e sem a qual toda sabedoria se converte em estultice`, é a palavra profética do primeiro sonho, pronunciada pelo personagem misterioso, ´o Filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia`. É Jesus, então, quem dá a Dom Bosco a própria Mãe como Mestra e guia infalível no difícil caminho da sua vida. Como podemos ser suficientemente gratos por esse extraordinário dom feito do Céu à nossa Família?».[16]
E Ela, a Mãe, Nossa Senhora, a Senhora do sonho, será tudo para Dom Bosco. Essa certeza era muito forte e abrangente no P. Ziggiotti que o levava a pretender de cada salesiano:
«Nossa Senhora, a quem ele foi consagrado por sua mãe ao nascer, que iluminou o seu futuro no sonho dos nove anos e depois voltou a confortá-lo e aconselhá-lo de mil maneiras nos sonhos, no espírito profético, na visão interior do estado das almas, nos milagres e graças sem conta que ele operou ao invocá-la; Nossa Senhora é tudo para Dom Bosco; e o salesiano que quiser adquirir o espírito do Fundador deve imitá-lo nessa devoção».[17]
Também o P. Luís Ricceri, sexto sucessor de Dom Bosco, tem algumas expressões admiráveis sobre o significado do sonho dos nove anos. Ele evidencia a importância do sonho para Dom Bosco, a ponto de ficar gravado em seu coração e em sua mente para sempre, e como ele se sentiu chamado por Deus:
«´O sonho dos 9 anos. É o sonho – escreve Dom Bosco nas suas Memórias – que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida` (Memórias do Oratório, p. 29). A impressão indelével deste sonho-visão deve-se ao fato de ter sido como um clarão repentino que esclareceu o significado da sua jovem existência e traçou o seu caminho. Como o pequeno Samuel, Dom Bosco sentiu-se chamado e enviado por Deus para uma missão: salvar os jovens de todos os lugares, de todos os tempos, dos países cristãos e a “multidão” dos que vivem em regiões não cristãs, que ainda estão na expectativa do grande advento do Senhor».[18]
Este é o sonho, diz o Padre Ricceri, em que Dom Bosco, ainda sem plena clareza devido à pouca idade, intui o grande valor de viver para salvar as almas, e essa convicção toma sempre mais forma em sua vida, em sua mente e em seu espírito como dom da graça. E foi por meio desse evento decisivo em sua vida que ele teve a primeira grande intuição daquele que seria no futuro o Sistema Preventivo. «Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar esses teus amigos», escreve Dom Bosco ao narrar o evento, tendo-o ouvido dos lábios da Senhora. Tanto que, no futuro, se poderá falar de uma relação preciosa entre Dom Bosco e a Mãe do Senhor. Assim expressa-se de modo muito belo o P. Ricceri:
«A partir deste sonho, estreita-se entre Dom Bosco e a Mãe de Jesus aquela relação de mão dupla, aquela colaboração permanente, que caracteriza a vida do futuro apóstolo…».[19]
O P. Egídio Viganò, sétimo sucessor de Dom Bosco, oferece-nos outras reflexões não menos estimulantes. Fico feliz ao ver essa magnífica linha de continuidade entre todos os Reitores-Mores quando leem, meditam e interpretam o sonho por excelência, obtendo dele intuições úteis para o momento presente. O P. Viganò confirma, como outros sucessores de Dom Bosco antes dele, que Maria é a verdadeira inspiradora, a Mestra e guia da vocação de João, a vocação do nosso Pai Dom Bosco.
«Parece-me particularmente interessante observar que já aos 9 anos, no famoso sonho (que se há de repetir várias vezes e ao qual Dom Bosco atribui particular incidência na sua vida), Maria se apresente à sua consciência de fé como uma personagem importante interessada diretamente num projeto de missão para a sua vida; é uma Senhora que demonstra particulares preocupações “pastorais” para com a juventude; de fato, ela: apresentou-se a ele “à maneira de uma Pastorinha”. Notamos logo, aqui, que não é Joãozinho que escolhe Maria, mas que é justamente Maria que toma a iniciativa da escolha: a pedido do seu Filho, será a Inspiradora e a Mestra da sua vocação».[20]
A maravilhosa experiência vivida por João faz com que ele tenha um sentido assaz profundo e íntimo de uma relação muito pessoal de Maria (a Senhora do sonho) com ele, e assim, em seu coração e em sua alma, Dom Bosco sentirá durante toda a vida, e sempre mais, um carinho e afeto muito especial e grande por Maria. Trata-se de fato de uma relação realmente particular com a Virgem.
O P. Juan Edmundo Vecchi, oitavo sucessor de Dom Bosco também nota que, como Dom Bosco estava convencido de ter sido enviado aos jovens, tudo há de ser focado nessa única sagrada finalidade, e a eles deve dedicar todas as suas energias:
«Esse é o fio condutor da narração que Dom Bosco, faz da sua vida nas Memórias do Oratório desde o primeiro sonho: “O Senhor enviou-me para os jovens, por isso é preciso que eu me poupe nas outras coisas estranhas e conserve a minha saúde para eles”,[21] sempre convencido de que é instrumento do Senhor e toda a sua vida seja marcada por esse chamado e missão entre os jovens. Outro grande especialista em Dom Bosco no-lo confirma: “A certeza de ser um instrumento do Senhor para uma missão muito especial era nele profunda e sólida. Isso fundamentava nele a atitude religiosa característica do servo bíblico, do profeta que não pode subtrair-se da vontade divina”».[22]
Enfim, o P. Pascual Chávez, nono sucessor de Dom Bosco, em meio a uma riqueza de textos, oferece-nos um que me comove. Trata-se de um hino à figura materna de Mamãe Margarida, que, com a graça de Deus, acompanhou o crescimento de Joãozinho e interpretou e intuiu no sonho dos nove anos que, talvez, o Senhor e a Virgem estivessem chamando o seu filho para uma vocação muito especial. Poder-se-ia falar de Mamãe Margarida, diz o P. Pascual, como uma verdadeira educadora “salesiana”.
«Foi essa arte educativa que permitiu à Mamãe Margarida identificar as energias ocultas em seus filhos, trazê-las à luz, desenvolvê-las e entregá-las quase visivelmente em suas mãos. Isso é especialmente verdadeiro com relação ao seu fruto mais rico: João. Como é impressionante notar em Mamãe Margarida esse consciente e claro senso de “responsabilidade materna” ao acompanhar o próprio filho de maneira cristã e próxima, deixando-o em sua autonomia vocacional, mas acompanhando-o ininterruptamente em todas as etapas da sua vida até a sua própria morte!
O sonho que Joãozinho teve aos nove anos, se foi revelador para ele, certamente também o foi (se não antes) para Mamãe Margarida; foi ela quem teve e manifestou a interpretação: “Quem sabe se um dia não serás sacerdote?”. E alguns anos mais tarde, quando percebeu que o ambiente em casa era negativo para João devido à hostilidade de seu meio-irmão Antonio, ela fez o sacrifício de mandá-lo trabalhar como ajudante no sítio dos Moglia, em Moncucco. Uma mãe que se priva de um filho muito jovem para mandá-lo trabalhar a terra longe de casa faz um verdadeiro sacrifício, mas ela o fez, não apenas para eliminar um dissídio de família, mas também para guiar João pelo caminho que o sonho revelara a ela (e a ele). (…) A Divina Providência concedeu-lhe a graça de ser uma educadora “salesiana”».
[23]

3. O SONHO PROFÉTICO: Uma joia preciosa no carisma da Família de Dom Bosco
Algumas linhas atrás líamos que o P. Filipe Rinaldi convidava os irmãos, e sem dúvida naquele momento, as Filhas de Maria Auxiliadora, os salesianos cooperadores, os devotos de Maria Auxiliadora, e imagino que os ex-alunos e as ex-alunas, a lerem o sonho para aprofundá-lo, interiorizá-lo e sentirem o seu eco no coração. Não tenho dúvidas quanto a isso! Existe certamente unanimidade em todos os tipos de textos – sejam pesquisas históricas, estudos histórico-críticos, reflexões sobre a espiritualidade salesiana ou leituras educativo-pastorais –, de que este sonho é muito mais do que um simples sonho. Ele contém muitíssimos elementos carismáticos que ouso chamá-lo de uma preciosa joia do nosso carisma e um verdadeiro roteiro para a Família de Dom Bosco.
Pode-se realmente dizer que nele nada é supérfluo e nada falta. É a isso que desejo me referir agora.

3.1. Olhando para o Sonho
Para onde olhar neste momento? Em primeiro lugar, para o próprio sonho, pois ele contém uma riqueza carismática surpreendente. Como já disse, não contém uma palavra a mais e também não falta nada. É mais do que evidente o esforço de Dom Bosco na sua redação para nos dizer que não se trata apenas de “um” sonho, mas devemos vê-lo como “o” sonho que marcaria toda a sua vida, embora não pudesse imaginá-lo no momento em que era apenas uma criança. De fato, «Dom Bosco quase aos sessenta anos – sentia-se muito velho e o era para aquele tempo – devia ter-se colocado a questão de dar uma fundamentação histórico-espiritual à sua Congregação, com o objetivo de recuperar as origens providenciais que a justificavam. O que poderia ser melhor do que ´narrar` aos seus filhos como a ´Congregação dos Oratórios`, em sua gênese, desenvolvimento, finalidade e método, foi uma instituição criada por Deus como instrumento para a salvação da juventude nos novos tempos?».[24] De fato, as Memórias do Oratório (MO), onde Dom Bosco narra o sonho, nada mais são do que o sonho desdobrado em sua história de vida, no Oratório e na Congregação. Por isso ele também diz na introdução do seu manuscrito:
«Aqui estou a relatar detalhadamente confidências de família. Poderão servir de luz e proveito à instituição que à Sociedade de São Francisco de Sales dignou-se confiar a Providência divina».[25] E «para que servirá então este trabalho? Servirá de norma para superar as dificuldades futuras, aprendendo as lições do passado; servirá para dar a conhecer como o próprio Deus conduziu todas as coisas a cada momento; servirá de ameno entretenimento para meus filhos quando lerem as aventuras em que andou metido seu pai; e haverão de lê-las com mais gosto quando, chamado por Deus a prestar conta dos meus atos, já não estiver entre eles».[26]
«A narração das Memórias do Oratório (e o sonho dos nove anos como parte delas), tem sido de tal transcendência que envolveu em seu estudo importantes especialistas salesianos durante toda uma vida, colhendo, com o passar dos anos, perspectivas diferentes. Uma demonstração rica e digna de atenção, por exemplo, está nas diversas ênfases que o grande estudioso da pedagogia salesiana, Pietro Braido, fez ao longo de várias décadas. Seria “uma história edificante deixada pelo Fundador aos membros da Sociedade de apóstolos e educadores, que deveriam perpetuar a sua obra e o seu estilo, seguindo as suas diretrizes, orientações e ensinamentos” (1965) ou “uma história do Oratório mais ‘teológica’ e pedagógica do que real, talvez o documento ‘teórico’ de animação mais longamente meditado e desejado por Dom Bosco” (1989); “talvez o livro mais rico de conteúdo e orientações preventivas” que Dom Bosco tenha escrito: um manual de pedagogia e espiritualidade ‘narrada’ em clara perspectiva oratoriana” (1999); ou ainda um texto em que “a parábola e a mensagem” vêm antes e “além da história”, para ilustrar a ação de Deus nas vicissitudes humanas e, assim, alegrando e recriando, “confortar e confirmar os discípulos” em clara perspectiva “oratoriana” (1999)».[27]
Uma das pedras preciosas dessa joia, à qual me refiro, é aquela que permite que nós, que entramos no sonho com coração salesiano, seja qual for o nosso caminho salesiano-cristão ou na Família de Dom Bosco, sejamos questionados em nosso coração: estamos prontos a aprender, estamos dispostos a nos deixar surpreender por Deus que acompanha a nossa vida, assim como guiou a vida de Dom Bosco e a nos sentirmos filhos e filhas diante da imensa paternidade que emana da figura do nosso pai? Porque:
Se não se fizer DISCÍPULO, aluno disposto a aprender, não se conseguirá entrar realmente no espírito das Memórias do Oratório e do sonho.
Se não se fizer mais CRENTE e não se tiver a convicção de que Deus atua na história de Dom Bosco e pessoal de cada um, pouco ou nada entenderá das Memórias do Oratório e do sonho, e tudo não passará de uma “bela história”.
E se não se fizer FILHO ou FILHA, não conseguirá sintonizar-se na frequência habitual com que Dom Bosco comunica tanta paternidade com aquilo que narra neste escrito.
Parece-me que essas três disposições iniciais (fé, filiação e discipulado) são “chaves essenciais” para compreender e assumir, por nós mesmos, o que Dom Bosco narrou e nos deixou como herança espiritual. O que aconteceu em sua vida, que o marcou e iluminou para sempre, Dom Bosco quis que fosse um legado que ajudasse profundamente os seus salesianos e todos nós que, pela graça, nos sentimos e fazemos parte da sua Família.

3.2. Os jovens, protagonistas do sonho…
Desde o primeiro momento do sonho evidencia-se a “missão oratoriana” confiada a Joãozinho Bosco, mesmo que ele não saiba muito bem como agir, nem como expressá-lo. Vemos, porém, que a cena está cheia de meninos, meninos absolutamente reais no sonho de Joãozinho.
Pode-se dizer – parece-me – que os jovens são os protagonistas centrais do sonho e, embora não digam uma palavra, tudo gira ao seu redor; até mesmo os personagens “celestes” e o próprio Joãozinho Bosco estão ali por causa deles. O sonho todo é dos meninos, e para eles. Se excluíssemos os jovens desse sonho, não restaria nada que fosse significativo para a missão.
O interessante, porém, é que os meninos não estão como numa fotografia que fixa a imagem de um determinado momento (e isso certamente nem era possível na época); eles estão em contínuo movimento e ação, quer quando são agressivos (como lobos), quando talvez nem consigam se suportar uns aos outros, quer quando são transformados graças ao milagre do modo de fazer que a Senhora do sonho pede a Joãozinho; com esse modo de fazer, eles serão transformados (como cordeiros) em meninos serenos, simpáticos e cordiais. O mais importante no sonho, que o próprio Dom Bosco aprende e, depois, aprenderão todos os seus seguidores, é a possibilidade do processo de transformação: trata-se de um movimento – permito-me dizer – “pascal”, de mudança e transformação de lobos em cordeiros, de cordeiros em uma – diríamos na linguagem de hoje – comunidade juvenil que celebra Jesus e Maria. Parece-me, certamente, um elemento essencial e central do sonho.

3.3. …onde há um claro chamado vocacional
«Eis o teu campo: torna-te humilde, forte, robusto; e o que vês acontecer aos animais neste momento, deverás fazê-lo para os meus filhos».[28] O que acontece no sonho é, antes de tudo, um chamado, um convite, uma vocação, que parece impossível, inatingível. João Bosco acorda cansado; ele até mesmo chorou; e quando se trata do chamado de Deus (o personagem de aspecto majestoso do sonho é Jesus), a direção que esse chamado pode tomar é imprevisível e desconcertante.
Este chamado é algo muito especial no sonho e de uma riqueza ímpar. Digo-o porque pareceria não haver outro futuro possível e diferente para João a não ser, certamente, viver como um bom agricultor. As causas disso eram a sua idade, a orfandade, a quase total falta de recursos, a pobreza, as contrariedades internas na família, os contrates com o meio-irmão Antonio, as dificuldades de acesso à escola devido a distância e à necessidade do trabalho no campo. Pode parecer-nos um sonho impossível, distante, destinado talvez a outra pessoa, mas não a ele. Mesmo na interpretação familiar do sonho, as palavras da avó parecem confirmá-lo: « Não se deve fazer caso dos sonhos».[29]
Todavia, é exatamente a difícil situação que torna Dom Bosco (no momento, Joãozinho) muito humano, carente de ajuda, mas também forte e entusiasmado. A força de vontade, o caráter, o temperamento, a fortaleza e a determinação de Mamãe Margarita com sua profunda fé e a fé dele mesmo, tornam tudo isso possível. O sonho estará sempre presente, e ele o descobrirá ao longo da vida: fui entendendo, à medida que, pouco a pouco, tudo ia sendo realizado… Não há mágica, não é um sonho de “fadas”, não há predestinação, mas uma vida cheia de significado, de exigências, de sacrifício, mas também de fé e esperança que impulsiona a descobri-la e vivê-la todos os dias.
No sonho, aparece um Homem muito respeitável, de aspecto varonil, que fala com João, questiona-o e coloca-o nas mãos da sua Mãe, a Senhora. Há certamente o envio para uma missão. Uma missão de pastor-educador em que também se indica o método: a mansidão e a caridade. Eis um exemplo da sua resposta vocacional:
«João, fiel desde cedo à inspiração divina, começou a trabalhar no campo que lhe fora indicado pela Providência. Ainda não tinha dez anos e em Murialdo já era um apóstolo entre os conterrâneos. Não será este um Oratório Festivo em linhas gerais, ainda que embrionário, iniciado pelo pequeno João em 1825, servindo-se dos meios compatíveis com a sua idade e instrução? Dotado de memória prodigiosa, amante dos livros, assíduo às pregações, ele faz de tudo um tesouro, instruções, fatos, exemplos, para repeti-los ao seu pequeno público, instilando com admirável eficácia o amor pela virtude em todos aqueles que vêm admirar a sua habilidade nos jogos e ouvir a sua palavra infantil, mas calorosa».[30]

3.4. Ela, Maria, marcará para sempre o sonho de Joãozinho e a vida de Dom Bosco
Chegamos ao momento central do sonho: a mediação materna da Senhora (ligada ao mistério do nome). Para Joãozinho Bosco, a sua mãe e a Mãe d’Aquele que ele saúda três vezes ao dia serão um espaço de humanidade onde repousar, onde encontrar segurança e abrigo nos momentos mais difíceis.
«”Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, e sem a qual toda sabedoria se converte em estultice”. De fato, é Ela que indica tanto o campo onde deverá trabalhar como também a metodologia a utilizar: “Eis o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte, robusto”. Maria é interpelada, desde o início, para o nascimento de um novo carisma, pois é justamente a sua especialidade carregar e dar à luz; por isso, quando se trata de um Fundador, que deve receber do Espírito Santo a luz original do carisma, o Senhor dispõe que seja a sua própria Mãe, a Virgem de Pentecostes e modelo imaculado da Igreja, a ser a sua Mestra. Somente Ela, a “cheia de graça”, compreende todos os carismas a partir de dentro, como uma pessoa que conhece todas as línguas e as fala como se fossem suas».[31]
E o que o Senhor do sonho diz ao jovem Joãozinho Bosco é como se lhe dissesse: “De agora em diante, entende-te com Ela”.
«Notamos logo que não é Joãozinho que escolhe Maria, mas é justamente Maria que toma a iniciativa da escolha: a pedido do seu Filho, será a Inspiradora e a Mestra da sua vocação».[32]
Esta dimensão feminino-materno-mariana talvez seja uma das dimensões mais desafiadoras do sonho. Quando olhamos para a realidade com serenidade, esse aspecto se transforma em algo belo. É o próprio Jesus que lhe dá uma Mestra, que é a sua Mãe, e quanto ao “seu nome deve perguntar para Ela”; Joãozinho deve trabalhar “com os seus filhos”, e será “Ela” que cuidará da continuidade do sonho na vida e o levará pela mão até o fim de seus dias, até o momento em que ele realmente “tudo compreenderá”.
Há uma enorme intencionalidade em querer dizer que, no carisma salesiano em favor dos meninos e das meninas mais pobres, carentes e sem afeto, a dimensão de lidar com a “doçura”, com a mansidão e a caridade, assim como a dimensão “mariana”, são elementos indispensáveis para quem deseja viver esse carisma. A Virgem tem a ver com a formação na “sabedoria do carisma”. Por isso, é difícil entender que no carisma salesiano haja alguém (pessoa, grupo ou instituição) que deixe a presença mariana em segundo plano. Sem Maria de Nazaré, fala-se de outro carisma, mas não do carisma salesiano, nem dos filhos e das filhas de Dom Bosco.
O P. Ziggiotti o diz de maneira admirável na pesquisa que fizemos dos comentários dos Reitores-Mores sobre o sonho:
«Gostaria de persuadir todos os salesianos deste fato muito importante, que ilumina toda a existência do Santo com a luz celeste e, portanto, dá um valor indiscutível a tudo o que ele fez e disse em sua vida: Nossa Senhora, a quem ele foi consagrado por sua mãe ao nascer, que iluminou o seu futuro no sonho dos nove anos e depois voltou para confortá-lo e aconselhá-lo, sob mil formas, nos sonhos, no espírito profético, na visão interior do estado das almas, nos milagres e nas graças sem número, que ele operou invocando-a; Nossa Senhora é tudo para Dom Bosco; e o salesiano que quiser adquirir o espírito do Fundador deve imitá-lo nessa devoção».[33]

3.5. Dócil ao Espírito, confiando na Providência

Certamente, há muito a aprender. Tornar-se humilde, forte e robusto significa preparar-se para o que nos espera. João Bosco deverá ser obediente, dócil à sabedoria do Mestre. Terá de aprender a ver e a descobrir os processos de transformação; a entender que o caminho feito com esses meninos leva à vida e ao encontro com o Senhor do sonho e com a sua mãe, leva a Jesus e Maria. João Bosco descobriu tudo isso.
O que está em jogo é a obediência a Deus, a docilidade ao Espírito. Assim como Maria é aquela do “faça-se”, permitindo que aconteça nela o que Deus pensou e sonhou, a ponto de proclamar, a partir do seu “fiat” a Deus, que o Senhor fez em mim grandes coisas, assim também o salesiano, a filha de Maria Auxiliadora, cada salesiano cooperador, cada devoto de Maria Auxiliadora, cada membro da nossa Família Salesiana, que é a Família de Dom Bosco, deverá aprender e tornar próprio este estilo de docilidade ao Espírito. Acrescento que gostaria que este estilo se tornasse carne e vida em todas as etapas da formação inicial e permanente de cada grupo, congregação e instituição salesiana. E não nos esqueçamos de que os “formadores”, as “formadoras”, deveriam ser, deveríamos ser os primeiros a “deixar-nos formar” pelo Espírito, como Maria.
O sonho oferece, como nenhum outro elemento, como nenhuma outra realidade, o que acredito possa ser chamado de pistas “irrenunciáveis” do DNA do carisma. São essas pistas ou “princípios” que nos podem ajudar a ler, discernir e agir hoje em sintonia com a fidelidade criativa.
E não nos esqueçamos de que essa é uma tarefa comunitária: devemos realizá-la juntos, como Família Salesiana, “de modo sinodal” – poderíamos dizer hoje –, alinhados com os recentes trabalhos sinodais.
Acompanhar Dom Bosco na reflexão sobre o seu sonho aos nove anos é também evidenciar o seu abandono à Providência, colocar-nos, como ele, naquele «a seu tempo tudo compreenderás». O sonho foi para Dom Bosco uma ação da Providência. Essa é a sua convicção radical, a opção fundamental de vida, “a essência da alma de Dom Bosco”, o ponto central, o mais profundo e íntimo. Não resta dúvida de que o abandono à Divina Providência, como aprendeu de sua mãe, foi decisivo para o nosso pai e deve ser para nós a garantia da continuidade da espiritualidade salesiana. É o abandono em Deus, a confiança em Deus, porque o Deus que Dom Bosco aprendeu a amar é um Deus confiável. Ele realmente atua na história, e o fez na história do Oratório, a ponto de Dom Bosco dizer aos diretores salesianos em 2 de fevereiro de 1876:
«As outras Congregações e Ordens Religiosas tiveram em seu início alguma inspiração, alguma visão, algum fato sobrenatural que deu impulso à fundação e garantiu o seu estabelecimento; mas para a maioria a coisa permaneceu em um ou alguns desses fatos. Aqui entre nós, no entanto, as coisas acontecem de maneira bem diferente. Pode-se dizer que não há nada que não tenha sido conhecido antes. Nenhum passo foi dado pela Congregação sem ser aconselhado por algum fato sobrenatural; nenhuma mudança, aperfeiçoamento ou ampliação que não tenha sido precedida por uma ordem do Senhor… Nós, por exemplo, poderíamos ter escrito todas as coisas que nos aconteceram antes que acontecessem e tê-las escrito minuciosamente e com precisão».[34]

3.6. Mas, «não com pancadas». A arte da doçura e a paciência educativa
O sonho fala-nos não só de um passado, mas também nos transporta para um presente, um hoje, que é extremamente atual. O «não com pancadas» que Nossa Senhora diz a Joãozinho também nos desafia hoje e torna mais necessário do que nunca pensar em nosso modo salesiano de educar os jovens, porque aumenta sempre mais o discurso do ódio e da violência. O nosso mundo vai se tornando sempre mais violento e nós, educadores e evangelizadores dos jovens, devemos ser uma alternativa àquilo que tanto angustiou Joãozinho no seu sonho e que hoje tanto nos pesa. Como declarou certa vez o Reitor-Mor P. Pascual Chávez, na Estreia de 2012,[35] devemos, sem dúvida, “enfrentar os lobos” que querem devorar o mundo: o indiferentismo, o relativismo ético, o consumismo que distorce o valor das coisas e das experiências, as falsas ideologias e outras coisas que realmente nos atingem e são verdadeira violência.
Acredito que esta mensagem é tão relevante hoje quanto era quando Joãozinho (o nosso futuro Dom Bosco, pai e mestre) a recebeu.
O «não com pancadas» é um não “absoluto”. É muito claro, e é a única correção, quase uma reprimenda, poderíamos dizer, que João Bosco recebe no sonho. E, antes de tudo, é para nós uma certeza, a grande certeza de que pelo caminho da força e da violência não se vai na boa direção do carisma. As pancadas do sonho podem assumir hoje milhares de formas. Por isso, interessei-me em ler, pensar e detalhar muitas das formas mais ou menos sutis de violência que nos rodeiam e devem ser banidas do nosso mundo salesiano educativo, pastoral, curativo e evangelizador.
Para nós o «não com pancadas» significa combater conscientemente, sem nenhum tipo de justificativa, todo tipo de violência:
Violência física, que prejudica o corpo (violência que dá empurrão, chute, tapa, encurrala ou imobiliza, que atira objetos).
Violência psicológica e verbal, que prejudica a autoestima. Violência que insulta e desqualifica, isola, monitora e controla sem respeito. Violência e abuso psicológico que faz com que algumas pessoas sintam que nunca dão o suficiente de si mesmas; violência que leva as pessoas a sempre se considerarem diferentes e erradas, até mesmo imaturas por pensarem honestamente o que pensam; violência e abuso da parte de quem só se interessa pelo outro quando quer tirar proveito disso.
Violência afetivo-sexual, que prejudica o corpo, o coração e os afetos mais íntimos; que deixa rastros indeléveis de dor. E pode manifestar-se verbalmente ou por escrito, com olhares ou sinais que denotam obscenidade, assédio, bullying e até mesmo abuso.
Violência econômica, quando o dinheiro que serve para fazer o bem é retido, desviado, roubado.
Violência também cibernética (“ciberbulismo” com assédio através da internet, de sites, blogs, mensagens de texto ou e-mails, vídeos).
Violência que nasce da exclusão social de pessoas, alunos, adolescentes excluídos ou humilhados em público sem nenhum respeito.
Violência, enfim, caracterizada por maus-tratos, por verbos como ameaçar, manipular, desvalorizar, negar, questionar, humilhar, insultar, desqualificar, zombar, mostrar indiferença.
Não resta dúvida de que, carismaticamente, possuímos o antídoto para essas situações que prejudicam a vida. É o gênio pastoral de Dom Bosco: «Lembrando, também, que a intervenção de Maria no primeiro sonho de Joãozinho Bosco configurou de início a “índole apostólica” que nos caracteriza na Igreja, convido-vos a juntos concentrarmos a nossa reflexão sobre o projeto que caracteriza a nossa peculiar feição pastoral: o Sistema Preventivo».[36]

3.7. ELA, a Senhora: Mestra e Mãe
A Senhora do sonho é apresentada como Mestra e Mãe. Ela é a Mãe de ambos, do Homem venerando do sonho e do próprio Joãozinho; Mãe – permitam-me a paráfrase – que, tomando-o pela mão, lhe diz:
«Olha»: o importante para nós é saber olhar, e é grave quando não somos capazes de «olhar» os jovens em sua realidade, naquilo que são; incapazes de ver o que há de mais autêntico neles e o mais trágico e doloroso deles e de suas vidas. “Olha” é a primeira palavra dita pela «Senhora de aspecto majestoso, vestida de um manto todo resplandecente, como se cada uma de suas partes fosse fulgidíssima estrela» e que Dom Bosco escreve como primeira palavra que ouve Dela no sonho.
Sem querer “interpretar” demais um único verbo, parece-me que há um sinal “preventivo” do que será, de fato, o caminho que o nosso pai irá percorrer, feito sobretudo de aprendizagem experiencial. Pensemos no quanto contam os olhos na vida de Dom Bosco… É o que ele vê quando chega a Turim – ou melhor, o que Cafasso o ajuda a ver – dando origem à nossa missão. É como cada menino (recordemos os primeiros encontros nas biografias que escreveu): ali está o incipit que é como um milagre ao qual se segue todo o resto, seja para Sávio, para Magone, para Cagliero, para Rua… Há no museu de Chieri uma escultura representando os olhos e os olhares de Dom Bosco, que ficara ao lado do seu altar em 1988. Há algo de único em seu olhar e aquele «olha», dito pela Senhora não é, à sua maneira, menos original e único.
É exatamente em torno desse “olhar” que se pode encontrar uma referência explícita a uma palavra tão fundamental para nós como assistência. E todos nós sabemos o quanto ela é essencial.
A minha atenção, no entanto, não se afasta muito do prado dos sonhos nos Becchi, porque, de fato, sem que Joãozinho perceba, ele será formado eminentemente pela experiência: aprenderá com a vida, especialmente nos momentos de extrema dificuldade e cansaço.
Olha leva a pessoa a descentrar-se, a compreender algo que vai além do próprio horizonte e ultrapassa a própria imaginação, e se torna um convite, um desafio, uma provocação, um apelo e um guia. Porque exige um envolvimento total e completo mediante o qual João se prodigalizará pelo bem dos jovens. A partir disso, também se compreende a importância do ambiente em toda a pedagogia salesiana.
Nada é tirado do cuidado indispensável da interioridade, do silêncio. Somos chamados a elevar o nosso olhar, tanto quando o fixamos no mistério de Deus, como quando passamos pelo homem que desceu de Jerusalém a Jericó e caiu nas mãos de bandidos.
«Aprende», ou seja, torna-te humilde, forte e robusto, porque precisarás de simplicidade (diante de tanta soberba), fortaleza (diante de tanta coisa que deves enfrentar na vida) e aquela robustez que é resiliência (ou capacidade de não se deixar abater, de não deixar baixar os braços como sinal de que nada se pode fazer).
Parece-me formidável ver que aquilo que o torna “doce” (humilde, forte, robusto) são os eventos (a experiência) que a Providência (Maria) coloca no seu caminho…, logo a partir do que lhe acontece algum tempo depois do sonho, quando, em fevereiro de 1828 (ele tinha apenas 12 anos), Margarida deve afastá-lo de casa por causa das desavenças com Antonio. Chega à noite no sítio dos Moglia, onde o aceitam mais por piedade do que por necessidade real – no inverno não se contratavam ajudantes –, longe o suficiente para ser a última porta onde bater, mas ao mesmo tempo perto o suficiente de Moncucco aonde ia aos domingos de manhã; ali vivia um dos melhores párocos da diocese de Turim, o P. Francisco Cottino (sobre quem a nossa literatura salesiana ainda fala muito pouco). Com ele, João encontra-se todos os domingos. É o primeiro “cara a cara”, o primeiro encontro com um verdadeiro guia. Assim, uma temporada que só poderia ser triste e sombria torna-se uma ocasião muito importante para o seu caminho. Sabemos que em 3 de novembro de 1829 o tio Miguel o levará de volta à família, aos Becchi. E que, em 5 de novembro, voltando da missão em Buttigliera, encontrará o P. Calosso.
Acredito ser muito importante evidenciar com toda a força o quão incrível é a direção-acompanhamento da Providência. João corresponde entregando-se livremente com todo o seu ser enquanto acontecimentos e pessoas que se sucedem no momento certo são os artífices daquele «humilde, forte e robusto» indispensável para a missão que, entretanto, amadurece sempre mais.
É evidente o primado da Graça, que se aplica primeiramente a nós, se formos capazes de nos deixar formar, e torna-se muito frutuoso para a missão. Assim, não há mais limites ou dificuldades que impeçam o crescimento em vista da plenitude da vida, da santidade, seja qual for o contexto, mesmo o mais desafiador.
Obviamente, tudo isso não exime de fazer todos os esforços para melhorar as situações e superar as injustiças. De fato, Dom Bosco se “aliará” à Providência sem limitar os seus esforços, os encontros, a redação de “contratos de trabalho” para defender e proteger (e é o primeiro a fazê-lo!) os jovens aprendizes acolhidos no seu primeiro Oratório. Acima de tudo, não lhes tira o céu! Indicando que sempre há “algo a mais”, um objetivo maior ao qual todos podem ter acesso.
Lição análoga foi sugerida por Madre Teresa de Calcutá com a sua incansável dedicação aos moribundos de Calcutá. A propósito, em um cartaz que ela escreveu à mão e pendurou em seu quarto no início da sua nova vida para os mais pobres dos pobres, ela fixou em preto e branco estas palavras: “Da mihi animas cetera tolle”.
«E sejam pacientes», ou seja, demos tempo a tudo e deixemos que Deus seja Deus.

4. UM SONHO QUE FAZ SONHAR
Queridos membros da Família Salesiana, não poderia concluir estas páginas que nos aproximam do segundo centenário do “sonho dos 9 anos” sem expressar alguns sonhos que trago no coração para os jovens e para todos nós. Podem identificar-se com nobres desejos de continuar a crescer na fidelidade carismática; ou com o anseio e a provocação serena diante de mudanças que nos são difíceis, resistências que podem tirar o brilho do nosso carisma; ou, ainda, com aspirações profundas que desejam traduzir em realidade o sonho de Dom Bosco, embora duzentos anos depois!
Compartilho-os com vocês, na esperança de que quem me ler, em qualquer lugar do vasto mundo salesiano, possa sentir que algo do que está escrito aqui também se destina a ele ou ela. Estes, entre muitos outros possíveis, parecem-me ser alguns elementos concretos para a concretização do sonho dos nove anos:
1. Como Dom Bosco nos mostrou ao longo da sua vida, somente as relações autênticas transformam e salvam. O Papa Francisco diz a mesma coisa: «não é suficiente dispor de estruturas; é preciso que nelas se desenvolvam relações autênticas; efetivamente é a qualidade de tais relações que evangeliza».[37] Por isso, exprimo o meu desejo de que cada casa da nossa Família Salesiana no mundo seja espaço verdadeiramente educativo, espaço de relações respeitosas, espaço que ajude as pessoas a crescerem de modo saudável. Acredito que devemos fazer a diferença porque as relações autênticas estão na origem do nosso carisma, na origem do encontro de Dom Bosco com Bartolomeu Garelli, na origem da mesma vocação de Dom Bosco.
2. Cada opção de Dom Bosco fazia parte de um projeto maior: o projeto de Deus para ele. Por isso, para ele, nenhuma escolha era leviana ou trivial. O seu sonho não foi uma historieta em sua vida ou um simples evento, mas uma resposta vocacional, uma opção, um caminho, um programa de vida que foi tomando forma na medida em que era vivido. Eu sonho ver em todos os salesianos, em todos os membros da nossa Família de Dom Bosco, um grupo de pessoas que, por vocação e escolha, se sente desconfortável no conforto e sente na própria pele a dor, o cansaço e a batalha de tantas famílias e tantos jovens que lutam todos os dias para sobreviver ou viver com um pouco mais de dignidade. E que nenhum de nós seja reduzido a espectador passivo ou indiferente à dor e angústia de tantos jovens.
3. «O sonho primordial, o sonho criador de Deus nosso Pai, precede e acompanha a vida de todos os seus filhos».[38] O nosso Deus tem um sonho para cada um de nós, para cada um dos nossos jovens, um projeto concebido, “desenhado” para nós por Ele mesmo. O segredo da tão desejada felicidade de cada pessoa será justamente descobrir a correspondência e o encontro entre esses dois sonhos: o nosso e o de Deus. Perceber qual é o sonho de Deus para cada um de nós é, antes de tudo, perceber que o Senhor nos deu a vida porque nos ama, para além do que somos, inclusive dos nossos próprios limites. Devemos crer, então, que o nosso Deus quer fazer grandes coisas em cada um de nós! Somos muito preciosos, temos um grande valor, porque, sem cada um de nós, alguma coisa não poderá ser realizada. Na verdade, existirão pessoas que só eu poderei amar, palavras que só eu poderei dizer, momentos que só eu poderei compartilhar.
4. Sem sonhos não existe vida. Para os seres humanos, para todos nós, sonhar é projetar-se, é ter um ideal, um sentido na vida. A pior pobreza dos jovens é não os deixar sonhar, é roubar os seus sonhos ou impor-lhes sonhos pré-fabricados. Cada um de nós é um sonho de Deus! Qual é o meu? Por que Ele me sonhou? É importante descobrir qual é o meu sonho, o sonho que Deus tem para mim. E devemos tentar desenvolvê-lo, realizá-lo, porque a nossa felicidade e a felicidade dos nossos irmãos e irmãs dependem disso.
Recordemos que Dom Bosco naquele 16 de maio de 1887 chorou de comoção e alegria quando “viu realizado” o sonho que definia a sua vida, a sua vocação, a sua missão.
5. Deus faz grandes coisas com “instrumentos humildes” e fala-nos de muitas maneiras, também no fundo do nosso coração, através dos sentimentos que se movem no nosso interior, através da Palavra de Deus aceita com fé, aprofundada com paciência, interiorizada com amor, seguida com confiança. Ajudemo-nos e ajudemos os nossos meninos, meninas e jovens a escutar o próprio interior, a decifrar as moções interiores, a dar voz ao que se agita dentro deles e de cada um de nós, a reconhecer quais sinais ou “sonhos” nos revelam a voz de Deus e quais, ao contrário, resultam de escolhas equivocadas.
6. «As dificuldades e fragilidades dos jovens ajudam-nos a ser melhores, as suas exigências desafiam-nos e as suas dúvidas interpelam-nos sobre a qualidade da nossa fé. E precisamos também das suas críticas, porque, não raro, é através delas que ouvimos a voz do Senhor que nos pede a conversão do coração e a renovação das estruturas».[39] O verdadeiro educador sabe descobrir, com inteligência e paciência, o que cada jovem carrega dentro de si e, como tal, colocará em ação uma boa dose de compreensão e afeto, procurando fazer-se amar.[40] Sonho e anseio todos os dias em poder encontrar em cada casa salesiana do mundo salesianos e educadores leigos que acreditam no milagre transformador da educação salesiana.
7. Viver humanamente é um “tornar-se”, desenvolver-se, desfrutar dos mesmos processos pacientes com que Deus age em nossas vidas. Como desejo que a nossa paixão educativa se assemelhe à de Dom Bosco, pai da amorevolezza salesiana! E desejo-o para que em todas as Presenças da nossa Família Salesiana no mundo os jovens e as jovens possam encontrar não só profissionais capacitados, mas verdadeiros educadores-irmãos-amigos-pais ou mães.
8. Dom Bosco, “padre da rua” ad litteram, consumiu-se literalmente nesse projeto. Os salesianos, e quem se inspira em Dom Bosco, são, de fato, “filhos de um sonhador de futuro”, mas de um futuro que se constrói na confiança em Deus e na inserção cotidiana na vida dos jovens trabalhando por eles, em meio às dificuldades e incertezas de cada dia.[41] Por isso, o dom mais precioso que podemos oferecer aos jovens é o encontro com o Senhor da Vida, ajudando-os a descobrir o próprio sonho, o sonho de Deus para cada um deles, e apoiando-os em seu caminho na realização pessoal. Como eu desejo que isso seja realizado em todas as nossas casas!
9. Enquanto o coração de Dom Bosco batia em cada momento, nós, «convencidos de que cada jovem traz inscrito no coração o desejo de Deus, somos chamados a oferecer as oportunidades de conhecer Jesus, fonte de vida e alegria para todo jovem».[42] Hoje, Dom Bosco não poderia tolerar que nas suas casas, os seus filhos e filhas não propusessem às crianças, aos adolescentes e aos jovens – embora na liberdade com que hoje educamos na fé nos mais variados contextos – o encontro com Jesus. Hoje, também, somos chamados a torná-lo conhecido, a descobrir como Ele fascina cada pessoa ajudando os jovens de outras religiões a serem bons crentes a partir da própria fé e dos próprios ideais. Sonho que isso seja uma realidade em todas as casas salesianas do mundo.
10. «A obra salesiana deve visar em todas as partes os jovens mais pobres e necessitados da Sociedade, e usar com eles os milhares de meios previstos pela caridade. Dom Bosco chorava ao ver tantos jovens que cresciam arruinados e incrédulos; e desejava poder estender os seus cuidados a todos os jovens do mundo – vigiando, admoestando, instruindo, em uma palavra, prevenindo –. (…) Por isso, ao aceitar novas fundações, dava preferência aos lugares onde a juventude se arruinava pelo abandono».[43] Eu realmente sonho ver um dia toda a Congregação Salesiana com a mesma dedicação de Dom Bosco aos seus meninos mais pobres. Sonho ver cada um dos meus irmãos dando a vida com alegria em favor dos últimos. Em muitos casos isso já acontece. Sonho que cada uma das nossas casas esteja cheia daquele «cheiro de ovelha» como o Papa Francisco se referia a cada apóstolo de hoje. E desejo-o também para toda a nossa Família Salesiana: ninguém deve sentir-se isento desse apelo.
11. «A vida de João antes da ordenação presbiteral é deveras uma obra-prima de itinerário para a vocação».[44] O Papa Francisco falando aos jovens sobre a vocação diz: «Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. Por conseguinte, devemos pensar que toda a pastoral é vocacional, toda a formação é vocacional e toda a espiritualidade é vocacional».[45] Como Dom Bosco sempre fez, considero como nosso dever ajudar cada jovem, em todas as nossas propostas, a descobrir o que Deus espera dele, ter ideais que o façam voar alto, dar o melhor de si, desejar viver a vida como dádiva e oferenda.
12. Maria resplandece como mãe e cuidadora. Quando, ainda muito jovem, recebeu o anúncio do anjo, não deixou de fazer perguntas. Quando aceitou e disse “sim”, apostou tudo, arriscando-se. Quando a sua prima precisou dela, deixou de lado os próprios projetos e necessidades e partiu sem demora. Quando a dor do Filho chegou até ela foi a mulher forte que o apoiou e acompanhou até o fim. Mãe e Mestra, Ela olha para este povo de jovens que a busca; mesmo havendo no caminho muito ruído e escuridão, Ela fala no silêncio e mantém acesa a luz da esperança.[46]  Sonho, de verdade, que, fiéis a Dom Bosco, possamos fazer os nossos meninos, meninas e jovens serem apaixonados, não menos do que ele, por esta Mãe, porque «Nossa Senhora é tudo para Dom Bosco; e o salesiano que quiser adquirir o espírito do Fundador, deve imitá-lo nesta devoção».[47]

5. DO SONHO DOS NOVE ANOS AO ALTAR DAS LÁGRIMAS

Estou chegando ao fim. Muitas outras coisas poderiam ser acrescentadas, mas creio que já é o suficiente e seja possível que alguma palavra ou frase possa chegar a cada coração. Se for esse o caso, seria uma notícia muito boa.
Desejo simplesmente convidá-los a fazer um instante de interiorização e contemplação diante deste texto das Memórias Biográficas que descreve, em poucas linhas, como o próprio Dom Bosco explica as suas lágrimas diante do altar de Maria Auxiliadora, na recém-consagrada Basílica do Sagrado Coração; elas deviam-se ao fato de que naqueles momentos ele via e ouvia a sua mãe, os seus irmãos e a sua avó avaliarem o sonho, até mesmo questioná-lo, e ali, nesse instante, sessenta e dois anos depois, ele tudo compreende, como a Mestra lhe dissera no sonho. Comoveu-me profundamente e, por isso, ofereço-o a todos.
«Nada menos de 15 vezes durante o divino sacrifício – anotam as Memórias Biográficas – ele deteve-se, tomado pela emoção e derramando lágrimas. Viglietti, que o ajudava, precisou distraí-lo algumas vezes, para que pudesse continuar. (Tendo-lhe perguntado) o que havia causado tal emoção, ele respondeu: – Tinha viva diante dos olhos a cena de quando pelos dez anos sonhei com a Congregação. Eu realmente via e ouvia minha mãe e meus irmãos questionando o sonho…
Nossa Senhora, então, dissera-lhe: “a seu tempo tudo compreenderás”. Passaram-se sessenta e dois anos de trabalho árduo, de sacrifícios e lutas desde aquele dia, quando um súbito fulgor lhe revelou, na construção da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Roma, o coroamento da missão que lhe fora misteriosamente anunciada no início da sua vida».
[48]
Creio realmente que Maria Auxiliadora continua a ser hoje a verdadeira Mãe e Mestra da nossa Família. Estou convencido de que as palavras proféticas do primeiro sonho, que prometia uma Mestra, continuam a ser uma realidade em todos os lugares onde o carisma do nosso Pai, um dom do Espírito, criou raízes. E tenho certeza de que pode ser aplicado a todas as casas, para além dos nossos cansaços e trabalhos o que Dom Bosco dizia sobre o Santuário de Valdocco:
«Cada tijolo é uma graça de Maria Auxiliadora; não há nada que tenhamos feito sem a sua intervenção direta; Ela construiu a sua casa e é uma maravilha aos nossos olhos».
Ela, Imaculada e Auxiliadora, continue a levar-nos pela mão. Amém.

Turim-Valdocco, 8 de dezembro de 2023

dom Ángel Card. Fernández Artime, S.D.B.
Reitor-Mor


[1] F. Motto, Il sogno dei nove anni. Redazione, storia, criteri di lettura, in «Note di pastorale giovanile» 5 (2020), 6.

[2] P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica. 1. Vita e opere, LAS, Roma 1979, 31s.

[3] P. Chávez V., «Conhecendo e imitando Dom Bosco, façamos dos jovens a missão da nossa vida». ACG 412, p. 40-41.

[4] F. Motto, o.c. ,6.

[5] J. Bosco, Memórias do Oratório de S. Francisco de Sales de 1815 a 1855, Brasília, EDB, 2012, p. 28.

[6] Cf. F. Rinaldi, Carta circular publicada em ACS Ano V – N. 26 (24 de outubro de 1924), 312-317.

[7] G. Bosco, Memorie dell’oratorio di san Francesco di Sales dal 1815 al 1855, in Istituto Storico Salesiano, (saggio introduttivo e note storiche a cura di A. da Silva Ferreira), “Fonti”, serie prima, 4, marzo 1991. Cf. A. Bozzolo, Il sogno dei nove anni, 3.1 Struttura narrativa e movimento onirico in A. Bozzolo (a cura di), I sogni di Don Bosco. Esperienza spirituale e sapienza educativa, LAS-Roma, 2017, p. 235. Obs.: o texto do “Sonho” nesta Estreia é tirado de Memórias do Oratório de São Francisco de Sales. Brasília, Editora EDB, 1979, p. 28ss.

[8] R. Ziggiotti, Tenaci, audaci e amorevoli. Lettere circolari ai salesiani di don Renato Ziggiotti, a cura di Marco Bay, LAS, Roma 2015, 575.

[9] O Salesiano Coadjutor Marco Bay foi professor na Pontifícia Universidade Salesiana de Roma e é em Roma (UPS) o atual diretor do Arquivo Central Salesiano. Ele ofereceu-me generosamente a pesquisa que realizara por iniciativa própria sobre as referências que os Reitores-Mores anteriores fizeram do “Sonho dos 9 Anos”.

Aproveito a oportunidade para também agradecer pelas suas anotações e sugestões ao P. Luis Timossi, sdb, do Centro de Formação Permanente de Quito, e ao P. Silvio Roggia, sdb, diretor da comunidade Beato Zeferino Namuncurá de Roma.

[10] P. Álbera, Lettere Circolari di don Paolo Albera ai salesiani, Direzione Generale delle Opere Salesiane, Torino 1965, 123; 315; 339.

[11] F. Rinaldi, Carta circular, ACS Ano V, n. 26 (24 de outubro de 1924), 312-317.

[12] Ibidem.

[13] La commemorazione di un “sogno”, in BS Ano XLIX, 6 (junho de 1925), 147.

[14] P. Ricaldone, ACS, Ano XVII. 24 de março de 1936, n. 74.

[15] P. Ricaldone, o.c., n. 78.

[16] R. Ziggiotti, Tenaci, audaci e amorevoli. Lettere circolari ai salesiani di don Renato Ziggiotti, a cura di Marco Bay, LAS, Roma 2015, 129.

[17] R. Ziggiotti, o.c., 264.

[18] L. Ricceri, La parola del Rettor Maggiore. Conferenze, Omelie Buone notti, v. 9, Ispettoria Centrale Salesiana, Torino 1978, 27.

[19] Ibid, 28.

[20] E. Viganò, Lettere circolari di don Egidio Viganò ai salesiani, vol. 1, Roma, Direzione Generale Opere Don Bosco, 1996, 10. [Maria renova a Família Salesiana de Dom Bosco, ACG 289, p. 10-11]

[21] MB VII, 291. Citado por J. E. Vecchi, Educatori appassionati esperti e consacrati per i giovani. Lettere circolari ai Salesiani di don Juan E. Vecchi. Introduzione, parole chiave e indici a cura di Marco Bay, LAS, Roma 2013, 380.

[22] P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica. Vol. II, p. 32. Citado por J. E. Vecchi, o.c., 381.

[23] P. Chávez Villanueva, Lettere circolari ai salesiani (2002-2014). Introduzione e indici a cura di Marco Bay. Presentazione di don Ángel Fernández Artime, Roma, LAS, 2021, p. 450. [E Jesus crescia em sabedoria, idade e graça (Lc 2,52), Comentário à Estreia de 2006, in ACG 392]

[24] F. Motto, o.c. 8.

[25] Ibid, 10.

[26] G. Bosco, Memorie dell’Oratorio, citado por F. Motto, o.c. 9.

[27] F. Motto, o.c., 10.

[28] Citado em P. Ricaldone, Ano XVII. 24 de março de 1936, n. 74.

[29] J. Bosco, o.c., p. 30.

[30] P. Ricaldone, Ano XX Novembro–Dezembro de 1939, n. 96.

[31] A. Bozzolo (ed), Il Sogno dei nove anni. Questioni ermeneutiche e lettura teologica, LAS, Roma, 2017, 264.

[32] E. Viganò, Lettere circolari di don Egidio Viganò ai salesiani, vol. 1, Roma, Direzione Generale Opere Don Bosco, 1996, p. 10. [ACG 289, p. 11]

[33] R. Ziggiotti, o.c., 264.

[34] F. Motto, o.c., 7.

[35] Cf. P. Chávez Villanueva, «Conhecendo e imitando Dom Bosco, façamos dos jovens a missão da nossa vida». Primeiro ano de preparação ao Bicentenário do seu nascimento. Estreia de 2012, in ACG 412 (2012), p. 3-44.

[36] E. Viganò, Lettere circolari di don Egidio Viganò ai salesiani, vol. 1, Roma, Direzione Generale Opere Don Bosco, 1996, p. 31. [ACG 290, p. 2]

[37] Sínodo dos Bispos, Os jovens, a fé e o discernimento vocacional. Documento final, n. 128.

[38] Francisco, Christus vivit, Exortação Apostólica Pós-sinodal aos jovens e a todo o povo de Deus, 2019, n. 194.

[39] Sínodo dos Bispos, Os jovens… Documento final, n. 116.

[40] Cf. XXIII Capítulo Geral Salesiano, Educar os jovens na fé. Roma, 1990, n. 99.

[41] Cf. F. Motto, o.c. 14.

[42] R. Sala, Il sogno dei nove anni. Redazione, storia, criteri di lettura, in «Note di pastorale giovanile» 5 (2020), 21.

[43] F. Rinaldi, Il sac. Filippo Rinaldi ai Cooperatori ed alle Cooperatrici Salesiane. Un’altra data memoranda, in BS Anno XLIX, 1 (janeiro de 1925), 6.

[44] E. Viganò, Lettere circolari di don Egidio Viganò ai salesiani, vol. 2, Roma, Direzione Generale Opere Don Bosco, 1996, p. 589. [ACG 313]

[45] Francisco, Christus Vivit, n. 254.

[46] Cf. Francisco, o.c., 43-48, 298.

[47] R. Ziggiotti, Tenaci, audaci e amorevoli. Lettere circolari ai salesiani di don Renato Ziggiotti, a cura di Marco Bay, LAS, Roma 2015, 264.

[48] MB XVIII, 341.




Um ano de sonhos vindos do alto

Caros amigos e amigas: estamos no limiar de um novo ano, 2024, um ano verdadeiramente especial porque estamos comemorando o bicentenário do sonho dos 9 anos de Dom Bosco. Esse sonho foi muito mais do que um episódio encantador de um menino de 9 anos; foi como uma visão-sonho e uma premonição do que ele deveria fazer no decorrer de sua vida.

62 anos depois, celebrando sua primeira e última missa na Basílica do Sagrado Coração em Roma, consagrada dois dias antes, Dom Bosco foi às lágrimas mais de 15 vezes porque, como num filme em velocidade acelerada, viu todas as cenas de sua vida se desenrolarem, percebendo que sempre foi guiado pela Divina Providência e, em particular, conduzido pela mão d’Ela, a Auxiliadora, a ponto de dizer: “Foi Ela que tudo fez”.

Aquele Ano Novo de 1862
Essa comemoração me leva a pensar em um Ano Novo significativo na vida de Dom Bosco. Foi no dia primeiro de janeiro de 1862.
As Memórias Biográficas contam que Dom Bosco, doente até o dia anterior, anunciou que tinha notícias importantes para dar a todos os moradores do Oratório, jovens e idosos. “É impossível descrever a emoção causada pela promessa de Dom Bosco, que, nesse meio tempo, agitou todos os jovens. Com que impaciência passavam a noite de 31 de dezembro para 1º de janeiro e o dia seguinte! Com que ansiedade esperavam a noite para ouvir o que o bom pai lhes diria!”, conta o padre Lemoyne. “Finalmente, após as orações, os jovens esperaram em profundo silêncio por Dom Bosco, que, subindo a um banquinho, revelou o mistério e disse: – A estreia que estou lhes dando não é minha. O que vocês diriam se a própria Nossa Senhora viesse pessoalmente para dizer uma palavra a cada um de vocês? Se ela tivesse preparado para cada um de você um bilhete próprio para lhe mostrar o que ele mais precisa, ou o que ela quer de você? Bem, é exatamente assim que acontece. Nossa Senhora dá um presente a cada um! Vejo que alguns vão querer saber e perguntar: – Como isso aconteceu? Nossa Senhora escreveu as anotações? Foi a própria Nossa Senhora que falou com Dom Bosco? Dom Bosco é o secretário de Nossa Senhora? – Eu respondo: Não lhes digo nada mais do que isso. Eu escrevi as anotações, mas como isso aconteceu não posso dizer, nem haja ninguém que assuma o cargo de me questionar, pois isso me colocaria em dificuldades. Que todos se contentem em saber que o bilhete veio de Nossa Senhora. É uma coisa singular! Estou pedindo essa graça há vários anos e finalmente a obtive. Portanto, cada um de vocês considere esse aviso como se tivesse saído da boca da própria Virgem Maria. Venham, portanto, ao meu quarto e eu darei a cada um de vocês o seu próprio bilhete”. Dom Bosco podia dizer isso porque ele mesmo havia recebido de Nossa Senhora, aos nove anos de idade, a mensagem que marcaria todo o curso de sua vida.
Então, continuando a narrativa daquela mesma noite, os salesianos começaram a passar pelo quarto de Dom Bosco para pegar seu bilhete. Muitos o revelaram. O bilhete destinado ao padre Bonetti, que escrevia a crônica diária, dizia: “Aumente o número dos meus filhos”.  O bom sacerdote transcreveu essa recomendação em sua crônica e acrescentou: “Enquanto isso, minha doce Mãe, tu que me deste conselhos tão caros, dá-me os meios para colocá-los em prática e faze com que eu realmente aumente esse belo número, mas que eu também seja incluído nele”.
O padre Rua disse: “Recorra a mim com confiança nas necessidades de sua alma”.
Na manhã seguinte, os jovens se aglomeraram à porta do quarto de Dom Bosco para receber seu bilhete. Posso facilmente imaginar como Dom Bosco sabia chegar ao coração de cada salesiano e de cada menino do Oratório, não com uma invenção, mas com a profunda convicção do que Nossa Senhora queria para cada um deles e, ao mesmo tempo, conseguia fazê-lo daquele modo em que Dom Bosco sempre foi um verdadeiro mestre e um verdadeiro gênio: refiro-me à arte do encontro pessoal, do diálogo, do olhar que chega ao fundo do coração.
E, ao ler isso, fiquei pensando se isso não aconteceria conosco. Enviamos cartões de felicitações para muitas pessoas. Se Maria Santíssima tivesse enviado um cartão para a Congregação Salesiana e para cada um de nós, para a bela e grande Família Salesiana, a família de Dom Bosco, o que ela teria escrito?

Caminhando como Dom Bosco
É bom imaginar isso. Garanto-lhes que na minha imaginação há tantas coisas bonitas que Nossa Senhora poderia pedir a nós, tanto pessoalmente quanto como família de Dom Bosco, nascida para acompanhar os meninos e as meninas do mundo – especialmente os mais pobres e necessitados – em seu processo de crescimento, amadurecimento, transformação…
O mistério do Ano Novo, que no fundo desenvolve o mistério do Natal, nos diz: “Você não está condicionados pelo passado. Você pode começar de novo hoje, porque há algo novo em você. Tome nos braços o Menino Jesus, que o coloca em contato com todo o novo que está disponível, genuíno e intacto, em sua alma. Comece novamente com os pequenos, os jovens. Confie no novo que há em você! Todo dia é o primeiro dia”.
Talvez seja suficiente fazer nossas as palavras que Maria diz a João Bosco em seu sonho: “Aqui está o seu campo, aqui é onde você deve trabalhar. Torne-se humilde, forte e robusto”. Talvez se esperasse um conselho mais “espiritual”, mas somente aqueles que são humildes podem ser gentis porque podem desfrutar da presença dos outros. A humildade é a porta do amor para os pequenos, os desamparados, os feridos pela vida.
Somente o que é sólido e forte pode andar atrás de Jesus hoje, apesar de tudo. Pois queremos ver os prisioneiros livres, e os oprimidos não mais humilhados; e em que mensagem os pobres ainda podem acreditar.
É ouvir a voz daquela sarça ardente que nunca se consumirá: “Eu quebrarei suas correntes e farei com que você ande com a cabeça levantada”. Maria quer que os Salesianos, e toda a sua Família, a bela família de Dom Bosco de todos os tempos, andem como Dom Bosco. E para isso a melhor garantia será sempre tê-la como a verdadeira Mestra que é, acima de tudo, Mãe. Uma verdadeira graça para a nossa família.
Foi assim que os Reitores-Mores se expressaram ao longo de nossa história. Como fez o meu predecessor, P. Ziggiotti: “Eu lhe darei a Mestra, sob cuja guia você pode se tornar sábio, e sem a qual toda a sabedoria se torna tolice” é a palavra profética do primeiro sonho, pronunciada pelo personagem misterioso, “o Filho Daquela que sua mãe lhe instruiu a saudar três vezes por dia”. Assim, é Jesus quem dá a Dom Bosco sua Mãe como Mestra e guia infalível no difícil caminho de toda a sua vida. Como podemos ser suficientemente gratos por esse extraordinário presente do Céu para nossa Família?”
Feliz Ano Novo de 2024 com meus melhores votos para cada um de vocês e suas famílias. Que seja um ano lindo para todos nós e um ano de paz para esta humanidade tão sofrida.




Apelo Missionário 2024

Prezados irmãos,
Uma saudação fraterna da nossa Casa-Mãe de Valdocco,

Hoje, 18 de dezembro, como já é tradição há alguns anos, é o dia em que Dom Bosco fundou a nossa “Pia Sociedade de São Francisco de Sales” em 1859, e é uma boa oportunidade para enfatizar o espírito missionário como elemento essencial do carisma de Dom Bosco, enviando-lhes o meu apelo missionário anual.

Em 2024, celebraremos o segundo centenário do sonho dos nove anos de João Bosco. Dom Pietro Stella disse que esse é o sonho que “condicionou todo o modo de viver e de pensar de Dom Bosco”. Para nós, hoje, seguir a reflexão sobre o sonho de nove anos de Dom Bosco exige que enfatizemos sua confiança na Providência: «A seu tempo tudo compreenderás». O sonho do menino de nove anos nos ensina que Deus fala de muitas maneiras, realiza grandes coisas com “instrumentos simples”, também no fundo do nosso coração, por meio dos sentimentos que nos movem. Hoje, o sonho de nove anos continua a nos fazer sonhar e a nos convidar a pensar sobre quem somos e para quem somos.

E interessante notar que, em seu quinto sonho missionário, que ocorreu enquanto ele visitava os salesianos em Barcelona na noite de 9 para 10 de abril de 1886, Dom Bosco viu uma profunda conexão com seu sonho de nove anos. Em seu quinto e último sonho missionário, ele viu uma grande multidão de meninos correndo em sua direção, gritando: “Estávamos esperando por você. Esperamos tanto tempo por você. Agora você finalmente está aqui. Você está entre nós e não escapará de nós!” A pastora que conduzia um imenso rebanho de cordeiros o ajudou a entender o significado perguntando: “Você se lembra do sonho que teve quando tinha dez anos?”, depois traçou uma linha de Valparaíso a Pequim para destacar o imenso número de jovens que esperam pelos salesianos. De fato, hoje, em todos os continentes, há jovens que precisam ser transformados de “lobos” em “cordeiros”.

Hoje Dom Bosco precisa de salesianos que se coloquem à disposição como “simples instrumentos” para realizar o seu sonho missionário. Com esta carta, faço um apelo aos irmãos que sentem no fundo do coração, através dos sentimentos que os movem, o chamado de Deus, dentro da nossa comum vocação salesiana, para que se tomem disponíveis como missionários com um compromisso vitalício (ad vitam), onde quer que o Reitor-Mor os envie.

Ao meu apelo de 18 de dezembro de 2022, 42 salesianos responderam enviando-me suas cartas de disponibilidade missionária. Após cuidadoso discernimento, 24 foram escolhidos como membros da 154a expedição missionária em setembro passado. Os outros continuam seu discernimento. Espero que o mesmo número, ou até mais, responda generosamente este ano.

Convido os Inspetores, com seus Delegados para a Animação Missionária (DIAM), a serem os primeiros a ajudar os irmãos a facilitar seu discernimento, convidando-os, depois de um diálogo pessoal, a se colocarem à disposição do Reitor-Mor para responder às necessidades missionárias da Congregação. Em seguida, o Conselheiro Geral para as Missões, em meu nome, continuará o discernimento que levará à escolha dos missionários para a 155a expedição missionária, que se realizará, se Deus quiser, no domingo, 29 de setembro de 2024, na Basílica de Maria Auxiliadora, em Valdocco, como tem sido feito desde os tempos de Dom Bosco.

O diálogo com o Conselheiro Geral para as Missões e a reflexão compartilhada no Conselho Geral me permitem especificar as urgências identificadas para 2024, para as quais eu gostaria que fosse enviado um número significativo de irmãos:
– nas novas fronteiras do continente africano: Botsuana, Níger, norte da África, etc.
– nas novas presenças que iniciaremos na Grécia e em Vanuatu;
– na Albânia, Roménia, Alemanha, Eslovênia e outras fronteiras do Projeto Europa;
– no Azerbaijão, Nepal, Mongólia, África do Sul e Yakutia;
– em presenças com os povos indígenas do continente americano.

Confio este meu último apelo missionário à intercessão da nossa Mãe Imaculada e Auxiliadora para que nós, salesianos, possamos manter vivo o ardor missionário de Dom Bosco.

Saúdo-os, queridos irmãos, com verdadeiro afeto,

Prot. 23/0585
Turim Valdocco, 18 de dezembro de 2023




A cesta da Mamãe Margarida

No final de um ano, todos nós temos uma cesta de lembranças em nossa alma. Ela contém o que vivenciamos, um ano rico, cheio de lembranças agradáveis, mas também de eventos inesperados. Um ano em que não faltaram surpresas.

Queridos amigos de Dom Bosco e de seu carisma, no final do ano de 2023, pareceu-me interessante usar o simbolismo da cesta que Mamãe Margarida sempre carrega no braço. Mesmo no novo pôster da Estreia, sua marca distintiva é a cesta pendurada no braço. Todos nós estamos acostumados a vê-la assim, Mamãe Margarida. Sem a cesta, o lenço na cabeça e o vestido de camponesa pobre, ela não se pareceria com ela mesma.
A cesta era feita de vime trançado com muito cuidado. Ela carregava enxovais para os netos, pães recém-assados e lençóis limpos e cheirosos.
Mas em 3 de novembro de 1846, como Dom Bosco conta em suas Memórias do Oratório, quando ele e sua mãe desceram dos Becchi para Turim para acolher os jovens abandonados da cidade, Mamãe Margarida encheu a cesta com seu enxoval de casamento, cuidadosamente dobrado e, no meio, colocou alguns ramos de lavanda. No fundo, bem escondido sob o forro de tecido, ela escondeu seu pequeno tesouro: um pequeno pacote de veludo com dois anéis e um pingente de ouro.
Com essas poucas posses, puderam atender às primeiras necessidades do Oratório. Mamãe Margarida tinha um coração tão grande como todas as colinas de Asti e as roupas começaram a desaparecer, transformando-se em camisas e roupas íntimas para os meninos. Curioso foi o destino do vestido de noiva que se tornou a primeira toalha do altar da Capela Pinardi e depois um lençol para um paciente com cólera.
Mas a cesta não estava vazia, ela continha o aroma de todas as coisas boas e belas de sua vida.

O baú de lembranças felizes
No final do ano, todos nós deveríamos ter uma cesta como essa. Pendurada em nossas mentes e corações. Uma cesta como um baú de tesouros de lembranças felizes. Deveríamos enchê-la com o assombro da dança da vida que passou rapidamente: as pessoas que nos fizeram bem, os eventos de graça, os encontros que nos deram fôlego e coragem, as certezas, as esperanças e, por baixo de tudo, o ouro precioso da presença de Deus.
Em minha cesta, encontrei muitas coisas pelas quais agradecer ao Senhor da Vida, nosso bom Deus e Pai. E, certamente, como acontece na vida de todas as pessoas, e também na de vocês que me leem, nem tudo o que experimentamos em um ano produziu alegria. Há também tristezas, dificuldades, exigências, perdas, mas tudo isso, vivido com fé, é iluminado de maneira preciosa.
            • Na minha cesta, encontro muitos esforços, tanto pessoais quanto daqueles que me ajudam na animação e no governo da Congregação, que serviram para dar vida, muita vida: pudemos ajudar tantas pessoas, tantas crianças e jovens em todo o mundo salesiano, encorajando os meus irmãos e a Família Salesiana a continuar no caminho da fidelidade salesiana. A cesta está cheia de tantas doações de tantas pessoas em todo o mundo, nas 135 nações e nas milhares de obras de toda a Família Salesiana em todo o mundo.
            • Na minha cesta deste ano está a visita de Dom Bosco ao centro para menores (a antiga Generala que Dom Bosco visitou com o P. Cafasso), e da qual voltei para casa com o coração pesado e cheio de tristeza por estar lá com aqueles jovens (que espero que logo superem essa situação), mas com a alegria de saber que eles conseguirão. A saudação do jovem que me perguntou: “Quando vai voltar?” está gravada em minha memória. E voltarei em breve.
            • Em minha cesta está a alegria de tantas viagens feitas durante o ano – desta vez, novamente para os cinco continentes, já que estou de volta à Austrália. Eu poderia escrever páginas sobre todas as viagens. Vou mencionar apenas minha visita ao Peru, duas vezes em fevereiro, ao planalto de Huancayo, com seu frio e suas colinas e o encontro com mais de mil jovens, a uma altitude de 2.500 metros, e o imenso calor da cidade do calor eterno (como eles gostam de dizer) que é Piúra, onde encontrei uma devoção a Maria Auxiliadora que me emocionou.
            • Minha cesta contém a alegria de me ver em Viedma, na Argentina, cinco meses após a canonização do Salesiano Coadjutor Santo Artêmides Zatti e de refazer os caminhos que ele percorreu e viver onde ele viveu e fez da santidade uma realidade na vida cotidiana.
            • E a cesta, no fundo do meu coração, contém este ano a experiência mais profunda que um ser humano pode ter. A experiência de perder a mãe, especialmente quando o pai já foi para o céu. Você realmente sente que o “cordão umbilical” que o sustentou não apenas até ser trazido ao mundo, mas durante toda a sua vida, foi permanentemente cortado. Mas também vivenciei isso, com a graça do Senhor, como uma perda, certamente, mas cheia de significado, cheia de esperança e com imensa gratidão ao Senhor da vida por uma vida longa e bela, tanto no caso de meu pai quanto no de minha mãe. Como posso não agradecer ao Senhor por isso?
            • Minha cesta deste ano contém a imensa alegria dos preciosos dias passados em Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude. Mais de um milhão de jovens deram um testemunho precioso de humanidade e humanismo, da capacidade de viver em harmonia, amizade e paz, apesar de serem muito diferentes, vindos de todas as partes do mundo. Que grande lição eles nos ensinam.
            • E, finalmente, minha cesta deste ano contém um profundo ato de fé e obediência. Sem dúvida, pela fé, o Santo Padre o fez ao me nomear cardeal da Santa Igreja Romana. E certamente por fé, e com a certeza de que nosso Deus acompanha a vida de cada um de nós da maneira única que só Ele conhece, aceitei esse desígnio e essa obediência. Certamente com gratidão e com a promessa de fidelidade e lealdade ao Vigário de Cristo, como nos é declarado quando recebemos o anel cardinalício. Somente na fé é possível viver dignamente tal coisa.
Como podem ver, meus amigos, minha cesta está cheia. Tenho certeza de que o mesmo acontece na vida de cada um de vocês. Essa é a grande dádiva da vida por parte de Deus.
Desejo a vocês um tempo abençoado neste mês. E desejo-lhes que, enquanto aguardam a vinda de Jesus Cristo, continuem a trabalhar como Família Salesiana para garantir que o nosso mundo seja purificado do ódio e da discórdia e preenchido com o espírito cristão, para que possamos viver sempre em paz uns com os outros.




A memória do futuro

Nós temos um sonho. E é a nossa maior riqueza

Há duzentos anos, um menino de nove anos, pobre e sem outro futuro senão ser camponês, teve um sonho. Ele o contou pela manhã para sua mãe, avó e irmãos, que riram dele. A avó concluiu: “Não se deve dar atenção aos sonhos”. Muitos anos depois, aquele menino, João Bosco, escreveu: “Eu era da opinião de minha avó, mas nunca consegui tirar aquele sonho da cabeça.”
Porque não era um sonho como tantos outros e não morreu ao amanhecer.
Ele voltou e voltou de novo. Com uma carga de energia avassaladora. Foi uma fonte de alegre segurança e força inesgotável para João Bosco. A fonte da sua vida.
No processo diocesano para a causa de beatificação de Dom Bosco, o Padre Rua, seu primeiro sucessor, testemunhou: “Lúcia Turco, membro de uma família onde Dom Bosco costumava entreter-se com os irmãos dela, me contou que numa manhã o viram chegar mais alegre do que de costume. Quando lhe perguntaram qual era a causa, ele respondeu que havia tido um sonho durante a noite, que o havia deixado muito feliz. Pediram-lhe que contasse o sonho. Ele falou que tinha visto uma Senhora vindo em sua direção, com um rebanho muito grande atrás de si, que se aproximou dele, chamou-o pelo nome e disse: “Oi, Joãozinho: confio todo esse rebanho aos teus cuidados”. Soube então por outros que ele perguntou: – Como vou cuidar de tantas ovelhas? E de tantos cordeiros? Onde encontrarei pastagens para mantê-los? A Senhora lhe respondeu: – Não tenhas medo, eu te ajudarei; e depois desapareceu.
A partir daquele momento, seu desejo de estudar para se tornar padre se tornou mais ardente; mas surgiram sérias dificuldades por causa da pobreza de sua família e também por causa da oposição de seu meio-irmão Antônio, que gostaria que ele trabalhasse no campo como ele…”
De fato, tudo parecia impossível, mas a ordem de Jesus tinha sido “imperiosa” e a assistência de Nossa Senhora tinha sido docemente garantida.
O P. Lemoyne, primeiro historiador de Dom Bosco, de fato resumiu o sonho da seguinte forma: “Pareceu-lhe ver o Divino Salvador vestido de branco, radiante com a mais esplêndida luz, no ato de conduzir uma multidão inumerável de jovens. Voltando-se para ele, disse: – ‘Venha cá: coloque-se à frente desses jovens e conduza-os você mesmo’. – ‘Mas eu não sou capaz’, respondeu João. O Divino Salvador insistiu imperiosamente até que João se colocou à frente daquela multidão de rapazes e começou a conduzi-los exatamente como lhe havia sido ordenado.”
No seminário, Dom Bosco escreveu uma página de admirável humildade como motivação para a sua vocação: “O sonho de Morialdo sempre me impressionou; na verdade, ele renovou-se em outras ocasiões de modo muito mais claro, de modo que, se quisesse acreditar nele, deveria escolher o estado eclesiástico, para o qual achava que eu estava inclinado: mas não queria acreditar em sonhos, e o meu modo de vida e a absoluta falta das virtudes necessárias para esse estado tornavam essa decisão duvidosa e muito difícil”.
Podemos ter certeza: ele havia reconhecido o Senhor e sua Mãe. Apesar de sua modéstia, ele não duvidava de forma alguma de que havia sido visitado pelo Céu. Tampouco duvidava de que essas visitas tinham a intenção de revelar a ele seu futuro e o de seu trabalho. Ele mesmo disse: “A Congregação Salesiana não deu um passo sem ser aconselhada a fazê-lo por um fato sobrenatural. Não chegou ao ponto de desenvolvimento em que se encontra sem uma ordem especial do Senhor. Toda a nossa história passada, poderíamos ter escrito antecipadamente em seus mais humildes detalhes…”.
É por isso que as Constituições Salesianas começam com um “ato de fé”: “Com sentimento de humilde gratidão, cremos que a Sociedade de São Francisco de Sales não nasceu de simples projeto humano, mas por iniciativa de Deus”.

O Testamento de Dom Bosco
O próprio Papa ordenou a Dom Bosco que escrevesse o sonho para seus filhos. Ele começou assim: “Para que servirá então este trabalho? Servirá de norma para superar as dificuldades futuras, aprendendo as lições do passa­do; servirá para dar a conhecer como o próprio Deus conduziu todas as coisas a cada momento; servirá de ameno entretenimento para meus filhos quando lerem as aventuras em que andou metido seu pai; e haverão de lê-las com mais gosto quando, cha­mado por Deus a prestar conta dos meus atos, já não estiver entre eles.”
Dom Bosco revela claramente sua intenção de envolver o leitor na aventura narrada, a ponto de fazê-lo participar dela como uma história que lhe diz respeito e que ele, atraído pela narrativa, é chamado a prosseguir. A narração do sonho torna-se claramente o “testamento” de Dom Bosco.
Aqui está a missão: a transformação do mundo a partir dos menores, dos mais jovens, dos mais abandonados. Há o método: bondade, respeito, paciência. Há a segurança da forte proteção da Santíssima Trindade e da terna e maternal proteção de Maria.
Nas Memórias do Oratório, Dom Bosco conta que vinte anos depois do primeiro sonho, em 1824, ele teve naquela noite outro sonho, que parece um apêndice do que tive nos Becchi aos 9 anos. Sonhei que estava no meio de uma multidão de lobos, cabras e cabritos, cordeiros, ovelhas, bodes, cães e pássaros. Faziam todos juntos um barulho, uma desordem, ou melhor, uma inferneira de espantar os mais corajosos. Ia fugir, quando uma senhora, muito bem trajada à moda de pastorinha, fez um gesto para que seguisse e acompanhasse o estranho rebanho; enquanto isso ela se punha à frente.
Depois de muito andar, encontrei-me num prado onde os animais saltitavam e comiam juntos, sem que nenhum deles tentasse fazer mal aos outros.
Esgotado de cansaço, queria sentar-me à beira de um caminho aí perto, mas a pastorinha convidou-me a continuar andando. Após andar um pouco, encontrei-me em vasto pátio rodeado de pórticos, em cuja extremidade se erguia uma igreja. Percebi então que quatro quintos dos animais haviam-se transformado em cordeiros. O número deles tornou-se depois muito maior. Naquele momento chegaram alguns pastorzinhos para vigiá-los. Mas ficavam pouco tempo e iam-se embora. Aconteceu então uma coisa maravilhosa. Muitos cordeiros convertiam-se em pastorzinhos, que cresciam e passavam a tomar conta dos outros. Eu queria ir embora, mas a pastora me convidou a olhar para o sul. Olha outra vez – disse-me. Olhei de novo. Vi então uma igreja estupenda e alta. No interior da igreja havia uma faixa branca, na qual estava escrito em caracteres garrafais: “Hic domus mea, inde gloria mea” [aqui é minha casa, daqui sairá a minha glória].
É por isso que, quando entramos na Basílica de Maria Auxiliadora, entramos no sonho de Dom Bosco.
Que pede para se tornar o “nosso” sonho.




Desejo continuar servindo aos outros… de uma maneira diferente. MINHA NOMEAÇÃO COMO CARDEAL

Sinto que compartilho a afirmação de 1884 do nosso santo Fundador: “Vejo cada vez mais o futuro glorioso que está preparado para a nossa Sociedade, a extensão que terá e o bem que poderá realizar”.

Caros amigos do carisma salesiano, que a minha saudação sincera, fraterna e afetuosa chegue a todos e a cada um de vocês.
Foi-me “sugerido” pelo Boletim Salesiano preparar esta saudação não como das outras vezes, contando algo significativo que vivi, mas falando de mim, desta nova realidade que me espera. E experimentei algo que havia estudado sobre a pessoa de nosso pai Dom Bosco. Era difícil para ele falar de si mesmo e ainda mais difícil expressar seus sentimentos. No meu caso, devo admitir que é um pouco difícil para mim falar ou escrever sobre os últimos fatos que me aconteceram; mas admito que, mais cedo ou mais tarde, tenho de fazê-lo, e a mensagem do Boletim Salesiano que chega às mãos e aos corações de tantos amigos do carisma de Dom Bosco é uma boa maneira de enviar essa mensagem pessoal.
Depois da notícia inesperada (especialmente para mim), com a qual o Santo Padre Francisco também anunciou o meu nome entre as 21 pessoas que ele escolheu para serem “criadas” como Cardeais da Igreja no próximo Consistório de 30 de setembro, milhares de pessoas se perguntaram, especialmente entre os Salesianos de Dom Bosco e os membros da Família Salesiana em todo o mundo: e agora, o que acontecerá? Quem acompanhará a vida da Congregação em um futuro próximo? Que passos a aguardam? Vocês podem compreender que essas são as mesmas perguntas que eu também tenho feito a mim mesmo, enquanto agradeço ao Senhor com fé por esse dom que o Papa Francisco nos concedeu como Congregação Salesiana e como Família de Dom Bosco.
Com uma leitura de fé, conhecendo as grandes coisas que Deus fez e o que sabemos por meio de sua Palavra, pode-se dizer que Deus ama as surpresas.  Normalmente, na Bíblia, Deus diz: “Retirai-vos! O caminho se revelará”.  Uma coisa importante que aprendemos com Dom Bosco: que nada nos perturbe e que confiemos na Providência de Deus.
Sinto que compartilho a declaração de 1884 do nosso santo fundador: “Vejo cada vez mais o futuro glorioso que está preparado para a nossa Sociedade, a extensão que ela terá e o bem que poderá realizar”.
Tive a oportunidade de falar pessoalmente com o Santo Padre, o Papa Francisco, após o anúncio do Ângelus, assegurando-lhe minha disponibilidade para contar comigo em qualquer serviço. Respondi como Dom Bosco fez quando lhe pediram para construir o templo do Sagrado Coração em Roma, no caso dele um Dom Bosco idoso e doente, que também sentia o peso e a responsabilidade de uma Congregação incipiente: Dom Bosco respondeu: “Se esta é a ordem do Papa, eu obedeço!”
Com simplicidade, eu disse ao Santo Padre que nós, salesianos, aprendemos com Dom Bosco a estar sempre disponíveis para o bem da Igreja e, em particular, para o que o Papa pedir. Portanto, enquanto agradeço a Deus por este dom que pertence a toda a Congregação e à Família Salesiana, expresso a minha gratidão ao Papa Francisco assegurando-lhe, em nome de todos os membros da nossa grande Família, uma oração mais fervorosa e intensa. Oração que, como já disse, será sempre acompanhada de nosso sincero e profundo afeto.

O que acontecerá agora?
Devo compartilhar com vocês que fiquei profundamente tocado pela sensibilidade do nosso Papa Francisco ao perceber que meu serviço como Reitor-Mor não mudaria imediatamente de um dia para o outro. Por essa razão, cerca de meia hora após o anúncio da nomeação durante a oração do Ângelus no domingo, 9 de julho, o Santo Padre me enviou uma carta na qual falava do tempo necessário para me preparar para o Capítulo Geral de nossa Congregação antes de assumir o que ele pretende me confiar. Como sempre, o Santo Padre se mostrou atento, cordial, profundo admirador do carisma de Dom Bosco e particularmente afetuoso. Sentimentos que, em meu nome e em nome de toda a Família Salesiana, retribuí.
Gostaria de compartilhar com vocês as disposições que o Santo Padre me comunicou.
O Papa decidiu que, para o bem da nossa Congregação, após o Consistório de 30 de setembro de 2023, poderei continuar o meu serviço como Reitor-Mor até 31 de julho de 2024. Após essa data, apresentarei minha renúncia como Reitor-Mor, conforme prescrito por nossas Constituições e Regulamentos, a fim de assumir das mãos do Santo Padre o serviço que ele me confiará.
Foi isso que o próprio Papa me comunicou. Poderemos antecipar o 29º Capítulo Geral em um ano, ou seja, em fevereiro de 2025. Meu Vigário, o P. Stefano Martoglio, assumirá o governo da Congregação ad interim, conforme estipulado em nossas Constituições, até a celebração do CG29. Por fim, resta-me dizer e responder a outra pergunta que muitos de vocês devem ter: que tarefa o Santo Padre me confiará? O Papa Francisco ainda não me disse. Além disso, com essa ampla margem de tempo, acho que é a coisa mais oportuna.
Em todo caso, peço a todos vocês, queridos irmãos e membros dos grupos da nossa Família Salesiana, que continuem a intensificar a oração. Especialmente pelo Papa Francisco. Ele mesmo o pediu expressamente no final da audiência privada que me concedeu.
Por fim, peço-lhes também que rezem por mim, colocado diante da perspectiva de um novo serviço na Igreja que, como filho de Dom Bosco, aceito em obediência filial, sem tê-lo procurado, porque acredito verdadeiramente que, na Igreja, os serviços que prestamos não podem e nunca devem ser procurados ou exigidos como se se tratasse de fazer uma carreira pessoal. O que é próprio do “mundo” é impróprio para nós como servos em nome de Jesus. E devemos diferir (espero que muito) de alguns dos padrões do mundo. Testemunha de tudo isso é nosso amado Pai Dom Bosco perante o Senhor Jesus.
Agradeço o carinho e a proximidade expressos nessas semanas com as muitas mensagens que recebi de todo o mundo.
Sinto como se fossem dirigidas a mim as mesmas expressões que Nossa Senhora disse a Dom Bosco no sonho dos nove anos – cujo segundo centenário será celebrado no próximo ano: “No devido tempo você entenderá tudo”. E sabemos que para o nosso Pai isso aconteceu quase no fim de sua vida, diante do altar de Maria Auxiliadora na Basílica do Sagrado Coração de Jesus, que havia sido consagrada no dia anterior, em 16 de maio de 1887. Da Basílica de Maria Auxiliadora, envio-lhes uma saudação afetuosa e agradecida, confiando todos e cada um a Ela, a Mãe, que continuará a nos acompanhar e apoiar. Como sempre, eu os saúdo com imenso afeto.




Filhos de família

Redescobrir o grande valor da proximidade, da amizade, da alegria simples da vida cotidiana, o valor da partilha, da conversa e da comunicação.

Escrevo estas linhas, caros amigos de Dom Bosco e do seu precioso carisma, olhando para o projeto do Boletim Salesiano de setembro. A minha saudação é a última coisa a ser inserida: eu sou o último a escrever, dependendo do conteúdo do mês. Exatamente como fazia Dom Bosco.
Neste mês, no início do ano acadêmico nas escolas, nos oratórios, fico contente de ver que as mensagens têm um sabor missionário (e por isso se fala das Filipinas e de Papua Nova Guiné), e também a simplicidade de uma “missão salesiana” com o sabor local da casa de Saluzzo.
A leitura do boletim me faz apreciar algo que é muito nosso, muito salesiano, e que certamente agrada a muitos de vocês: refiro-me ao grande valor da proximidade, da amizade, da alegria simples na vida cotidiana, o valor da partilha, da conversa e da comunicação.  A grande dádiva de ter amigos, de saber que não se está sozinho. O sentir-se amados por tantas pessoas boas em nossa vida.
E pensando em tudo isso, me veio à mente um testemunho sincero e muito honesto de uma jovem que escreveu ao padre Luís Maria Epicoco e que ele publicou em seu livro La luce in fondo [A luz ao fundo]. É um testemunho que eu gostaria que vocês conhecessem porque o considero a antítese do que tentamos construir todos os dias em cada casa salesiana. Essa jovem sente, em certo sentido, que não há sucesso ou realização se faltar o mais humano dos encontros, das belas relações humanas; e este ano escolar que estamos começando nos traz isso de volta.
Essa jovem escreve sobre si mesma: “Querido padre, estou escrevendo para o senhor porque gostaria que me ajudasse a entender se a nostalgia que sinto nesses meses diz que sou estranha ou que algo importante mudou para mim. Talvez seja útil se eu lhe falar um pouco sobre mim. Decidi sair de casa quando tinha apenas 18 anos. Era uma maneira de escapar de um ambiente que parecia tão estreito, tão sufocante para meus sonhos. Então, cheguei a Milão em busca de trabalho. Minha família não podia manter meus estudos. Era também por isso que eu estava com raiva deles. Todos os meus amigos estavam em um frenesi para escolher uma faculdade. Eu não tinha escolha porque ninguém podia me sustentar. Procurei um emprego para viver e sonhei durante anos com a chance de estudar. Consegui e, com imensos sacrifícios, me formei. No dia da minha formatura, não quis que minha família comparecesse. Achei que os camponeses com apenas o ensino médio não entenderiam nada sobre meus estudos. Só disse à minha mãe que tudo havia corrido bem e senti suas lágrimas que, por um momento, me despertaram um sentimento de culpa que eu nunca havia sentido antes. Mas era uma questão de pouca importância. Eu me realizei com minhas próprias forças e nunca pude ou quis depender de ninguém. Até mesmo no trabalho eu consegui avançar porque optei por me aliar a mim mesma.
Passei anos assim. E não entendo por que só agora, em meio ao confinamento desta pandemia, surgiu dentro de mim uma saudade da minha família. Sonho em contar a eles tudo o que nunca lhes contei. Sonho em abraçar meu pai. À noite, acordo e me pergunto se é possível viver uma vida emancipada de relacionamentos tão significativos. Mesmo nos relacionamentos que tive ao longo dos anos, nunca permiti que eles cruzassem a fronteira da verdadeira intimidade. Mas agora tudo parece tão diferente para mim. Agora que não posso escolher sair de casa ou ir até quem considero importante, despertei para a realização da grande mentira que tenho vivido dentro de mim todo esse tempo.
Quem somos nós sem relacionamentos? Talvez apenas pessoas infelizes em busca de afirmação. Agora percebo que tudo o que fiz, na realidade, foi porque esperava que alguém me dissesse quem eu realmente era. Mas os únicos que poderiam me ajudar a responder a essa pergunta foram os que eu cortei, encerrando os relacionamentos. E agora eles estão arriscando suas vidas, a centenas de quilômetros de distância de mim. Se eu tivesse que morrer, gostaria de estar com eles e não com meus sucessos”.

Uma alegria compartilhada
Agradeço a honestidade e a coragem dessa jovem que me fez pensar muito sobre nossa realidade atual. Ela me fez refletir sobre o estilo de vida que estamos levando em tantas famílias em que o importante é ter bons resultados, alcançar uma boa situação econômica, preencher nossos dias com coisas para fazer de modo que tudo seja lucrativo etc.; mas pagamos preços muito altos para viver sempre, e cada vez mais, não fora de casa, mas fora de nós mesmos. Há o perigo de viver sem um centro, ou seja, “fora do centro”. E acreditem, queridos amigos, vocês não podem imaginar o quanto isso se encontra especialmente nos meninos e meninas de nossas casas, nossos pátios e nossos oratórios.
O segundo sucessor de Dom Bosco, P. Paulo Álbera, recorda: “Dom Bosco educava amando, atraindo, conquistando e transformando. Ele nos envolvia a todos quase que inteiramente em uma atmosfera de contentamento e felicidade, da qual as mágoas, a tristeza e a melancolia eram banidas… Escutava as crianças com a maior atenção, como se as coisas que elas diziam fossem muito importantes”.
O primeiro prazer da vida é ser felizes juntos: “A alegria compartilhada é dupla”. A palavra de ordem do educador é “estou bem com vocês”. Uma presença que é intensidade de vida.
Um biógrafo de Dom Bosco, o P. Ceria, conta que um ilustre prelado, depois de uma visita a Valdocco, declarou: “Vocês têm uma grande fortuna em sua casa, que ninguém mais tem em Turim e nem em outras comunidades religiosas. Vocês têm uma sala na qual quem entra cheio de aflição sai radiante de alegria”.  O padre Lemoyne anotou a lápis: “E milhares de nós fizemos a experiência”.
Um dia Dom Bosco disse: “Entre nós, os jovens agora parecem filhos da família, todos pequenos donos de casa; fazem dos interesses da Congregação os seus próprios interesses. Dizem a nossa igreja, o nosso colégio, tudo o que diz respeito aos salesianos, eles o chamam de nosso”.
É por isso que este novo ano é uma oportunidade para nos cuidarmos e cuidarmos de nós mesmos naquilo que é mais essencial e mais importante. Para a nossa família.




Carta do Reitor-Mor após sua nomeação como cardeal

À atenção dos meus irmãos salesianos (sdb) À atenção da Família Salesiana

Meus queridos irmãos e irmãs: recebam a minha saudação fraterna, cheia de afeto sincero e sentido.
Depois da notícia inesperada (especialmente para mim), na qual o Santo Padre, o Papa Francisco, anunciou também o meu nome entre as 21 pessoas escolhidas por ele para serem “criados” Cardeais da Igreja no próximo Consistório de 30 de setembro, milhares de pessoas devem ter-se perguntado: O que acontece agora? E como fica a Congregação no futuro próximo? Vocês podem entender que eu me fiz essas mesmas perguntas, ao mesmo tempo em que, com fé, ofereci ao Senhor esse presente que o Papa Francisco nos deu como Congregação Salesiana e como Família de Dom Bosco. Não devemos ter dúvidas do quanto o Papa nos ama; da mesma forma, o Papa Francisco sabe o quanto todos nós o amamos e como o amparamos, na medida do possível, com a nossa oração e o nosso afeto.
Meia hora depois do anúncio que fez no Ângelus do último domingo, 9 de julho, o Santo Padre fez-me chegar uma carta em que me pedia para ir falar com ele o mais rápido possível, a fim de concordarmos sobre o tempo necessário para o meu serviço como Reitor-Mor para o bem, antes de tudo, da Congregação. Ele mesmo me dizia nessa carta sobre a preparação do próximo Capítulo-Geral.
Ontem à tarde fui recebido pelo Papa Francisco com um diálogo fraterno de afeto recíproco e agora estou em condições de compartilhar com toda a Congregação Salesiana e com a nossa Família no mundo, as disposições concretas segundo a vontade do Santo Padre.

Essas disposições são as seguintes:
•           poderemos antecipar o 29° Capítulo Geral em um ano, ou seja, em fevereiro de 2025;
•           para o bem da nossa Congregação, o Papa viu com bons olhos que, após o Consistório de 30 de setembro, eu possa continuar como Reitor-Mor até 31 de julho de 2024, ou seja, até o final da sessão plenária do Conselho-Geral do tempo de verão europeu;
•           após essa data, apresentarei a minha renúncia como Reitor-Mor por ter sido chamado pelo Santo Padre para o serviço que ele me confiará. Foi isso o que ele me comunicou;
•           de acordo com o artigo 143 das nossas Constituições, por motivo de “cessação do cargo de Reitor-Mor”, tendo sido chamado pelo Papa Francisco para outro serviço, o Vigário, P. Stefano Martoglio, assumirá o governo da Congregação até a celebração do CG29;
•           o Capítulo-Geral 29 será convocado por mim, pelo menos um ano antes da sua celebração, conforme estabelecido em nossas Constituições e Regulamentos (Reg. 111), e o Vigário, P. Stefano, o presidirá;
•           durante esse tempo, continuaremos com o programa estabelecido na animação e no governo da Congregação, mas aumentando os esforços dos membros do Conselho-Geral e de algum visitador extraordinário nomeado pelo Reitor-Mor, a fim de serem feitas todas as visitas extraordinárias (inclusive aquelas que corresponderiam ao ano de 2025). Assim fazendo, será possível chegar ao CG29 com uma visão completa do momento presente de toda a Congregação;
•           para os demais elementos relacionados com o Capítulo-Geral, darei informações detalhadas quando se tornar efetiva a sua convocação oficial.

Resta-me dizer, enfim, o que muitos de vocês podem estar se perguntando: o que o Santo Padre vai me confiar? Ele ainda não me disse, e entendo que, com tanto tempo à nossa frente, essa é a melhor coisa a fazer. Peço a todos os meus irmãos e irmãs Salesianos e à nossa querida Família Salesiana que continuemos a intensificar a nossa oração. Antes de tudo, pelo Papa Francisco. Foi o que ele me pediu na sua despedida. Pediu-nos que rezássemos por ele. Peço-lhes também que rezem pelo que viveremos neste ano como Congregação e como Família Salesiana.
E, certamente, peço-lhes ainda que rezem por mim diante da perspectiva do novo serviço na Igreja que, como filho de Dom Bosco, aceito em obediência, sem tê-lo buscado ou desejado. Nosso amado pai Dom Bosco é testemunha disso diante do Senhor Jesus.
E desde este lugar, a Basílica de Maria Auxiliadora, Ela, a Mãe, continuará a acompanhar-nos. Acredito, como Dom Bosco no sonho dos nove anos – cujo segundo centenário será celebrado no próximo ano – que “a seu tempo tudo compreenderemos”. Em nosso Pai Dom Bosco, isso aconteceu no final de sua vida, diante do altar de Maria Auxiliadora na Basílica do “Sagrado Coração de Jesus”, que fora consagrada no dia anterior, naquele 16 de maio de 1887. Coloquemos tudo nas mãos do Senhor e da sua Mãe.
Uma saudação com imenso afeto,

Prot. 23/0319
Turim, 12 de julho de 2023




Isso é amor…

Esse é o bem, simples e silencioso, que Dom Bosco fez. Este é o bem que continuamos a fazer juntos.

Amigos, leitores do Boletim Salesiano: como todos os meses, os senhores recebem a minha cordial saudação, uma saudação que eu preparo deixando falar o meu coração, um coração que quer continuar a olhar o mundo salesiano com aquela esperança e certeza que o próprio Dom Bosco tinha, de que juntos podemos fazer muito bem e que o bem que se faz deve ser conhecido.
Vejo em muitos salesianos a “paixão” de Dom Bosco pela felicidade dos jovens. Uma fórmula que se tornou famosa tenta condensar o sistema educativo de Dom Bosco em três palavras: razão, religião, amor. Escola, igreja, pátio. Uma casa salesiana é tudo isso realizado em pedra. Mas o oratório de Dom Bosco é muito mais. É um arsenal de estímulos e criatividade: música, teatro, esporte e passeios que são verdadeiras imersões na natureza. Tudo temperado com um afeto verdadeiro, paternal, paciente e entusiasmado.

Mamãe Coragem
Bem, enquanto leio com dor e preocupação a crônica do Sudão, onde a situação de todos é muito difícil, e também a situação salesiana, hoje gostaria de oferecer mais um belo testemunho, embora desta vez eu não tenha sido testemunha ocular, mas conto o que me foi referido.
A cena se passa em Palabek (Uganda), onde, quando chegaram os primeiros refugiados, há cinco anos, nós, salesianos de Dom Bosco, quisemos ir com os primeiros refugiados. A tenda era o alojamento; e a capela para a oração e a celebração da primeira Eucaristia era a sombra de uma árvore.
Todos os dias centenas e centenas de refugiados do Sudão chegavam a Palabek. Primeiro por causa do conflito no Sudão do Sul. Anos depois, eles continuam a chegar, agora por causa do conflito no Sudão (isto é, no Sudão do Norte).
Quem me disse o que lhes estou contando foi o Conselheiro Geral para Missões, que tinha ido a Palabek alguns dias antes para continuar a acompanhar essa presença em um campo de refugiados em que dezenas de milhares já foram acolhidos.
Há dez dias, uma senhora chegou com onze filhos. Sozinha, sem nenhuma ajuda, ela atravessou várias regiões cheias de perigos para ela e para as crianças; ela andou mais de 700 quilômetros no último mês e o grupo de crianças estava crescendo. E é sobre isso que quero falar, porque isso é HUMANIDADE e isso é AMOR. Essa senhora chegou a Palabek com onze crianças sob seus cuidados e apresentou todas elas como seus filhos. Mas, na verdade, seis eram filhos dela, de seu ventre. Três outros eram filhos de seu irmão que havia morrido recentemente e que ela havia tomado a seu cargo, e dois outros eram pequenos órfãos que ela havia encontrado na rua, sozinhos, sem ninguém e, é claro, sem documentos (quem consegue pensar em documentos e documentação quando as coisas mais essenciais para a vida estão faltando?
Em algumas ocasiões, uma mãe que deu sua vida para defender seu filho foi chamada de “mamãe coragem”. Nesse caso, eu gostaria de dar a essa mãe de onze filhos o título de Mamãe Coragem, mas, acima de tudo, de uma mulher que sabe muito bem – nas “entranhas de seu coração” – o que é amar, até mesmo a ponto de sofrer, porque ela vive e viveu na pobreza absoluta com seus onze filhos.
Bem-vinda a Palabek, Mamãe Corgem. Bem-vinda à presença salesiana. Sem dúvida, será feito todo o possível para que não falte comida a essas crianças, e depois um lugar para brincar, rir e sorrir – no oratório salesiano – e um lugar em nossa escola.
Esse é, o bem simples e silencioso, que Dom Bosco fez. Esse é o bem que continuamos a fazer juntos porque, acreditem, sentir que não estamos sozinhos, ter a certeza de que muitos de vocês veem com prazer e simpatia o esforço que fazemos todos os dias em benefício dos outros, também nos dá muita força humana e, sem dúvida, o Bom Deus a faz crescer.
Desejo-lhes um bom verão. Sem dúvida, o nosso, o meu também, será mais sereno e confortável do que o dessa mãe de Palabek, mas acho que posso dizer que, ao pensar nela e em seus filhos, construímos, de alguma forma, uma ponte.
Sejam muito felizes.