26 Set 2025, Sex

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Parte I

            No dia 20 de agosto de 1862, após as orações da noite, Dom Bosco deu alguns avisos de índole disciplinar e em seguida disse:

            – Quero lhes contar um sonho que tive algumas noites atrás (talvez seja a noite que precedeu a festa da Assunção de Maria Santíssima).
            Sonhei que estava com todos os jovens em Castelnuovo d’Asti, na casa de meu irmão. Enquanto todos se recreavam, aproximou-se de mim um desconhecido e convidou-me a ir com ele. Segui-o, e levou-me a um prado, perto do pátio, e lá chegando indicou-me no meio da relva uma grande cobra, de sete ou oito metros de comprimento, e de grossura extraordinária. Fiquei horrorizado e queria fugir:
            – Não, não, disse-me ele; não fuja; venha cá e veja.
            – E como, respondi; quer que me atreva a me aproximar daquela fera? Não sabe que é capaz de jogar-se sobre mim e devorar-me num instante?
            – Não tenha medo, não lhe fará dano algum; venha comigo.
            – Ah! Não sou tão louco de lançar-me num perigo desses.
            – Então, continuou aquele desconhecido, fique aqui parado! E foi buscar uma corda e voltou com ela, dizendo:
            – Agarre bem esta corda por uma ponta e segure-a bem forte com as mãos; eu agarrarei a outra ponta e irei do outro lado, e a levantaremos por cima da cobra.
            – E depois?
            – Depois a faremos cair nas costas dela.
            – Ah, não! Por caridade! Se fizermos tal coisa, a cobra pulará em cima de nós e nos despedaçará.
            – Não, não; deixe isso comigo.
            – Ai, ai! Não quero ter esta satisfação, que pode custar-me a vida. – E já queria fugir, mas aquele fulano insistiu de novo, garantiu que não era preciso ter medo, e de tanto insistir, acabei ficando e aceitando fazer sua vontade. Entretanto ele passou do outro lado do monstro, levantou a corda e com ela deu uma chicotada nas costas da cobra. A cobra dá um pulo, virando a cabeça para trás, para morder a corda, mas fica presa nela com um nó. Então aquele homem gritou:
            – Segure! Segure e não deixe a corda escapar. – Foi até uma pereira e amarrou nela a extremidade da corda que tinha nas mãos; correu depois para junto de mim, pegou a extremidade que eu segurava e foi amarrá-la à grade de uma janela da casa. Entretanto, a cobra dava pulos, agitava-se furiosamente, e de tanto bater no chão com a cabeça e o com o corpo, suas carnes caíam aos pedaços, alguns dele atingindo grande distância. Assim continuou enquanto teve vida. E como morreu, dela não sobrou mais que o esqueleto descarnado.
            A cobra, tendo morrido, aquele mesmo fulano desamarrou da árvore e da janela a corda, formou com ela um novelo e em seguida me disse: – Preste bem atenção! – Colocou a corda numa caixa; fechou-a e depois de alguns instantes voltou a abri-la. Os jovens reuniram-se ao meu redor. Olhamos dentro da caixa e ficamos todos estupefactos. Aquela corda formava as letras Ave-Maria!
            Disse eu: – Como pode ser! Você colocou na caixa a corda de qualquer jeito, e agora aparece arrumada.
            – Pois é, disse ele; a cobra é figura do demônio, e a corda é a Ave-Maria, ou melhor, o Rosário, que é uma continuação de Ave-Maria, com que se pode enfrentar, vencer e destruir todos os demônios do inferno.
            Até aqui, concluiu Dom Bosco, é a primeira parte do sonho. Há uma segunda parte, que será mais variada e interessante para todos. Mas a hora já é avançada e, portanto, adiamos sua narração para amanhã à noite. Entretanto fixemos na memória o que disse aquele meu amigo acerca da Ave-Maria e do Rosário. Rezemo-lo devotamente em cada assalto de tentação, certos de sair sempre vitoriosos. Boa noite!


            E aqui pedimos que nos sejam permitidos alguns comentários, pois Dom Bosco não deu nenhuma interpretação a essa parte do sonho.
            A pereira de que se trata no sonho é a mesma na qual João criança amarrava muitas vezes uma corda, fixando a outra extremidade a outra árvore pouco distante, para entreter com jogos de ginástica a vizinhança, e desse modo fazê-los aceitar sua catequese. Essa pereira, parece-nos estar relacionada com a árvore da qual lemos no Cântico dos Cânticos, capítulo 2, versículo 3. Sicut malus inter ligna silvarum, sic dilectus meus inter filios. (“Como a macieira entre as árvores dos bosques, assim é o meu amado entre os jovens”).
            Tirino [Jesuíta belga] e muitos outros célebres comentaristas da Sagrada Escritura notam que a macieira está aqui no lugar de qualquer árvore frutífera. Tal árvore, que expande uma sombra agradável e salubre, é um símbolo de Jesus Cristo, da sua cruz, que com sua força dá eficácia à oração e garante a vitória. Será este o motivo pelo qual uma extremidade da corda foi primeiramente amarrada na pereira? E a outra extremidade amarrada na grade da janela, não será indício de que o morador dessa casa, junto com seus filhos, receberia a missão de divulgar a prática do Rosário?
            E Dom Bosco há tempo a tinha entendido.
            Nos Becchi ele tinha instituído a festa anual do Rosário; quis que em todos os seus colégios diariamente se rezasse o Terço; e com a pregação e os impressos procurou recuperar o antigo costume do Terço em família. Estava convencido de ser o Rosário uma arma que devia trazer a vitória não apenas aos indivíduos, mas também à Igreja no seu todo. Por isso seus seguidores publicaram mais tarde todas as Encíclicas de Leão XIII sobre essa devoção tão querida por Nossa Senhora; e através do Boletim Salesiano recomendaram a prática dos desejos do Vigário de Jesus Cristo.

Reverendíssimo Padre (Rua),

            Voltando a Roma após o Congresso Eucarístico de Nápoles, fico sabendo com muito prazer que a exortação dirigida aos Párocos no Boletim Salesiana começa a dar frutos. Agradeço, portanto, Vossa Senhoria Reverendíssima; tenha certeza de que sua iniciativa agradou muito ao Santo Padre, que muito deseja que sejam valorizadas suas Encíclicas sobre o Rosário, por meio da implantação da Confraria homônima. Aos sentimentos de gratidão acrescento ainda um pedido; de vez em quando renove com poucas linhas a memória aos Párocos e Reitores de Igrejas, para que o esquecimento não faça perder de vista a fundação da Confraria do Santo Rosário.
            E Deus faça prosperar sempre Vossa Senhoria Reverendíssima, do qual continuo sendo
            Devotíssimo e Obrigadíssimomo Servo em Jesus e Maia
            Roma, Palácio Santo Ofício, 27 de novembro de 1891.
            + Frei Vicente Leão Sallua, Comissário da Gleba,
            Arcebispo de Calcedônia.


Parte II

            No dia seguinte, 22 de agosto, pedimos muitas vezes que nos contasse, se não em público, ao menos em particular aquela parte do sonho que Dom Bosco tinha calado. Não quis aquiescer. Depois de muitos pedidos, acabou aceitando e disse que à noite falaria ainda sobre o sonho. Assim o fez. Depois das orações, começou:

            Atendendo aos muitos pedidos, vou contar a segunda parte do sonho. Se não toda, ao menos o que for possível. Mas, antes de tudo, devo pôr uma condição, isto é, que ninguém escreva ou fale disso fora da casa. Falem entre si, riam, façam o que quiserem, mas só entre vocês.
            Portanto, enquanto eu e aquele indivíduo falávamos da corda, da cobra e dos seus significados, viro-me e vejo jovens recolhendo pedaços de carne da cobra e comendo-os. Imediatamente gritei:
            – Mas o que estão fazendo? Estão loucos! Não sabem que essa carne está envenenada, e lhes fará muito mal?
            Respondiam: – Não, não, é tão gostosa!
            Entretanto os que tinham comido caíam no chão, inchavam e ficavam duros como pedra. Eu estava inconformado, pois, apesar de verem essas coisas, outros e mais outros continuavam a comer. Eu gritava a um, gritava a outro, esbofeteava um, dava socos em outro, tentando impedir que comessem. Mas inutilmente. Aqui um caía, lá outro se punha a comer. Então chamei os clérigos para me ajudarem e disse-lhes que se pusessem no meio dos jovens e procurassem de todo jeito que ninguém mais comesse daquela carne. Minha ordem não teve o efeito desejado; pelo contrário, até mesmo alguns clérigos começaram a comer a carne da cobra e caíam como os outros. Eu estava fora de mim, quando vi ao meu redor grande número de jovens, nessa situação lastimável.
            Dirigi-me então àquele desconhecido e disse-lhe:
            – O que significa isso? Esses jovens sabem que essa carne traz a morte, mesmo assim querem comer. Por quê?
            Ele respondeu: – O senhor sabe bem: que animalis homo non percipit ea quae Dei sunt (“O homem animal não compreende as coisas de Deus” – 1Cor 2,14).
            – Mas agora não tem mais jeito para recuperar esses jovens?
            – Tem certamente!
            – Qual é?
            – Não há outra coisa senão o martelo e a bigorna.
            – Bigorna? Martelo? Para fazer o que com eles?
            – Precisa submeter os jovens à ação desses instrumentos.
            – Como? Tenho que pô-los sobre uma bigorna e bater neles com martelo?
            Então o outro, explicando seu pensamento, disse:
            – Eis. O martelo significa a confissão; a bigorna a santa Comunhão: precisa lançar mão desses dois meios. – Pus-me à obra e achei muito bom este remédio, mas não para todos. Muitos voltavam à vida e saravam, mas para alguns o remédio foi inútil. São aqueles que não fazem boas confissões.

            Apenas os jovens se retiraram a seus dormitórios, perguntei em particular a Dom Bosco por que sua ordem aos clérigos, que impedissem aos jovens de comer aquelas carnes, não tivera o efeito desejado. Respondeu:
            – Nem todos me obedeceram; antes, vi alguns deles, como já disse, comendo daquelas carnes.
            Praticamente esses sonhos representam a realidade da vida e com as palavras e os fatos de Dom Bosco manifestam o estado íntimo de uma, de cem comunidades, nas quais, no meio de preciosíssimas virtudes, encontram-se não poucas misérias. E não é para estranhar. Infelizmente o vício por sua natureza espalha-se muito mais que a virtude; daí a necessidade de uma vigilância constante.
            Alguém poderá observar que teria sido conveniente atenuar e até omitir algumas descrições demais chocantes, mas nós temos outra opinião. Se a história deve efetivamente cumprir sua nobre missão de mestra da vida, ela deve descrever a vida passada, como realmente aconteceu, para que as futuras gerações possam ser incentivadas a partir das virtudes praticadas por aqueles que as precederam, mas também, a partir dos erros e faltas, aprender a agir com prudência. Uma narração que represente um lado só da realidade histórica leva a um falso conceito. Erros e defeitos do passado, quando não sejam conhecidos, ou sejam apresentados em forma distorcida, voltarão a repetir-se, sem serem corrigidos. Uma apologia mal entendida não serve para nada aos benévolos e não converte os malévolos; pois só uma sinceridade ilimitada gera crédito e confiança.
            Portanto, nós, querendo expor inteiramente nosso pensamento, diremos que Dom Bosco deu ao sonho as explicações mais óbvias, mas manteve ocultas outras igualmente importantes. Não as revelou aos jovens porque talvez naquele momento não tinham relação com eles. De fato nos sonhos ele mostra não só o presente, mas também o futuro longínquo, como no sonho da Roda e outros que iremos apresentar. No entanto, as carnes estragadas daquele monstro não poderiam indicar o escândalo que faz perder a fé, a leitura de livros imorais, irreligiosos? O que representam a desobediência ao superior, a queda, o inchaço, a dureza como de pedra, senão a culpa, a soberba, a obstinação, a maldade?
            É o veneno que neles injetou aquele alimento maldito, aquele dragão descrito por Jó no capítulo 41, que os Santos Padres identificaram com Lúcifer. O versículo 15 diz assim: “O coração deles é duro como pedra.” Deste jeito torna-se o coração dos míseros envenenados, rebeldes e obstinados no mal. E qual será o remédio para essa dureza? Dom Bosco expressa-se com um símbolo um tanto obscuro, mas que substancialmente indica uma ajuda sobrenatural. Parece-nos que se possa dar a seguinte explicação: é necessário que a graça preveniente, obtida com as orações e sacrifícios dos bons, faça os corações amolecerem; que os dois sacramentos, isto é, o martelo da humildade e a bigorna da Eucaristia, em que o ferro recebe sua forma artística, possam exercer sua eficácia divina; que o martelo que bate e a bigorna que suporta concorram juntamente a completar a obra, que no caso nosso é a reforma de um coração ferido, mas que se tornou dócil. É então que, rodeado por todo lado de faíscas, volta a ser o de antes.
            Tendo expressado assim nossa ideia, retomemos as Crônicas. Com a proteção de Maria Santíssima, Dom Bosco enfrentava com segurança as investidas do inimigo infernal e, portanto, preparava seus alunos para a festa da Natividade da Mãe de Deus. No dia 29 de agosto, entregou a primeira florzinha, e depois outras cinco nas noites sucessivas. O P. Bonetti as transcreveu:

            1ª Todos façam um esforço para passar esta novena sem pecados mortais nem veniais.
            2ª Dar um bom conselho a um amigo.
            Na noite seguinte, ele mesmo deu um conselho a todos em geral, dizendo que com grande determinação cada um procurasse corrigir os maus hábitos enquanto somos jovens; que tivéssemos nos superiores uma grande confiança, seja no que se refere à alma, seja no que se refere ao corpo.
            3ª Ver se é conveniente fazer uma confissão geral; isso para quem nunca fez; quem já fez procure rezar um ato de contrição pelos pecados da vida passada.
            4ª Contou-nos aquilo que o P. Cafasso disse a um fabricante de dornas [grande vasilha de aduelas, sem tampa, destinada a pisar uva], que lhe tinha perguntado o que poderia agradar mais a Maria. Perguntou por sua vez ao fabricante: – O que é que muito agrada às mães?
            O outro respondeu:
            – Às mães, agrada muito que acariciem seus filhos.
            – Certo – retomou o P. Cafasso; respondeu correto. Se, portanto, quiser agradar a Maria, faça muitas carícias a seu Divino Filho Jesus, antes de tudo por meio de uma santa Comunhão; em seguida, afaste do coração todo pecado, mesmo venial.
            Assim disse o P. Cafasso àquele homem, e assim digo eu a vocês todos.
(MBp VII, 253-256; 257-261)