Que presente, o tempo!

O início do novo ano, em nossa liturgia, é iluminado pela antiga bênção com a qual os sacerdotes israelitas abençoavam o povo: «O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e se compadeça de ti. O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz.» (Nm 6,24-26).

Queridos amigos e leitores do Boletim Salesiano, estamos no início de um novo ano, portanto, vamos expressar uns aos outros os melhores votos para o tempo que virá, para o tempo que se aproxima, presente que contém todo outro presente no qual se desenvolve a nossa vida.
Vamos, portanto, encher este desejo de conteúdos que o iluminem. Demos a palavra a Dom Bosco que, ao chegar ao seminário de Chieri, parou diante do relógio de sol que, ainda hoje, se destaca na parede do pátio, e contava: «Erguendo os olhos para um relógio de sol, li este verso: Afflictis lentae, celeres gaudentibus horae» [Para os tristes as horas são lentas, para os joviais são rápidas.]  Eis, disse ao amigo, eis aí o nosso programa: vamos estar sempre alegres e o tempo passará depressa (Memórias Biográficas I, 300).
O primeiro augúrio que trocamos, para vivê-lo, é aquele que Dom Bosco nos lembra: viva bem, viva sereno e transmita serenidade a quem o cerca, o tempo terá outro valor! Cada momento do tempo é um tesouro; mas é um tesouro que passa rapidamente. Sempre Dom Bosco gostava de comentar: «Os três inimigos do homem são: a morte (que o surpreende); o tempo (que lhe foge), o demônio (que lhe estende seus laços)» (MBp V, 784).
«Lembre-se de que ser feliz não é ter um céu sem tempestades, uma estrada sem acidentes, trabalho sem esforço, relacionamentos sem decepções», recomenda um antigo augúrio. «Ser feliz não é apenas celebrar os sucessos, mas aprender lições com os fracassos. Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver a vida, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. É agradecer a Deus todas as manhãs pelo milagre da vida».
Um sábio tinha em seu escritório um enorme relógio de pêndulo que a cada hora soava com solene lentidão, mas também com grande estrondo.
«Mas isso não o incomoda?» perguntou um estudante.
«Não» respondeu o sábio. «Porque assim, a cada hora, sou obrigado a me perguntar: o que fiz da hora que passou?».
O tempo é o único recurso não renovável. Consome-se a uma velocidade incrível. Sabemos que não teremos outra oportunidade. Portanto, todo o bem que podemos fazer, o amor, a bondade e a gentileza de que somos capazes devemos doar agora. Porque não voltaremos a esta terra outra vez. Com um permanente véu de remorso em nosso íntimo, sentimos que Alguém nos perguntará: «O que você fez com todo aquele tempo que eu lhe dei?»

Nossa esperança se chama Jesus
No novo tempo que acabamos de começar, as datas e os números de um calendário são sinais convencionais, são sinais e números inventados para medir o tempo. Na transição do ano velho para o novo ano, mudou muito pouco, e ainda assim a percepção de um ano que termina nos obriga a sempre fazer um balanço. Quanto amamos? Quanto perdemos? Quanto nos tornamos melhores, ou quanto nos tornamos piores? O tempo que passa nunca nos deixa iguais.
A liturgia, ao surgir do novo ano, tem um jeito todo seu de nos levar a fazer um balanço. Ela o faz através das palavras iniciais do evangelho de João; palavras que podem parecer difíceis, mas que na verdade refletem a profundidade da vida: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus. Ela existia no princípio, junto de Deus. Tudo foi feito por meio dela, e sem ela nada foi feito de tudo o que existe. Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la” (Jo 1,1-5). No fundo de cada uma de nossas vidas ressoa uma Palavra maior do que nós. Ela é a razão pela qual existimos, pela qual o mundo existe, pela qual tudo existe. Esta Palavra, este Verbo, é Deus mesmo, é o Filho, é Jesus. O nome da razão pela qual fomos feitos se chama Jesus.
É Ele a verdadeira razão pela qual tudo existe, e é nele que podemos entender o que existe. Nossa vida não deve ser julgada comparando-a com a história, com seus eventos e sua mentalidade. Nossa vida não pode ser julgada, olhando para nós mesmos e para nossa única experiência. Nossa vida é compreensível apenas se for aproximada de Jesus. Nele tudo assume um sentido e um significado, mesmo do que de contraditório e injusto nos aconteceu. É olhando para Jesus que entendemos algo sobre nós mesmos. Um salmo diz bem quando afirma: “Na tua luz vemos a luz”.
Esta é a maneira de ver o Tempo segundo o Coração de Deus, e nós esperamos viver este novo tempo assim.
O novo ano trará a todos nós, à Família Salesiana, à Congregação, importantes eventos e novidades. Todos dentro do dom do Jubileu que na Igreja estamos vivendo.
Dentro do espírito do Jubileu, deixemo-nos levar pela Esperança que é a presença de Deus em nossa vida.
O primeiro mês deste novo ano, janeiro, é repleto de festas Salesianas que nos levam à Festa de Dom Bosco; agradeçamos a Deus por esta delicadeza com a qual nos concede começar o novo ano.
Deixemos, portanto, a última palavra a Dom Bosco e fixemos esta sua máxima, para que molde nosso ano de 2025: Filhinhos meus, conservem o tempo e o tempo os conservará por toda a eternidade (MB XVIII 482,864).




Perfis de famílias feridas na história da santidade salesiana

1. Histórias de famílias feridas
            Estamos acostumados a imaginar a família como uma realidade harmoniosa, caracterizada pela presença de várias gerações e pelo papel orientador dos pais que estabelecem normas, e dos filhos que, ao aprendê-las, são guiados por eles na experiência da realidade. No entanto, muitas vezes as famílias se veem atravessadas por dramas e incompreensões, ou marcadas por feridas que atacam sua configuração ideal e devolvem uma imagem distorcida, falsificada e enganosa.
            Também a história da santidade salesiana é marcada por histórias de famílias feridas: famílias onde falta pelo menos uma das figuras parentais, ou onde a presença da mãe e do pai se torna, por razões diversas (físicas, psíquicas, morais e espirituais), prejudicial para seus filhos, que hoje estão a caminho das honras dos altares. O próprio Dom Bosco, que experimentou a morte prematura do pai e o afastamento da família pela prudente vontade de Mamãe Margarida, deseja – não é por acaso – que a obra salesiana seja particularmente dedicada à “juventude pobre e abandonada” e não hesita em alcançar os jovens que se formaram em seu oratório com uma intensa pastoral vocacional (demonstrando que nenhuma ferida do passado é um obstáculo a uma vida humana e cristã plena). É, portanto, natural que a própria santidade salesiana, que se alimenta das existências de muitos jovens de Dom Bosco que depois foram consagrados por meio dele à causa do Evangelho, traga em si – como consequência lógica – traços de famílias feridas.
            Desses meninos e meninas que cresceram em contato com as obras salesianas, queremos apresentar três, cujas histórias se entrelaçam na biografia de Dom Bosco. Os protagonistas são:
            – A bem-aventurada Laura Vicuña, nascida no Chile em 1891, órfã de pai e cuja mãe inicia na Argentina uma convivência com o rico proprietário Manuel Mora; Laura, portanto, ferida pela situação de irregularidade moral da mãe, está pronta para oferecer a vida por ela;
            – O servo de Deus Carlos Braga, de Valtellina nascido em 1889, abandonado ainda pequeno pelo pai e cuja mãe é afastada ao ser considerada psicologicamente instável, por uma mistura de ignorância e maledicência; Carlos, portanto, que enfrenta grandes humilhações e verá sua vocação salesiana colocada em dificuldade por aqueles que temem nele um comprometedor reaparecimento da deficiência psíquica falsamente atribuído à mãe;
            – Finalmente, a serva de Deus Ana Maria Lozano, que nasceu em 1883 na Colômbia, segue o pai com sua família no lazareto, onde é forçada a se transferir após o aparecimento da terrível lepra, será obstaculizada em sua vocação religiosa, mas poderá finalmente realizá-la graças ao encontro providencial com o salesiano Luís Variara, beato.

2. Dom Bosco e a busca pelo pai
            Como Laura, Carlos e Ana Maria – marcados pela ausência ou pelas “feridas” de uma ou mais figuras parentais – antes deles, e de certo modo “por eles”, também Dom Bosco experimenta a falta de um núcleo familiar forte.
            As Memórias do Oratório devem logo se deter sobre a precoce perda do pai: Francisco morre aos 34 anos e Dom Bosco – não sem recorrer a uma expressão, em certos aspectos, desconcertante – reconhece que “Deus misericordioso os atingiu a todos com um grave infortúnio”. Assim, entre as primeiras lembranças do futuro santo dos jovens, surge uma experiência dilacerante: a do corpo do pai, do qual a mãe tenta afastá-lo, encontrando, no entanto, sua resistência: “Eu queria absolutamente ficar lá”, explica Dom Bosco, que então acrescentou: “Se papai não vem, não quero ir [embora]”. Margarida então lhe responde: “Pobre filho, venha comigo, você não tem mais pai”. Ela chora e Joãozinho, que carece de uma compreensão racional da situação, mas intui todo o drama com uma intuição afetiva e de empatia, faz sua a tristeza da mãe: “Eu chorava porque ela chorava, já que naquela idade não podia certamente compreender quão grande infortúnio era a perda do pai”.
            Diante do pai morto, Joãozinho demonstra considerá-lo ainda o centro de sua vida. Ele diz, de fato: “não quero ir (it. andare) [com você, mamãe]” e não, como esperaríamos: “não quero vir (it. venire)”. Seu ponto de referência é o pai – ponto de partida e desejável ponto de retorno – em relação ao qual todo afastamento parece desestabilizador. Na dramaticidade daqueles momentos, além disso, Joãozinho ainda não compreendeu o que significa a morte do genitor. Ele espera, de fato (“se papai não vem…”) que o pai ainda possa ficar perto dele: e, no entanto, já intui seu imobilismo, seu silêncio, sua incapacidade de protegê-lo e defendê-lo, a impossibilidade de ser levado pela mão para se tornar, por sua vez, um homem. Os eventos imediatamente seguintes, então, confirmam a João na certeza de que o pai amorosamente protege, orienta e guia e que, quando lhe falta, mesmo a melhor das mães, como Margarida é, pode prover apenas em parte. Em seu caminho de menino exuberante, o futuro Dom Bosco encontra, no entanto, outros “pais”: os quase-coetâneos Luís Comollo, que desperta nele a emulação das virtudes, e São José Cafasso, que o chama de “meu caro amigo”, faz um “gesto gracioso para se aproximar” e, ao fazer isso, o confirma na persuasão de que paternidade é proximidade, confiança e interesse concreto. Mas há, sobretudo, o P. Calosso, o sacerdote que “intercepta” o cabeludo Joãozinho durante uma “missão popular” e se torna determinante para seu crescimento humano e espiritual. Os gestos do P. Calosso operam no pré-adolescente João uma verdadeira revolução. O P. Calosso, antes de tudo, fala com ele. Então, dá-lhe voz. Depois, o encoraja. Além disso: se interessa pela história da família Bosco, demonstrando saber contextualizar a “hora” daquele menino no “todo” de sua história. Além disso, revela-lhe o mundo, ou melhor, de certa forma o reintegra ao mundo, fazendo-o conhecer coisas novas, presenteando-o com novas palavras e demonstrando-lhe que ele tem as capacidades para fazer muito e bem. Finalmente, o protege com o gesto e com o olhar, e cuida dele em suas necessidades mais urgentes e reais: «Enquanto eu falava, ele nunca desviou o olhar de mim. “Mantenha-se de bom ânimo, amigo, eu pensarei em você e em seus estudos”».

            No P. Calosso, João Bosco faz, portanto, a experiência de que a verdadeira paternidade merece um total e totalizante compromisso; leva à consciência de si; abre um “mundo ordenado” onde a regra dá segurança e educa para a liberdade:

            “Eu logo me coloquei nas mãos do P. Calosso. Então, conheci o que significa ter um guia estável […], um amigo fiel da alma… Ele me encorajou; todo o tempo que eu podia, passava perto dele… Daquela época em diante, comecei a saborear o que é a vida espiritual, já que antes agia de forma mais material e como uma máquina que faz uma coisa, sem saber a razão”.

            O pai terreno, no entanto, é também aquele que gostaria de estar sempre perto do filho, mas em certo momento não consegue mais fazê-lo. Também o P. Calosso morre; também o melhor pai, em certo momento, se afasta, para dar ao filho a força do desapego e da autonomia típicas da idade adulta.
            Qual é, então, para Dom Bosco, a diferença entre famílias bem-sucedidas ou fracassadas? Seríamos  tentados a dizer que está tudo aqui: “bem-sucedida” é a família caracterizada por pais que educam os filhos para a liberdade e, se os deixam, é apenas por uma impossibilidade que surgiu ou para o bem deles. “Ferida”, em vez disso, é a família onde o genitor não gera mais para a vida, mas traz em si problemas de várias naturezas que dificultam o crescimento do filho: um genitor que se desinteressa por ele e, diante das dificuldades, até o abandona, com uma atitude tão diferente da do Bom Pastor.
            As histórias biográficas de Laura, Carlos e Anna Maria confirmam isso.

3. Laura: uma filha que “gera” sua própria mãe
            Nascida em Santiago do Chile em 5 de abril de 1891, e batizada em 24 de maio seguinte, Laura é a filha mais velha de José D. Vicuña, um nobre decadente que havia se casado com Mercedes Pino, filha de modestos agricultores. Três anos depois, chega uma irmãzinha, Júlia Amanda, mas logo o pai morre, após ter sofrido uma derrota política que minou sua saúde e comprometeu, com o sustento econômico da família, também a honra. Privada de qualquer “proteção e perspectiva de futuro”, a mãe chega à Argentina, onde recorre à tutela do proprietário de terras Manuel Mora: um homem “de caráter soberbo e altivo”, que “não dissimula ódio e desprezo por quem quer que se oponha a seus planos”. Um homem que, portanto, apenas em aparência garante proteção, mas está na verdade acostumado a tomar, se necessário à força, o que deseja, instrumentalizando as pessoas. Enquanto isso, ele paga os estudos de Laura e da irmã no colégio das Filhas de Maria Auxiliadora e sua mãe – que sofre a influência psicológica de Mora – convive com ele sem encontrar a força para romper o vínculo. Quando, no entanto, Mora começa a mostrar sinais de desonesto interesse pela própria Laura, e especialmente quando esta inicia o caminho de preparação para a Primeira Comunhão, ela de repente compreende toda a gravidade da situação. Ao contrário da mãe – que justifica um mal (a convivência) em vista de um bem (a educação das filhas no colégio) – Laura entende que se trata de uma argumentação moralmente ilegítima, que coloca em grave perigo a alma da mãe. Nesse período, então, Laura gostaria de se tornar ela mesma uma irmã de Maria Auxiliadora: mas seu pedido é recusado, porque é filha de uma “concubina pública”. E é neste ponto que, precisamente em Laura – acolhida no colégio quando ainda dominavam nela “impulsividade, facilidade de ressentimento, irritabilidade, impaciência e propensão a aparecer” – se manifesta uma mudança que apenas a Graça, unida ao empenho da pessoa, pode operar: ela pede a Deus a conversão da mãe, oferecendo-se por ela. Nesse momento, Laura não pode se mover nem “para frente” (entrando entre as Filhas de Maria Auxiliadora) nem “para trás” (voltando para a mãe e para Mora). Com um gesto então carregado da criatividade típica dos santos, Laura inicia o único caminho que ainda lhe é acessível: o da altura e da profundidade. Nos propósitos da Primeira Comunhão, ela anotou:

            Proponho fazer o que sei e posso para […] reparar as ofensas que vós, Senhor, recebeis todos os dias dos homens, especialmente das pessoas da minha família; meu Deus, dai-me uma vida de amor, de mortificação e de sacrifício.

            Agora finaliza o propósito em “Ato de oferta”, que inclui o sacrifício da própria vida. O confessor, reconhecendo que a inspiração é de Deus, mas ignorando as consequências, consente e confirma que Laura está “consciente da oferta que acaba de fazer”. Ela vive os últimos dois anos com silêncio, alegria e sorriso e uma índole rica de calor humano. E, no entanto, o olhar que lança sobre o mundo – como confirma um retrato fotográfico, muito diferente da estilização hagiográfica conhecida – diz também toda a sofrida consciência e a dor que habitam nela. Em uma situação em que lhe falta tanto a “liberdade proveniente de” (condicionamentos, obstáculos, dificuldades), quanto a “liberdade de” fazer muitas coisas, esta pré-adolescente testemunha a “liberdade para”: a do dom total de si.
            Laura não despreza, mas ama a vida: a sua e a da mãe. Por isso se oferece. Em 13 de abril de 1902, Domingo do Bom Pastor, pergunta: “Se Ele dá a vida… o que me impede de fazer o mesmo pela mamãe?”. Moribunda, acrescenta: “Mamãe, eu estou morrendo, eu mesma pedi a Jesus… já faz quase dois anos que ofereci a vida por você…, para obter a graça do seu retorno!”.
            Essas são palavras livres de arrependimento e de reprovação, mas carregadas de uma grande força, uma grande esperança e uma grande fé. Laura aprendeu a acolher a mãe pelo que ela é. Na verdade, oferece a si mesma para dar a ela o que ela sozinha não consegue alcançar. Quando Laura morre, a mãe se converte. Laurita dos Andes, a filha, assim contribuiu para gerar a mãe na vida de fé e de graça.

4. Carlo Braga e a sombra da mãe
            Carlos Braga, que nasce dois anos antes de Laura, em 1889, também é marcado pela fragilidade da mãe: quando o marido a abandona, Matilde “quase não comia mais e declinava a olhos vistos”. Levada então a Como, ela morre quatro anos depois de tuberculose, embora todos estejam convencidos de que a depressão se transformou para ela em uma verdadeira loucura. Carlos começa então a ser “compadecido como o filho de um inconsciente [o pai] e de uma mãe infeliz”. No entanto, três acontecimentos providenciais o socorrem.
            Do primeiro, ocorrido quando ele era muito pequeno, ele redescobre mais tarde o sentido: ele havia caído na lareira e a mãe Matilde, ao salvá-lo, naquele momento o consagrou a Nossa Senhora. Assim, o pensamento da mãe ausente se torna para Carlos criança “uma lembrança dolorosa e consoladora ao mesmo tempo”: dor por sua ausência; mas também a certeza de que ela o confiou à Mãe de todas as mães, Maria Santíssima. Anos depois, o P. Braga escreve a um coirmão salesiano atingido pela perda de sua mãe:

            Agora a mãe te pertence muito mais do que quando estava viva. Deixa-me falar da minha experiência pessoal. Minha mãe me deixou quando eu tinha seis anos […]. Mas devo confessar-te que ela me seguiu passo a passo e, quando eu chorava desolado ao murmúrio do rio Adda, enquanto, pastorzinho, me sentia chamado a uma vocação mais alta, parecia que a Mãe me sorria e enxugava minhas lágrimas.

            Carlos então encontra a irmã Judite Torelli, uma Filha de Maria Auxiliadora que «salvou o pequeno Carlos da desagregação de sua personalidade quando, aos nove anos, percebeu que era apenas tolerado e ouviu algumas vezes as pessoas dizerem a seu respeito: ‘Pobre menino, por que ele está no mundo?’». De fato, havia quem sustentasse que seu pai merecia ser fuzilado pela traição do abandono; e, quanto à mãe, muitos colegas de escola lhe replicavam: “Fique quieto, sua mãe era uma louca”. Mas a irmã Judite o ama ou o ajuda de maneira especial; lança sobre ele um olhar “novo”; além disso, acredita em sua vocação e o encoraja.
            Tendo entrado então no colégio salesiano de Sondrio, Carlos vive a terceira e decisiva experiência: conhece o P. Rua, de quem tem a honra de ser o pequeno secretário por um dia. O P. Rua sorri para Carlos e, repetindo o gesto que Dom Bosco havia realizado um tempo atrás com ele (“Miguelzinho, eu e você faremos sempre tudo à meia”), “coloca sua mão dentro da dele e lhe diz: ‘nós seremos sempre amigos’”: se a irmã Judite havia acreditado na vocação de Carlos, o P. Rua agora lhe permite realizá-la, “fazendo-o passar por cima de todos os obstáculos”. Certamente, não faltarão dificuldades em cada etapa da vida de Carlos Braga – de noviço, clérigo, até inspetor –, concretizando-se em adiamentos prudenciais e assumindo às vezes a forma de maledicência: mas ele já terá aprendido a enfrentá-las. Enquanto isso, torna-se um homem capaz de irradiar uma alegria extraordinária, humilde, ativo e de delicada ironia: todas características que dizem do equilíbrio da pessoa e seu senso de realidade. Sob a ação do Espírito Santo, o P. Braga desenvolve ele mesmo uma paternidade radiante, à qual se une uma grande ternura pelos jovens a ele confiados. O P. Braga redescobre o amor por seu pai, o perdoa e inicia uma viagem para se reconciliar com ele. Submete-se a fadigas sem número para estar sempre entre seus Salesianos e jovens. Define-se como aquele que foi “colocado na vinha para servir como uma estaca”, ou seja, na sombra, mas para o bem dos outros. Um pai, ao confiar seu filho a ele como aspirante salesiano, diz: “Com um homem assim, deixo você ir até o Polo Norte!”. O P. Carlos não se escandaliza com as necessidades dos filhos, ao contrário, os educa a manifestá-las, a aumentar o desejo: “Você precisa de algum livro? Não tenha medo, escreva uma lista mais longa”. Acima de tudo, o P. Carlos aprendeu a lançar sobre os outros aquele olhar de amor do qual ele mesmo se sentiu alcançado um tempo atrás graças à irmã Judite e ao P. Rua. Testemunha o P. José Zen, hoje cardeal, num longo trecho que merece ser lido integralmente e que começa com as palavras de sua mãe a ao P. Braga:

            “Veja, Padre, este garoto não é mais tão bom. Talvez não seja adequado para ser aceito neste instituto. Eu não gostaria que o senhor fosse enganado. Ah, se soubesse como ele me fez desesperar neste último ano! Eu realmente não sabia mais o que fazer. E se ele fizer o senhor desesperar aqui também, me avise, que eu venho buscá-lo imediatamente”. O P. Braga, em vez de responder, olhava nos meus olhos; eu também o olhava, mas de cabeça baixa. Sentia-me como um réu acusado pelo Ministério Público, em vez de defendido pelo próprio advogado. Mas o juiz estava do meu lado. Com o olhar, ele me compreendeu profundamente, imediatamente e melhor do que todas as explicações de minha mãe. Ele mesmo, escrevendo-me muitos anos depois, aplicava a si as palavras do Evangelho: “Intuitus dilexit eum (‘olhando-o, o amou’)”. E desde aquele dia não tive mais dúvidas sobre minha vocação.

5. Ana Maria Lozano Díaz e a fecunda doença do pai
            Os pais de Laura e de Carlos se revelaram – a vários títulos – “distantes” e “ausentes”. Uma última figura, a de Ana Maria, atesta, ao contrário, o dinamismo oposto: o de um pai demasiadamente presente, que com sua presença abre à filha um novo caminho de santificação. Ana nasceu em 24 de setembro de 1883 em Oicatà, na Colômbia, numa família numerosa, caracterizada pela exemplar vida cristã dos pais. Quando Ana é muito jovem, o pai – um dia, ao se lavar – descobre uma mancha suspeita na perna. É a terrível lepra, que ele consegue esconder por algum tempo, mas é forçado a reconhecer, aceitando primeiro se separar da família, depois se reunir a ela no lazareto de Agua de Dios. A esposa lhe disse heroicamente: “Seu destino é o nosso”. Assim, os saudáveis aceitam os condicionamentos que advêm de assumir o ritmo dos doentes. Nesse momento, a doença do pai condiciona a liberdade de escolha de Ana Maria, forçada a projetar sua vida no lazareto. Ela também – como já havia acontecido com Laura – se vê impossibilitada de realizar sua vocação religiosa devido à doença paterna: experimenta então, interiormente, aquela laceração que a lepra opera nos doentes. No entanto, Ana Maria não está sozinha. Como Dom Bosco encontrou um amigo da alma, graças ao P. Calosso, assim Laura o encontrou no confessor e Carlos no P. Rua. É o beato P. Luís Variara, salesiano, que lhe assegura: “Se você tem vocação religiosa, ela se realizará”, e a envolve na fundação das Filhas dos Sagrados Corações de Jesus e Maria, em 1905. É o primeiro Instituto a acolher em seu interior leprosas ou filhas de leprosos. Quando a Ir. Lozano morre, em 5 de março de 1982, quase aos 99 anos, Madre Geral por mais de meio século, a intuição do salesiano P. Variara já se concretizou em uma experiência que confirmou e reforçou a dimensão vitimal-reparadora do carisma salesiano.

6. Os santos ensinam
            Nas suas inelimináveis diferenças, as histórias de Laura Vicuña (beata), Carlos Braga e Ana Maria Lozano (servos de Deus) são unidas por alguns aspectos dignos de nota:
            a) Laura, Ana e Carlos, como já Don Bosco, sofrem situações de sofrimento e de dificuldade, por vários títulos relacionadas aos seus pais. Não se pode esquecer de Mamãe Margarida, que se vê obrigada a afastar Joãozinho de casa quando a ausência da autoridade paterna facilita a oposição com o irmão Antônio; nem esquecer que Laura foi assediada por Mora e rejeitada pelas Filhas de Maria Auxiliadora como sua aspirante; que Carlos Braga sofreu incompreensões e calúnias; ou que a lepra do pai parece em certo momento retirar de Ana Maria toda esperança de futuro.
            Uma família por vários títulos ferida causa, portanto, um dano objetivo a quem dela faz parte: desconhecer ou tentar reduzir a magnitude desse dano seria uma empreitada tão ilusória quanto injusta. A cada sofrimento se associa, de fato, um elemento de perda que os “santos”, com seu realismo, interceptam e aprendem a chamar pelo nome.
            b) Joãozinho, Laura, Ana Maria e Carlos realizam neste ponto um segundo passo, mais árduo que o primeiro: em vez de sofrer passivamente a situação, ou de se queixar dela, movem-se com crescente consciência em direção ao problema. Além de um vivo realismo, atestam a capacidade, típica dos santos, de reagir prontamente, evitando o recuo autorreferencial. Eles se dilatam no dom e inserem esse dom nas condições concretas de vida. Ao fazer isso, unem o “da mihi animas” ao “caetera tolle”.
            c) Os limites e as feridas, assim, nunca são removidos: mas sempre reconhecidos e chamados pelo nome; inclusive, são “habitados”. Também a beata Alexandrina Maria da Costa e o servo de Deus Nino Baglieri, o venerável André Beltrami e o beato Augusto Czartoryski, “alcançados” pelo Senhor nas condições incapacitantes de sua doença, o beato Tito Zeman, o venerável José Vandor e o servo de Deus Ignácio Stuchlý – parte de histórias maiores que eles e que parecem sobrepujá-los – ensinam a difícil arte de permanecer nas dificuldades e permitir que o Senhor faça florescer a pessoa nelas. A liberdade de escolha assume aqui a forma altíssima de uma liberdade de adesão, no “fiat!”.

Nota Bibliográfica:
            Para preservar o caráter de “testemunho” e não de “relação” deste escrito, evitou-se um aparato crítico de notas. No entanto, ressalta-se que as citações presentes no texto são extraídas das Memórias do Oratório do P. João Bosco; de Maria Dosio, Laura Vicuña: um caminho de santidade juvenil salesiana, LAS, Roma, 2004; de P. Carlo Braga conta sua experiência missionária e pedagógica (testemunho autobiográfico do servo de Deus) e da Vida do P. Carlos Braga; “o Dom Bosco da China”, escrita pelo salesiano P. Mário Rassiga e hoje disponível em forma mimeografada. A essas fontes se somam os materiais dos Processos de beatificação e canonização, acessíveis para Don Bosco e Laura, ainda reservados para os servos de Deus.




André Beltrami, perfil virtuoso (2/2)

(continuação do artigo anterior)

3. História de uma alma

3.1. Amar e sofrer
            O P. Barberis esboça muito bem a parábola existencial de Beltrami, lendo nela a ação misteriosa e transformadora da graça em ação “através das principais condições da vida salesiana, de modo que ele pudesse ser um modelo geral de aluno, clérigo, professor, estudante universitário, sacerdote, escritor, doente; um modelo em todas as virtudes, na paciência como na caridade, no amor à penitência como no zelo”. E é interessante que o próprio P. Barberis, ao introduzir a segunda parte de sua biografia, que trata das virtudes do P. Beltrami, afirma: “Pode-se dizer que a vida do nosso P. Beltrami é mais a história de uma alma do que a história de uma pessoa. É tudo intrínseco; e eu faço o máximo para que o caro leitor penetre nessa alma, para que possa admirar seus carismas celestiais”. A referência a “A história de uma alma” não é acidental, não só porque o P. Beltrami é contemporâneo da Santa de Lisieux, mas podemos dizer que eles são verdadeiramente irmãos no espírito que os animava. O zelo apostólico pela salvação é mais autêntico e frutífero naqueles que experimentaram a salvação e, tendo se encontrado salvos pela graça, vivem suas vidas como um puro dom de amor para seus irmãos e irmãs, para que eles também possam ser alcançados pelo amor redentor de Jesus. “Na verdade, toda a vida do nosso P. André poderia ser resumida em duas palavras, que formam sua identidade ou lema: Amar e sofrer – Amor e sofrimento. Amor o mais terno, o mais ardente e, eu diria também, o mais zeloso possível em relação àquele bem, no qual todo o bem está concentrado. A dor, a mais viva, a mais aguda, a mais penetrante de seus pecados, e a contemplação daquele bem supremo, que para nós se rebaixou à loucura, às dores e à morte da Cruz. Daqui nascia uma ânsia febril de sofrimento, do qual, quanto mais abundava, mais sentia desejo: daqui veio novamente aquele gosto, aquele inefável prazer no sofrimento, que é o segredo dos santos, e uma das mais sublimes maravilhas da Igreja de Jesus Cristo”.
            “E como no Sagrado Coração de Jesus, ardente de chamas e coroado de espinhos, ambos estes afetos de amor e de dor encontram tão abundante pastagem, e tão admiravelmente proporcionado a eles, assim, desde o primeiro instante em que conheceu esta devoção, até o último de sua vida, seu coração foi como um vaso de aromas escolhidos que sempre ardiam diante daquele divino coração, e transmitiam o perfume do incenso e da mirra, do amor e da dor”. “Obter do Coração de Jesus a tão desejada graça de viver longos anos para sofrer e expiar meus pecados. Não morrer, mas viver para sofrer, mas sempre sujeito à vontade de Deus. Assim poderei saciar essa sede. É tão bonito, tão doce sofrer quando Deus ajuda e dá paciência!”. Esses textos são uma síntese da espiritualidade vitimal do P. Beltrami, que na perspectiva da devoção ao Sagrado Coração, tão cara à espiritualidade do século XIX e ao próprio Dom Bosco, supera qualquer leitura lamentosa ou, pior ainda, certo masoquismo espiritualista. De fato, foi também graças ao P. Beltrami que o P. Rua consagrou oficialmente a Congregação Salesiana ao Sagrado Coração de Jesus na última noite do século XIX.

3.2. No rastro da Santa de Lisieux
            A brevidade da vida cronológica é compensada pela surpreendente riqueza do testemunho de uma vida virtuosa, que em pouco tempo expressou um intenso fervor espiritual e um singular empenho de perfeição evangélica. É significativo que o Venerável Beltrami tenha encerrado sua existência exatamente três meses após a morte de Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face, que foi proclamada Doutora da Igreja por João Paulo II pela eminente Ciência do Amor Divino que a distinguiu. Através de “A história de uma alma” emerge a biografia interna de uma vida que, moldada pelo Espírito no jardim do Carmelo, floresceu com frutos de santidade e fecundidade apostólica para a Igreja universal, tanto que em 1927 foi proclamada Padroeira das Missões por Pio XI. O P. Beltrami também morreu como Santa Teresinha de tuberculose, mas ambos, nas golfadas de sangue que os levavam rapidamente ao fim, não viram tanto o definhamento de um corpo e a diminuição das forças, mas compreenderam uma vocação particular de viver em comunhão com Jesus Cristo, que os assimilou ao seu sacrifício de amor pelo bem dos irmãos. Em 9 de junho de 1895, na Festa da Santíssima Trindade, Santa Teresa do Menino Jesus se ofereceu como vítima de holocausto ao amor misericordioso de Deus. Em 3 de abril do ano seguinte, na noite entre a Quinta-feira Santa e a Sexta-feira Santa, ela teve a primeira manifestação da doença que a levaria à morte. Teresa a recebe como uma visita misteriosa do divino Esposo. Ao mesmo tempo, ela entra na provação da fé, que durará até sua morte. Como sua saúde se deteriorou, ela foi transferida para a enfermaria em 8 de julho de 1897. Suas irmãs e outras religiosas recolhem suas palavras, enquanto as dores e provações, suportadas com paciência, se intensificam até culminar em sua morte na tarde de 30 de setembro de 1897. “Eu não morro, entro na vida”, ela havia escrito para seu irmão espiritual, o P. Bellière. Suas últimas palavras “Meu Deus, eu te amo” são o selo de sua existência.
            Até o fim de sua vida, o P. Beltrami também seria fiel à sua oferta de vítima, como escreveu alguns dias antes de sua morte ao seu mestre de noviciado: “Eu sempre rezo e me ofereço como vítima pela Congregação, por todos os Superiores e coirmãos e especialmente por estas casas de noviciado, que contêm as esperanças de nossa piedosa Sociedade”.

4. Espiritualidade vitimal
            O P. Beltrami também relaciona a essa espiritualidade de vítima um grau sublime de caridade: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). Isso não significa apenas o gesto extremo e supremo da doação física da própria vida por outra pessoa, mas a vida inteira do indivíduo orientada para o bem do outro. Ele se sentiu chamado a essa vocação: “Há muitos”, acrescentou, “mesmo entre nós salesianos, que trabalham muito e fazem um grande bem; mas não há muitos que realmente amem sofrer e queiram sofrer muito pelo Senhor: eu quero ser um destes”. Justamente porque não é algo cobiçado pela maioria, consequentemente também não é compreendido. Mas isso não é novidade. Até mesmo Jesus, quando falou aos discípulos sobre sua Páscoa, sobre sua subida a Jerusalém, encontrou incompreensão, e o próprio Pedro o quis afastar desse propósito. Na hora suprema, seus “amigos” o traíram, negaram-no e o abandonaram. No entanto, a obra da redenção foi e é realizada somente por meio do mistério da cruz e da oferta que Jesus faz de si mesmo ao Pai como vítima de expiação, unindo ao seu sacrifício todos aqueles que aceitam participar de seus sofrimentos para a salvação de seus irmãos e irmãs. A verdade desta oferta de Beltrami está na fecundidade oferecida por sua vida santa. De fato, ele deu eficácia às suas palavras, apoiando particularmente os seus coirmãos na vocação, estimulando-os a aceitar com espírito de sacrifício as provas da vida na fidelidade à vocação salesiana. Nas Constituições primitivas, Dom Bosco apresentava o salesiano como aquele que “está pronto a suportar o calor e o frio, a sede e a fome, o trabalho e o desprezo, quando se trata da glória de Deus e da salvação das almas”.
            A mesma doença levou o P. Beltrami tanto à consumação progressiva quanto ao isolamento forçado, o que deixava suas faculdades perceptivas e intelectuais intactas, na verdade quase refinando-as com a lâmina da dor. Somente a graça da fé permitia que ele abraçasse essa condição que, dia após dia, o assimilava cada vez mais ao Cristo crucificado e que uma estátua do “Ecce Homo”, de um realismo chocante e de arrepiar, solicitada por ele em seu quarto, o lembrava constantemente. A fé era a regra de sua vida, a chave para entender as pessoas e as diferentes situações; “à luz da fé, ele considerava seus próprios sofrimentos como graças de Deus e, juntamente com o aniversário de sua profissão religiosa e ordenação sacerdotal, comemorava o do início de sua grave doença, que ele acreditava ter começado em 20 de fevereiro de 1891. Nessa ocasião, recitava com entusiasmo o Te Deum porque o Senhor lhe concedeu de sofrer por Ele”. Meditava e cultivava uma viva devoção à Paixão de Cristo e a Jesus Crucificado: “Grande devoção, que se pode dizer que informou toda a vida do servo de Deus… Esse era o tema quase contínuo de suas meditações. Ele sempre tinha um crucifixo diante dos olhos e principalmente nas mãos… que ele beijava de vez em quando com fervor”.
            Depois de sua morte, foi encontrada uma bolsa pendurada em seu pescoço, com o crucifixo e a medalha de Maria Auxiliadora, contendo alguns papéis: orações em lembrança de sua ordenação; um mapa no qual foram desenhados os cinco continentes, para lembrar sempre ao Senhor os missionários espalhados pelo mundo; e algumas orações com as quais ele se fez formalmente vítima do Sagrado Coração de Jesus, especialmente pelos moribundos, pelas almas do purgatório, pela prosperidade da Congregação e da Igreja. Essas orações, nas quais o pensamento predominante ecoava a súplica de Paulo “Opto ego ipse anathema esse a Christo pro fratribus meis [desejaria ser, eu mesmo, excluído de Cristo em favor de meus irmãos – Rm 9,3]”, foram assinadas por ele com seu próprio sangue e aprovadas por seu diretor, o P. Luís Piscetta, em 15 de novembro de 1895.

5. O P. Beltrami é atual?
            A pergunta nãoé ociosa; já havia sido feita pelos jovens coirmãos do Estudantado Teológico Internacional de Turim-Crocetta quando, em 1948, por ocasião do 50º aniversário da morte do Venerável P. Beltrami, organizaram um dia comemorativo. Desde as primeiras linhas do livreto que reunia os discursos pronunciados naquela ocasião, pergunta-se o que o testemunho de Beltrami tinha a ver com a vida salesiana, uma vida de apostolado e ação. Pois bem, depois de recordar como ele foi exemplar nos anos em que pôde se lançar ao trabalho apostólico, “foi também salesiano ao aceitar a dor quando esta parecia esmagar uma carreira e um futuro tão brilhante e frutuosamente empreendidos. Porque foi ali que o P. André revelou uma profundidade de sentimento salesiano e uma riqueza de dedicação que antes, no trabalho, podia ser tomada como ousadia juvenil, um impulso para agir, uma riqueza de dons, algo normal, ordinário em suma. O extraordinário começa, ou melhor, revela-se na doença e por meio dela. O P. André, segregado, agora excluído para sempre do magistério, da vida fraterna de colaboração com os coirmãos e do grande empreendimento de Dom Bosco, sentiu-se lançado em um caminho novo e solitário, talvez repugnante para seus irmãos; certamente repugnante para a natureza humana, ainda mais para a sua, tão rica e exuberante! O P. Beltrami aceitou esse caminho e o percorreu com espírito salesiano: salesianamente”.
            É surpreendente que se afirme que o P. Beltrami, de certa forma, inaugurou um novo caminho na esteira traçada por Dom Bosco, um chamado especial para iluminar o núcleo profundo da vocação salesiana e o verdadeiro dinamismo da caridade pastoral: “Precisamos ter o que ele tinha no coração, o que ele vivia profundamente em seu íntimo. Sem essa riqueza interior, a nossa ação seria vã; o P. Beltrami poderia nos censurar pela nossa vida vã, dizendo com Paulo: “nos quasi morientes, et ecce: vivimus! [como agonizantes, e no entanto bem vivos – 2Cor 6,9]”. Ele mesmo tinha consciência de que havia iniciado um novo caminho, como testemunhou seu irmão José: “Na metade da aula, ele tentou me convencer da necessidade de seguir seu caminho, e eu, não pensando como ele, me opunha, e ele sofria”. Esse sofrimento vivido na fé foi verdadeiramente frutífero apostólica e vocacionalmente: “Foi uma manifestação da nova e original concepção salesiana desejada e implementada por ele, de uma dor física e moral, ativa, produtiva, inclusive materialmente, para a salvação das almas”.
            Deve-se dizer também que, seja por causa de certo clima espiritual um tanto pietista, seja talvez mais inconscientemente, para não se deixar provocar demais pelo seu testemunho, com o passar do tempo enraizou-se uma interpretação que gradualmente levou ao esquecimento, também por causa das grandes mudanças ocorridas. Uma expressão desse processo são, por exemplo, as pinturas que o reproduzem, das quais aqueles que o conheceram, como o P. Eugênio Ceria, não gostavam muito, porque se lembravam dele como jovial, com um aspecto aberto que inspirava confiança e segurança naqueles que se aproximavam dele. O P. Ceria também recorda que, já durante os anos em Foglizzo, o P. Beltrami vivia uma vida interior intensa, uma união profunda e impetuosa com Deus, alimentada pela meditação e pela comunhão eucarística, a tal ponto que, mesmo no meio do inverno, com temperaturas congelantes, não usava casaco e mantinha a janela aberta, de modo que era chamado de “urso branco”.

5.1. Testemunha de união com Deus
            Esse espírito de sacrifício o fez amadurecer numa profunda união com Deus: “Sua oração consistia em estar continuamente na presença de Deus, mantendo os olhos fixos no Tabernáculo e desabafando com o Senhor mediante contínuas jaculatórias e aspirações afetuosas. Pode-se dizer que sua meditação era contínua… ela o penetrava tanto que ele não percebia o que estava acontecendo ao seu redor, e penetrava tanto o assunto que eu o ouvi dizer confidencialmente que ele geralmente entendia os mistérios sobre os quais estava meditando tão bem que parecia vê-los como se estivessem aparecendo diante de seus olhos”. Essa união significava e se realizava de modo especial na celebração da Eucaristia, quando todas as dores e tosses cessavam como por encanto, traduzidas em perfeita conformidade com a vontade de Deus, especialmente pela aceitação do sofrimento: “Considerava o apostolado dos sofrimentos e das aflições não menos frutífero do que o da vida mais ativa; e enquanto outros teriam dito que ocupava suficientemente aqueles longos anos com o sofrimento, ele santificava o sofrimento oferecendo-o ao Senhor e conformando-se à vontade divina de modo tão geral a ponto de não apenas se resignar a ele, mas se alegrar com ele”.
            O pedido feito pelo próprio Venerável ao Senhor é de considerável valor, como pode ser visto em várias cartas e, em particular, na carta ao seu primeiro diretor de Lanzo, o P. José Scappini, escrita pouco mais de um mês antes de sua morte: “Não fique angustiado, meu querido pai em Jesus Cristo, pela minha doença; pelo contrário, alegre-se no Senhor. Eu mesmo pedi isso ao Bom Deus, para ter a oportunidade de expiar meus pecados neste mundo, onde o Purgatório é feito com mérito. Na verdade, eu não pedi essa enfermidade, pois não tinha ideia dela, mas pedi muito para sofrer, e o Senhor me concedeu isso. Seja bendito para sempre; e me ajude a carregar sempre a cruz com alegria. Acredite em mim, em meio às minhas dores, estou feliz com uma felicidade plena e completa, de modo que tenho vontade de rir quando me dão condolências e augúrios de recuperação”.

5.2. Saber sofrer
             “Saber sofrer”: para a própria santificação, para a expiação e para o apostolado. Ele comemorou o aniversário de sua própria doença: “20 de fevereiro é o aniversário de minha doença: e eu o comemoro como um dia abençoado por Deus; um dia abençoado, cheio de alegria, entre os dias mais bonitos de minha vida”. Talvez o testemunho do P. Beltrami confirme a afirmação de Dom Bosco “Beltrami só existe um”, como se indicasse a originalidade da santidade desse seu filho em ter experimentado e tornado visível o núcleo secreto da santidade apostólica salesiana. O P. Beltrami expressa a necessidade de a missão salesiana não cair na armadilha de um ativismo e de uma exterioridade que, com o tempo, levariam a um destino fatal de morte, mas de preservar e cultivar o núcleo secreto que exprime profundidade e amplitude de horizonte. As traduções concretas desse cuidado com a interioridade e a profundidade espiritual são: a fidelidade à vida de oração, a preparação séria e competente para a própria missão, especialmente para o ministério sacerdotal, lutando contra a negligência e a ignorância culposa; o uso responsável do tempo.
            Mais profundamente, o testemunho do P. Beltrami nos diz que não se vive de rendas ou glórias do passado, mas que cada irmão e cada geração deve fazer com que o dom recebido dê frutos e saiba transmiti-lo de forma fiel e criativa às gerações futuras. A interrupção dessa cadeia virtuosa será uma fonte de dano e ruína. Saber sofrer é o segredo que dá fecundidade a todo empreendimento apostólico. O espírito de oferecimento vitimal do P. Beltrami está admiravelmente associado ao seu ministério sacerdotal, para o qual ele se preparou com grande responsabilidade e que viveu na forma de uma comunhão singular com Cristo imolado pela salvação de seus irmãos e irmãs: na luta e mortificação contra as paixões da carne; na renúncia aos ideais de um apostolado ativo que ele sempre desejou; na sede insaciável de sofrimento; na aspiração de se oferecer como vítima pela salvação de seus irmãos e irmãs. Por exemplo, para a Congregação, além da oração e da oferta nominativa por vários irmãos, tendo nas mãos o catálogo da Congregação, das casas e das missões, ele pedia a graça da perseverança e do zelo, a preservação do espírito de Dom Bosco e de seu método educativo. Um dos livros escritos sobre ele traz significativamente o título “La passiflora serafica [a seráfica passiflora – flor do maracujá]”, que significa “flor da paixão”, nome dado pelos missionários jesuítas em 1610, devido à semelhança de algumas partes da planta com os símbolos religiosos da paixão de Cristo: as gavinhas, o chicote com o qual foi açoitado; os três estiletes, os pregos; os estames, o martelo; os raios da corola, a coroa de espinhos. Merece fé a opinião do P. Nazareno Camilleri, uma alma profundamente espiritual: “O P. Beltrami nos parece representar eminentemente, hoje, a ansiedade divina da “santificação do sofrimento” para a fecundidade social, apostólica e missionária, através do entusiasmo heroico da Cruz, da Redenção de Cristo no meio da humanidade”.

5.3. Transferência de testemunha
            Em Valsalice, o P. André foi um exemplo para todos: um jovem clérigo, Luís Variara, escolheu-o como modelo de vida: tornou-se sacerdote e missionário salesiano na Colômbia e fundou, inspirado pelo P. Beltrami, a Congregação das Filhas dos Sagrados Corações de Jesus e Maria. Nascido em Viarigi (Asti) em 1875, aos onze anos, Luís Variara foi levado por seu pai para Turim-Valdocco. Entrou no noviciado em 17 de agosto de 1891 e o completou com os votos perpétuos. Depois disso, mudou-se para Turim-Valsalice para estudar filosofia. Lá conheceu o Venerável André Beltrami. O P. Variara se inspirou nele quando mais tarde propôs a “consagração vitimal” às suas Filhas dos Sagrados Corações em Agua de Dios (Colômbia).

Fim




Natal 2024

Desejamos a todos os nossos leitores um Santo Natal, enriquecido pelas bênçãos do Senhor, e um feliz Ano Novo com paz e serenidade!




Maravilhas da Mãe de Deus invocada sob o título de Maria Auxiliadora (13/13)

(continuação do artigo anterior)

Graças obtidas por intercessão de Maria Auxiliadora.

I. Graça recebida de Maria Auxiliadora.

            Era o ano de nosso Senhor de 1866 quando, no mês de outubro, minha esposa foi acometida por uma doença muito grave, ou seja, uma grande inflamação combinada com uma grande prisão de ventre e uma verminose. Nesse momento doloroso, o primeiro recurso foi recorrer aos especialistas na arte, que não demoraram a declarar que a doença era muito perigosa. Vendo que a doença estava piorando muito e que os remédios humanos eram de pouca ou nenhuma utilidade, sugeri à minha companheira que se recomendasse a Maria Auxiliadora, e que ela certamente lhe concederia a saúde se fosse necessária para a alma; ao mesmo tempo, acrescentei a promessa de que, se ela obtivesse a saúde, assim que fosse concluída a igreja, que estava sendo construída em Turim, nós iríamos visitá-la e fazer alguma oblação. A essa proposta, ela respondeu que poderia se recomendar a algum santuário mais próximo, para não ser obrigada a ir tão longe; a essa resposta, eu lhe disse que não se deve olhar tanto para a conveniência quanto para a grandeza do benefício que se espera.
            Então ela se recomendou e prometeu o que havia proposto. Ó poder de Maria! Ainda não haviam se passado 30 minutos de sua promessa quando, ao perguntar-lhe como estava, ela me disse: “Estou muito melhor, minha mente está mais livre, meu estômago não está mais oprimido; sinto uma aversão por gelo, que antes eu tanto desejava, e tenho mais vontade de um caldo, que antes eu tanto detestava”.
            Com essas palavras, senti-me nascer para uma nova vida e, se não fosse à noite, teria saído imediatamente do meu quarto para publicar a graça recebida da Santíssima Virgem Maria. O fato é que ela passou a noite em paz e, na manhã seguinte, o médico apareceu e a declarou fora de qualquer perigo. Quem a curou se não Maria Auxiliadora? De fato, depois de alguns dias, ela deixou a cama e assumiu as tarefas domésticas. Agora aguardamos ansiosamente a conclusão da igreja dedicada a ela, cumprindo assim a promessa feita.
            Escrevi este texto como humilde filho da Igreja una, santa, católica e apostólica, e desejo que seja dada a ele toda a publicidade que for julgada boa para a maior glória de Deus e da augusta Mãe do Salvador.

Luís COSTAMAGNA
de Caramagna.

II. Maria Auxiliadora Protetora dos campos.

            Mornese é um pequeno vilarejo da diocese de Acqui, província de Alessandria, com cerca de mil habitantes. Esse nosso vilarejo, como tantos outros, foi tristemente assolado pelo oídio (fungo eu ataca as vieiras), que por mais de vinte anos devorou quase toda a colheita de uvas, nossa principal riqueza. Já havíamos usado tantos outros remédios para evitar esse mal, mas sem sucesso. Quando se espalhou a notícia de que alguns camponeses de cidades vizinhas haviam prometido uma parte dos frutos de seus vinhedos para a continuação do trabalho na igreja dedicada a Maria Auxiliadora em Turim, eles foram maravilhosamente favorecidos e tiveram uvas em abundância. Movidos pela esperança de uma colheita melhor e ainda mais animados pelo pensamento de contribuir para uma obra religiosa, os habitantes decidiram oferecer a décima parte de nossa colheita para esse fim. A proteção da Virgem Santa se fez sentir entre nós de uma forma verdadeiramente misericordiosa. Tínhamos a abundância de tempos mais felizes e estávamos muito contentes por poder oferecer escrupulosamente, em espécie ou em dinheiro, o que havíamos prometido. Na ocasião em que o gerente de construção daquela igreja convidada veio até nós para recolher as ofertas, houve uma festa de verdadeira alegria e exultação pública.
            Ele pareceu profundamente comovido com a prontidão e a abnegação com que as ofertas foram feitas e com as palavras cristãs com que foram acompanhadas. Mas um de nossos concidadãos, em nome de todos, falou em voz alta sobre o que estava acontecendo. Segundo ele, devemos grandes coisas à Santa Virgem Auxiliadora. No ano passado, muitas pessoas deste vilarejo, tendo que ir para a guerra, colocaram-se sob a proteção de Maria Auxiliadora, a maioria delas usando uma medalha no pescoço, foram corajosamente e tiveram que enfrentar os mais graves perigos; mas nenhuma foi vítima desse flagelo do Senhor. Além disso, nos vilarejos vizinhos houve uma praga de cólera, granizo e seca, e nós fomos poupados. Quase nula foi a vindima de nossos vizinhos, e nós fomos abençoados com tamanha abundância que não se via há vinte anos. Por essas razões, estamos felizes em poder manifestar assim nossa indelével gratidão à grande Protetora da humanidade.
            Acredito que sou um fiel intérprete de meus concidadãos ao afirmar que o que fizemos agora, também faremos no futuro, convencidos de que assim nos tornaremos cada vez mais dignos das bênçãos celestiais.
            25 de março de 1868

Um habitante de Mornese.


III. Rápida recuperação.

            O jovem João Bonetti, de Asti, no internato de Lanzo, teve o seguinte favor. Na noite do dia 23 de dezembro passado, ele entrou de repente na sala do diretor com passos incertos e rosto perturbado. Aproximou-se dele, encostou seu corpo no do piedoso sacerdote, esfregou a testa com a mão direita e não disse uma palavra. Espantado por vê-lo tão convulsionado, ele o ampara e, sentando-o, pergunta-lhe o que deseja. Às repetidas perguntas, o pobrezinho respondia apenas com suspiros cada vez mais dificultados e profundos. Então ele olhou mais atentamente para sua testa e viu que seus olhos estavam imóveis, seus lábios pálidos e seu corpo, sentindo o peso da cabeça, ameaçava cair. Vendo então o perigo de vida que o jovem corria, ele rapidamente mandou chamar um médico. Nesse ínterim, a doença piorava a cada momento, sua fisionomia estava contraída e não parecia mais ser o mesmo de antes; seus braços, pernas e testa estavam gelados, o catarro o sufocava. Sua respiração se tornava cada vez mais curta e seus pulsos só podiam ser sentidos levemente. Ele permaneceu nesse estado por cinco horas muito dolorosas.
            O médico chegou e aplicou vários remédios, mas sempre sem sucesso. Está tudo acabado, disse o médico com tristeza; antes do amanhecer esse jovem estará morto.
            Assim, desafiando as esperanças humanas, o bom padre se voltou para o céu, orando para que, se não fosse da vontade do Senhor que o jovem vivesse, pelo menos lhe desse um pouco de tempo para a confissão e a comunhão. Em seguida, pegou uma pequena medalha de Maria Auxiliadora. As graças que ele já havia obtido ao invocar a Virgem com essa medalha eram muitas e aumentaram sua esperança de obter ajuda da protetora celestial. Cheio de confiança nela, ele se ajoelhou, colocou a medalha sobre o coração e, junto com outras pessoas piedosas que haviam chegado, fez algumas orações a Maria e ao Santíssimo Sacramento. E Maria ouviu as orações que lhe eram elevadas com tanta confiança. A respiração do Joãozinho ficou mais livre, e seus olhos, que pareciam petrificados, viraram-se com amor para olhar e agradecer aos espectadores pelo cuidado compassivo que estavam lhe dando. A melhora não foi passageira; pelo contrário, todos consideravam a recuperação certa. O próprio médico, espantado com o que havia acontecido, exclamou: “Foi a graça de Deus que operou a saúde. Em minha longa carreira, vi um grande número de pessoas doentes e moribundas, mas nenhuma das que estavam no ponto de Bonetti eu vi se recuperar. Para mim, sem a intervenção benéfica do céu, esse é um fato inexplicável. E a ciência, acostumada hoje em dia a romper o admirável vínculo que a une a Deus, prestou-lhe humilde homenagem, julgando-se impotente para realizar o que somente Deus realizou. O jovem que foi objeto da glória da Virgem continua até hoje muitíssimo bem. Ele diz e prega a todos que deve sua vida duplamente a Deus e à sua poderosíssima Mãe, de cuja válida intercessão obteve a graça. Ele se consideraria ingrato de coração se não desse um testemunho público de gratidão. E, assim, convidava outras pessoas e outros sofredores que, neste vale de lágrimas, sofrem e vão em busca de conforto e ajuda.

(Do jornal: A Virgem).


IV. Maria Auxiliadora livra um de seus devotos de uma forte dor de dentes.

            Em uma casa de educação em Turim, havia um jovem de 19 ou 20 anos que, há vários dias, sofria de uma terrível dor de dentes. Tudo o que a arte médica normalmente sugere em tais casos já havia sido usado sem sucesso. Assim, o pobre jovem estava em um ponto tão exacerbado que despertava piedade em todos que o ouviam. Se o dia lhe parecia horrível, eterna e mais dolorosa era a noite, na qual ele só conseguia fechar os olhos para dormir por breves e interrompidos momentos. Que estado deplorável era esse! A situação continuou assim por algum tempo, mas na noite de 29 de abril, a doença parecia ter se tornado muito mais atroz. O jovem gemia incessantemente em sua cama, suspirava e gritava alto sem que ninguém pudesse aliviá-lo. Seus companheiros, enternecidos com condição infeliz, foram informar ao diretor para que viesse confortá-lo. Ele veio e tentou, com palavras, restaurar a calma de que ele e seus companheiros precisavam para poderem descansar. Mas a fúria do mal era tão grande que ele, embora muito obediente, não conseguia parar de se lamentar, dizendo que não sabia se até no próprio inferno alguém poderia sofrer dor mais cruel. O superior então achou por bem colocá-lo sob a proteção de Maria Auxiliadora, em cuja honra também foi erguido um majestoso templo nesta nossa cidade. Todos nós nos ajoelhamos e fizemos uma breve oração. Mas o que aconteceu? A ajuda de Maria não demorou a chegar. Quando o padre deu a bênção ao jovem desolado, ele se acalmou instantaneamente e caiu em um sono profundo e tranquilo. Naquele instante, uma terrível suspeita surgiu em nossas mentes: que o pobre jovem havia sucumbido ao mal. Mas não, ele já havia adormecido profundamente, e Maria havia ouvido a oração de seu devoto, e Deus tinha atendido a bênção de seu ministro.
            Vários meses se passaram, e o jovem que sofria com a dor de dentes não foi mais incomodado por ela.

(Do mesmo).

V. Algumas maravilhas de Maria Auxiliadora.

            Creio que o seu nobre periódico fará uma boa análise de alguns fatos ocorridos entre nós, que apresento em honra de Maria Auxiliadora. Seleciono apenas alguns que testemunhei nesta cidade, omitindo muitos outros que são relatados todos os dias.
            O primeiro diz respeito a uma senhora de Milão que, durante cinco meses, foi consumida por uma pneumonia combinada com uma prostração total de sua força vital.
Passando por essas bandas, o P. B… foi aconselhada por ele a recorrer a Maria Auxiliadora, por meio de uma novena de oração em sua honra, com a promessa de alguma oblação para continuar o trabalho na igreja, que estava sendo construída em Turim sob o título de Maria Auxiliadora. Essa oblação só deveria ser feita depois que a graça fosse obtida.
            Uma maravilha para contar! Naquele mesmo dia, a doente pôde retomar suas ocupações normais e sérias, comendo todo tipo de comida, passeando, entrando e saindo de casa livremente, como se nunca tivesse estado doente. Quando a novena terminou, ela estava em um estado de saúde vigoroso, como nunca se lembrava de ter desfrutado antes.
            Outra senhora estava sofrendo de uma taquicardia há três anos, com muitos inconvenientes que acompanham essa doença. Mas a febre e um tipo de hidropisia a deixaram imóvel na cama. Sua doença chegou a tal ponto que, quando o padre acima mencionado lhe deu a bênção, seu marido teve de levantar a mão para que ela pudesse fazer o sinal da santa cruz. Também foi recomendada uma novena em honra de Jesus no Santíssimo Sacramento e de Maria Auxiliadora, com a promessa de alguma oblação para o referido edifício sagrado, mas depois de recebida a graça. No mesmo dia em que terminou a novena, a enferma ficou livre de toda doença, e ela mesma pôde compilar a narrativa de sua enfermidade, na qual li o seguinte:
            “Maria Auxiliadora me curou de uma doença, para a qual todas as descobertas da ciência foram consideradas inúteis. Hoje, último dia da novena, estou livre de toda doença e vou à mesa com minha família, algo que não pude fazer por três anos. Enquanto eu viver, não deixarei de exaltar o poder e a bondade da augusta Rainha do Céu e me esforçarei para promover o culto a ela, especialmente na igreja que está sendo construída em Turim.”
            Deixe-me acrescentar ainda outro fato, que é ainda mais maravilhoso do que os anteriores.
            Um jovem na flor dos anos via aberta diante de si uma das carreiras mais brilhantes nas ciências, quando foi acometido por uma doença cruel em uma de suas mãos. Apesar de todos os tratamentos, de toda a solicitude dos médicos mais credenciados, não foi possível obter nenhuma melhora nem interromper o progresso da doença. Todas as conclusões dos especialistas na arte concordavam que a amputação era necessária para evitar a ruína total do corpo. Assustado com esse julgamento, ele decidiu recorrer a Maria Auxiliadora, aplicando os mesmos remédios espirituais que outros haviam praticado com tanto sucesso. A intensidade das dores cessou instantaneamente, as feridas foram atenuadas e, em pouco tempo, a cura parecia completa. Quem quisesse satisfazer sua curiosidade poderia admirar aquela mão com as reentrâncias e os buracos das feridas curadas, que lembram a gravidade de sua doença e a maravilhosa cura dela. Ele quis ir a Turim para fazer sua oblação pessoalmente, para demonstrar ainda mais sua gratidão à augusta Rainha do Céu.
            Ainda tenho muitas outras histórias desse tipo, que contarei em outras cartas, se for considerado que esse é um material apropriado para o seu periódico. Peço-lhe que omita os nomes das pessoas a quem os fatos se referem, para não expô-las a perguntas e observações importunas. No entanto, que esses fatos sirvam para reavivar cada vez mais entre os cristãos a confiança na proteção de Maria Auxiliadora, para aumentar os seus devotos na terra e para ter um dia uma coroa mais gloriosa de seus devotos no céu.

(Da Verdadeira Boa Nova de Florença).

Com aprovação eclesiástica.

Fim




Será Santa a Beata Maria Troncatti, Filha de Maria Auxiliadora

No dia 25 de novembro de 2024, o Santo Padre Francisco autorizou o Dicastério das Causas dos Santos a promulgar o Decreto referente ao milagre atribuído à intercessão da Beata Maria Troncatti, Irmã professa da Congregação das Filhas de Maria Auxiliadora, nascida em Córteno Golgi (Itália) em 16 de fevereiro de 1883 e falecida em Sucúa (Equador) em 25 de agosto de 1969. Com este ato do Santo Padre, abre-se o caminho para a Canonização da Beata Maria Troncatti.

Maria Troncatti nasceu em Córteno Golgi (Brescia) em 16 de fevereiro de 1883. Assídua à catequese paroquial e aos sacramentos, a adolescente Maria desenvolve um profundo senso cristão que a abre à vocação religiosa. Em Córteno chega o Boletim Salesiano e Maria pensa na vocação religiosa. Por obediência ao pai e ao pároco, no entanto, espera atingir a maioridade antes de pedir a admissão ao Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora. Emite a primeira profissão em 1908 em Nizza Monferrato. Durante a Primeira Guerra Mundial (1915-1918), irmã Maria participa em Varazze de cursos de assistência sanitária e trabalha como enfermeira da Cruz Vermelha no hospital militar. Durante uma inundação em que corre o risco de morrer afogada, Maria promete a Nossa Senhora que, se ela a salvar, partirá para as missões.

A Madre Geral, Catarina Daghero, a destina para as missões do Equador, em 1922. Ela permanece três anos em Chunchi. Acompanhadas pelo Bispo missionário Dom Comin e por uma pequena expedição, irmã Maria e outras duas coirmãs se aprofundam na floresta amazônica. O campo de missão delas é a terra dos índios Shuar, na parte sudeste do Equador. Elas se estabelecem em Macas, uma aldeia de colonos cercada pelas habitações coletivas dos Shuar. Realiza com suas coirmãs um difícil trabalho de evangelização em meio a riscos de toda espécie, incluindo aqueles causados pelos animais da floresta e pelas armadilhas dos rios turbulentos. Macas, Sevilla Don Bosco, Sucúa são alguns dos “milagres” ainda florescentes da ação da irmã Maria Troncatti: enfermeira, cirurgiã e ortopedista, dentista e anestesista… Mas, acima de tudo, catequista e evangelizadora, rica em maravilhosos recursos de fé, paciência e amor fraterno. Sua obra pela promoção da mulher shuar floresce em centenas de novas famílias cristãs, formadas pela primeira vez pela livre escolha pessoal dos jovens esposos. Ela é apelidada de “a médica da Selva”, luta pela promoção humana, especialmente da mulher.

É a “madrecita” [mãezinha], sempre solícita em ir ao encontro não apenas dos doentes, mas de todos os que precisam de ajuda e esperança. Do simples e pobre consultório, chega a fundar um verdadeiro hospital e prepara ela mesma as enfermeiras. Com maternal paciência, escuta, favorece a comunhão entre as pessoas e educa ao perdão indígenas e colonos. “Um olhar para o Crucifixo me dá vida e coragem para trabalhar”, esta é a certeza de fé que sustenta sua vida. Em cada atividade, sacrifício ou perigo, sente-se sustentada pela presença materna de Maria Auxiliadora.

No dia 25 de agosto de 1969, em Sucúa (Equador), o pequeno avião que transporta irmã Maria Troncatti para a cidade cai poucos minutos após a decolagem, nos limites daquela selva que foi por quase meio século sua “pátria do coração”, o espaço de sua doação incansável entre os “shuar”. Irmã Maria vive sua última decolagem: aquela que a leva ao Paraíso! Ela tem 86 anos, todos dedicados a um dom de amor. Ofereceu sua vida pela reconciliação entre os colonos e os Shuar. Escrevia: “Estou a cada dia mais feliz com minha vocação religiosa missionária!”.

Foi declarada Venerável em 12 de novembro de 2008 e beatificada sob o pontificado de Bento XVI em Macas (Vicariato Apostólico de Méndez – Equador) no dia 24 de novembro de 2012. Na homilia de beatificação, o Cardeal Ângelo Amato delineou a figura de consagrada e missionária, destacando, na simplicidade e na cotidianidade dos gestos de maternidade e misericórdia, o extraordinário “exemplo de dedicação a Jesus e ao seu Evangelho de verdade e de vida” pelo qual, mais de quarenta anos após sua morte, era lembrada com gratidão: “Irmã Maria, animada pela graça, tornou-se uma incansável mensageira do Evangelho, experiente em humanidade e conhecedora profunda do coração humano. Compartilhava as alegrias e esperanças, as dificuldades e tristezas de seus irmãos, grandes e pequenos. Conseguia transformar a oração em zelo apostólico e em serviço concreto ao próximo”. O Cardeal Amato terminou a homilia assegurando aos presentes, entre os quais os shuar, que “do céu a Beata Maria Troncatti continua a vigiar sobre sua pátria e sobre suas famílias. Continuemos a pedir sua intercessão, para viver na fraternidade, na concordância e na paz. Voltemo-nos com confiança a ela, para que assista os doentes, console os que sofrem, ilumine os pais na educação cristã das crianças, traga harmonia nas famílias. Caros fiéis, assim como foi na terra, assim do céu a Beata Maria Troncatti continuará a ser nossa Boa Mãe”.

A biografia escrita por Irmã Domingas Grassiano “Selva, pátria do coração” contribuiu para fazer conhecer o testemunho desta grande missionária e para difundir sua fama de santidade. Esta Filha de Maria Auxiliadora encarnou de maneira singular a pedagogia e a espiritualidade do sistema preventivo, especialmente através daquela maternidade que marcou todo o seu testemunho missionário ao longo de sua vida.

Como jovem irmã nos anos 1920: mesmo continuando como enfermeira, dedica uma atenção especial às meninas oratorianas, e de modo especial a um grupo delas bastante negligenciadas, barulhentas e insubordinadas a qualquer disciplina. Pois bem, irmã Maria sabe acolhê-las e tratá-las de tal forma que “tinham por ela uma veneração: se ajoelhavam diante dela, tal era sua estima. Sentiam nela uma alma toda de Deus e se recomendavam à sua oração”.

Também para as postulantes reserva uma atenção especial, comunicando confiança e coragem: “Tenha coragem, não se deixe levar pelo arrependimento pelo que deixou… Reze ao Senhor e Ele a ajudará a realizar sua vocação”. As quarenta postulantes daquele ano chegaram todas à vestidura e à profissão, atribuindo tal resultado às orações de irmã Maria, que infunde esperança especialmente quando vê dificuldades em se adaptar ao novo estilo de vida ou em aceitar a separação da família.

Como Mãe dos pobres e necessitados. Com seu exemplo e sua mensagem, lembra que “não nos preocupamos apenas com o corpo, mas também com as necessidades da alma do homem: das pessoas que sofrem pela violação dos direitos ou por um amor destruído; das pessoas que se encontram na escuridão sobre a verdade; que sofrem pela ausência de verdade e amor. Nos preocupamos com a salvação dos homens em corpo e alma”. Quantas almas salvas! Quantas crianças salvas da morte certa! Quantas meninas e mulheres defendidas em sua dignidade! Quantas famílias formadas e guardadas na verdade do amor conjugal e familiar! Quantos incêndios de ódio e vingança extintos com a força da paciência e a entrega da própria vida! E tudo vivido com grande zelo apostólico e missionário.

Singular o testemunho do P. João Vigna, que trabalhou por 23 anos na mesma missão, ilustra muito bem o coração de irmã Maria Troncatti: “Irmã Maria se destacava por uma delicada maternidade. Encontrava para cada problema uma solução que, à luz dos fatos, sempre se mostrava a melhor. Estava sempre disposta a descobrir o lado positivo das pessoas. Eu a vi tratar a natureza humana sob todos os aspectos, os mais miseráveis também: pois bem, ela os tratou com aquela superioridade e gentileza que para ela era algo espontâneo e natural. Expressava a maternidade como afeto entre as coirmãs na comunidade: era o segredo vital que as sustentava, o amor que as unia umas às outras; a plena partilha das fadigas, das dores, das alegrias. Exercia sua maternidade especialmente em relação às mais jovens. Muitas irmãs experimentaram a doçura e a força de seu amor. Assim era para os Salesianos que frequentemente adoeciam porque não se poupavam no trabalho e nas fadigas. Ela cuidava deles, os sustentava também moralmente, adivinhando crises, cansaços, perturbações. Sua alma transparente via tudo através do amor de um Pai que nos ama e nos salva. Foi instrumento na mão de Deus para obras maravilhosas!”.




São Francisco de Sales, acompanhante pessoal

            “Meu espírito sempre acompanha o seu”, escreveu um dia Francisco de Sales a Joana de Chantal, em um momento em que ela se sentia assaltada pela escuridão e pelas tentações. Ele acrescentou: “Caminhe, portanto, minha querida filha, e avance com mau tempo e durante a noite. Seja corajosa, minha querida filha; com a ajuda de Deus, faremos muito”. Acompanhamento, direção espiritual, orientação de almas, direção de consciência, assistência espiritual: essas são fórmulas mais ou menos sinônimas, pois designam essa forma particular de educação e formação exercida no âmbito espiritual da consciência individual.

Formação de um futuro acompanhante
            A formação que recebeu quando jovem preparou Francisco de Sales para se tornar, por sua vez, um diretor espiritual. Como aluno dos jesuítas em Paris, ele provavelmente teve um pai espiritual cujo nome não conhecemos. Em Pádua, Antônio Possevino havia sido seu diretor; com esse famoso jesuíta, Francisco se felicitaria mais tarde por ter sido um de seus “filhos espirituais”. Durante seu caminho atormentado até o estado clerical, seu confidente e apoio foi Amé Bouvard, um padre amigo da família, que o preparou depois para as ordenações.
            No início de seu episcopado, ele confiou o cuidado de sua vida espiritual ao P. Fourier, reitor dos jesuítas de Chambéry, “um grande religioso, erudito e devoto”, com quem estabeleceu “uma amizade muito especial” e que estava muito próximo dele “com seus conselhos e advertências”. Durante vários anos, ele se confessou regularmente com o penitenciário da catedral, a quem chamava de “querido irmão e amigo perfeito”.
            Sua estada em Paris em 1602 influenciou profundamente o desenvolvimento de seus dons como diretor de almas. Enviado pelo bispo para negociar alguns assuntos diocesanos na corte, ele teve pouco sucesso diplomático, mas essa visita prolongada à capital francesa permitiu que ele estabelecesse contatos com a elite espiritual que se reunia junto à Senhora Acarie, uma mulher excepcional, mística e anfitriã ao mesmo tempo. Ele se tornou seu confessor, observou seus êxtases e a ouviu sem questionar. “Oh! que erro eu cometi”, ele diria mais tarde, “por não ter aproveitado suficientemente sua santíssima companhia! Ela de fato abriu sua alma para mim livremente, mas o extremo respeito que eu tinha por ela fez com que eu não ousasse me informar sobre a menor coisa”.

Uma atividade incômoda “que tranquiliza e anima”
            Ajudar cada indivíduo, acompanhá-lo pessoalmente, aconselhá-lo, possivelmente corrigir seus erros, encorajá-lo, tudo isso requer tempo, paciência e um esforço constante de discernimento. O autor de Filoteia fala por experiência própria, quando afirma no prefácio:

É penoso, confesso-o abertamente, conduzir as almas em particular, mas esse trabalho não deixa de ter as suas consolações. Os ceifadores nunca estão tão satisfeitos como quando têm muito que ceifar. É um trabalho que alivia e fortifica o coração.

            Conhecemos essa importante área de seu trabalho de formação especialmente por meio de sua correspondência, mas é preciso ressaltar que a direção espiritual não é feita apenas por escrito. Os encontros pessoais e as confissões individuais fazem parte dela, embora seja necessário distingui-los adequadamente. Em 1603, ele conheceu o Duque de Bellegarde, uma grande figura do reino e um grande pecador, que, alguns anos depois, pediu-lhe que o guiasse no caminho da conversão. A Quaresma que ele pregou em Dijon no ano seguinte foi um ponto de virada em sua “carreira” como diretor espiritual, porque ele conheceu Joana Frémyot, viúva do Barão de Chantal.
            A partir de 1605, a visita sistemática de sua vasta diocese o colocou em contato com um número infinito de pessoas de todas as condições, principalmente camponeses e montanheses, a maioria dos quais era analfabeta e não nos deixou nenhuma correspondência. Pregando a Quaresma em Annecy, em 1607, ele encontrou em suas “redes sagradas” uma senhora de 21 anos, “mas toda de ouro”, chamada Luísa Du Chastel, que havia se casado com o primo do bispo, Henrique de Charmoisy. As cartas de orientação espiritual que Francisco enviou à Senhora de Charmoisy serviriam como material básico para a elaboração de sua futura obra, a Filoteia.
            As pregações em Grenoble, em 1616, 1617 e 1618 trouxeram-lhe um número considerável de filhas e filhos espirituais que, depois de ouvi-lo na cátedra, procurariam contatá-lo de perto. Novas Filoteias o acompanharão em sua última viagem a Paris, em 1618-1619, onde fez parte da delegação da Saboia que estava negociando o casamento do Príncipe do Piemonte, Vítor Amadeu, com Cristina de França, irmã de Luís XIII. Após o casamento principesco, Cristina o escolheu como seu confessor e “grande capelão”.

O diretor é pai, irmão, amigo
            Quando se dirige às pessoas orientadas por ele, Francisco de Sales faz uso abundante, para não dizer excessivo, de acordo com o costume da época, de títulos e apelações tirados da vida familiar e social, como pai, mãe, irmão, irmã, filho, filha, tio, tia, sobrinha, padrinho, madrinha ou servo. O título de pai significava autoridade e, ao mesmo tempo, amor e confiança. O pai “auxilia” o filho e a filha por meio de conselhos, usando sabedoria, prudência e caridade. Como um pai espiritual, o diretor é aquele que, em certos casos, diz: “Eu quero!” Francisco de Sales sabia como usar essa linguagem, mas somente em circunstâncias muito especiais, como quando ele ordena à baronesa que não evite um encontro com o assassino de seu marido:

A senhora me perguntou como eu queria que se comportasse no encontro com aquele que matou o senhor seu marido. Eu respondo em ordem. Não é necessário que a senhora mesma procure a data e a ocasião. No entanto, se isso ocorrer, quero que o receba com um coração gentil, bondoso e compassivo.

            Certa vez, ele escreveu a uma mulher angustiada: “Eu lhe ordeno em nome de Deus”, mas isso foi para remover os escrúpulos dela. Sua autoridade sempre permaneceu humilde, boa, até mesmo terna; seu papel em relação às pessoas que ele dirigia, especificou no prefácio da Filoteia, consistia em uma “assistência” especial, um termo que aparece duas vezes nesse contexto. A intimidade que se estabeleceu entre ele e o duque de Bellegarde era tal que Francisco de Sales pôde responder ao pedido do duque, usando, não sem hesitação, os epítetos “meu filho” ou “senhor meu filho”, sabendo muito bem que o duque era mais velho do que ele. A implicação pedagógica da direção espiritual é enfatizada por outra imagem significativa. Depois de relembrar a rápida corrida da tigresa para salvar seu filhote, movida pelo poder do amor natural, ele continua dizendo:

E com quanto mais boa vontade um coração paternal cuidará de uma alma que encontrou cheia de desejo de santa perfeição, carregando-a em seu colo, como uma mãe que cuida de seu filho, sem sentir o peso do fardo.

            Com relação às pessoas que dirige, mulheres e homens, Francisco de Sales também se comporta como um irmão, e é nessa qualidade que muitas vezes se apresenta às pessoas que recorrem a ele. Antônio Favre é constantemente chamado de “meu irmão”. No início, ele se dirige à Baronesa de Chantal usando a denominação de “senhora” (madame), depois muda para “irmã”, “nome com o qual os apóstolos e os primeiros cristãos expressavam seu amor mútuo”. Um irmão não dá ordens; aconselha e pratica a correção fraterna.
            Mas o que melhor caracteriza o estilo salesiano é a atmosfera amigável e recíproca que une o diretor e a pessoa dirigida. Como bem diz André Ravier, “não há verdadeira direção espiritual para ele, se não houver amizade, isto é, troca, comunicação, influência mútua”. Não é surpreendente que Francisco de Sales ame seus referentes com um amor que lhes testemunha de mil maneiras; é surpreendente, ao contrário, que ele deseje ser amado por eles igualmente. Com Joana de Chantal, a reciprocidade se tornou tão intensa a ponto de, às vezes, transformar o “meu” e o “seu” em “nosso”: “Não é possível para mim distinguir o meu e o seu, pois o que nos diz respeito é nosso”.

Obediência ao diretor, mas em um clima de confiança e liberdade
            A obediência ao diretor espiritual é uma garantia contra os excessos, as ilusões e os erros cometidos, na maioria das vezes, em benefício próprio; ela mantém uma atitude prudente e sábia. O autor da Filoteia a considera necessária e benéfica, sem reforçá-la; “a humilde obediência, tão recomendada e tão praticada por todos os antigos devotos”, faz parte de uma tradição. Francisco de Sales a recomenda à Baronesa de Chantal com relação ao seu primeiro diretor, mas indicando como vivê-la:

Louvo muito o respeito religioso que sente por seu diretor e exorto-a a preservá-lo com muito cuidado; mas também devo lhe dizer mais uma palavra. Esse respeito deve, sem dúvida, induzi-la a perseverar na conduta santa à qual tão felizmente se adaptou, mas de modo algum deve impedir ou sufocar a justa liberdade que o Espírito de Deus dá a quem quer que ele possua.

            Em todo caso, o diretor deve possuir três qualidades indispensáveis: “Ele deve ser cheio de caridade, conhecimento e prudência: se um desses três faltar, há perigo” (I I 4). Esse não parece ser o caso do primeiro diretor da Senhora de Chantal. De acordo com sua biógrafa, a Madre de Chaugy, ele “a prendeu à sua direção”, intimando-a a que nunca pensasse em mudá-la; eram “laços inadequados que mantinham sua alma presa, enclausurada e sem liberdade”. Quando, depois de conhecer Francisco de Sales, ela quis mudar seu diretor, mergulhou em um mar de escrúpulos. Para tranquilizá-la, ele lhe mostrou outro caminho:

Aqui está a regra geral de nossa obediência, escrita em letras bem grandes: É PRECISO FAZER TUDO POR AMOR, E NADA POR FORÇA; DEVE-SE AMAR A OBEDIÊNCIA MAIS DO QUE TEMER A DESOBEDIÊNCIA. Deixo-lhe o espírito de liberdade: não aquele que exclui a obediência, pois então seria preciso falar da liberdade da carne, mas aquele que exclui a compulsão, o escrúpulo e a pressa.

            O caminho salesiano se fundamenta no respeito e na obediência devidos ao diretor, sem dúvida, mas sobretudo na confiança: “Tenha a maior confiança nele, unida a uma sagrada reverência, de modo que a reverência não diminua a confiança e a confiança não impeça a reverência; confie nele com o respeito de uma filha para com o pai, respeite-o com a confiança de uma filha para com a mãe”. A confiança inspira simplicidade e liberdade, o que favorece a comunicação entre duas pessoas, especialmente quando a pessoa que está sendo orientada é uma jovem noviça com medo:

Eu lhe direi, em primeiro lugar, que não deve usar, em relação a mim, palavras de cerimônia ou desculpas, pois, pela vontade de Deus, sinto pela senhora toda a afeição que poderia desejar; e eu não saberia como me proibir de senti-la. Amo profundamente seu espírito, porque acho que Deus assim o deseja, e o amo com ternura, porque o vejo ainda fraco e jovem demais. Escreva-me, portanto, com toda a confiança e liberdade, e peça tudo o que parecer útil para seu bem. E que isso seja dito de uma vez por todas.

            Como se deve escrever para o bispo de Genebra? Escreva-me com liberdade, sinceridade e simplicidade”, disse a uma das almas dirigidas por ele. “Sobre esse ponto, não tenho mais nada a dizer, exceto que a senhora não deve colocar Monsenhor na carta, nem sozinho nem acompanhado de outras palavras: basta colocar Senhor, e a senhora sabe o porquê. Sou um homem sem cerimônias e a amo e honro com todo o meu coração”. Esse refrão retorna com frequência no início de um novo relacionamento epistolar. O afeto, quando é sincero e especialmente quando tem a sorte de ser correspondido, autoriza a liberdade e a máxima franqueza. “Escreva-me sempre que tiver vontade”, disse ele a outra mulher, “com total confiança e sem cerimônia; pois é assim que devemos nos comportar nesse tipo de amizade”. A um de seus correspondentes, ele pedia: “Não me peça desculpas por escrever bem ou mal, porque o senhor não me deve nenhuma cerimônia além da de me amar”. Isso significa falar “de coração a coração”. O amor a Deus, assim como o amor ao próximo, faz com que sigamos em frente “de uma maneira boa, sem muita confusão” porque, como disse, “o verdadeiro amor não precisa de um método”. A chave para isso é o amor, pois “o amor torna os amantes iguais”, ou seja, o amor opera uma transformação nas pessoas que amamos, tornando-as iguais, semelhantes e no mesmo nível.

“Toda flor requer cuidados especiais”.
            Embora o objetivo da direção espiritual seja o mesmo para todos, ou seja, o aperfeiçoamento da vida cristã, as pessoas não são todas iguais, e cabe à arte do diretor saber indicar o caminho apropriado para que cada pessoa alcance o objetivo comum. Homem de seu tempo, ciente de que as estratificações sociais eram uma realidade, Francisco de Sales conhecia bem a diferença entre o cavalheiro, o artesão, o camareiro, o príncipe, a viúva, a moça e a mulher casada. Cada um, de fato, deveria produzir frutos “de acordo com sua qualificação e profissão”. Mas o senso de pertencer a um grupo social específico ia bem, para ele, com a consideração das peculiaridades do indivíduo: é preciso “adaptar a prática da devoção às forças, atividades e deveres de cada um em particular”. Ele também acreditava que “os meios para alcançar a perfeição são diferentes de acordo com a diversidade de vocações”.
            A diversidade de temperamentos é um fato que deve ser levado em conta. É possível detectar em Francisco de Sales um “talento psicológico” que antecede as descobertas modernas. A percepção das características únicas de cada pessoa é muito acentuada nele e é a razão pela qual cada assunto merece atenção especial do pai espiritual: “Em um jardim, cada erva e cada flor requerem cuidados especiais”. Como um pai ou uma mãe com seus filhos, ele se adapta à individualidade, ao temperamento e às situações particulares de cada indivíduo. A uma pessoa, impaciente consigo mesma, decepcionada por não estar progredindo como gostaria, ele recomenda de amar a si mesma. À outra, atraída pela vida religiosa, mas dotada de forte individualidade, ele aconselha um estilo de vida que leve em conta essas duas tendências. A uma terceira que oscila entre a exaltação e a depressão, ele sugere a paz do coração por meio da luta contra as imaginações angustiantes. Para uma mulher em desespero por causa do caráter “perdulário e frívolo” do marido, o diretor terá de aconselhar “os meios certos e a moderação” e os meios para superar sua impaciência. Outra, mulher consciente e equilibrada, com um caráter “íntegro”, cheia de ansiedades e provações, precisará de “santa doçura e tranquilidade”. Outra ainda se angustia com o pensamento da morte e fica deprimida com frequência: seu diretor lhe inspira coragem. Há almas que têm mil desejos de perfeição; é necessário acalmar sua impaciência, fruto de seu amor-próprio. A célebre Angélica Arnauld, abadessa de Port-Royal, quer reformar seu mosteiro com rigidez: é preciso recomendar-lhe flexibilidade e humildade.
            Quanto ao duque de Bellegarde, que havia se metido em todas as intrigas políticas e amorosas da corte, o bispo o encoraja a adquirir “uma devoção masculina, corajosa e invariável para servir de espelho a muitos, exaltando a verdade do amor celestial, digno de reparar as faltas passadas”. Em 1613, ele redigiu uma Pró-memória para fazer uma boa confissão, contendo oito “advertências” gerais, uma descrição detalhada “dos pecados contra os dez mandamentos”, um “exame sobre os pecados capitais”, os “pecados cometidos contra os preceitos da Igreja”, um “meio de discernir o pecado mortal do pecado venial” e, finalmente, “o meio de afastar o grande do pecado da carne”.

Método “regressivo”
            A arte da direção de consciência muitas vezes exige que o diretor dê um passo atrás e deixe a iniciativa para o destinatário, ou para Deus, especialmente quando se trata de fazer escolhas que necessitam uma decisão exigente. “Não leve minhas palavras muito ao pé da letra”, escreveu ele à Baronesa de Chantal, “não quero que elas lhe sejam uma imposição, mas que mantenha a liberdade de fazer o que achar melhor”. Ele escreveu, por exemplo, para uma mulher que era muito apegada às “vaidades”:

Quando a senhora partiu, veio-me à mente dizer que deveria renunciar ao almíscar e aos perfumes, mas me contive para seguir meu sistema, que é suave e procura aguardar os movimentos que, pouco a pouco, os exercícios de piedade tendem a despertar nas almas que se consagram inteiramente à bondade divina. Meu espírito, de fato, é extremamente amigo da simplicidade; e a podadeira com a qual é costume cortar os brotos inúteis, eu habitualmente deixo nas mãos de Deus.

            O diretor não é um déspota, mas alguém que “guia nossas ações com seus avisos e conselhos”, como ele diz no início da Filoteia. Ele se abstém de dar ordens quando escreve para a Senhora de Chantal: “Estes são conselhos bons e adequados para a senhora, mas não ordens”. Ela também dirá, em seu processo de canonização, que às vezes se queixava de não ter sido orientada o suficiente com ordens. De fato, o papel do diretor é definido pela seguinte resposta de Sócrates a um discípulo: “Portanto, terei o cuidado de devolvê-lo a si mesmo melhor do que é”. Como sempre declarou à Senhora de Chantal, Francisco “se dedicou”, colocou-se a “serviço” da “santíssima liberdade cristã”. Ele luta pela liberdade:

A senhora verá que falo a verdade e que luto por uma boa causa quando defendo a santa e amável liberdade do espírito, que, como sabe, honro de maneira muito especial, desde que seja verdadeira e livre de dissipação e libertinagem, que nada mais são do que uma máscara de liberdade.

            Em 1616, durante um retiro espiritual, Francisco de Sales fez com que a própria madre de Chantal fizesse um exercício de “despir-se”, para reduzi-la à “adorável e santa pureza e nudez das crianças”. Havia chegado o momento de ela dar o passo em direção à “autonomia” da pessoa dirigida. Ele a exortou, entre outras coisas, a não “aceitar nenhuma ama” e a não continuar dizer-lhe – especificou – “que eu sempre serei sua ama” e, em suma, a estar disposta a renunciar à direção espiritual de Francisco. Só Deus é suficiente: “Não tenha outros braços para carregá-lo, a não ser os de Deus, nenhum outro colo para descansar, a não ser o dele e da Providência. […] Não pense mais na amizade ou na unidade que Deus estabeleceu entre nós”. Para a Senhora de Chantal, a lição é dura: “Meu Deus! meu verdadeiro Pai, que cortastes profundamente com vossa navalha! poderei permanecer nesse estado de espírito por muito tempo”? Ela agora se vê “despojada e nua de tudo o que lhe era mais precioso”. Francisco também confessa: “E sim, eu também me encontro nu, graças àquele que morreu nu para nos ensinar a viver nus”. A direção espiritual atinge seu ápice aqui. Depois de uma experiência como essa, as cartas espirituais se tornarão mais raras e a afeição será mais contida em favor de uma unidade totalmente espiritual.




Apelo Missionário 2025

Queridos irmãos,

uma saudação fraterna e cordial desde o “Sacro Cuore” de Roma.

Neste dia, 18 de dezembro, como em todos os anos, na memória da fundação da nossa Congregação em 1859, venho até vocês com este escrito que renova o espírito das origens, o espírito missionário que fez da Congregação o que ela é desde o início.

Neste ano, com emoção, dou voz ao coração da Congregação no 150° aniversário da primeira expedição missionária. A celebração desse aniversário marca o nosso coração e a nossa alma. Ela pede-nos para renovar o espírito missionário que sempre esteve no coração do carisma, para que, agradecendo a fidelidade de Deus, possa dar energia futura à evangelização e à Congregação.

A comemoração do 150° aniversário da primeira expedição missionária de Dom Bosco é um excelente dom para:

Agradecer, para reconhecer a graça de Deus.
O reconhecimento torna evidente a autoria de toda bela conquista. Sem gratidão, não há capacidade de aceitação. Sempre que deixamos de reconhecer um dom em nossa vida pessoal e institucional, corremos o sério risco de esvaziá-lo e “sequestrá-lo”.
Ao falar do espírito da missão, estamos no centro da vida do discípulo: algo infinitamente maior do que nós mesmos, que é a dinâmica fundante e original da Igreja, para cada geração.

Repensar, porque “nada é para sempre”.
A fidelidade também envolve a capacidade de mudar na obediência para uma visão que vem de Deus e da leitura dos “sinais dos tempos”. Nada é para sempre: de uma perspectiva pessoal e institucional, a verdadeira fidelidade é a capacidade de mudar, reconhecendo aquilo a que o Senhor nos chama todos os dias.
Repensar, então, torna-se um ato gerador, em que se unem fé e vida; um momento em que se pergunta: o que queres dizer-nos, Senhor, com esta pessoa, com esta situação à luz dos sinais dos tempos que, para serem lidos, exigem o próprio coração de Deus?

Relançar, recomeçar todos os dias.
A gratidão leva a olhar para o futuro e aceitar novos desafios, relançando as missões com esperança. A atividade missionária é levar a esperança de Cristo com a consciência lúcida e clara, ligada à fé, que faz com que se reconheça que o que eu vejo e experimento “não é coisa minha”, e me dá forças para seguir em frente, pessoal e institucionalmente.

Tudo isso requer a coragem de ser a gente mesmo, de reconhecer a própria identidade no dom de Deus e de investir as próprias energias numa responsabilidade específica. Conscientes do fato de que o que nos foi confiado não é nosso e temos a tarefa de transmiti-lo às próximas gerações.
Este é o coração de Deus, esta é a vida da Igreja.

O Santo Padre presenteou-nos recentemente com a Carta Encíclica “Dilexit nos” sobre o amor humano e divino do coração de Jesus Cristo. Esse presente do Papa Francisco ilumina o nosso coração missionário.
O Papa indica-nos a ação social e o mundo inteiro como o destino natural da autêntica devoção ao Sagrado Coração. No número 205 da Encíclica, ele diz o seguinte: «Que culto seria o de Cristo se nos contentássemos com uma relação individual desinteressada em ajudar os outros a sofrer menos e a viver melhor? Poderá agradar ao Coração que tanto amou se nos mantivermos numa experiência religiosa íntima, sem consequências fraternas e sociais?».

O Papa Francisco diz-nos claramente que aquele que tem intimidade com o coração do Senhor não pode deixar de ser dotado de espírito missionário que abrace o mundo inteiro, porque o seu coração se expandiu, se ampliou! Há uma relação direta: quanto mais habitarmos a intimidade do Coração de Cristo, mais seremos capazes de chegar às fronteiras da terra.

O coração de Cristo leva-me a estar atento às feridas no coração da humanidade.
Em uma palavra: o coração da missão é o coração de Deus.

Que força e que energia nos é transmitida pelo Santo Padre, neste ano que nos apresenta o 150° aniversário da primeira expedição missionária.

A história continua conosco. Hoje, Dom Bosco precisa de Salesianos que se coloquem à disposição como “simples instrumentos” para realizar o sonho missionário. Este é o meu apelo aos irmãos que sentem no fundo de seus corações o chamado de Deus, dentro da nossa vocação salesiana comum, para que se tornem disponíveis como missionários com um compromisso vitalício (ad vitam), onde quer que o Reitor-Mor os enviar.

No último apelo do P. Ángel, 48 salesianos inscreveram-se em dezembro de 2023, e 24 foram escolhidos como membros da 155a expedição missionária. Neste ano, que prepara o 150° aniversário da primeira expedição missionária, a minha oração e a minha esperança é que haja ainda mais.

O diálogo com o Conselheiro Geral para as Missões e a reflexão compartilhada no Conselho Geral, com base no projeto missionário apresentado ao Conselho (ACG 437, p. 68), permitem-me especificar as urgências identificadas para 2025, para onde eu gostaria que fosse enviado um número significativo de irmãos:
– Norte da África, África do Sul (AFM), África Ocidental Norte (AON), Moçambique;
– A nova presença que iniciaremos em Vanuatu;
– Albânia, Romênia, para o ‘Projeto Calábria-Basilicata’ (IME);
– Chile, Mongólia, Uruguai, e outras fronteiras e eventuais urgências.

Convido os Inspetores e, com eles, os Delegados Inspetoriais para a Animação Missionária, a serem os primeiros a ajudar os irmãos no seu discernimento, convidando-os, depois de um diálogo pessoal, a colocar- se à disposição do Reitor-Mor para responder às necessidades missionárias da Congregação. Em seguida, o Conselheiro Geral para as Missões continuará o discernimento que levará à escolha dos missionários e o envio da próxima 156a expedição missionária, a ser realizada em Valdocco no dia 11 de novembro de 2025.

O Senhor nos abençoe e Nossa Senhora nos acompanhe; um Santo Natal a todos e um Feliz Ano Novo em nome da Esperança, que é a presença de Deus.

Roma, 18 de dezembro de 2024

Sac. Stefano Martoglio
Vigário (ex. art. 143 cost. S.D.B.)
Prot. n. 24/0575




O perfume

Em uma manhã fria de março, em um hospital, devido a sérias complicações, uma menina nasceu muito antes do esperado, depois de apenas seis meses de gravidez.
Ela era uma criaturinha minúscula e os novos pais ficaram dolorosamente chocados com as palavras do médico: “Acho que a menina não tem muita chance de sobreviver. Há apenas 10% de chance de que ela sobreviva além desta noite e, mesmo que isso aconteça por algum milagre, a probabilidade de que ela tenha complicações futuras é muito alta”. Paralisados de medo, a mãe e o pai ouviram as palavras do médico enquanto ele descrevia todos os problemas que a criança enfrentaria. Ela nunca conseguiria andar, falar, enxergar, teria retardo mental e muito mais.
A mãe, o pai e o filho de cinco anos haviam esperado tanto tempo por aquela criança. Em poucas horas, eles viram todos os seus sonhos e desejos serem destruídos para sempre.
Mas seus problemas ainda não haviam terminado, pois o sistema nervoso do pequeno ainda não estava desenvolvido. Portanto, qualquer carícia, beijo ou abraço era perigoso, os familiares desconsolados não podiam nem mesmo transmitir seu amor a ela, tinham que evitar tocá-la.
Os três se deram as mãos e oraram, formando um pequeno coração pulsante no enorme hospital:
“Deus Todo-Poderoso, Senhor da vida, fazei vós o que não podemos fazer: cuidai da pequena Diana, abraçai-a em vosso peito, embalai-a e fazei com que ela sinta todo o nosso amor”.
Diana era uma massa palpitante e, aos poucos, começou a melhorar. As semanas se passaram e a pequena continuou a ganhar peso e a ficar mais forte. Finalmente, quando Diana completou dois meses de idade, seus pais puderam segurá-la pela primeira vez.
Cinco anos depois, Diana havia se tornado uma criança serena que olhava para o futuro com confiança e entusiasmo pela vida. Não havia sinais de deficiência física ou mental, ela era uma criança normal, animada e cheia de curiosidade.
Mas esse não é o fim da história.
Em uma tarde quente, em um parque não muito longe de casa, enquanto seu irmão jogava futebol com os amigos, Diana estava sentada nos braços de sua mãe. Como sempre, ela estava conversando alegremente, quando, de repente, ficou em silêncio. Ela apertou os braços como se estivesse abraçando alguém e perguntou à mãe: “A senhora está sentindo isso?”.
Sentindo o cheiro de chuva no ar, a mamãe respondeu: “Sim. O cheiro é de quando vai chover”.
Depois de um tempo, Diana levantou a cabeça e, acariciando seus braços, exclamou: “Não, tem o perfume Dele. Tem o cheiro de quando Deus te abraça com força”.
A mãe começou a chorar lágrimas quentes, enquanto a menina corria em direção a suas amiguinhas para brincar com elas.
As palavras da filha confirmaram o que a senhora já sabia em seu coração há muito tempo. Durante todo o tempo no hospital, enquanto lutava pela vida, Deus cuidou da garotinha, abraçando-a com tanta frequência que seu perfume ficou gravado na memória de Diana.

Em cada criança permanece o perfume de Deus. Por que temos tanta pressa em apagá-lo?




Os Cardeais Protetores da Sociedade Salesiana de São João Bosco

Desde o início, a Sociedade Salesiana teve, como muitas outras ordens religiosas, um cardeal protetor. Com o passar do tempo, até o Concílio Vaticano II, houve nove cardeais protetores, um papel de grande importância para o crescimento da Sociedade Salesiana.

A instituição de cardeais protetores para congregações religiosas é uma tradição antiga que remonta aos primeiros séculos da Igreja, quando o Papa nomeava defensores e representantes da fé. Com o passar do tempo, essa prática se estendeu às ordens religiosas, para as quais um cardeal foi designado com a tarefa de proteger seus direitos e prerrogativas junto à Santa Sé. A Sociedade Salesiana de São João Bosco também desfrutou desse favor, tendo vários cardeais para representá-la e protegê-la nas sedes eclesiais.

Origem da função de Cardeal Protetor
O costume de ter um protetor remonta aos primeiros séculos do Império Romano, quando Rômulo, o fundador de Roma, criou duas ordens sociais: patrícios e plebeus. Cada plebeu podia eleger um patrício como protetor, estabelecendo um sistema de benefício mútuo entre as duas classes sociais. Essa prática também foi adotada posteriormente pela Igreja. Um dos exemplos mais antigos de um protetor eclesiástico é São Sebastião, nomeado pelo Papa Caio em 283 d.C. como defensor da Igreja de Roma.

No século XIII, a designação de protetores cardeais para ordens religiosas tornou-se uma prática estabelecida. São Francisco de Assis foi um dos primeiros a solicitar um cardeal protetor para sua ordem. Após uma visão em que seus frades estavam sendo atacados por aves de rapina, Francisco pediu ao Papa que designasse um cardeal como protetor deles. Inocêncio III concordou e nomeou o cardeal Ugolino Conti, sobrinho do papa. A partir de então, as ordens religiosas seguiram essa tradição para obter proteção e apoio em suas negociações com a Igreja.

Essa prática se espalhou quase como uma necessidade, já que as novas ordens mendicantes e itinerantes tinham um estilo de vida diferente daquele dos monges com residência fixa, bem conhecidos pelos bispos locais. As distâncias geográficas, os diferentes sistemas políticos dos locais em que as novas ordens religiosas operavam e as dificuldades de comunicação na época exigiam uma figura autorizada que conhecesse bem seus problemas e necessidades. Essa figura poderia representá-las na Cúria Romana, defender seus direitos e interesses e interceder junto à Santa Sé em caso de necessidade. O cardeal protetor não tinha jurisdição ordinária sobre as ordens religiosas; seu papel era o de um protetor benevolente, embora em circunstâncias específicas ele pudesse receber poderes delegados.

Essa prática também se estendia a outras ordens religiosas e, no caso da Sociedade Salesiana, os cardeais protetores desempenharam um papel crucial para garantir o reconhecimento e a proteção da jovem congregação, especialmente em seus primeiros anos, quando ela estava tentando se consolidar dentro da estrutura da Igreja Católica.

A escolha do cardeal protetor
A relação entre Dom Bosco e a hierarquia eclesiástica era complexa, especialmente nos primeiros anos da fundação da congregação. Nem todos os cardeais e bispos viam com bons olhos o modelo educacional e pastoral proposto por Dom Bosco, em parte por causa de sua abordagem inovadora e em parte por causa de sua insistência em atender às classes mais pobres e desfavorecidas.

A escolha de um cardeal protetor não era aleatória, mas feita com muito cuidado. Normalmente, buscava-se um cardeal que estivesse familiarizado com a ordem ou que tivesse demonstrado interesse no tipo de trabalho realizado pela congregação. No caso dos salesianos, isso significava procurar cardeais que tivessem um foco especial em juventude, educação ou missões, já que essas eram as principais áreas de atividade da Sociedade. Naturalmente, a nomeação final dependia do Papa e da Secretaria de Estado.

O papel do Cardeal Protetor para os salesianos
Para a Sociedade Salesiana, o Cardeal Protetor era uma figura-chave em sua interação com a Santa Sé, ajudando a mediar quaisquer disputas, garantindo a interpretação correta das regras canônicas e assegurando que as necessidades da ordem fossem compreendidas e respeitadas. Diferentemente de algumas congregações mais antigas, que já haviam estabelecido um forte relacionamento com as autoridades eclesiásticas, os salesianos, nascidos em uma era de rápidas mudanças sociais e religiosas, precisavam de um apoio significativo para enfrentar os desafios iniciais, tanto interna quanto externamente.

Um dos aspectos mais importantes do papel do Cardeal Protetor era sua capacidade de apoiar os salesianos em suas relações com o Papa e a Cúria. Esse papel de mediador e protetor proporcionou à congregação um canal direto com os escalões superiores da Igreja, permitindo que expressassem preocupações e solicitações que, de outra forma, poderiam ter sido ignoradas ou adiadas. O cardeal protetor também era responsável por garantir que a Sociedade Salesiana cumprisse as diretrizes do Papa e da Igreja, assegurando que sua missão permanecesse alinhada com os ensinamentos católicos.

Em uma de suas visitas a Roma, em fevereiro de 1875, Dom Bosco pediu ao Santo Padre Pio IX a graça de ter um cardeal protetor:

Na mesma audiência, ele perguntou ao Papa se deveria, como as outras congregações religiosas, pedir um Cardeal Protetor. O Papa respondeu-lhe textualmente: – Enquanto eu estiver vivo, serei sempre seu Protetor e de sua Congregação” (MBp XI, 92).

No entanto, percebendo a necessidade de uma pessoa de referência que tivesse autoridade para realizar várias tarefas para a Sociedade Salesiana, em 1876 Dom Bosco voltou a pedir ao Papa um Cardeal Protetor:

Tendo eu depois pedido que, para resolver nossos negócios eclesiásticos em Roma, indicasse para nós um Cardeal Protetor que defendesse nossas causas junto à Santa Sé, como têm todas as demais Ordens e Congregações, sorridente, disse-me: – Mas quantos protetores querem? Já não os têm até mais de um? – Fazendo-me entender: Quero ser o Cardeal Protetor de vocês; querem ainda outros? Ouvindo palavras tão bondosas, agradeci-lhe de todo o coração e lhe disse: “Santo Padre, quando diz isso, eu não procuro mais outro defensor”. (MBp XII, 192).

Depois dessa resposta satisfatória, Dom Bosco ainda obteve um Cardeal Protetor no mesmo ano de 1876:

3º – Pedi um Cardeal Protetor para comunicar com Sua Santidade: a princípio parecia que queria ele mesmo ser nosso Protetor, mas quando lhe notei que o Cardeal Protetor era precisamente uma referência para os assuntos salesianos com Sua Santidade, pois não poderíamos tratar nas Sagradas Congregações porque elas estavam distantes, Sua Santidade precisamente teria sido de fato nosso Protetor; o Cardeal teria lidado com nossas coisas nos vários Dicastérios para relatá-las a Sua Santidade depois. – Neste sentido está bem, ele acrescentou, e vou comunicar tudo à Congregação dos Bispos e Regulares.O cardeal é o Em.mo Oreglia, que será o protetor de nossas Missões, dos Cooperadores Salesianos, da Obra de Maria Auxiliadora, da Arquiconfraria dos devotos de Maria Auxiliadora e de toda a Congregação Salesiana para os assuntos que devem ser tratados em Roma na Santa Sé”. (MBp XIII, 440)

Dom Bosco mencionou esse cardeal em seu escrito “A mais bela flor do colégio apostólico, isto é, a eleição de Leão XIII” (pp. 193-194):

XXVIII. Card. Luís Oreglia
Luís Oreglia dos Barões de Santo Estêvão honra o Piemonte como o Cardeal Bilio, pois nasceu em Benevagienna, na diocese de Mondovì, em 9 de julho de 1828. Fez seus estudos teológicos em Turim sob a orientação de nossos competentes professores, que admiravam sua mente perspicaz e seu incansável amor pelo trabalho. Em seguida, foi para Roma, para a Academia Eclesiástica, onde completou com louvor sua educação religiosa e se dedicou ao estudo de idiomas, especialmente o alemão, no qual é excelente. Tendo entrado na Prelatura, foi nomeado, em 15 de abril de 1858, referendário da Assinatura Apostólica, e depois enviado como internúncio para Haia, na Holanda, de onde seguiu para Portugal, depois de ter sido nomeado arcebispo de Damiata, sucedendo nesse importante cargo diplomático o eminentíssimo cardeal Perrieri. Ele encontrou certas tradições de Pombal ainda vivas em Portugal, contra as quais lutou com grande inteligência e coragem. Por isso, não agradou muito aos governantes da época. E voltou a Roma e o Santo Padre, para mostrar que se deixou de representar a Santa Sé em Portugal não foi por nenhum demérito, criou-o e o fez Cardeal no Consistório de 22 de dezembro de 1873, dando-lhe o título de Santo Anastácio e nomeando-o Prefeito da Sagrada Congregação das Indulgências e Sagradas Relíquias. O Cardeal Oreglia acrescentou às nobres maneiras do cavalheiro as virtudes do sacerdote exemplar. Pio Nono sempre o estimou e amava sua conversa cheia de reserva e graça. Ele vai devagar para se dedicar a algum negócio, mas, quando fala uma palavra, não se importa com os trabalhos e problemas, desde que seja bem-sucedido. Ele é muito indulgente. O novo Pontífice o tem em alta consideração e o confirmou no cargo de prefeito da Sagrada Congregação de Indulgências e Sagradas Relíquias”.

O cardeal Luís Oreglia permaneceu como protetor dos salesianos de 1876 a 1878, embora já tivesse desempenhado essa tarefa informalmente antes de 1876.

Entretanto, oficialmente, o primeiro cardeal protetor dos salesianos foi Lourenço Nina, que ocupou esse cargo de 1879 a 1885. Leão XIII concordou com o pedido de Dom Bosco de ter um cardeal protetor para a Sociedade, e a notificação oficial veio após uma audiência em 29 de março de 1879:

“Seis dias depois desta audiência, por meio de um bilhete da Secretaria de Estado, assinado por Mons. Serafim Cretoni, Dom Bosco foi avisado oficialmente da nomeação do Protetor, nestes honrosos termos: «A Santidade de Nosso Senhor, querendo que a Congregação Salesiana, que dia a dia vai recebendo novos títulos de especial benevolência da Santa Sé por causa das obras de caridade e de fé, implantadas nas várias partes do mundo, tenha especial Protetor, dignou-se benignamente conferir esta função ao Sr. Cardeal Lourenço Nina, seu Secretário de Estado”. No tempo de Pio IX, o Card. Oreglia era o protetor, mas unicamente a título oficioso, pois esse Pontífice tinha reservado para si a proteção da Sociedade, necessitada de particular e paterna assistência em seus primórdios. Agora, ao invés, tinha o Protetor verdadeiro e próprio, como outras Congregações religiosas. A escolha não poderia ser de Prelado mais benévolo. Conhecendo Dom Bosco antes do Cardinalato, nutria para com ele enorme consideração e lhe era sinceramente afeiçoado. Solicitado por Dom Bosco para ser o protetor dos salesianos, mostrara-se muito disposto, dizendo-lhe: – “Não poderia oferecer-me para isso ao Santo Padre. Mas se o Santo Padre me diz, aceito já”. – Comprovou seu bem-querer quando o Beato lhe propôs que, tendo Sua Eminência muitos afazeres, lhe indicasse alguém para tratar do caso das Missões. O Cardeal respondeu: – Não, não; quero que nós mesmos tratemos disso diretamente; passe amanhã às quatro e meia e conversaremos melhor. É um milagre uma Congregação prosperar nestes tempos em meio a ruínas de outras, quando tudo se quereria destruir. – O Beato experimentou frequentes vezes o quanto lhe fosse útil tão afetuosa proteção. Tendo voltado a Turim e comunicado ao Capítulo Superior a designação pontifícia de Protetor, enviou ao Cardeal, em nome de toda a Congregação, carta de agradecimento, por ter-se dignado aceitar essa função, de homenagem muito cordial e de oração pelas Missões, e talvez também para os privilégios; é o que se pode deduzir da seguinte resposta de Sua Eminência”. (MBp XIV, 65-66)

De agora em diante, a Congregação Salesiana terá sempre um cardeal protetor com grande influência na Cúria Romana.

Além dessa figura oficial, sempre houve outros cardeais e altos prelados que, compreendendo a importância da educação, apoiaram os salesianos. Entre eles estão os cardeais Alexandre Barnabò (1801-1874), José Berardi (1810-1878), Caetano Alimonda (1818-1891), Luís Maria Bilio (1826-1884), Luís Galimberti (1836-1896), Augusto Silj (1846-1926) e muitos outros.

Elenco dos Protetores da Sociedade Salesiana de São João Bosco:

  Cardeal Protetor SDB Período Nomeação
  Beato Papa Pio IX    
1 Luís OREGLIA 1876-1878  
2 Lourenço NINA 1879-1885 29.03.1879 (MB XIV,78-79)
3 Lúcido Maria PAROCCHI 1886-1903 12.04.1886 (ASV, Segr. Stato, 1886, prot. 66457; ASC D544, Cardeais Protetores, Parocchi)
4 Mariano RAMPOLLA DEL TINDARO 1903-1913 31.03.1093 (carta do Cardeal Rampolla a Dom Rua)
5 Pedro GASPARRI 1914-1934 09.10.1914 (AAS 1914-006, p. 22)
6 Eugênio PACELLI (Pio XII) 1935-1939 02.01.1935 (AAS 1935-027, p.116)
7 Vicente LA PUMA 1939-1943 24.05.1939 (AAS 1939-031, p. 281)
8 Carlos SALOTTI 1943-1947 29.12.1943 (AAS 1943-036, p. 61)
9 Bento Aloísio MASELLA 1948-1970 10.02.1948 (AAS 1948-040, p.165)

O último protetor dos salesianos foi o cardeal Bento Aloísio Masella, pois o papel dos protetores foi anulado pela Secretaria de Estado na época do Concílio Vaticano II, em 1964. Os protetores titulares permaneceram até sua morte e, com eles, o cargo que receberam também morreu.

Isso aconteceu porque, no contexto contemporâneo, o papel do cardeal protetor perdeu parte de sua relevância formal. A Igreja Católica passou por inúmeras reformas durante o século XX, e muitas das funções que antes eram delegadas aos cardeais protetores foram incorporadas às estruturas oficiais da Cúria Romana ou se tornaram obsoletas devido a mudanças na governança eclesiástica. Entretanto, mesmo que a figura do cardeal protetor não exista mais com as mesmas prerrogativas do passado, o conceito de proteção eclesiástica continua importante.

Hoje, os salesianos, como muitas outras congregações, mantêm um relacionamento próximo com a Santa Sé por meio de vários dicastérios e escritórios curiais, em particular o Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Além disso, muitos cardeais continuam a apoiar pessoalmente a missão dos salesianos, mesmo sem o título formal de protetor. Essa proximidade e esse apoio continuam sendo essenciais para garantir que a missão salesiana continue a responder aos desafios do mundo contemporâneo, particularmente na educação dos jovens e nas missões.

A instituição de cardeais protetores para a Sociedade Salesiana foi um elemento crucial em seu crescimento e consolidação. Graças à proteção oferecida por essas eminentes figuras eclesiásticas, Dom Bosco e seus sucessores puderam levar adiante a missão salesiana com maior serenidade e segurança, sabendo que podiam contar com o apoio da Santa Sé. O trabalho dos cardeais protetores provou ser essencial não apenas para defender os direitos da congregação, mas também para favorecer sua expansão pelo mundo, ajudando a difundir o carisma de Dom Bosco e seu sistema educacional.