Com Dom Bosco. Sempre

Não é indiferente celebrar um Capítulo Geral em um lugar ou em outro. Certamente, em Valdocco, no “berço do carisma”, temos a oportunidade de redescobrir a gênese da nossa história e reencontrar a originalidade que constitui o coração da nossa identidade de consagrados e apóstolos dos jovens.

Na moldura antiga de Valdocco, em que tudo fala das nossas origens, sou quase obrigado a fazer memória daquele dezembro de 1859, em que Dom Bosco havia tomado uma decisão incrível, única na história: fundar uma congregação religiosa com alguns jovens.
Ele os havia preparado, mas eram ainda muito jovens. «Há muito tempo pensava em fundar uma Congregação. Eis que chegou disso se tornar realidade.» explicou Dom Bosco com simplicidade. «Na verdade, esta Congregação não está nascendo só agora: ela já existia naquele conjunto de Regras que, por costume, vocês sempre observaram… Trata-se agora de andar avante, de constituir normalmente a Congregação e de aceitar as suas Regras. Saibam, porém, que nela serão inscritos somente aqueles que, depois de terem refletido seriamente, quiserem fazer, a seu tempo, os votos de pobreza, castidade e obediência… Deixo-lhes uma semana de tempo para pensarem nisso».
À saída da reunião houve um silêncio insólito. Bem depressa, quando começaram a falar, pode-se constatar que Dom Bosco tinha razão em proceder com lentidão e prudência. Alguns murmuravam consigo mesmos que Dom Bosco queria fazer deles frades. Cagliero caminhava pelo pátio, envolvido em sentimentos contraditórios.
Mas o desejo de «permanecer com Dom Bosco» prevaleceu na maioria. Cagliero disse então a frase que se tornaria histórica: «Frade ou não frade, eu fico com Dom Bosco».
Na «conferência de adesão», que se realizou na noite de 18 de dezembro, eram em 17. Dom Bosco convocou o primeiro Capítulo Geral em 5 de setembro de 1877, em Lanzo Torinese. Os participantes eram vinte e três e o Capítulo durou três dias inteiros. Hoje, para o Capítulo de número 29, os capitulares são 227. Chegaram de todas as partes do mundo, representando todos os salesianos.
Na abertura do primeiro Capítulo Geral, Dom Bosco disse aos nossos irmãos: «O Divino Salvador diz no santo Evangelho que onde estão dois ou três reunidos em seu nome, Ele mesmo está entre deles. Nós não temos outro fim nestes encontros senão a maior glória de Deus e a salvação das almas redimidas pelo precioso Sangue de Jesus Cristo». Podemos estar certos, portanto, de que o Senhor estará em nosso meio e que conduzirá Ele mesmo as coisas de tal modo que todos se sintam à vontade.

Uma mudança de época
A expressão evangélica: «Designou doze dentre eles para ficar em sua companhia. Ele os enviaria a pregar» (Mc 3,14-15), diz que Jesus escolhe e chama aqueles que quer. Entre estes estamos também nós. O Reino de Deus se torna realidade e aqueles primeiros Doze são um exemplo e um modelo para nós e para as nossas comunidades. Os Doze são pessoas comuns, com qualidades e defeitos, não formam uma comunidade de puros e nem sequer um simples grupo de amigos.
Sabem, como disse o Papa Francisco, que “Vivemos uma mudança de época mais que uma época de mudanças”. Em Valdocco, nestes dias, se percebe grandemente esta consciência. Todos os irmãos sentem que este é um momento de grande responsabilidade.
Na vida da maioria dos irmãos, das inspetorias e da Congregação há muitas coisas positivas, mas isto não basta e não pode servir de “consolo”, porque o grito do mundo, as grandes e novas pobrezas, a luta quotidiana de tantas pessoas – não somente pobres, mas também simples e trabalhadoras – se levanta forte como pedido de ajuda. São todas perguntas que nos devem provocar e sacudir e não nos deixar tranquilos.
Com a ajuda das inspetorias através da consulta, acreditamos ter individuado, por um lado, os principais motivos de preocupação e, por outro, os sinais de vitalidade da nossa Congregação, adaptados sempre com aos traços culturais específicos de cada contexto.
Durante o Capítulo propomos concentrar-nos sobre o que significa para nós sermos verdadeiramente salesianos apaixonados por Jesus Cristo, porque sem isto ofereceremos bons serviços, faremos o bem às pessoas, ajudaremos, mas não deixaremos uma marca profunda.
A missão de Jesus continua e se torna visível hoje no mundo também através de nós, seus enviados. Somos consagrados para construir amplos espaços de luz para o mundo de hoje, para sermos profetas. Fomos consagrados por Deus e chamados ao seguimento do seu amado Filho Jesus para vivermos verdadeiramente como conquistados por Deus. É por isso que o essencial continua a ser a fidelidade da Congregação ao Espírito Santo, vivendo, com o espírito de Dom Bosco, uma vida consagrada salesiana centrada em Jesus Cristo.
A vitalidade apostólica, como vitalidade espiritual, é compromisso a favor dos adolescentes e jovens nas mais variadas pobrezas e, por isso, não se pode somente oferecer serviços educativos. O Senhor nos chama a educar evangelizando, levando a Sua presença e acompanhando a vida com oportunidades de futuro.
Somos chamados a procurar, em nome de Deus, novos modelos de presença, novas expressões do carisma salesiano. E que isto seja feito, em comunhão com os jovens e com o mundo, através de “uma ecologia integral” e da formação de uma cultura digital nos mundos habitados pelos jovens e pelos adultos.
E é forte o desejo e a expectativa de que este seja um Capítulo Geral corajoso, em que se digam as coisas, sem se preocupar com frases corretas e bem ditas, mas que não tocam a vida.
Nesta missão não estamos sozinhos. Sabemos e sentimos que a Virgem Maria é um modelo de fidelidade.
É belo voltar com a mente e com o coração ao dia da solenidade da Imaculada Conceição de 1887, quando, dois meses antes da sua morte, Dom Bosco disse a alguns Salesianos que o acompanhavam e escutavam com comoção: «Até agora caminhamos no certo. Não podemos errar; é Maria quem nos guia».
Maria Auxiliadora, a Nossa Senhora de Dom Bosco, nos guia. Ela é a Mãe de todos nós e é Ela que diz ao CG29, como o fez em Caná da Galileia: «Fazei o que ele vos disser».
A nossa Mãe Auxiliadora nos ilumine e nos guie, como fez com Dom Bosco, a sermos fiéis ao Senhor e a jamais desiludir os jovens, sobretudo aqueles mais necessitados.




O sonho das 22 luas (1854)

Em março de 1854, num dia de festa, depois das vésperas, Dom Bosco reuniu todos os alunos na sacristia dos fundos, dizendo que queria contar-lhes um sonho. Estavam presentes, entre outros, os jovens Cagliero, Turchi, Anfossi, o Clérigo Reviglio e o Clérigo Buzzetti, dos quais colhemos a nossa narração. Todos estavam convencidos de que, sob o nome de sonho, Dom Bosco estava escondendo as manifestações que tinha do céu. O sonho era o seguinte:

            – Eu me encontrava com vocês no pátio e estava feliz vendo-os animados, alegres e contentes. Quem pulava, quem gritava, quem corria. De repente vejo que um de vocês sai de uma porta da casa e se põe a passear no meio dos colegas, com uma espécie de cilindro, como um turbante, na cabeça. Ele era transparente, todo iluminado por dentro e com a figura de uma grande lua, no meio da qual estava escrito o número 22. Eu fiquei surpreso e procurei logo aproximar-me para dizer que deixasse aquela coisa carnavalesca. Mas, enquanto escurecia, como se fosse dado um toque de sineta, o pátio se esvazia e vejo todos os jovens debaixo do pórtico da casa, dispostos em fila. O aspecto deles manifestava um grande medo, e dez ou doze deles tinham o rosto coberto por uma estranha palidez. Eu passei adiante de todos para observá-los. E vejo entre eles aquele que tinha a lua sobre a cabeça mais pálido que todos. Dos seus ombros pendia um manto fúnebre. Encaminho-me para ele para perguntar o que significasse aquele estranho espetáculo. Mas uma mão me detém, e vejo um desconhecido de aspecto sério e postura nobre, que me diz:
             – Escute-me, antes de aproximar-se dele. Ele tem ainda 22 luas de tempo, e antes que passem, morrerá. Esteja de olho nele e prepare-o!
            Eu queria pedir-lhe explicação da sua fala e do seu aparecimento de improviso, mas não o vi mais.
            – O jovem, meus queridos filhos, eu o conheço e está entre vocês!
            Um vivo terror se apoderou de todos os jovens, tanto mais que sendo a primeira vez que Dom Bosco anunciava em público e com uma certa solenidade a morte de um da casa. O bom pai não podia deixar de notar isso e prosseguiu:
            – Eu o conheço e está entre vocês aquele das luas. Mas não quero que se espantem. É um sonho como lhes disse, e sabem que nem sempre se deve acreditar nos sonhos. De qualquer modo, conforme for a coisa, o que é certo é que devemos estar sempre preparados como nos recomenda o divino Salvador no santo Evangelho e não cometer pecados. E, então, a morte não nos fará mais medo. Sejam todos bons, não ofendam o Senhor, e eu, então, estarei atento e estarei de olho no número vinte e dois, o que quer dizer 22 luas, ou seja 22 meses. Espero que tenha uma boa morte.
            Este anúncio espantou os jovens no início. Fez, porém, um bem enorme, porque estavam todos atentos em manter-se na graça de Deus, com o pensamento da morte, e a contar, então as luas que transcorriam. Dom Bosco, de quando em quando, lhes perguntava:
            – Quantas luas ainda? –
            E lhe respondiam:
            – Vinte, dezoito, quinze etc.
            Às vezes, os jovens que vigiavam todas as suas palavras se aproximavam dele para lembrar-lhe as luas passadas, e procuravam fazer prognósticos e adivinhar. Mas Dom Bosco ficava em silêncio. O jovem Piano, que entrou como estudante no Oratório no mês de novembro de 1854, ouviu falar da nona lua, dos colegas, dos superiores, e veio saber o que Dom Bosco tinha predito. E ele, então, como todos os outros, ficou em observação.
            Terminou o ano de 1854, passaram muitos meses de 1855 e chegou outubro, isto é, a vigésima lua. Cagliero, já clérigo, era encarregado de assistir a três quartinhos perto da antiga casa Pinardi, que serviam de dormitório para um grupo de jovens. Entre eles havia um certo Segundo Gurgo, bielense de Pettinengo, com seus 17 anos, de físico belo e robusto, tipo de uma saúde de ferro, que dava todas as esperanças de longa vida, até a velhice. Seu pai o tinha recomendado a Dom Bosco para mantê-lo em pensão. Um pianista e organista talentoso que estudava música desde manhã até noite e ganhava um bom dinheiro dando aulas em Turim. Dom Bosco, ao longo do ano, de quando em quando, perguntava ao Clérigo Cagliero sobre a conduta de seus assistidos, com especial atenção. Em outubro chamou-o e lhe disse:
            – Onde você dorme?
            Respondeu o Clérigo Cagliero:
            – No último quartinho, e de lá assisto os outros dois.
            – E não seria melhor que mudasse a sua cama para aquele do meio?
            – Como quiser. Mas, lhe faço notar que os outros dois quartos são secos, enquanto no segundo uma parede faz parte do muro do campanário da igreja, recém-construído. Há, então, um pouco de umidade, o inverno se aproxima e poderia pegar uma doença. Contudo, de onde me encontro agora, posso muito bem assistir a todos os jovens do meu dormitório.
            – Quanto a assisti-los, sei que pode. Mas é melhor que vá para aquele do meio.
            O Clérigo Cagliero obedeceu, mas depois de algum tempo pediu licença a Dom Bosco para mudar sua cama para o primeiro quarto. Dom Bosco não consentiu, mas lhe disse:
            – Fique onde está e repouse tranquilo que a sua saúde nada sofrerá.
            O Clérigo Cagliero aquietou-se e alguns dias depois de novo foi chamado por Dom Bosco:
            – Em quantos vocês são no seu novo quarto?
            – Somos três. Eu, o jovem Segundo Gurgo, o Garovaglia. E com o piano somos quatro.
            – Bem, está bem. São três tocadores, o Gurgo poderá dar-lhe lições de piano. Você cuide de assisti-lo bem.
            E nada mais acrescentou. O clérigo, tocado pela curiosidade e suspeitando, começou a fazer-lhe perguntas, mas Dom Bosco o interrompeu dizendo-lhe:
            – O porquê saberá a seu tempo.
            O segredo era que naquele quarto estava o jovem das 22 luas.
            No começo de dezembro não havia doentes no Oratório, e Dom Bosco, tendo subido no estrado à noite depois das orações, anunciou que um dos jovens morreria antes do santo Natal. Por essa nova predição e porque as 22 luas já se cumpriam, reinou em casa uma grande trepidação, lembrando-se frequentemente das palavras de Dom Bosco e se temia o cumprimento.
            Dom Bosco, naqueles dias, chamara ainda uma vez o Clérigo Cagliero, e lhe perguntou se Gurgo se comportasse bem e se, depois das lições de música na cidade, voltasse para casa a tempo. Cagliero lhe respondeu que tudo ia bem e que não havia novidade com seus colegas. Disse-lhe Dom Bosco apenas isso e nada mais: – Ótimo. Estou contente. Vigie para que sejam todos bons, e avise-me se acontecer algum inconveniente.
            E eis que pela metade de dezembro o Gurgo foi acometido por uma cólica violenta e tão preocupante que, chamando depressa o médico, a seu conselho lhe administraram os santos sacramentos. Por oito dias, e muito sofrida, durou a doença e veio para melhor, graças aos cuidados do doutor Debernardi. E Gurgo pôde levantar-se da cama convalescente. O mal tinha desaparecido e o médico repetia que o jovem escapara por pouco. No entanto, seu pai foi avisado, porque, não tendo ainda morrido alguém no Oratório, Dom Bosco queria evitar aos alunos um espetáculo fúnebre.
            A novena do Santo Natal começara e Gurgo já curado pensava em ir à sua cidade nas festas natalinas. Todavia, quando se davam as boas novas dele a Dom Bosco, ele fez uma cara de quem não queria acreditar. Veio o pai, e encontrando o filho já em bom estado, pedindo e obtendo licença, foi reservar um lugar na carruagem para conduzi-lo no dia seguinte a Novara, e depois a Pettinengo, para que se restabelecesse plenamente da saúde. Era domingo, 23 de dezembro. Gurgo, porém, naquela mesma noite, manifestou o desejo de comer um pouco de carne, alimento proibido pelo médico. O pai, para fortalecê-lo, correu para comprá-la e a fez cozinhar numa maquininha de café. O jovem tomou a sopa e comeu a carne, que certamente devia estar meio crua e meio cozida e até mais do que o necessário. O pai se retirou. No quarto ficou o enfermeiro e Cagliero. E eis que a uma certa hora da noite o enfermo começa a lamentar-se de dores na barriga. A cólica voltava a incomodá-lo com mais força. Gurgo chamou o assistente pelo nome:
            – Cagliero, Cagliero! Adeus suas aulas de piano!
            Respondeu Cagliero:
            – Tenha paciência. Coragem!
            – Eu não vou mais para casa: não viajo mais. Reze por mim; se soubesse como me sinto mal. Recomende-me a Nossa Senhora.
            – Sim, rezarei. Invoque também você Maria Santíssima.
            Cagliero começou a rezar, mas, vencido pelo sono, adormeceu. E eis que improvisamente o enfermeiro o sacode e mostrando-lhe Gurgo, corre logo para chamar P. Alasonatti, que dormia no quarto vizinho. Este veio, e depois de alguns instantes Gurgo expirava. Foi uma desolação em toda a casa. Cagliero, de manhã, encontrou Dom Bosco que descia as escadas para ir rezar a Santa Missa e estava muito triste, porque já lhe tinham comunicado a dolorosa notícia.
            No entanto, na casa havia um grande falatório desta morte. Era a vigésima segunda lua e ainda não completa. E Gurgo, morrendo no dia 24 de dezembro, antes da aurora, cumpriu também a segunda predição, isto é, que ele não veria a festa do santo Natal.
            Depois do almoço, os jovens e os clérigos rodearam Dom Bosco silenciosos. De repente o Clérigo João Turchi o interrogou se Gurgo era o das luas. Respondeu Dom Bosco:
            – Sim, era justamente ele. É ele mesmo que vi no sonho!
            Depois acrescentou ainda:
            – Vocês observaram que há um tempo, coloquei-o para dormir com um grupo especial, recomendando a um dos melhores assistentes que para lá transportasse sua cama para que pudesse continuamente vigiá-lo. E o assistente foi o Clérigo João Cagliero. E improvisamente voltou-se para o clérigo e lhe disse: – Uma outra vez não deve fazer tantas observações ao que Dom Bosco lhe disser. Agora compreende o motivo pelo qual eu não queria que deixasse o quarto onde estava aquele pobrezinho? Você me pediu, mas eu não quis contentá-lo, justamente para que Gurgo tivesse um guarda. Se ele estivesse ainda vivo, poderia dizer quantas vezes lhe vinha falando abertamente da morte e os cuidados que lhe dediquei para dispô-lo a uma feliz passagem.
            Escreveu Dom Cagliero: – “Eu entendi, então, o motivo das recomendações especiais que Dom Bosco me deu, e aprendi a conhecer e a valorizar melhor a importância de suas palavras e de seus conselhos paternos”.
            Narra Pedro Enria: – Na noite da vigília de Natal, lembro-me ainda Dom Bosco que subiu no estrado, percorrendo com os olhos ao redor como se procurasse alguém. E disse: É o primeiro jovem que morre no Oratório. Ele fez bem suas coisas e esperamos que esteja no paraíso. Recomendo-lhes que estejam sempre preparados… E não pôde mais continuar porque seu coração estava triste. A morte tinha-lhe roubado um filho.
(MBp V, 322-327)




Educar o corpo e seus 5 sentidos com São Francisco de Sales

            Um bom número de antigos ascetas cristãos frequentemente considerou o corpo como um inimigo, cuja corrupção deveria ser combatida, na verdade, como um objeto de desprezo e a ser ignorado. Numerosos homens espirituais da Idade Média não se preocupavam com o corpo, exceto para infligir-lhe penitências. Na maioria das escolas da época, nada era previsto para fazer descansar o “irmão jumento”.
            Para Calvino, a natureza humana totalmente corrompida pelo pecado original não poderia ser outra coisa senão um “lixão”. No lado oposto, numerosos escritores e artistas renascentistas exaltavam o corpo a ponto de prestar-lhe um culto, no qual a sensualidade tinha grande relevância. Rabelais, por sua vez, magnificava o corpo de seus gigantes e se deleitava em expor suas funções orgânicas, mesmo as menos nobres.

O realismo salesiano
            Entre a divinização do corpo e seu desprezo, Francisco de Sales oferece uma visão realista da natureza humana. Ao final da primeira meditação sobre o tema da criação do homem, “o primeiro ser do mundo visível”, o autor da Introdução à vida devota coloca nos lábios de Filoteia este propósito que parece resumir seu pensamento: “Quero sentir-me honrada pelo ser que ele me deu”. Certamente, o corpo está destinado à morte. Com brutal realismo, o autor descreve a despedida da alma ao corpo, que abandonará “pálido, lívido, desfeito, horrendo e fedorento”, mas isso não constitui uma razão para negligenciá-lo e denegri-lo injustamente enquanto está vivo. São Bernardo estava equivocado ao anunciar àqueles que queriam segui-lo “que deveriam abandonar seu corpo e ir até ele apenas em espírito”. Os males físicos não devem levar a odiar o corpo: o mal moral é muito pior.
            Não encontramos de forma alguma em Francisco de Sales o esquecimento ou a sombra dos fenômenos corporais, como quando fala de diferentes formas de doenças ou quando evoca as manifestações do amor humano. Em um capítulo do Tratado do amor de Deus intitulado: “O amor tende à união”, ele escreve, por exemplo, que “uma boca se aplica sobre a outra quando nos beijamos, para testemunhar que se gostaria de derramar uma alma na outra, para uni-las com uma união perfeita”. Essa atitude de Francisco de Sales em relação ao corpo já suscitou, em seu tempo, reações escandalizadas. Quando apareceu a Filoteia, um religioso avinhonense criticou publicamente este “livreto”, despedaçou-o acusando seu autor de “doutor corrompido e corruptor”. Inimigo da pudicícia exagerada, Francisco de Sales ainda não conhecia a reserva e os medos que emergiriam em tempos posteriores. Sobrevivem nele costumes medievais ou é simplesmente uma manifestação de seu gosto “bíblico”? De qualquer forma, nele não se encontra nada comparável às trivialidades do “infame” Rabelais.
            Os dons naturais mais estimados são a beleza, a força e a saúde. Em referência à beleza, Francisco de Sales assim se expressava ao falar de santa Brígida: “Nasceu na Escócia; era uma moça muito bonita, dado que os escoceses são belos por natureza, e naquele País encontram-se as mais belas criaturas existentes”. Pensemos, por outro lado, no repertório de imagens referentes às perfeições físicas do noivo e da noiva, tiradas do Cântico dos Cânticos. Embora as representações sejam sublimadas e transferidas para um registro espiritual, permanecem, no entanto, significativas de uma atmosfera onde se exalta a beleza natural do homem e da mulher. Tentaram fazê-lo suprimir o capítulo do Teótimo sobre o beijo, no qual demonstra que “o amor tende à união”, mas ele sempre se recusou a fazê-lo. De qualquer forma, a beleza exterior não é a mais importante: a beleza da filha de Sião é interior.

Estreita ligação entre o corpo e a alma
            Antes de tudo, Francisco de Sales afirma que o corpo é “uma parte da nossa pessoa”. A alma personificada pode até dizer com um tom de ternura: “Esta carne é minha querida metade, é minha irmã, é minha companheira, nascida comigo, alimentada comigo”.
            O bispo foi muito atento à ligação existente entre o corpo e a alma, entre a saúde do corpo e a da alma. Assim, escreve sobre uma pessoa sob sua direção, doente, que a saúde de seu corpo “depende muito da saúde da alma, e a da alma depende das consolações espirituais”. “Não é o seu coração que se debilitou – escrevia a uma doente –, mas sim o seu corpo, e, dados os laços estreitíssimos que os unem, seu coração tem a impressão de sentir o mal de seu corpo”. Cada um pode constatar que as enfermidades corporais “acabam por criar desconforto também ao espírito, devido aos estreitos vínculos entre um e outro”. Inversamente, o espírito age sobre o corpo até o ponto em que “o corpo percebe os afetos que se agitam no coração”, como aconteceu em Jesus, que se sentou ao poço de Jacó, cansado de seu pesado compromisso ao serviço do reino de Deus.
            No entanto, como “o corpo e o espírito frequentemente seguem direções contrárias, e, à medida que um se enfraquece, o outro se fortalece”, e como “o espírito deve reinar”, “devemos sustentá-lo e consolidá-lo de tal forma que permaneça sempre o mais forte”. Se então cuido do corpo é “para que esteja a serviço do espírito”.
            Entretanto, somos justos em relação ao corpo. Em caso de mal-estar ou de erros, muitas vezes acontece que a alma acusa o corpo e o maltrata, como fez Balaão com sua jumenta: “Ó pobre alma! se sua carne pudesse falar, diria a você, como a jumenta de Balaão: por que me espancas, miserável? É contra você, minha alma, que Deus arma sua vingança, você é a criminosa”. Quando uma pessoa reforma seu íntimo, a conversão se manifestará também externamente: em todas as atitudes, na boca, nas mãos e “até mesmo nos cabelos”. A prática da virtude torna o homem bonito interiormente e também exteriormente. Inversamente, uma mudança exterior, um comportamento do corpo pode favorecer uma mudança interior. Um ato de devoção exterior durante a meditação pode despertar a devoção interior. O que aqui é dito sobre a vida espiritual pode ser facilmente aplicado à educação em geral.

Amor e domínio do corpo
            Falando da atitude a ter em relação ao corpo e às realidades corporais, não surpreende ver Francisco de Sales recomendar a Filoteia, como primeira coisa, a gratidão pelas graças corporais que Deus lhe deu.

Devemos amar nosso corpo por diferentes motivos: porque é necessário para realizar as boas obras, porque é uma parte da nossa pessoa, e porque está destinado a participar da felicidade eterna. O cristão deve amar seu próprio corpo como uma imagem viva daquele do Salvador encarnado, como dele proveniente por parentesco e consanguinidade. Sobretudo depois que renovamos a aliança, recebendo realmente o corpo do Redentor no adorável sacramento da eucaristia, e, com o batismo, a confirmação e os outros sacramentos, nos dedicamos e consagramos à suma bondade.

            O amor pelo próprio corpo faz parte do amor devido a si mesmo. Na verdade, a razão mais convincente para honrar e usar sabiamente o corpo está em uma visão de fé, que o bispo de Genebra assim explicava à madre de Chantal, que saía de uma doença: “Tenha ainda cuidado deste corpo, porque é de Deus, minha caríssima Madre”. A Virgem Maria é apresentada a este ponto como modelo: “Com que devoção deveria amar seu corpo virginal! Não apenas porque era um corpo doce, humilde, puro, obediente ao santo amor e totalmente impregnado de mil sagrados perfumes, mas também porque era a viva fonte daquele do Salvador e lhe pertencia muito estreitamente, com um laço que não tem comparação”.
            O amor pelo corpo é, sim, recomendado, mas o corpo deve permanecer subordinado ao espírito, como o servo ao seu mestre. Para controlar o apetite, devo “comandar as mãos a não fornecer à boca alimentos e bebidas, se não na medida certa”. Para governar a sexualidade “é preciso retirar ou dar à faculdade da reprodução os sujeitos, os objetos e os alimentos que a excitam, segundo os ditames da razão”. Ao jovem que se prepara para “navegar no vasto mar”, o bispo recomenda: “Desejo também um coração vigoroso que o impeça de mimar seu corpo com excessivas requintarias na comida, no sono ou em outras coisas. Sabe-se, de fato, que um coração generoso sente sempre um pouco de desprezo pelas delicadezas e delícias corporais”.
            Para que o corpo permaneça subordinado à lei do espírito, convém evitar os excessos: nem maltratá-lo nem mimá-lo. Em tudo é necessário medida. O motivo da caridade deve ter o primado em todas as coisas; isso o faz escrever: “Se o trabalho que você faz é necessário ou é muito útil para a glória de Deus, preferiria que suportasse as penas do trabalho em vez das do jejum”. Daí a conclusão: “Em geral, é melhor ter no corpo mais forças do que o necessário, do que arruiná-las além do necessário; porque arruiná-las se pode sempre, assim que se quer, mas para recuperá-las nem sempre basta querer”.
            O que é necessário evitar é essa “ternura que se sente para consigo mesmo”. Ele critica, com fina ironia, mas de forma impiedosa, uma imperfeição que não é apenas “própria das crianças, e, se posso ousar dizer, das mulheres”, mas também de homens pouco corajosos, dos quais nos dá este interessante quadro característico: “Outros são aqueles que são ternos consigo mesmos, e que não fazem outra coisa senão se lamentar, se mimar, se acariciar e se olhar”.
            De qualquer forma, o bispo de Genebra cuidava de seu corpo como era seu dever, obedecia ao seu médico e às “enfermeiras”. Ele também se preocupava com a saúde alheia, aconselhando medidas apropriadas. Escreverá, por exemplo, à mãe de um jovem aluno do colégio de Annecy: “É necessário fazer Carlos ser examinado pelos médicos, para que seu inchaço na barriga não se agrave”.
            A serviço da saúde está a higiene. Francisco de Sales desejava que tanto o coração quanto o corpo estivessem limpos. Recomendava o decoro, muito diferente de afirmações como esta de Santo Hilário, segundo a qual “não se deveria buscar a limpeza em nossos corpos que não são nada além de carcaças pestilenciais e carregadas apenas de infecção”. Ele estava mais de acordo com Santo Agostinho e os antigos que tomavam banho “para manter limpos seus corpos tanto da sujeira produzida pelo calor e pelo suor, quanto para a saúde, que é certamente sobremaneira ajudada pela limpeza”.
            Para poder trabalhar e cumprir os deveres de sua função, cada um deve cuidar de seu corpo no que diz respeito à alimentação e ao descanso: “Comer pouco, trabalhar muito e com muita agitação e negar ao corpo o descanso necessário, é como exigir muito de um cavalo que está exausto sem dar-lhe tempo para mastigar um pouco de aveia”. O corpo precisa descansar, é algo totalmente evidente. As longas vigílias noturnas são “prejudiciais à cabeça e ao estômago”, enquanto, por outro lado, levantar-se cedo pela manhã é “útil tanto para a saúde quanto para a santidade”.

Educar nossos sentidos, especialmente os olhos e os ouvidos
            Nossos sentidos são dons maravilhosos do Criador. Eles nos colocam em contato com o mundo e nos abrem a todas as realidades sensíveis, à natureza, ao cosmos. Os sentidos são a porta do espírito, que lhes fornece, por assim dizer, a matéria-prima; de fato, como diz a tradição escolástica, “nada está no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos”.
            Quando Francisco de Sales fala dos sentidos, seu interesse se volta especialmente para o plano educativo e moral, e seu ensinamento a esse respeito se relaciona ao que expôs sobre o corpo em geral: admiração e vigilância. Por um lado, ele diz que Deus nos dá “os olhos para ver as maravilhas de suas obras, a língua para louvá-lo, e assim por diante para todas as outras faculdades”, sem nunca omitir, por outro lado, a recomendação de “colocar sentinelas nos olhos, na boca, nos ouvidos, nas mãos e no olfato”.
            É necessário começar pela visão, porque “entre todas as partes externas do corpo humano, não há uma, por sua estrutura e atividade, mais nobre do que o olho”. O olho é feito para a luz: isso é demonstrado pelo fato de que quanto mais as coisas são belas, agradáveis à vista e devidamente iluminadas, mais o olho as observa com avidez e vivacidade. “Pelos olhos e pelas palavras se conhece qual é a alma e o espírito do homem, pois os olhos servem à alma como o mostrador ao relógio”. É sabido que entre os amantes, os olhos falam mais do que a língua.
            É preciso vigiar os olhos, pois através deles podem entrar a tentação e o pecado, como aconteceu com Eva, que ficou encantada ao ver a beleza do fruto proibido, ou com Davi, que fixou seu olhar na esposa de Urias. Em certos casos, é preciso proceder como se faz com a ave de rapina: para fazê-la voltar, é necessário mostrar-lhe o “lógoro” [equipamento de caça que simula as asas de uma pássaro; é agitado para chamar o falcão]; para acalmá-la, é preciso cobri-la com um capuz; da mesma forma, para evitar olhares maldosos, “é preciso desviar os olhos, cobri-los com o capuz natural e fechá-los”.
            Embora as imagens visuais sejam amplamente dominantes nas obras de Francisco de Sales, é preciso reconhecer que as imagens auditivas são bastante dignas de nota. Isso evidencia a importância que ele atribuía à audição por razões tanto estéticas quanto morais. “Uma melodia sublime ouvida com muita atenção” produz um efeito tão mágico que “encanta os ouvidos”. Mas atenção para não ultrapassar as capacidades auditivas: uma música, por mais bela que seja, se for alta e muito próxima, nos incomoda e ofende o ouvido.
            Por outro lado, é preciso saber que “o coração e os ouvidos conversam entre si”, pois é através do ouvido que o coração “ouve os pensamentos dos outros”. É ainda através do ouvido que entram no mais profundo da alma palavras suspeitas, injuriosas, mentirosas ou malévolas, das quais é necessário cuidar bem; pois as almas se envenenam através do ouvido, como o corpo através da boca. A mulher honesta tapará os ouvidos para não ouvir a voz do encantador que quer conquistá-la de forma sutil. Permanecendo no âmbito simbólico, Francisco de Sales declara que o ouvido direito é o órgão através do qual ouvimos as mensagens espirituais, as boas inspirações e moções, enquanto o esquerdo serve para ouvir discursos mundanos e vãos. Para guardar o coração, portanto, protejamos com grande cuidado os ouvidos.
            O melhor serviço que podemos pedir aos ouvidos é o de poder ouvir a palavra de Deus, objeto da pregação, que exige ouvintes atentos e dispostos a fazê-la penetrar em seus corações para que produza frutos. Filoteia é convidada a “fazê-la gotejar” ora no ouvido de um, ora no de outro, e a orar a Deus no íntimo de sua alma, para que lhe agrade fazer penetrar esse santo orvalho no coração de quem a escuta.

Os outros sentidos
            Também em relação ao olfato, foi notada a abundância de imagens olfativas. Os perfumes são tão diversos quanto as substâncias odoríferas, como o leite, o vinho, o bálsamo, o óleo, a mirra, o incenso, a madeira aromática, o nardo, o unguento, a rosa, a cebola, o lírio, a violeta, o amor-perfeito, a mandrágora, a canela… É ainda mais surpreendente constatar os resultados produzidos com a fabricação da água perfumada:

O manjericão, o alecrim, o orégano, o hissopo, os cravos-da-índia, a canela, a noz-moscada, os limões e o almíscar, misturados e triturados, realmente produzem um perfume muito agradável pela mistura de seus odores; mas não é nem de longe comparável ao da água que é destilada, na qual os aromas de todos esses ingredientes, isolados de seus corpos, se fundem mais perfeitamente, dando origem a um perfume requintado que penetra muito mais o olfato do que ocorreria se, junto com a água, estivessem as partes materiais.

            Numerosas são as imagens olfativas extraídas do Cântico dos Cânticos, poema oriental onde os perfumes ocupam um lugar relevante e onde um dos versículos bíblicos mais comentados por Francisco de Sales é o grito angustiado da esposa: “Atrai-me a ti, caminharemos e correremos juntos na trilha de teus perfumes”. E quão refinada é esta anotação: “O suave perfume da rosa é tornado mais sutil pela proximidade do alho plantado perto dos roseirais!”.
            Não confundamos, porém, o sagrado bálsamo com os perfumes deste mundo. Existe, de fato, um olfato espiritual, que devemos cultivar em nosso interesse. Ele nos permite perceber a presença espiritual do sujeito amado e, além disso, nos faz não nos deixarmos distrair pelos maus odores do próximo. O modelo é o pai que acolhe de braços abertos o filho pródigo que retorna a ele “seminu, sujo, imundo e fedendo a imundícies pela longa convivência com os porcos”. Outra imagem realista aparece em referência a certas críticas mundanas: não nos surpreendamos, recomenda Francisco de Sales a Joana de Chantal, é necessário “que o pouco unguento de que dispomos pareça fedorento às narinas do mundo”.
            A respeito do gosto, certas observações do bispo de Genebra poderiam nos fazer pensar que ele era um guloso nato, na verdade um educador do gosto: “Quem não sabe que a doçura do mel se une cada vez mais ao nosso sentido do gosto com um progresso contínuo de sabor, quando, mantendo-o por muito tempo na boca, em vez de engoli-lo imediatamente, seu sabor penetra mais profundamente no nosso sentido do gosto?”. Admitida a doçura do mel, é preciso, no entanto, valorizar mais o sal, pelo fato de ser de uso mais comum. Em nome da sobriedade e da temperança, Francisco de Sales recomendava saber renunciar ao gosto pessoal, comendo o que nos “é colocado à frente”.
            Por fim, tratando-se do tato, Francisco de Sales fala dele principalmente em um sentido espiritual e místico. Assim, recomenda tocar Nosso Senhor crucificado: a cabeça, as santas mãos, o precioso corpo, o coração. Ao jovem que está prestes a se lançar no vasto mar do mundo, ele exige que se governe energicamente e despreze as molezas, as delícias corporais e as delicadezas: “Gostaria que às vezes você tratasse seu corpo com dureza para fazê-lo experimentar alguma aspereza e dureza, desprezando delicadezas e coisas agradáveis aos sentidos; pois é necessário que às vezes a razão exerça sua superioridade e a autoridade que tem de regular os apetites sensuais”.

O corpo e a vida espiritual
            Também o corpo é chamado a participar da vida espiritual que se expressa em primeiro lugar na oração: “É verdade, a essência da oração está na alma, mas a voz, os gestos e os outros sinais exteriores, por meio dos quais se revela o íntimo dos corações, são nobres apêndices e propriedades utilíssimas da oração; são efeitos e operações. A alma não se contenta em orar se o homem em sua totalidade não ora; ela ora junto com os olhos, as mãos, os joelhos”.
            Ele acrescenta que “a alma prostrada diante de Deus faz dobrar facilmente sobre si todo o corpo; levanta os olhos onde eleva o coração, ergue as mãos lá, de onde espera um auxílio”. Francisco de Sales explica também que “orar em espírito e em verdade é orar de bom grado e afetuosamente, sem fingimento nem hipocrisia, e comprometendo, além disso, o homem inteiro, alma e corpo, para que o que Deus uniu não seja separado”. “É preciso que todo o homem ore”, repete às visitandinas. Mas a melhor oração é a de Filoteia, quando decide consagrar a Deus não apenas a alma, seu espírito e seu coração, mas também seu “corpo com todos os seus sentidos”; é assim que ela o amará e servirá verdadeiramente com todo o seu ser.




O Vigário do Reitor-Mor. Dom Stefano Martoglio

Temos a alegria de anunciar que Dom Stefano Martoglio foi reeleito como Vigário do Reitor-Mor.
Os capitulares o elegeram hoje por maioria absoluta e na primeira votação.

Desejamos um apostolado frutífero a Dom Stefano e asseguramos-lhe as nossas orações.




Novo Reitor-Mor: Fabius Attard

Temos a alegria de anunciar que o padre Fabius Attard é o novo Reitor-Mor, o décimo primeiro sucessor de Dom Bosco.

Brevíssimas informações do novo Reitor-Mor:
Nascido: 23/03/1959 em Gozo (Malta), diocese de Gozo.
Noviciado: 1979-1980 em Dublin.
Profissão perpétua: 11/08/1985 em Malta.
Ordenação presbiteral: 04/07/1987 em Malta.
Desempenhou diversos encargos pastorais e formativos dentro de sua inspetoria de origem.
Foi por 12 anos o Conselheiro geral para a Pastoral Juvenil, 2008-2020.
Desde 2020, foi o Delegado do Reitor-Mor para a Formação Permanente dos salesianos e dos leigos na Europa.
Última comunidade de pertencimento: Roma CNOS.
Línguas conhecidas: Maltês, Inglês, Italiano, Francês, Espanhol.

Auguramos um frutuoso apostolado ao padre Fabio e asseguramos-lhe as nossas orações.




Reitores-Mores da Congregação Salesiana

A Congregação Salesiana, fundada em 1859 por São João Bosco, teve à sua frente um superior geral chamado, já nos tempos de Dom Bosco, Reitor-Mor. A figura do Reitor-Mor é central na liderança da congregação, atuando como guia espiritual e centro de unidade não só dos salesianos, mas também de toda a Família Salesiana. Cada Reitor-Mor contribuiu de modo único para a missão salesiana, enfrentando os desafios do seu tempo e promovendo a educação e a vida espiritual dos jovens. Façamos um breve resumo dos Reitores-Mores e dos desafios que tiveram de enfrentar.

São João Bosco (1859-1888)
São João Bosco, fundador da Congregação Salesiana, encarnou qualidades distintivas que moldaram a identidade e a missão da ordem. Sua profunda fé e confiança na Divina Providência o tornaram um líder carismático, capaz de inspirar e guiar com visão e determinação. Sua dedicação incansável à educação dos jovens, especialmente dos mais necessitados, manifestou-se através do inovador Sistema Preventivo, baseado em razão, religião e amabilidade. Dom Bosco promoveu um clima de família nas casas salesianas, favorecendo relações sinceras e fraternas. Sua capacidade organizativa e seu espírito empreendedor levaram à criação de numerosas obras educativas. Sua abertura missionária impulsionou a Congregação para além das fronteiras italianas, difundindo o carisma salesiano no mundo. Sua humildade e simplicidade o tornaram próximo a todos, conquistando a confiança e o afeto de colaboradores e jovens.
São João Bosco enfrentou muitas dificuldades. Teve de superar a incompreensão e a hostilidade de autoridades civis e eclesiásticas, que frequentemente desconfiavam do seu método educativo e do seu rápido crescimento. Enfrentou graves dificuldades econômicas ao sustentar as obras salesianas, frequentemente contando apenas com a Providência. Gerir jovens difíceis e formar colaboradores confiáveis foi uma tarefa árdua. Além disso, sua saúde, desgastada pelo intenso trabalho e pelas contínuas preocupações, foi um limite constante. Apesar de tudo, enfrentou cada prova com fé inabalável, amor paterno pelos jovens e uma determinação incansável, levando adiante a missão com esperança.

1. Beato Miguel Rua (1888-1910)
O ministério de Reitor-Mor do Beato Miguel Rua se caracteriza como fidelidade ao carisma de Dom Bosco, consolidação institucional e expansão missionária. Foi nomeado por Dom Bosco como sucessor por ordem do Papa Leão XIII, na audiência de 24/10/1884. Após a confirmação do Papa, em 24/09/1885, Dom Bosco tornou pública sua escolha diante do Capítulo Superior.
Algumas características do seu reitorado:
– Agiu como “regra vivente” do sistema preventivo, mantendo íntegro o espírito educativo de Dom Bosco através de formação, catequese e direção espiritual; foi um continuador do fundador;
– Dirigiu a Congregação em crescimento exponencial, gerindo centenas de casas e milhares de religiosos, com visitas pastorais em todo o mundo, apesar de problemas de saúde;
– Enfrentou calúnias e crises (como o escândalo de 1907) defendendo a imagem salesiana;
– Promoveu as Filhas de Maria Auxiliadora e os Cooperadores, reforçando a estrutura tripartida desejada por Dom Bosco;
– Sob sua guia, os Salesianos passaram de 773 para 4.000 membros, e as casas de 64 para 341, estendendo-se em 30 nações.

2. Dom Paulo Albera (1910-1921)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Paulo Albera se distingue por fidelidade ao carisma de Dom Bosco e expansão missionária global. Eleito no Capítulo Geral 11.
Algumas características do seu reitorado:
– Manteve íntegro o sistema preventivo, promovendo a formação espiritual dos jovens salesianos e a difusão do Boletim Salesiano como instrumento de evangelização;
– Enfrentou os desafios da Primeira Guerra Mundial, com salesianos mobilizados (mais de 2.000 chamados às armas, 80 deles mortos na guerra) e casas transformadas em hospitais ou quartéis, mantendo coesão na Congregação; este conflito causou a suspensão do Capítulo Geral previsto e interrompeu muitas atividades educativas e pastorais;
– Enfrentou as consequências desta guerra que gerou um aumento da pobreza e do número de órfãos, requerendo um compromisso extraordinário para acolher e sustentar estes jovens nas casas salesianas;
– Abriu novas fronteiras na África, Ásia e América, enviando 501 missionários em nove expedições ad gentes e fundando obras no Congo, China e Índia.

3. Beato Filipe Rinaldi (1922-1931)
O ministério de Reitor-Mor do Beato Filipe Rinaldi se caracteriza por fidelidade ao carisma de Dom Bosco, expansão missionária e inovação espiritual. Eleito no Capítulo Geral 12.
Algumas características do seu reitorado:
– Manteve íntegro o sistema preventivo, promovendo a formação interior dos salesianos;
– Enviou mais de 1.800 salesianos em todo o mundo, fundou institutos missionários e revistas, abrindo novas fronteiras na África, Ásia e América;
– Instituiu a associação dos Ex-alunos e o primeiro Instituto secular salesiano (Voluntárias de Dom Bosco), adaptando o espírito de Dom Bosco às exigências do início do século XX;
– Reanimou a vida interior da Congregação, exortando a uma “confiança ilimitada” em Maria Auxiliadora, herança central do carisma salesiano;
– Enfatizou a importância da formação espiritual e da assistência aos emigrantes, promovendo obras de previdência e associações entre trabalhadores;
– Durante o seu reitorado, os membros passaram de 4.788 para 8.836 e as casas de 404 para 644, evidenciando sua capacidade organizativa e seu zelo missionário.

4. Dom Pedro Ricaldone (1932-1951)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Pedro Ricaldone se caracteriza por consolidação institucional, compromisso durante a Segunda Guerra Mundial e colaboração com as autoridades civis. Eleito no Capítulo Geral 14.
Algumas características do seu reitorado:
– Potencializou as casas salesianas e os centros de formação, fundou a Universidade Pontifícia Salesiana (1940) e cuidou da canonização de Dom Bosco (1934) e Madre Mazzarello (1951);
– Enfrentou a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) que representou uma das principais dificuldades, com perseguições que atingiram duramente as obras salesianas no país;
– Sucessivamente enfrentou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) causou ulteriores sofrimentos: muitos salesianos foram deportados ou privados da liberdade, e as comunicações entre a Casa Generalícia de Turim e as comunidades espalhadas no mundo foram interrompidas; além disso, o advento de regimes totalitários na Europa oriental levou à supressão de diversas obras salesianas;
– Durante a guerra, abriu as estruturas salesianas a deslocados, judeus e partisans, mediando pela libertação de prisioneiros e protegendo quem estava em perigo;
– Promoveu a espiritualidade salesiana através de obras editoriais (ex: Corona patrum salesiana) e iniciativas a favor dos jovens marginalizados.

5. Dom Renato Ziggiotti (1952-1965)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Renato Ziggiotti (1952-1965) se caracteriza por expansão global, fidelidade ao carisma e compromisso conciliar. Eleito no Capítulo Geral 17.
Algumas características do seu reitorado:
– Foi o primeiro Reitor-Mor a não ter conhecido pessoalmente Dom Bosco e a renunciar ao cargo antes da morte, demonstrando grande humildade;
– Durante o seu mandato, os salesianos passaram de 16.900 para mais de 22.000 membros, com 73 inspetorias e quase 1.400 casas em todo o mundo;
– Promoveu a construção da Basílica de São João Bosco em Roma e do santuário sobre o Colle dei Becchi (Colle Dom Bosco), além da transferência do Pontifício Ateneu Salesiano na capital;
– Foi o primeiro Reitor-Mor a participar ativamente das primeiras três sessões do Concílio Vaticano II, antecipando a renovação da Congregação e o envolvimento dos leigos;
– Cumpriu uma empresa sem precedentes: visitou quase todas as casas salesianas e Filhas de Maria Auxiliadora, dialogando com milhares de confrades, apesar das dificuldades logísticas.

6. Dom Luís Ricceri (1965-1977)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Luís Ricceri se caracteriza por renovação conciliar, centralização organizativa e fidelidade ao carisma salesiano. Eleito no Capítulo Geral 19.
Algumas características do seu reitorado:
– Adaptação pós-conciliar: guiou a Congregação na atuação das indicações do Concílio Vaticano II, promovendo o Capítulo Geral Especial (1966) para a renovação das Constituições e a formação permanente dos salesianos;
– Transferiu a Direção Geral de Valdocco para Roma, separando-a da “Casa Mãe” para integrá-la melhor no contexto eclesial;
– A revisão das Constituições e dos Regulamentos foi uma tarefa complexa, mirando garantir a adequação às novas diretivas eclesiais sem perder a identidade originária;
– Potencializou o papel dos Cooperadores e dos Ex-alunos, reforçando a colaboração entre os diversos ramos da Família salesiana.

7. Dom Egídio Viganò (1977-1995)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Egídio Viganò se caracteriza por fidelidade ao carisma salesiano, compromisso conciliar e expansão missionária global. Eleito no Capítulo Geral 21.
Algumas características do seu reitorado:
– Sua participação como especialista no Concílio Vaticano II influenciou significativamente seu trabalho, promovendo a atualização das Constituições salesianas em linha com as diretivas conciliares e guiou a Congregação na atuação das indicações do Concílio Vaticano II;
– Colaborou ativamente com o Papa São João Paulo II, tornando-se confessor pessoal, e participou de 6 sínodos dos bispos (1980-1994), reforçando o laço entre a Congregação e a Igreja universal;
– Profundamente ligado à cultura latino-americana (onde passou 32 anos), ampliou a presença salesiana no Terceiro Mundo, com um foco em justiça social e diálogo intercultural;
– Foi o primeiro reitor-mor eleito para três mandatos consecutivos (com dispensa papal);
– Potencializou o papel dos Cooperadores e dos Ex-alunos, promovendo a colaboração entre os diversos ramos da Família salesiana;
– Reforçou a devoção a Maria Auxiliadora, reconhecendo a Associação dos Devotos de Maria Auxiliadora como parte integrante da Família Salesiana;
– Sua dedicação à pesquisa científica e ao diálogo interdisciplinar o levou a ser considerado o “segundo fundador” da Universidade Pontifícia Salesiana;
– Sob sua guia, a Congregação iniciou o “Projeto África”, expandindo a presença salesiana no continente africano que deu muitos frutos.

8. Dom Juan Edmundo Vecchi (1996-2002)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Juan Edmundo Vecchi se distingue por fidelidade ao carisma salesiano, compromisso na formação e abertura aos desafios do pós-Concílio. Eleito no Capítulo Geral 24.
Algumas características do seu reitorado:
– É o primeiro Reitor-Mor não italiano: filho de imigrantes italianos na Argentina, representou uma mudança geracional e geográfica na guia da Congregação, abrindo a uma perspectiva mais global;
– Promoveu a formação permanente dos salesianos, sublinhando a importância da espiritualidade e da preparação profissional para responder às exigências dos jovens;
– Promoveu uma renovada atenção à educação dos jovens, enfatizando a importância da formação integral e do acompanhamento pessoal;
– Através das Cartas Circulares, exortou a viver a santidade na cotidianidade, ligando-a ao serviço juvenil e ao testemunho de Dom Bosco;
– Durante sua doença, continuou a testemunhar fé e dedicação, oferecendo reflexões profundas sobre a experiência do sofrimento e da velhice na vida salesiana.

9. Dom Pascual Chávez Villanueva (2002-2014)
O ministério de Reitor-Mor de Dom Pascual Chávez Villanueva se distingue por fidelidade ao carisma salesiano, compromisso na formação e o compromisso nos desafios da globalização e das transformações eclesiais. Eleito no Capítulo Geral 25.
Algumas características do seu reitorado:
– Promoveu a renovada atenção à comunidade salesiana como sujeito evangelizador, com prioridade à formação espiritual e à inculturação do carisma nos contextos regionais;
– Relançou o compromisso para com os jovens mais vulneráveis, herdando a abordagem de Dom Bosco, com particular atenção aos oratórios de fronteira e às periferias sociais;
– Cuidou da formação permanente dos salesianos, desenvolvendo estudos teológicos e pedagógicos ligados à espiritualidade de Dom Bosco, preparando o bicentenário do seu nascimento;
– Guiou a Congregação com uma abordagem organizativa e dialogante, envolvendo as diversas regiões e promovendo a colaboração entre centros de estudo salesianos;
– Promoveu uma maior colaboração com os leigos, encorajando a corresponsabilidade na missão salesiana e enfrentando as resistências internas à mudança.

10. Dom Ángel Fernández Artime (2014-2024)
O ministério de Dom Ángel Fernández Artime se distingue por fidelidade ao carisma salesiano e ao papado. Eleito no Capítulo Geral 27.
Algumas características do seu reitorado:
– Guiou a Congregação com uma abordagem inclusiva, visitando 120 países e promovendo a adaptação do carisma salesiano às diversas realidades culturais, mantendo firme o laço com as raízes de Dom Bosco;
– Reforçou o compromisso para com os jovens mais vulneráveis, das periferias, herdando a abordagem de Dom Bosco;
– Enfrentou os desafios da globalização e das transformações eclesiais, promovendo a colaboração entre centros de estudo e renovando os instrumentos de governo da Congregação;
– Promoveu uma maior colaboração com os leigos, encorajando a corresponsabilidade na missão educativa e pastoral;
– Teve de enfrentar a pandemia de COVID-19 que exigiu adaptações nas obras educativas e assistenciais para continuar a servir os jovens e as comunidades em dificuldade;
– Teve de enfrentar a gestão dos recursos humanos e materiais em um período de crise vocacional e mudanças demográficas;
– Mudou a Casa Generalícia da Pisana para a obra fundada por Dom Bosco, Sagrado Coração de Roma;
– Seu compromisso culminou na nomeação a Cardeal (2023) e a Pró-Prefeito do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada (2025), marcando um reconhecimento da sua influência na Igreja universal.

Os Reitores-Mores da Congregação Salesiana desempenharam um papel fundamental no crescimento e no desenvolvimento da congregação. Cada um deles trouxe sua contribuição única, enfrentando os desafios do seu tempo e mantendo vivo o carisma de São João Bosco. Seu legado continua a inspirar as gerações futuras de salesianos e jovens em todo o mundo, garantindo que a missão educativa de Dom Bosco permaneça relevante e vital no contexto contemporâneo.

Apresentamos abaixo também uma estatística destes reitorados.

 Reitor-Mor Nascido em Início do mandato como Reitor-Mor Eleito aos … anos Fim do mandato como Reitor-Mor Reitor-Mor por… Viveu por… anos
BOSCO Giovanni 16.08.1815 18.12.1859 44 31.01.1888 (†) 28 anos e 1 mês 72
RUA Michele 09.06.1837 31.01.1888 50 06.04.1910 (†) 22 anos e 2 meses 72
ALBERA Paolo 06.06.1845 16.08.1910 65 29.10.1921 (†) 11 anos e 2 meses 76
RINALDI Filippo 28.05.1856 24.04.1922 65 05.12.1931 (†) 9 anos e 7 meses 75
RICALDONE Pietro 27.07.1870 17.05.1932 61 25.11.1951 (†) 19 anos e 6 meses 81
ZIGGIOTTI Renato 09.10.1892 01.08.1952 59 27.04.1965 († 19.04.1983) 12 anos e 8 meses 90
RICCERI Luigi 08.05.1901 27.04.1965 63 15.12.1977 († 14.06.1989) 12 anos e 7 meses 88
VIGANO Egidio 29.06.1920 15.12.1977 57 23.06.1995 (†) 17 anos e 6 meses 74
VECCHI Juan Edmundo 23.06.1931 20.03.1996 64 23.01.2002 (†) 5 anos e 10 meses 70
VILLANUEVA Pasqual Chavez 20.12.1947 03.04.2002 54 25.03.2014 11 anos e 11 meses 76
ARTIME Angel Fernandez 21.08.1960 25.03.2014 53 31.07.2024 10 anos e 4 meses 64



Eleições do primeiro Reitor-Mor

Durante o décimo primeiro Capítulo Geral da Congregação Salesiana, foi eleito o primeiro Reitor-Mor, o P. Paulo Álbera. Embora represente formalmente o segundo sucessor de Dom Bosco, na verdade foi o primeiro a ser eleito, pois o P. Rua já havia sido nomeado pessoalmente por Dom Bosco, por inspiração divina e a pedido do Papa Pio IX (a nomeação do P. Rua foi oficializada em 27 de novembro de 1884 e posteriormente confirmada pela Santa Sé em 11 de fevereiro de 1888). A seguir, deixemo-nos guiar pelo relato do P. Eugênio Ceria, que narra a eleição do primeiro sucessor de Dom Bosco e os trabalhos do Capítulo Geral.

            Não parece quase possível falar de antigos Salesianos sem partir de Dom Bosco. Desta vez é para admirar a divina Providência, que fez com que Dom Bosco, ao longo do árduo caminho, encontrasse os homens indispensáveis para a sua Congregação em vários graus e ofícios. Homens, digo, não feitos, mas a serem feitos. Coube ao fundador procurá-los jovens, fazê-los crescer, educá-los, instruí-los, informá-los de seu espírito, de modo que, onde quer que os enviasse, o representassem dignamente entre os Sócios e diante dos estranhos. Eis o caso também de seu segundo sucessor. O pequeno e esguio Paulinho Álbera, quando veio de sua aldeia natal para o Oratório, não se destacava entre a multidão de companheiros por nenhuma daquelas características que chamam a atenção sobre um recém-chegado; mas Dom Bosco não tardou a perceber nele a inocência de costumes, a capacidade intelectual velada por uma timidez natural e a índole de criança, que lhe dava boas esperanças. Levando-o até o altar, enviou-o como Diretor a Sampierdarena, depois como Diretor a Marselha e Inspetor para a França, onde o chamavam de petit Don Bosco [pequeno Dom Bosco], até que em 1886 a confiança dos coirmãos o elegeu Catequista geral, ou seja, Diretor espiritual da Sociedade. Mas ali suas ascensões não pararam.
            Após a morte do P. Rua, o governo da Sociedade passou, segundo a Regra, às mãos do Prefeito Geral P. Filipe Rinaldi, que, portanto, presidia o Capítulo Superior e dirigia os preparativos para o Capítulo Geral a ser realizado dentro do ano de 1910. O grande encontro foi estabelecido para se abrir em 15 de agosto, precedido por um curso de exercícios espirituais, feitos pelos Capitulares e pregados pelo P. Álbera.
            Um diário íntimo do P. Álbera, em inglês, nos permite conhecer quais eram seus sentimentos durante o período de espera. Sob o dia 21 de abril encontramos: “Falo longamente com o P. Rinaldi e com grande prazer. Desejo de todo coração que seja eleito para o cargo de Reitor-Mor da nossa Congregação. Vou rezar ao Espírito Santo para obter esta graça”. E sob o dia 26: “Raramente se fala do sucessor do P. Rua. Espero que o Prefeito seja eleito. Ele tem as virtudes necessárias para o cargo. Rezo todos os dias por esta graça”. Novamente em 11 de maio: “Aceito ir a Milão para o funeral do P. Rua. Estou muito feliz em obedecer ao P. Rinaldi, no qual reconheço meu verdadeiro Superior. Rezo todos os dias pedindo que seja eleito Reitor-Mor”. Sob o dia 6 de junho, revela o porquê de tanta propensão pelo P. Rinaldi, escrevendo sobre ele: “Tenho uma alta ideia de sua virtude, de sua capacidade e iniciativa”. Indo pouco depois a Roma em sua companhia, escrevia no dia 8, de Florença: “Vejo que O P. Rinaldi é bem aceito em todos os lugares e considerado como o sucessor do P. Rua. Deixa boa impressão naqueles com quem fala”.
            Se fosse, portanto, lícito fazer propaganda, ele teria sido seu grande eleitor. Nem eram poucos os Salesianos que pensavam da mesma forma. Não falemos dos espanhóis, entre os quais ele havia deixado grande herança de afeições. Inspetores e delegados, quando chegavam da Espanha para o Capítulo Geral, não faziam muitos mistérios nem mesmo ao falar com ele. Mas ele, a tais discursos, mostrava toda a indiferença de um surdo que não entende uma sílaba do que lhe é dito. Nesse aspecto, sua atitude era tal que impressionava seus alegres interlocutores. Havia realmente um mistério.
            Na noite da Assunção, ocorreu a reunião de abertura, na qual o P. Rinaldi “falou muito bem”, nota no diário do P. Álbera. A eleição do Reitor-Mor prosseguiu na sessão da manhã seguinte. Desde o início da votação, os nomes do P. Álbera e do P. Rinaldi se alternavam em breves intervalos. O primeiro parecia cada vez mais perturbado e atônito; o outro, por sua vez, não dava o menor sinal de emoção. A situação era notada, e não sem uma pontinha de curiosidade. Um grande aplauso saudou o voto, que alcançou a maioria absoluta, exigida pela Regra. O P. Rinaldi, ao completar o último ato em sua qualidade de presidente da assembleia com a proclamação do eleito, pediu para ler um de seus lembretes. Obtendo o consentimento, fez-se restituir pelo P. Lemoyne, Secretário do Capítulo Superior, um envelope fechado, entregue a ele em 27 de fevereiro e contendo a seguinte inscrição: “Para ser aberto após as eleições que ocorreriam com a morte do querido P. Rua”. Tendo-o em mãos, ele o deslacrou e leu: “O sr. P. Rua está gravemente doente e eu me sinto na obrigação de entregar por escrito o que se conserva em meu coração, ao seu sucessor. No dia 22 de novembro de 1877, celebrava-se em Borgo São Martinho a habitual festa de São Carlos. À mesa presidida pelo Venerável João Bosco e por Dom Ferrò, eu também estava ao lado do P. Belmonte. Em certo momento, a conversa caiu sobre o P. Álbera, contando Dom Bosco as dificuldades que lhe foram impostas pelo clero de sua terra. Foi então que Dom Ferrò quis saber se o P. Álbera havia superado aquelas dificuldades: — Certamente, respondeu Dom Bosco. Ele é o meu segundo… — E passando a mão pela testa, suspendeu a frase. Mas eu logo calculei que não era o segundo a entrar nem o segundo em dignidade, não sendo do Capítulo Superior, nem o segundo Diretor e deduzi que era o segundo sucessor; mas guardei essas coisas em meu coração, esperando os eventos. Turim, 27 de fevereiro de 1910”. Os eleitores então compreenderam o porquê de seu comportamento e sentiram seus corações se expandirem: haviam, portanto, eleito aquele que havia sido preconizado por Dom Bosco trinta e três anos antes.
            Imediatamente, foi encarregado o P. Bertello de formular dois telegramas de comunicação ao Santo Padre e ao Cardeal Rampolla, Protetor da Sociedade. Ao Papa dizia-se: “O P. Álbera, novo Reitor-Mor da Pia Sociedade Salesiana e Capítulo Geral, que com máxima concordância de ânimos hoje, no nonagésimo quinto aniversário do nascimento do Venerável Dom Bosco, o elegeu e com o máximo júbilo o festeja eleito, agradece a Vossa Santidade pelos preciosos conselhos e orações e protesta profundo respeito e obediência ilimitada”. Sua Santidade respondeu imediatamente enviando a bênção apostólica. No telegrama, aludia-se a um autógrafo pontifício de 9 de agosto. Era do seguinte teor: “Aos diletos filhos da Congregação Salesiana do Venerável Dom Bosco reunidos para a eleição do Reitor Geral, na certeza de que todos, excluído qualquer tipo de afeição humana, darão seu voto àquele Coirmão que julgarem no Senhor o mais adequado para manter o verdadeiro espírito da Regra, para encorajar e dirigir à perfeição todos os Membros do Instituto religioso, e para fazer prosperar as múltiplas obras de caridade e de religião, às quais se consagraram, concedemos com paterno afeto a Bênção Apostólica. Do Vaticano, 9 de agosto de 1910. Pio PP. X”.
            Também o Cardeal Protetor havia dirigido, em 12 de agosto, “ao Regulador e Eleitores do Capítulo” uma palavra paterna de augúrio e de encorajamento, dizendo entre outras coisas: “O vosso amadíssimo Dom Bosco, com o mais intenso afeto de pai, já sem dúvida vos dirige do Céu o olhar e implora fervorosamente do Divino Paráclito que derrame sobre vós as luzes celestiais, inspirando-vos sábios conselhos. A santa Igreja aguarda de vossos sufrágios um digno sucessor de Dom Bosco e do P. Rua, que saiba sabiamente conservar a obra deles, e até aumentá-la com novos incrementos. E eu também, com o mais vivo interesse, unido a vós na oração, formo calorosos votos, para que, com o favor divino, a vossa escolha seja sob todos os aspectos feliz e tal que me traga a doce consolação de ver a Congregação Salesiana cada vez mais robusta florescer em benefício das almas e em honra do Apostolado católico. Portanto, façam com que, em ato tão sagrado e solene, os vossos ânimos se mantenham longe de interesses humanos e sentimentos pessoais; para que, guiados unicamente por retas intenções e ardente desejo da glória de Deus e do maior bem do Instituto, unidos em nome do Senhor na mais perfeita concordância e caridade, possam escolher como vosso regente aquele que, por santidade de vida, seja exemplo, por bondade de coração, pai amoroso, por prudência e sabedoria, guia seguro, por zelo e firmeza, vigilante guardião da disciplina, da observância religiosa e do espírito do Venerável Fundador”. Sua Eminência, recebendo não muito depois o P. Álbera, deu-lhe sinais inequívocos de considerar que a escolha havia sido feita conforme aos votos por ele expressos.
            Qual era o sentimento do eleito nos primeiros instantes, diz o diário, no qual sob o dia 16 de agosto lemos: “Este é um dia de grande infortúnio para mim. Fui eleito Reitor-Mor da Pia Sociedade de São Francisco de Sales. Que responsabilidade sobre meus ombros! Agora mais do que nunca devo clamar: Vinde, ó Deus, em meu auxílio. Orei muito, especialmente diante da tumba de Dom Bosco”. Em sua carteira foi encontrado um papel amarelado, no qual havia traçado e assinado este programa: “Terei sempre Deus em vista, Jesus Cristo como modelo, a Auxiliadora em ajuda, a mim mesmo em sacrifício”.
            Todos os membros do Capítulo Superior haviam expirado seu mandato ao mesmo tempo e era necessário fazer a eleição, o que foi realizado na terceira sessão. Primeiro foi eleito o Prefeito Geral. A votação sobre o nome de do P. Rinaldi foi plebiscitária. Dos 73 votantes, 71 deram o voto a ele. Portanto, faltou apenas um voto, que foi para o P. Paulo Virion, Inspetor francês. O outro, muito provavelmente o seu, foi para o P. Pedro Ricaldone, Inspetor na Espanha, por ele muito estimado. Retomou, portanto, seu trabalho diário, que deveria durar ainda doze anos, até que ele mesmo se tornasse Reitor-Mor.
            Feito isso, o Capítulo passou à eleição dos demais, que foram: o P. Barberis, Catequista Geral; o P. José Bertello, Ecônomo; o P. Luís Piscetta, o P. Francisco Cerruti, o P. José Vespignani, Conselheiros. Este último, Inspetor na Argentina, agradeceu à assembleia pelo ato de confiança, dizendo-se obrigado por motivos particulares e também pela saúde a declinar a nomeação, pedindo que se chegasse a uma nova eleição. Mas o Superior não acreditou que deveria aceitar assim de imediato a renúncia e pediu que ele suspendesse até o dia seguinte qualquer decisão. No dia seguinte, convidado pelo Reitor-Mor a notificar a resolução tomada, respondeu que, seguindo o conselho do Superior, se entregava inteiramente à obediência, aceitando o cargo.
            O primeiro ato do reeleito Prefeito Geral foi comunicar oficialmente aos Sócios a eleição do novo Reitor-Mor. Em uma breve carta, mencionando rapidamente as várias fases de sua vida, recordava oportunamente o chamado “Sonho da Roda”, no qual Dom Bosco havia visto o P. Álbera com uma lamparina na mão iluminando e guiando os outros (MBp VI, 844). Então, muito oportunamente, concluía: “Meus caros coirmãos, que ressoem mais uma vez em seus ouvidos as amorosas palavras de Dom Bosco na carta-testamento: «Seu Reitor morreu, mas será eleito outro, que cuidará de vocês e de sua eterna salvação. Ouçam-no, amem-no, obedeçam-no, orem por ele, como fizeram por mim»”.
            Às Filhas de Maria Auxiliadora, o P. Álbera achou oportuno fazer sem muita demora uma comunicação, tanto mais que recebia delas cartas em bom número. Agradecia, portanto, pelos seus parabéns, mas principalmente pelas suas orações. “Espero, escrevia, que Deus atenda seus votos e que não permita que minha inépcia seja prejudicial àquelas obras, às quais o Venerável Dom Bosco e o inesquecível P. Rua consagraram toda a sua vida”. Desejava, por fim, que entre os dois ramos da família de Dom Bosco reinasse sempre uma santa competição em conservar o espírito de caridade e zelo deixado em herança pelo fundador.
            Agora vamos dar uma olhada fugaz nos trabalhos do Capítulo Geral. Pode-se dizer que houve um único tema fundamental. O Capítulo anterior, após uma revisão bastante sumária dos Regulamentos, deliberou que, assim como estavam, fossem praticados por seis anos a título de experimento e que o Capítulo XI os revisse, fixando o texto definitivo. Esses Regulamentos eram seis: para os Inspetores, para todas as casas salesianas, para as casas de noviciado, para as paróquias, para os oratórios festivos e para a Pia União dos Cooperadores. O mesmo Capítulo X, com uma petição assinada por 36 membros, havia solicitado que no XI se tratasse da questão administrativa e, sobretudo, da maneira de tornar cada vez mais proveitosos os recursos de entrada que a Providência concedia a cada casa salesiana. Para facilitar o árduo trabalho, foi nomeada para cada Regulamento uma Comissão, digamos assim, de técnicos, extracapitulares, com a tarefa de fazer os estudos relativos e apresentar ao próprio Capítulo as conclusões.
            As discussões, iniciadas na quinta sessão, se prolongaram por mais 21. Para esgotar a matéria, teria sido necessário prolongar muito mais os trabalhos; mas o Capítulo Geral, com votação unânime, delegou a tarefa de finalizar a revisão ao Capítulo Superior, que prometeu executá-la, nomeando uma Comissão específica. No entanto, o Capítulo Geral, para mostrar que não se desinteressava e para ajudar a obra, manifestou o desejo de criar uma Comissão encarregada de formular os principais critérios que deveriam guiar a nova Comissão dos Regulamentos em seu longo e delicado trabalho. Assim foi feito. Portanto, foram levadas ao conhecimento da assembleia e aprovadas dez normas diretivas, elaboradas por seus delegados sob a presidência do P. Ricaldone. O pano de fundo delas era manter firme o espírito de Dom Bosco, conservando íntegros aqueles artigos que se reconheciam seus, e eliminar dos Regulamentos o que continha de puramente exortativo.
            Do XI Capítulo Geral, não recordarei mais nada, exceto dois episódios, que parecem ter particular importância. O primeiro refere-se ao Regulamento dos Oratórios festivos. A Comissão extracapitular achou por bem podá-lo, principalmente na parte referente às diversas funções. Ao P. Rinaldi pareceu que se destruía o conceito de Dom Bosco sobre os Oratórios festivos; por isso, levantou-se dizendo: “O Regulamento impresso em 1877 foi realmente compilado por Dom Bosco, e o P. Rua me assegurou isso quatro meses antes de sua morte. Faço, portanto, votos para que seja conservado intacto, pois, se for praticado, verá que ainda é bom hoje”.
            Aqui se acendeu uma animada discussão, da qual colho as falas mais notáveis. O relator declarou que a Comissão ignorava totalmente essa particularidade; mas observou também que esse Regulamento nunca foi praticado integralmente em nenhum Oratório festivo, nem mesmo em Turim. A Comissão opinou que o Regulamento havia sido feito a partir dos Regulamentos dos Oratórios festivos lombardos; de qualquer forma, ela apenas pretendia podá-lo e introduzir o que fosse prático, conforme se encontrasse nos melhores Oratórios salesianos. Mas o P. Rinaldi não se aquietou e insistiu no desejo do P. Rua de que aquele Regulamento fosse respeitado, como obra de Dom Bosco, mesmo com a introdução do que se julgasse útil para os jovens adultos.
            O P. Vespignani reforçou essa tese. Ele, que chegou ao Oratório já sacerdote em 1876, havia recebido do P. Rua a tarefa de transcrever do original de Dom Bosco aquele Regulamento e ainda conservava os primeiros rascunhos. Também o P. Barberis assegurou ter visto o autógrafo. Os opositores tinham objeções quanto às funções. Mas o P. Rinaldi não se rendeu, ao contrário, proferiu estas palavras enérgicas: “Nada se altere do Regulamento de Dom Bosco, caso contrário, perderia a autoridade”. O P. Vespignani confirmou mais uma vez o seu pensamento com exemplos da América e especialmente do Uruguai, onde, ao se querer experimentar de forma diferente na época de Dom Lasagna, não se conseguiu nada. Finalmente, a controvérsia foi encerrada com a votação da seguinte ordem do dia: “O Capítulo Geral XI delibera que se conserve intacto o ‘Regulamento dos Oratórios festivos’ de Dom Bosco, tal como foi impresso em 1877, fazendo apenas em apêndice aquelas adições que se considerassem oportunas, especialmente para as seções dos jovens mais adultos”. É digna de elogio a sensibilidade da assembleia diante de uma tentativa de reforma em coisas sancionadas por Dom Bosco.
            O segundo episódio pertence à penúltima sessão por uma questão não estranha aos Regulamentos, como à primeira vista poderia parecer. Foi levantada novamente pelo P. Rinaldi, que se fez intérprete do desejo de muitos, de que fosse definida a posição dos Diretores nas casas após o decreto sobre as confissões. Até 1901, o fato de serem eles confessores ordinários dos sócios e dos alunos fazia com que, ao dirigir, agissem habitualmente com um espírito paternal (este assunto é amplamente exposto em Annali III,170-194). Depois disso, começou-se a observar que se estava perdendo o caráter paternal desejado por Dom Bosco em seus Diretores e por ele insinuado no Regulamento das casas e em outros lugares; os Diretores, de fato, se dedicavam a cuidar dos assuntos materiais, disciplinares e escolares, tornando-se Reitores e não mais Diretores. “Devemos voltar, dizia o P. Rinaldi, ao espírito e ao conceito de Dom Bosco, manifestado especialmente nas ‘Lembranças confidenciais’ (Annali III,49-53) e no Regulamento. O Diretor deve ser sempre um Diretor salesiano. Exceto o ministério da confissão, nada mudou”.
            O P. Bertello lamentou que os Diretores tivessem acreditado que deveriam deixar com a confissão também o cuidado espiritual da casa, dedicando-se a funções materiais. “Esperamos, disse, que tenha sido algo passageiro. É preciso voltar ao ideal de Dom Bosco, descrito no Regulamento. Leiam aqueles artigos, meditem e pratiquem” (Ele os citou conforme a edição da época; na presente seriam os artigos 156, 157, 158, 159, 57, 160, 91, 195). Concluiu o P. Álbera dizendo: “É uma questão essencial para a vida da nossa Sociedade que se conserve o espírito do Diretor segundo o ideal de Dom Bosco; caso contrário, mudamos a forma de educar e não seremos mais salesianos. Devemos fazer de tudo para conservar o espírito de paternidade, praticando as lembranças que Dom Bosco nos deixou: elas nos dirão como devemos agir. Especialmente nos relatórios, poderemos conhecer nossos súditos e orientá-los. Quanto aos jovens, a paternidade não implica carícias ou concessões ilimitadas, mas o interessar-se por eles, dar-lhes a possibilidade de nos procurar. Não esqueçamos também a importância do discursinho da noite. Que as pregações sejam feitas bem e com coração. Façamos ver que nos importa a salvação das almas e deixemos a outros as partes odiosas. Assim, será conservada ao Diretor a auréola com a qual Dom Bosco queria que fosse cercado”.
            Nesta ocasião, os Capitulares encontraram aberta no Oratório uma Exposição geral das Escolas Profissionais e Agrícolas Salesianas, a terceira, que durou de 3 de julho a 16 de outubro. Tendo já descrito as duas anteriores, não é necessário parar para repetir mais ou menos as mesmas coisas (Annali III, 452-472). Naturalmente, a experiência passada serviu para uma melhor organização da mostra. Prevaleceu o critério enunciado já duas vezes pelo organizador P. Bertello, que, segundo uma ordem desejada por Dom Bosco, cada Exposição desse tipo é um fato destinado a se repetir periodicamente para o ensinamento e estímulo das escolas. A abertura e o fechamento receberam brilho pela intervenção das autoridades municipais e de representantes do Governo. Visitantes nunca faltaram, e entre eles personalidades de alto grau e também de verdadeira competência. No último dia, o prof. Pedro Gribaudi fez ao novo Reitor-Mor a primeira apresentação de ex-alunos turinenses, num número de cerca de 300. O Deputado Cornaggia, em seu discurso final, pronunciou este julgamento digno de permanecer (Boletim Salesiano, nov. 1910, p. 332): “Quem teve a oportunidade de aprofundar o estudo sobre a organização dessas escolas e dos conceitos que as inspiram, não pode deixar de admirar a sabedoria daquele Grande, que compreendeu as necessidades operárias nas condições dos tempos novos, antecipando a filantropos e legisladores”.
            Participaram da mostra 55 casas com um número total de 203 escolas. A avaliação dos trabalhos expostos foi confiada a nove júris distintos, dos quais fizeram parte 50 entre os mais ilustres professores, artistas e industriais de Turim. Deveria ter a Exposição um caráter exclusivamente escolar, segundo esse critério os trabalhos foram julgados e os prêmios atribuídos. Estes últimos foram significativos, oferecidos pelo Papa (uma medalha de ouro), pelo Ministério da Agricultura e Comércio (cinco medalhas de prata), pela Prefeitura de Turim (uma medalha de ouro e duas de prata), pelo Consórcio Agrário de Turim (duas medalhas de prata), pela “Pro Torino” (uma medalha vermeil [feita de prata dourada], uma de prata e duas de bronze), pelos ex-alunos do Círculo “Dom Bosco” (uma medalha de ouro), pela Empresa “Augusta” de Turim (500 liras em material tipográfico a ser dividido em três prêmios), pelo Capítulo Superior salesiano (coroa de louros em prata dourada para o grande prêmio) (As atribuições estão listadas no número citado do Boletim Salesiano).
            Vale a pena relatar os últimos períodos da relação, que o P. Bertello leu antes que fossem proclamados os premiados. Ele disse: “Cerca de três meses atrás, no ato de inaugurar nossa pequena Exposição, lamentamos que pela morte do Rev.mo Sr. P. Rua faltasse Aquele a quem pretendíamos fazer a homenagem de nossos estudos e de nossos trabalhos em seu jubileu sacerdotal. A Divina Providência nos deu um novo Superior e Pai na pessoa do Rev.mo Sr. P. Álbera. Portanto, ao encerrar a Exposição, depositamos em suas mãos nossos propósitos e nossas esperanças, certos de que o artesão, que já foi antes cuidado do Venerável Dom Bosco e deleite do senhor P. Rua, sempre terá um lugar conveniente no afeto e nas solicitações de seu Sucessor”.
            Esse foi o último triunfo do P. Bertello. Pouco mais de um mês depois, em 20 de novembro, uma doença súbita extinguiu de repente uma existência tão operosa. O engenho robusto, a sólida cultura, a firmeza de caráter e a bondade de ânimo fizeram dele antes um sábio Diretor de colégio, depois um diligente Inspetor e, finalmente, por doze anos, um experiente Diretor Geral das escolas profissionais e agrícolas salesianas. Tudo ele devia, depois de Deus, a Dom Bosco, que o havia criado no Oratório desde pequeno e o formou à sua imagem e semelhança.
            O P. Álbera não hesitou em cumprir o grande dever de render homenagem ao Vigário de Jesus Cristo, Aquele que a Regra chama de “árbitro e supremo Superior” da Sociedade. Imediatamente, em 1º de setembro, partiu para Roma, onde, ao chegar no dia 2, já encontrou o bilhete de audiência para a manhã do dia 3. Parecia quase que Pio X estava impaciente para vê-lo. Dos lábios do Papa, recolheu algumas expressões amáveis, que guardou no coração. Aos agradecimentos pelo autógrafo e pela bênção, o Papa respondeu que acreditou agir assim para fazer conhecer o quanto lhe agradava a atividade mundial dos Salesianos e acrescentou: — Vocês nasceram ontem, é verdade, mas estão espalhados por todo o mundo e em todo lugar trabalham muito. — Estando informado das vitórias já obtidas nos tribunais contra os caluniadores de Varazze (Annali III, 729-749), advertiu: — Vigiai, porque outros golpes estão sendo preparados por seus inimigos. — Finalmente, solicitado humildemente por alguma norma prática para o governo da Sociedade, respondeu: — Não se afastem dos usos e das tradições introduzidas por Dom Bosco e pelo P. Rua.
            Já havia terminado 1910 e o P. Álbera ainda não havia feito uma comunicação a toda a Sociedade. Novas e contínuas ocupações, principalmente as muitas conferências com os 32 Inspetores, o impediam sempre de se reunir à mesa. Somente na primeira metade de janeiro, como se pode ver no diário, escreveu as primeiras páginas de uma circular, que deveria resultar longa. Ele a enviou com a data de 25. Pedindo desculpas pelo atraso em se manifestar, homenageou o P. Rua e elogiou o P. Rinaldi por seu bom governo interino da Sociedade, se deteve em detalhes sobre o Capítulo Geral, sobre sua própria eleição, sobre a visita ao Papa, sobre a morte do P. Bertello. Em tudo, tinha a aparência de um pai que se entretém familiarmente com os filhos. Ele também compartilhou com eles suas preocupações sobre os acontecimentos em Portugal. Com a monarquia deposta em Lisboa em outubro de 1910, os revolucionários atacaram implacavelmente os religiosos, assaltando-os com uma fúria selvagem. Os Salesianos não tiveram que lamentar vítimas; no entanto, os coirmãos do Pinheiro, perto de Lisboa, passaram um dia difícil. Um bando de energúmenos invadiu e saqueou aquela casa, não apenas zombando dos sacerdotes e dos clérigos, mas também profanando sacrilegamente a capela e, mais sacrilegamente, espalhando no chão e até pisoteando as hóstias consagradas. Quase todos os Salesianos tiveram que deixar Portugal, refugiando-se na Espanha ou na Itália. Os revolucionários ocuparam as escolas e os laboratórios, de onde foram expulsos os alunos. A perseguição também se estendeu às colônias, de modo que foi necessário abandonar Macau e Moçambique, onde se fazia um grande bem (Annali III, 606 e 622-4). Mas já naquela época, o P. Álbera podia escrever: “Os mesmos que nos dispersaram reconhecem que privaram seu país das únicas escolas profissionais que possuía”.
            Ele, que tantas vezes ouvira Dom Bosco nos primórdios da Sociedade prever a multiplicação de seus filhos em cada nação, mesmo remota, e via então aquelas previsões se realizando maravilhosamente, sentia certamente todo o peso da imensa herança recebida e considerava que por algum tempo não era para se meter em novas obras, mas convinha aplicar-se a consolidar as existentes. Portanto, considerava ser seu dever inculcar a mesma coisa a todos os Salesianos: para obter isso, não bastavam sozinhos os Superiores, recomendava calorosamente a cooperação comum. Como naquela época o modernismo também ameaçava as famílias religiosas, alertava os Salesianos, suplicando-lhes que fugissem de toda novidade que Dom Bosco e o P. Rua não poderiam aprovar.
            Junto com a circular, enviava também a cada casa um exemplar das circulares do P. Rua, que da cama da morte lhe havia dado a tarefa de reuni-las em um volume. O trabalho tipográfico já estava terminado há cerca de dois meses; de fato, a publicação trazia na frente uma carta do P. Álbera com a data de 8 de dezembro de 1910.
            Para o próximo aniversário da morte de Dom Bosco, enviava, portanto, às casas um duplo presente, a circular e o livro. A este segundo, ele dava uma atenção especial, porque sabia que estava oferecendo nele um grande tesouro de ascética e de pedagogia salesiana. As pegadas do P. Rua ele se propôs a seguir, propondo-se especialmente a imitar sua caridade e zelo em procurar o bem espiritual de todos os Salesianos.

Annali della Società salesiana, vol. IV (1910-1921), pp. 1-13




Vera Grita, peregrina de esperança

            Vera Grita, filha de Hamlet e de Maria Anna Zacco da Pirrera, nasceu em Roma no dia 28 de janeiro de 1923; era a segunda de quatro irmãs. Viveu e estudou em Savona, onde obteve a habilitação para o magistério. Aos 21 anos, durante uma repentina incursão aérea sobre a cidade (1944), foi atropelada e pisoteada pela multidão em fuga, sofrendo graves consequências para seu corpo, que a partir de então ficou marcado para sempre pelo sofrimento. Passou despercebida em sua breve vida terrena, ensinando nas escolas do interior da Ligúria (Rialto, Erli, Alpicella, Deserto de Varazze), onde conquistou a estima e o afeto de todos por seu caráter bondoso e manso.
            Em Savona, na paróquia salesiana de Maria Auxiliadora, participava da Missa e era assídua ao sacramento da Penitência. Desde 1963, seu confessor era o salesiano P. João Bocchi. Salesiana Cooperadora desde 1967, realizou sua vocação no dom total de si ao Senhor, que de maneira extraordinária se doava a ela, no íntimo de seu coração, com a “Voz”, com a “Palavra”, para comunicar-lhe a Obra dos Tabernáculos Vivos. Submeteu todos os escritos ao diretor espiritual, o salesiano P. Gabriel Zucconi, e guardou no silêncio de seu coração o segredo daquela vocação, guiada pelo divino Mestre e pela Virgem Maria que a acompanharam ao longo do caminho da vida oculta, do despojamento e do aniquilamento de si.
            Sob o impulso da graça divina e acolhendo a mediação dos guias espirituais, Vera Grita respondeu ao dom de Deus, testemunhando em sua vida, marcada pelo sofrimento da doença, o encontro com o Ressuscitado e dedicando-se com heroica generosidade ao ensino e à educação dos alunos, suprindo as necessidades da família e testemunhando uma vida de pobreza evangélica. Centrada e firme no Deus que ama e sustenta, com grande firmeza interior, foi capaz de suportar as provas e os sofrimentos da vida. Com base nessa solidez interior, deu testemunho de uma existência cristã feita de paciência e constância no bem.
            Morreu no dia 22 de dezembro de 1969, aos 46 anos, em um quartinho do hospital em Pietra Lígure, onde havia passado os últimos seis meses de vida em um crescendo de sofrimentos aceitos e vividos em união com Jesus Crucificado. “A alma de Vera – escreveu o P. Borra, Salesiano, seu primeiro biógrafo – com as mensagens e as cartas entra na fileira daquelas almas carismáticas chamadas a enriquecer a Igreja com chamas de amor a Deus e a Jesus Eucarístico para a dilatação do Reino”.

Uma vida privada das esperanças humanas
            Humanamente, a vida de Vera é marcada desde a infância pela perda de um horizonte de esperança. A perda da autonomia econômica em seu núcleo familiar, portanto, o afastamento dos pais para ir a Módica, na Sicília, com as tias e, sobretudo, a morte do pai em 1943, colocam Vera diante das consequências de eventos humanos particularmente sofridos. Após o dia 4 de julho de 1944, dia do bombardeio sobre Savona que marcará toda a vida de Vera, suas condições de saúde também estarão comprometidas para sempre. Por isso, a Serva de Deus se viu jovem sem qualquer perspectiva de futuro e teve que, em várias ocasiões, rever seus projetos e renunciar a muitos desejos: dos estudos universitários ao ensino e, sobretudo, a uma própria família com o jovem com quem estava namorando. Apesar do fim repentino de todas as suas esperanças humanas entre 20 e 21 anos, a esperança está muito presente em Vera: tanto como uma virtude humana que acredita em uma mudança possível e se empenha para realizá-la (mesmo muito doente, preparou e venceu o concurso para lecionar), quanto, sobretudo, como uma virtude teologal – ancorada na fé – que lhe infunde energia e se torna um instrumento de consolação para os outros.
            Quase todas as testemunhas que a conheceram ressaltam tal aparente contradição entre condições de saúde comprometidas e a capacidade de nunca se queixar, atestando, em vez disso, alegria, esperança e coragem mesmo em circunstâncias humanamente desesperadoras. Vera se tornou “portadora de alegria”.
            Uma sobrinha afirma: «Ela estava sempre doente e sofrendo, mas nunca a vi desanimada ou enraivecida por sua condição; sempre tinha uma luz de esperança sustentada pela grande fé. […] Minha tia estava frequentemente internada no hospital, sofrida e frágil, mas sempre serena e cheia de esperança pelo grande Amor que tinha por Jesus».
            Também a irmã Liliana tirou, dos telefonemas vespertinos com ela, encorajamento, serenidade e esperança, embora a Serva de Deus estivesse então sobrecarregada por numerosos problemas de saúde e por vínculos profissionais: «ela me infundia – diz – confiança e esperança, fazendo-me refletir que Deus está sempre perto de nós e nos conduz. Suas palavras me traziam de volta aos braços do Senhor e eu encontrava a paz».
            Inês Zannino Tibirosa, cujo testemunho é de particular valor pois visitou assiduamente Vera no hospital “Santa Corona” em seu último ano de vida, atesta: «apesar das graves dores que a doença lhe causava, nunca a ouvi reclamar de seu estado. Ela aliviava e dava esperança a todos que se aproximavam e, quando falava de seu futuro, o fazia com entusiasmo e coragem».
            Até o final, Vera Grita se manteve assim: mesmo na última parte de seu caminho terreno, guardou um olhar para o futuro, esperava que com os tratamentos o tuberculoma pudesse ser reabsorvido, esperava poder ocupar a cátedra nos Piani di Invrea no ano letivo de 1969-1970, assim como se dedicar à sua missão espiritual, logo que saísse do hospital.

Educada na esperança e no caminho espiritual pelo confessor
            Nesse sentido, a esperança atestada por Vera está enraizada em Deus e naquela leitura sapiencial dos eventos que seu guia espiritual, o P. Gabriel Zucconi, e, antes dele, o confessor, P. João Bocchi, lhe ensinaram. Precisamente o ministério do P. Bocchi – homem de alegria e esperança – exerceu uma influência positiva sobre Vera, que ele acolheu em sua condição de doente e a quem ensinou a dar valor aos sofrimentos – não buscados – dos quais estava sobrecarregada. Antes de tudo, o P. Bocchi foi mestre de esperança; dele se disse: «com palavras sempre cordiais e cheias de esperança, ele abriu os corações à magnanimidade, ao perdão, à transparência nas relações interpessoais; viveu as bem-aventuranças com naturalidade e fidelidade diária».
«Esperando e tendo a certeza de que, como aconteceu com Cristo, também acontecerá conosco: a Ressurreição gloriosa», o P. Bocchi realizava, através de seu ministério, um anúncio da esperança cristã, fundamentada na onipotência de Deus e na ressurreição de Cristo. Mais tarde, da África, para onde partiu como missionário, dirá: «estava lá porque queria levar e doar a eles Jesus Vivo e presente na Santíssima Eucaristia com todos os dons de Seu Coração: a Paz, a Misericórdia, a Alegria, o Amor, a Luz, a União, a Esperança, a Verdade, a Vida eterna».
            Vera se tornou portadora de esperança e de alegria também em ambientes marcados pelo sofrimento físico e moral, por limitações cognitivas (como entre seus pequenos alunos com deficiência auditiva) ou condições familiares e sociais não ideais (como no “clima escaldante” de Erli).
            A amiga Maria Mattalia recorda: «Vejo o doce sorriso de Vera, às vezes cansado por tanto lutar e sofrer; lembrando sua força de vontade, busco seguir seu exemplo de bondade, de grande fé, esperança e amor […]».
            Antonieta Fazio – ex-zeladora da escola de Casanova – testemunhou sobre ela: «era muito querida por seus alunos, que amava muito, e em particular por aqueles com dificuldades intelectuais […]. Muito religiosa, transmitia a cada um fé e esperança, embora ela mesma estivesse sofrendo muito fisicamente, mas não abatida moralmente».
            Nesses contextos, Vera trabalhava para fazer renascer as razões da esperança. Por exemplo, no hospital (onde a comida é pouco satisfatória) ela se privou de um cacho especial de uvas para deixar uma parte no criado-mudo de todas as doentes do quarto, assim como sempre cuidou de sua aparência para se apresentar bem, em ordem, com compostura e refinamento, contribuindo assim para combater o ambiente de sofrimento de uma clínica, e às vezes a perda da esperança em muitos doentes que correm o risco de “se deixar levar”.
            Através das Mensagens da Obra dos Tabernáculos Vivos, o Senhor a educou a uma postura de espera, paciência e confiança nele. Incontáveis são, de fato, as exortações sobre esperar o Esposo ou o Esposo que espera sua esposa:

“Espere em seu Jesus sempre, sempre.

Que Ele venha às nossas almas, venha às nossas casas; venha conosco para compartilhar alegrias e tristezas, cansaços e esperanças.

Deixe meu Amor agir e aumente sua fé, sua esperança.

Siga-me na escuridão, nas sombras porque você conhece o «caminho».

Espere em Mim, espere em Jesus!

Após o caminho da esperança e da espera, haverá a vitória.

Para chamá-los às coisas do Céu”.

Portadora de esperança ao morrer e ao interceder
            Mesmo na doença e na morte, Vera Grita testemunhou a esperança cristã.
            Sabia que, quando sua missão estivesse cumprida, também a vida na terra teria terminado. «Esta é a sua tarefa e quando estiver terminada você se despedirá da terra para os Céus»: por isso não se sentia “proprietária” do tempo, mas buscava a obediência à vontade de Deus.
            Nos últimos meses, apesar de uma condição agravante e exposta a um piora do quadro clínico, a Serva de Deus atestou serenidade, paz, percepção interior de um “cumprimento” de sua vida.
            Nos últimos dias, embora estivesse naturalmente apegada à vida, o P. José Formento a descreveu «já em paz com o Senhor». Nesse espírito, pôde receber a Comunhão até poucos dias antes de morrer, e receber a Unção dos Enfermos no dia 18 de dezembro.
            Quando a irmã Pina a visitou pouco antes da morte – Vera estava há cerca de três dias em coma – desobedecendo ao seu habitual recato, disse-lhe que havia visto muitas coisas, coisas belíssimas que, infelizmente, não tinha tempo de contar. Soube das orações do Padre Pio e do Papa Bom por ela, além de acrescentar – referindo-se à Vida eterna – «Todos vocês virão para o paraíso comigo, tenham certeza disso».
            Liliana Grita também testemunhou como, no último período, Vera «sabia mais do Céu do que da terra». Da sua vida foi feito o seguinte balanço: «ela, tão sofredora, consolava os outros, infundindo-lhes esperança e não hesitava em ajudá-los».
            Muitas graças atribuídas à mediação intercessora de Vera dizem respeito, por fim, à esperança cristã. Vera – mesmo durante a Pandemia de Covid 19 – ajudou muitos a reencontrar as razões da esperança e foi para eles proteção, irmã no espírito, ajuda no sacerdócio. Ajudou interiormente um sacerdote que, após um AVC, havia esquecido as orações, não conseguindo mais pronunciá-las com sua extrema dor e desorientação. Fez com que muitos voltassem a rezar, pedindo a cura de um jovem pai atingido por uma hemorragia.
            Também a Irmã Maria Hilária Bossi, Mestra das Noviças das Beneditinas do Santíssimo Sacramento de Ghiffa, observa como Vera – irmã no espírito – é uma alma que direciona ao Céu e acompanha em direção ao Céu: «Sinto-a irmã no caminho para o céu… Muitos […] que se reconhecem nela, e a ela se referem, no caminho evangélico, na corrida em direção ao céu».
            Em síntese, compreende-se como toda a história de Vera Grita foi sustentada não por esperanças humanas, pelo mero olhar para o “amanhã”, esperando que fosse melhor que o presente, mas por uma verdadeira Esperança teologal: «ela era serena porque a fé e a esperança sempre a sustentaram. Cristo estava no centro de sua vida, dele ela tirava a força. […] era uma pessoa serena porque tinha no coração a Esperança teologal, não a esperança superficial […], mas aquela que deriva somente de Deus, que é dom e nos prepara para o encontro com Ele».

            Numa oração a Maria da Obra dos Tabernáculos Vivos, lê-se: «Levante-nos [Maria] da terra para que aqui vivamos e sejamos para o Céu, para o Reino do seu Filho».
            É bonito também lembrar que o P. Gabriel teve que peregrinar na esperança entre tantas provas e dificuldades, como escreve em uma carta a Vera de 4 de março de 1968 de Florença: «No entanto, devemos sempre esperar. A presença das dificuldades não impede que, no final, o bem, o bom, o belo triunfem. A paz, a ordem, a alegria retornarão. O homem filho de Deus recuperará toda a glória que teve desde o princípio. O homem será salvo em Jesus e encontrará em Deus todo o bem. Então, vêm à mente todas as coisas belas prometidas por Jesus e a alma nele encontra sua paz. Coragem: agora estamos como em combate. Virá o dia da vitória. Essa é a certeza em Deus».
            Na igreja de Santa Corona em Pietra Lígure, Vera Grita participava da Missa e ia rezar durante os longos internamentos. Seu testemunho de fé na presença viva de Jesus Eucarístico e da Virgem Maria em sua breve vida terrena é um sinal de esperança e de conforto, para aqueles que neste lugar de cura pedirem sua ajuda e sua intercessão junto ao Senhor para serem aliviados e libertados do sofrimento.
            O caminho de Vera Grita na cansativa labuta dos dias também oferece uma nova perspectiva leiga à santidade, tornando-se exemplo de conversão, aceitação e santificação para os ‘pobres’, os ‘frágeis’, os ‘doentes’ que nela podem se reconhecer e reencontrar esperança.
            Escreve São Paulo, «que os sofrimentos do momento presente não são comparáveis à glória futura que deverá ser revelada em nós». Com «impaciência» esperamos contemplar o rosto de Deus, pois «na esperança fomos salvos» (Rom 8,18.24). Portanto, é absolutamente necessário esperar contra toda esperança, «Spes contra spem». Porque, como escreveu Carlos Péguy, a Esperança é uma criança «irredutível». Em relação à Fé que «é uma esposa fiel» e à Caridade que «é uma Mãe», a Esperança parece, à primeira vista, não valer nada. E, no entanto, é exatamente o contrário: será a Esperança, escreve Péguy, «que veio ao mundo no dia de Natal» e que «trazendo as outras, atravessará os mundos».
            «Escreva, Vera de Jesus, eu te darei luz. A árvore florida na primavera deu seus frutos. Muitas árvores deverão florescer novamente na estação oportuna para que os frutos sejam abundantes… Peço que aceite com fé cada prova, cada dor por Mim. Você verá os frutos, os primeiros frutos da nova floração». (Santa Corona – 26 de outubro de 1969 – Festa de Cristo Rei – Penúltima mensagem).




Os Meninos do Cemitério

O drama dos jovens abandonados continua a causar impacto no mundo contemporâneo. As estatísticas falam de cerca de 150 milhões de jovens forçados a viver nas ruas, uma realidade que se manifesta de forma dramática também em Monróvia, capital da Libéria. Por ocasião da festa de São João Bosco, em Viena, foi realizada uma campanha de conscientização promovida pela Jugend Eine Welt [Juventude de um só mundo], uma iniciativa que destacou não só a situação local, mas também as dificuldades encontradas em países distantes, como a Libéria, onde o salesiano Lothar Wagner dedica a sua vida a dar esperança a estes jovens.

Lothar Wagner: um salesiano que dedica a sua vida aos meninos de rua na Libéria
Lothar Wagner, salesiano coadjutor alemão, dedicou mais de vinte anos de sua vida ao apoio dos meninos na África Ocidental. Depois de ter amadurecido experiências significativas em Gana e Serra Leoa, nos últimos quatro anos concentrou-se com paixão na Libéria, um país marcado por conflitos prolongados, crises sanitárias e devastações como a epidemia de Ebola. Lothar tornou-se porta-voz de uma realidade muitas vezes ignorada, onde as cicatrizes sociais e econômicas comprometem as oportunidades de crescimento para os jovens.

A Libéria, com uma população de 5,4 milhões de habitantes, é um país onde a pobreza extrema é acompanhada de instituições frágeis e de uma corrupção generalizada. As consequências de décadas de conflitos armados e crises sanitárias deixaram o sistema educativo entre os piores do mundo, enquanto o tecido social se desgastou sob o peso de dificuldades econômicas e falta de serviços essenciais. Muitas famílias não conseguem garantir aos seus filhos as necessidades primárias, levando assim um grande número de jovens a procurar refúgio na rua.

Em particular, em Monróvia, alguns jovens encontram refúgio nos lugares mais inesperados: os cemitérios da cidade. Conhecidos como “meninos do cemitério”, estes jovens, sem uma habitação segura, refugiam-se entre os túmulos, lugar que se torna símbolo de um abandono total. Dormir ao ar livre, nos parques, nos aterros sanitários, até mesmo nos esgotos ou dentro de túmulos, tornou-se o trágico refúgio quotidiano para quem não tem outra escolha.

“É realmente muito comovente quando se caminha pelo cemitério e se veem meninos que saem dos túmulos. Deitam-se com os mortos porque não têm mais um lugar na sociedade. Uma situação deste tipo é escandalosa.”

Uma abordagem múltipla: do cemitério às celas de detenção
Não só os meninos dos cemitérios estão no centro da atenção de Lothar. O salesiano dedica-se também a outra realidade dramática: a dos detidos menores nas prisões liberianas. A prisão de Monróvia, construída para 325 detidos, acolhe hoje mais de 1.500 prisioneiros, entre os quais muitos jovens encarcerados sem uma acusação formal. As celas, extremamente superlotadas, são um claro exemplo de como a dignidade humana é muitas vezes sacrificada.

“Falta comida, água limpa, padrões higiênicos, assistência médica e psicológica. A fome constante e a dramática situação espacial devido à superlotação enfraquecem enormemente a saúde dos meninos. Numa pequena cela, projetada para dois detidos, estão trancados oito a dez jovens. Dorme-se por turnos, porque esta dimensão da cela oferece espaço só em pé aos seus numerosos habitantes”.

Para fazer face a esta situação, organiza visitas diárias na prisão, levando água potável, refeições quentes e um suporte psicossocial que se torna uma âncora de salvação. A sua presença constante é fundamental para procurar restabelecer um diálogo com as autoridades e as famílias, sensibilizando também sobre a importância de tutelar os direitos dos menores, muitas vezes esquecidos e abandonados a um destino infausto. “Não os deixamos sozinhos na sua solidão, mas procuramos dar-lhes uma esperança”, sublinha Lothar com a firmeza de quem conhece a dor quotidiana destas jovens vidas.

Um dia de conscientização em Viena
O apoio a estas iniciativas passa também pela atenção internacional. No dia 31 de janeiro, em Viena, a Jugend Eine Welt organizou um dia dedicado a evidenciar a precária situação dos meninos de rua, não só na Libéria, mas em todo o mundo. Durante o evento, Lothar Wagner compartilhou as suas experiências com estudantes e participantes, envolvendo-os em atividades práticas – como o uso de uma fita de sinalização para simular as condições de uma cela superlotada – para fazer compreender em primeira pessoa as dificuldades e a angústia dos jovens que vivem quotidianamente em espaços mínimos e em condições degradantes.

Além das emergências quotidianas, o trabalho de Lothar e dos seus colaboradores concentra-se também em intervenções a longo prazo. Os missionários salesianos, de fato, estão empenhados em programas de reabilitação que vão do suporte educativo à formação profissional para os jovens detidos, até à assistência legal e espiritual. Estas intervenções visam reintegrar os meninos na sociedade uma vez libertados, ajudando-os a construir um futuro digno e cheio de possibilidades. O objetivo é claro: oferecer não só uma ajuda imediata, mas criar um percurso que consinta aos jovens desenvolver as suas potencialidades e contribuir ativamente para o renascimento do país.

As iniciativas estendem-se também à construção de centros de formação profissional, escolas e estruturas de acolhimento, com a esperança de ampliar o número de jovens beneficiários e garantir um suporte constante, dia e noite. O testemunho de sucesso de muitos ex-“meninos do cemitério” – alguns dos quais tornaram-se professores, médicos, advogados e empresários – é a confirmação tangível de que, com o devido suporte, a transformação é possível.

Apesar do empenho e da dedicação, o percurso é repleto de obstáculos: a burocracia, a corrupção, a desconfiança dos meninos e a falta de recursos representam desafios quotidianos. Muitos jovens, marcados por abusos e exploração, têm dificuldade em confiar nos adultos, tornando ainda mais árdua a tarefa de instaurar uma relação de confiança e de oferta de um suporte real e duradouro. Contudo, cada pequeno sucesso – cada jovem que reencontra a esperança e começa a construir um futuro – confirma a importância deste trabalho humanitário.

O percurso empreendido por Lothar e pelos seus colaboradores testemunha que, apesar das dificuldades, é possível fazer a diferença na vida dos meninos abandonados. A visão de uma Libéria em que cada jovem possa realizar o próprio potencial traduz-se em ações concretas, da sensibilização internacional à reabilitação dos detidos, passando por programas educativos e projetos de acolhimento. O trabalho, assente em amor, solidariedade e uma presença constante, representa um farol de esperança num contexto em que o desespero parece prevalecer.

Num mundo marcado pelo abandono e pela pobreza, as histórias de renascimento dos meninos de rua e dos jovens detidos são um convite a acreditar que, com o devido suporte, cada vida pode ressurgir. Lothar Wagner continua a lutar para garantir a estes jovens não só um abrigo, mas também a possibilidade de reescrever o próprio destino, demonstrando que a solidariedade pode realmente mudar o mundo.




O nome

Na Faculdade de Medicina de uma grande universidade, o professor de anatomia distribuiu um questionário a todos os alunos como exame final.
Um aluno que havia se preparado meticulosamente respondeu prontamente a todas as perguntas até chegar à última.
A pergunta era: “Qual é o primeiro nome da senhora da limpeza?”.
O aluno entregou a prova, deixando a última resposta em branco.
Antes de entregar o trabalho, ele perguntou ao professor se a última pergunta do teste contaria para a nota.
“É claro!”, respondeu o professor. “Em sua carreira, você conhecerá muitas pessoas. Todas elas têm seu próprio grau de importância. Elas merecem sua atenção, mesmo com um pequeno sorriso ou um simples cumprimento.”
O aluno nunca esqueceu a lição e aprendeu que o primeiro nome da senhora da limpeza era Mariana.

Um discípulo perguntou a Confúcio: “Se o rei pedisse ao senhor para governar o país, qual seria sua primeira ação?”
“Eu gostaria de saber os nomes de todos os meus colaboradores.”
“Que bobagem! Certamente não é uma questão de interesse primário para um primeiro-ministro.”
“Um homem não pode esperar receber ajuda daquilo que não conhece”, respondeu Confúcio. “Se ele não conhece a natureza, não conhecerá Deus. Da mesma forma, se ele não souber quem está ao seu lado, não terá amigos. Sem amigos, ele não será capaz de elaborar um plano. Sem um plano, ele não conseguirá direcionar as ações de ninguém. Sem direção, o país mergulhará na escuridão e até mesmo os dançarinos não saberão mais como colocar um pé ao lado do outro. Portanto, uma ação aparentemente trivial, como aprender o nome da pessoa ao seu lado, pode fazer uma enorme diferença.
O pecado incorrigível de nosso tempo é que todos querem consertar as coisas imediatamente e se esquecem de que precisam dos outros para fazer isso”.