Um coração tão grande como as praias do mar

Um novo tempo nos é dado: do Coração de Deus ao coração da humanidade, no espelho do grande coração de Dom Bosco.

Caros amigos e leitores, nesta edição de dezembro, dirijo-me a vocês com os melhores votos de um novo ano! De um novo tempo que nos é dado viver com intensidade e com “novidade de vida”, e faço meu, como augúrio propício e oportuno, o dom que o Santo Padre nos deu nos últimos dias: a Carta Encíclica Dilexit Nos sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus Cristo.
Nós, salesianos, estamos acostumados a cantar: “Deus lhe deu um coração tão grande / como a areia do mar; / Deus lhe deu o seu espírito: / liberou o seu amor”.
O Papa Pio XI, que o conheceu bem, disse que Dom Bosco tinha uma “bela particularidade”: ele era “um grande amante das almas” e as via “nos pensamentos, no coração, no sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Afinal, no brasão de armas de nossa Congregação há um coração ardente.
O Papa Francisco se apresenta assim no n. 2 da Dilexit Nos: “Para exprimir o amor de Jesus Cristo, recorre-se frequentemente ao símbolo do coração. Há quem se interrogue se isto atualmente tenha um significado válido. Porém, é necessário recuperar a importância do coração quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência”.
Quão forte é essa indicação do nosso Papa para nos mostrar um novo modo de viver, em um novo tempo que nos é dado, o ano que está por vir.
No n. 21, o Papa Francisco escreve: “Este núcleo de cada ser humano, o seu centro mais íntimo, não é o núcleo da alma, mas da pessoa inteira na sua identidade única, que é alma e corpo. Tudo está unificado no coração, que pode ser a sede do amor com todas as suas componentes espirituais, psíquicas e também físicas. Em última análise, se aí reina o amor, a pessoa realiza a sua identidade de forma plena e luminosa, porque cada ser humano é criado, sobretudo, para o amor; é feito nas suas fibras mais profundas para amar e ser amado.”
E acrescenta no número 27 da mesma Carta Encíclica: “Perante o Coração de Jesus vivo e atual, o nosso intelecto, iluminado pelo Espírito, compreende as palavras de Jesus. Assim, a nossa vontade põe-se em ação para as praticar. Mas isso poderia permanecer como uma forma de moralismo autossuficiente. Ouvir, saborear e honrar o Senhor pertence ao coração. Só o coração é capaz de colocar as outras faculdades e paixões e toda a nossa pessoa numa atitude de reverência e obediência amorosa ao Senhor”.
Não vou me alongar mais, esperando tê-los estimulado para ler essa esplêndida Carta Encíclica, que não é apenas um grande dom para viver de modo novo o tempo que nos é dado, o que já seria suficiente; é também uma indicação profundamente “salesiana”.
Quanto Dom Bosco escreveu e trabalhou para difundir justamente a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, como amor divino que acompanha a nossa realidade humana.

Um impulso magnífico
Nas Memórias Biográficas (em língua portuguesa), no volume VIII, p. 274, encontramos o seguinte escrito, referindo-se a Dom Bosco: “A devoção ao Sagrado Coração, que ardia fortemente em seu coração, animava todas as suas obras, conferia eficácia às suas conversas familiares, às suas homilias e ao exercício do sagrado ministério, de maneira que todos ficavam encantados e persuadidos (diz o testemunho do P. Bonetti); além disso, parecia que o Sagrado Coração de Jesus cooperava também com dons sobrenaturais para o cumprimento de sua árdua missão”.
Esse testemunho da devoção de Dom Bosco ao Sagrado Coração é “plasticamente” identificado com a Basílica homônima construída por Dom Bosco em Roma a pedido do Papa da época.
O edifício material recorda e admoesta a todos nós a devoção “monumental” de Dom Bosco ao Sagrado Coração. Como para Nossa Senhora, assim também para o Sagrado Coração, a devoção de Dom Bosco se manifesta nas igrejas que ele construiu. Porque a devoção ao Sagrado Coração é a Eucaristia, a adoração eucarística.
O coração de Dom Bosco em constante amor para com a Eucaristia é um magnífico impulso pessoal para tornar isso vivo e verdadeiro no novo ano. Um desejo verdadeiro e profundo de que o Ano Novo seja vivido em sua plenitude. Como diz o canto: “Formaste homens / de coração sadio e forte: / os enviaste ao mundo para proclamar / o Evangelho da alegria”.

Gostaria de concluir esta breve mensagem, desejando a todos um Feliz Ano Novo, com a imagem que o Papa Francisco traz nas primeiras páginas da encíclica, referindo-se aos ensinamentos de sua avó sobre o significado do nome dos doces de carnaval, as “mentiras”… porque quando são assados, a massa incha e fica vazia… portanto, têm uma exterioridade que corresponde a um vazio interior; eles parecem ser por fora, mas não são, são “mentiras”.
Que o Ano Novo seja para todos nós pleno e rico de substância, concretizando-se na acolhida de Deus que vem para o meio de nós.
Que Sua vinda traga paz e verdade, que o que é visto por fora corresponda ao que há no interior!
Augúrios de coração a todos vocês!




A vida conforme o espírito em Mamãe Margarida (2/2)

(continuação do artigo anterior)

4. O êxodo para o sacerdócio do filho
            Desde o sonho dos nove anos de idade, quando ela é a única a intuir a vocação do filho, “quem sabe, talvez se torne padre”, ela é a mais convicta e tenaz defensora da vocação do filho, enfrentando humilhações e sacrifícios para isso: “Sua mãe, então, que queria sustentá-lo à custa de qualquer sacrifício, não hesitou em tomar a resolução de fazê-lo frequentar as escolas públicas de Chieri no ano seguinte. Ela então se preocupou em encontrar pessoas verdadeiramente cristãs com quem pudesse colocá-lo numa pensão”. Margarida seguiu discretamente o caminho vocacional e de formação de João, em meio a sérias dificuldades econômicas.
            Ela sempre o deixou livre em suas escolhas e de modo algum condicionou seu caminho rumo ao sacerdócio, mas quando o pároco tentou convencer Margarida de que João não deveria escolher a vida religiosa, para garantir sua segurança financeira e ajuda, ela imediatamente estendeu a mão para o filho e pronunciou palavras que permaneceriam gravadas no coração de Dom Bosco pelo resto de sua vida: “Só quero que você examine cuidadosamente o passo que deseja dar e depois siga sua vocação sem olhar para ninguém. O pároco queria que eu o dissuadisse dessa decisão, tendo em vista a necessidade que eu poderia ter no futuro de sua ajuda. Mas eu digo: não tenho nada a ver com essas coisas, porque Deus está em primeiro lugar. Não se preocupe comigo. Não quero nada de você; não espero nada de você. Pense bem: eu nasci na pobreza, vivi na pobreza, quero morrer na pobreza. De fato, eu lhe protesto. Se resolver se tornar um sacerdote secular e, por infortúnio, ficar rico, não irei visitá-lo uma única vez; na verdade, nunca mais colocarei os pés em sua casa. Lembre-se bem disso!”.
            Mas nessa jornada vocacional, ela não deixa de ser forte com o filho, lembrando-o, por ocasião de sua partida para o seminário em Chieri, das exigências da vida sacerdotal: “Meu filho, você vestiu o hábito sacerdotal; sinto toda a consolação que uma mãe pode sentir pela boa sorte do filho. Mas lembre-se de que não é o hábito que honra seu estado, é a prática da virtude. Se alguma vez chegar a duvidar de sua vocação, ah, por favor, não desonre esse hábito! Abandone-o rapidamente. Gosto mais de ter um pobre camponês do que um filho padre mas negligente em seus deveres”. Dom Bosco jamais esqueceria essas palavras de sua mãe, expressão da consciência de sua dignidade sacerdotal e fruto de uma vida profundamente reta e santa.
            No dia da Primeira Missa de Dom Bosco, Margarida mais uma vez se fez presente com palavras inspiradas pelo Espírito, expressando tanto o valor autêntico do ministério sacerdotal quanto a entrega total do filho à sua missão, sem qualquer pretensão ou pedido: “Você é padre; você reza a missa; daqui em diante você está mais perto de Jesus Cristo. Lembre-se, porém, de que começar a rezar a missa é começar a sofrer. Você não perceberá isso de imediato, mas pouco a pouco verá que sua mãe lhe disse a verdade. Tenho certeza de que rezará por mim todos os dias, esteja eu ainda viva ou já morta; isso é suficiente para mim. De agora em diante, pense apenas na salvação das almas e não pense mais em mim”. Ela renuncia completamente ao filho para oferecê-lo a serviço da Igreja. Mas, ao perdê-lo, ela o encontra novamente, compartilhando sua missão educativa e pastoral entre os jovens.

5. O êxodo dos Becchi para Valdocco
            Dom Bosco apreciou e reconheceu os grandes valores que havia herdado de sua família: a sabedoria camponesa, a astúcia sadia, o sentido do trabalho, a essencialidade das coisas, a diligência em ocupar-se, o otimismo pleno, a resiliência nos momentos de infortúnio, a capacidade de se recuperar depois das pancadas, a alegria sempre e em qualquer circunstância, o espírito de solidariedade, a fé viva, a verdade e a intensidade do afeto, o gosto pela acolhida e pela hospitalidade; todos os bens que havia encontrado em casa e que o haviam construído assim. Ele está tão marcado por essa experiência que, quando pensa em uma instituição educacional para seus filhos, não quer outro nome além de “lar” e define o espírito que deveria tê-la imprimido com a expressão “espírito de família”. E para dar a impressão certa, ele pediu à Mamãe Margarida, já velha e cansada, que deixasse a tranquilidade de sua casinha nas colinas para ir até a cidade e cuidar daqueles meninos recolhidos nas ruas, aqueles que lhe causariam muitas preocupações e tristezas. Mas ela vai para ajudar Dom Bosco e para ser uma mãe para aqueles que não têm mais família e afeto. Se João Bosco aprende na escola de Mamãe Margarida a arte de amar concretamente, generosamente, desinteressadamente e para com todos, sua mãe compartilhará a escolha do filho de dedicar sua vida à salvação dos jovens até o fim. Essa comunhão de espírito e de ação entre filho e mãe marca o início da obra salesiana, envolvendo muitas pessoas nessa aventura divina. Tendo atingido uma situação de paz, ela aceitou, já não tão jovem, deixar a vida tranquila e a segurança dos Becchi, para ir a Turim, numa área suburbana e numa casa despojada de tudo. Foi uma verdadeira mudança em sua vida!

            Assim, Dom Bosco, depois de pensar e repensar como sair das dificuldades, foi falar com seu pároco em Castelnuovo, contando-lhe sua necessidade e seus temores.
                – O senhor tem sua mãe! O pároco respondeu sem hesitar: – O senhor tem sua mãe; faça com que ela o acompanhe a Turim. Dom Bosco, que havia previsto essa resposta, quis fazer algumas reflexões, mas o P. Cinzano respondeu:
                – Leve sua mãe com o senhor. Não encontrará ninguém mais adequada para o trabalho do que ela. Fique tranquilo, o senhor terá um anjo ao seu lado! Dom Bosco voltou para casa convencido das razões apresentadas pelo pároco. Entretanto, dois motivos ainda o impediam. O primeiro era a vida de privações e mudanças de hábitos a que sua mãe naturalmente teria de se submeter naquela nova posição. O segundo era a repugnância que sentia ao propor à mãe um cargo que a tornaria, de alguma forma, dependente dele. Para Dom Bosco, sua mãe era tudo e, com seu irmão José, ele estava acostumado a manter todos os seus desejos como lei inquestionável. Entretanto, depois de pensar e orar, vendo que não havia outra opção, ele concluiu:
                – Minha mãe é uma santa, então posso fazer-lhe essa proposta!
                Então, um dia, ele a chamou à parte e falou com ela:
                – Mamãe, decidi voltar a Turim entre meus queridos jovens. De agora em diante, como não ficarei mais no Refúgio, precisarei de alguém que me ajude; mas o lugar onde terei de morar em Valdocco, por causa de certas pessoas que moram perto dali, é muito arriscado e não me deixa tranquilo. Portanto, preciso ter ao meu lado uma proteção para tirar das pessoas mal-intencionadas todos os motivos de suspeita e fofoca. Somente a senhora poderia tirar todo o medo de mim; não gostaria de vir e ficar comigo? Diante dessa saída inesperada, a piedosa mulher ficou um pouco pensativa e depois respondeu:
                – Meu querido filho, você pode imaginar o quanto me custa deixar esta casa, seu irmão e outros entes queridos; mas se lhe parecer que tal coisa pode agradar ao Senhor, estou pronta para segui-lo. Dom Bosco lhe garantiu isso e, agradecendo-lhe, concluiu:
                – Vamos organizar as coisas e, depois da Festa dos Santos, partiremos. Margarida foi morar com o filho, não para ter uma vida mais cômoda e agradável, mas para compartilhar com ele as dificuldades e os sofrimentos de centenas de meninos pobres e abandonados; foi para lá, não atraída pela ganância do dinheiro, mas pelo amor a Deus e às almas, porque sabia que a parte do ministério sagrado que Dom Bosco assumira, longe de lhe dar recursos ou lucros, obrigava-o a gastar os próprios bens e também a pedir esmolas. Ela não parou; pelo contrário, admirando a coragem e o zelo do filho, sentiu-se ainda mais encorajada a ser sua companheira e imitadora, até a morte.

            Margarida viveu no Oratório com o calor materno e a sabedoria de uma mulher profundamente cristã, com uma dedicação heroica ao filho em momentos difíceis para sua saúde e segurança física, exercendo assim uma autêntica maternidade espiritual e material para com seu filho sacerdote. De fato, ela se estabeleceu em Valdocco não apenas para cooperar com o trabalho iniciado por seu filho, mas também para afastar qualquer ocasião de calúnia que pudesse surgir da proximidade de instalações equivocadas.
            Ele deixa a tranquila segurança do lar de José para se aventurar com o filho em uma missão difícil e arriscada. Ela vive seu tempo em uma dedicação irrestrita aos jovens “de quem se tinha tornado mãe”. Ela amava os meninos do oratório como se fossem seus próprios filhos e trabalhava para o bem-estar, a educação e a vida espiritual deles, dando ao oratório aquela atmosfera familiar que seria uma característica das casas salesianas desde o início. “Se há a santidade dos êxtases e das visões, há também a das panelas para limpar e das meias para remendar. Mamãe Margarida era uma santa assim”.
            Em suas relações com as crianças, ela era exemplar, distinguindo-se por sua delicadeza de caridade e sua humildade em servir, reservando para si as ocupações mais humildes. Sua intuição como mãe e mulher espiritual fez com que reconhecesse em Domingos Sávio uma extraordinária obra de graça.
            Mesmo no Oratório, no entanto, não faltaram provações e, quando houve um momento de hesitação devido à dureza da experiência, causada por uma vida muito exigente, o olhar para o Crucifixo apontado por seu filho foi suficiente para infundir-lhe uma nova energia: “A partir daquele instante, nenhuma palavra de lamento escapou de seus lábios. De fato, a partir daquele momento, ela parecia insensível a essas misérias”.
            O P. Rua resumiu bem o testemunho de Mamãe Margarida no oratório, com quem viveu por quatro anos: “Uma mulher verdadeiramente cristã, piedosa, de coração generoso e corajoso, prudente, que se dedicou inteiramente à boa educação dos filhos e da família adotiva”.

6. Êxodo para a casa do Pai
            Ela nasceu pobre. Viveu pobre. Morreu pobre vestindo o único vestido que usava; em seu bolso havia 12 liras destinadas a comprar um novo, que nunca comprou.
            Mesmo na hora da morte, ela se voltou para seu amado filho e deixou-lhe palavras dignas de uma mulher sábia: “Tenha muita confiança naqueles que trabalham com você na vinha do Senhor… Observe que muitos, em vez da glória de Deus, buscam sua própria utilidade… Não busquem a elegância nem o esplendor das obras. Busquem a glória de Deus; tenham como base a pobreza de ações. Muitos amam a pobreza nos outros, mas não em si mesmos. O ensinamento mais eficaz é sermos os primeiros a fazer o que ordenamos aos outros”.
            Margarida, que havia consagrado João à Santíssima Virgem, a quem o havia confiado no início de seus estudos, recomendando a devoção e a propagação do amor a Maria, agora o tranquilizava: “Nossa Senhora não deixará de guiar seus empreendimentos”.
            Toda a sua vida foi uma doação total de si mesma. Em seu leito de morte, podia dizer: “Fiz toda a minha parte”. Ela morreu aos 68 anos de idade no Oratório de Valdocco, em 25 de novembro de 1856. Os meninos do Oratório a acompanharam até o cemitério, chamando-a de “Mamãe”.
            Dom Bosco, entristecido, disse a Pedro Enria: “Perdemos a nossa mãe, mas tenho certeza de que ela nos ajudará do céu. Ela era uma santa!”. E o próprio Enria acrescentou: “Dom Bosco não exagerou ao chamá-la de santa, porque ela se sacrificou por nós e foi uma verdadeira mãe para todos nós”.

Concluindo
            Mamãe Margarida foi uma mulher rica de vida interior e de fé granítica, sensível e dócil à voz do Espírito, pronta para captar e realizar a vontade de Deus, atenta aos problemas do próximo, disponível para atender às necessidades dos mais pobres e, sobretudo, dos jovens abandonados. Dom Bosco sempre se lembrará dos ensinamentos e do que havia aprendido na escola de sua mãe, e essa tradição marcaria seu sistema educativo e sua espiritualidade. Dom Bosco havia experimentado que a formação de sua personalidade estava vitalmente enraizada no extraordinário clima de dedicação e bondade de sua família; por isso, ele queria reproduzir suas qualidades mais significativas em seu trabalho. Margarida entrelaçou sua vida com a do filho e com os inícios da obra salesiana: foi a primeira “cooperadora” de Dom Bosco; com bondade ativa, tornou-se o elemento materno do Sistema Preventivo. Na escola de Dom Bosco e de Mamãe Margarida, isso significa cuidar da formação das consciências, educar para a fortaleza da vida virtuosa na luta, sem concessões e compromissos, contra o pecado, com a ajuda dos sacramentos da Eucaristia e da Reconciliação, crescendo na docilidade pessoal, familiar e comunitária às inspirações e às moções do Espírito Santo para fortalecer as razões do bem e testemunhar a beleza da fé.
            Para toda a Família Salesiana, este testemunho é mais um convite a assumir uma atenção privilegiada à família na pastoral juvenil, formando e envolvendo os pais na ação educativa e evangelizadora dos filhos, valorizando a sua contribuição nos itinerários de educação afetiva e favorecendo novas formas de evangelização e catequese de e através das famílias. Mamãe Margarida é hoje um modelo extraordinário para as famílias. Sua santidade é familiar: como mulher, esposa, mãe, viúva, educadora. Sua vida contém uma mensagem de grande relevância, especialmente na redescoberta da santidade do matrimônio.
            Mas outro aspecto deve ser enfatizado: uma das razões fundamentais pelas quais Dom Bosco quis sua mãe ao seu lado em Turim foi para encontrar nela uma guardiã para seu próprio sacerdócio. “Leve sua mãe com você”, sugeriu-lhe o velho pároco. Dom Bosco levou Mamãe Margarida para sua vida de sacerdote e educador. Quando criança, órfão, foi sua mãe que o tomou pela mão; quando jovem sacerdote, foi ele que a tomou pela mão para compartilhar uma missão especial. Não se pode entender a santidade sacerdotal de Dom Bosco sem a santidade de Mamãe Margarida, um modelo não só de santidade familiar, mas também de maternidade espiritual para com os sacerdotes.




Maravilhas da Mãe de Deus invocada sob o título de Maria Auxiliadora (12/13)

(continuação do artigo anterior)

Recordação da função para a primeira pedra fundamental da igreja dedicada a Maria Auxiliadora em 27 de abril de 1865.

FILÓTICO, BENVINDO, CRATIPO E TEODORO.

            Filót. Que bela festa é a de hoje!
            Crat. Uma festa muito bonita; estou neste Oratório há muitos anos; mas nunca vi uma festa assim, e será difícil fazermos outra festa semelhante no futuro.
            Benv. Eu me apresento a vocês, queridos amigos, cheio de admiração: não sei o motivo.
            Filót. De quê?
            Benv. Não sei o motivo daquilo que vi.
            Teod. Quem é você, de onde vem, o que viu?
            Benv. Sou de fora e deixei minha cidade natal para me juntar aos jovens do Oratório de São Francisco de Sales. Assim que cheguei a Turim, pedi para ser conduzido para cá, mas assim que entrei, vi carros enfeitados de forma majestosa, cavalos, empregados e cocheiros, todos vestidos com grande magnificência. É possível, disse a mim mesmo, que esta seja a casa em que eu, um pobre órfão, vim morar? Em seguida, entro no recinto do Oratório, vejo uma multidão de jovens gritando dominados pela alegria e quase frenéticos: Viva, glória, triunfo, boa vontade de todos e sempre. – Olho para o campanário e vejo um pequeno sino balançando em todas as direções para produzir um toque harmonioso a cada esforço. – No pátio, música daqui, música dali: alguns correm, outros pulam, uns cantam, outros tocam. O que é tudo isso?
            Filót. Aqui está o motivo em duas palavras. Hoje foi abençoada a pedra fundamental de nossa nova igreja. Sua Alteza o Príncipe Amadeu se dignou vir e colocar a primeira cal sobre ela; Sua Excelência o Bispo de Susa veio para realizar o serviço religioso; os outros são uma série de nobres personagens e ilustres benfeitores nossos, que vieram prestar suas homenagens ao Filho do Rei e, ao mesmo tempo, tornar mais majestosa a solenidade desse belo dia.
            Benv. Agora entendo o motivo de tanta alegria; e vocês têm bons motivos para celebrar uma grande festa. Mas, se me permitem uma observação, parece-me que vocês entenderam tudo errado. Em um dia tão solene, para dar as boas-vindas adequadas a tantas pessoas ilustres, ao augusto Filho do nosso Soberano, vocês deveriam ter preparado grandes coisas. Deveriam ter construído arcos triunfais, coberto as ruas com flores, enfeitado cada canto com rosas, adornado cada parede com tapetes elegantes e mil outras coisas.
            Teod. Você tem razão, caro Benvindo, você tem razão, esse era o nosso desejo comum. Mas o que você quer? Pobres jovens, como somos, fomos impedidos de fazê-lo não pela vontade, que é grande em nós, mas por nossa absoluta impossibilidade.
            Filót. A fim de receber dignamente nosso amado Príncipe, há alguns dias todos nós nos reunimos para discutir o que deveria ser feito em um dia tão solene. Um deles disse: “Se eu tivesse um reino, eu o ofereceria a ele, pois ele é realmente digno dele”. Excelente, responderam todos; mas, pobres coitados, não temos nada. Ah, acrescentaram meus companheiros, se não temos um reino para lhe oferecer, podemos pelo menos torná-lo rei do Oratório de São Francisco de Sales. Que sorte a nossa! exclamaram todos, assim a miséria acabaria entre nós e haveria uma festa eterna. Um terceiro, vendo que as propostas dos outros eram infundadas, concluiu que poderíamos fazê-lo rei de nossos corações, senhor de nossa afeição; e como vários de nossos companheiros já estão sob seu comando na milícia, oferecer-lhe nossa fidelidade, nossa solicitude, caso chegue o momento de servirmos no regimento que ele dirige.
            Benv. O que seus companheiros responderam?
            Filót. Todos eles receberam esse projeto com alegria. Quanto aos preparativos para a recepção, fomos unânimes: Esses senhores já veem grandes coisas, coisas magníficas, coisas majestosas em casa, e eles saberão como acolher com piedade benigna pela nossa impotência; e temos motivos para esperar muito da generosidade e da bondade de seus corações.
            Benv. Bravo, você falou bem.
            Teod. Muito bem, eu aprovo o que você diz. Mas, enquanto isso, não devemos, ao menos de alguma forma, mostrar-lhes nossa gratidão e dirigir-lhes algumas palavras de agradecimento?
            Benv. Sim, meus caros, mas primeiro gostaria que satisfizessem minha curiosidade sobre várias coisas relacionadas aos Oratórios e às coisas que são feitas neles.
            Filót. Mas faremos com que esses amados Benfeitores exercitem demais sua paciência.
            Benv. Acredito que isso também será do agrado deles. Pois como eles foram e ainda são nossos distintos Benfeitores, ouvirão com prazer o resultado de sua beneficência.
            Filót. Não sou capaz disso, pois faz apenas um ano que estou aqui. Talvez Cratipo, que é o mais velho, possa nos satisfazer. Não é mesmo, Cratipo?
            Crat. Se julgarem que sou capaz disso, terei prazer em tentar satisfazê-los. – Antes de mais nada, direi que os Oratórios, em sua origem (1841), nada mais eram do que reuniões de jovens, em sua maioria de outros lugares, que vinham em dias de festa a locais específicos para serem instruídos no catecismo. Quando locais mais adequados se tornaram disponíveis, os Oratórios (1844) passaram a ser locais onde os jovens se reuniam para uma recreação agradável e honesta após cumprirem seus deveres religiosos. Assim, brincar, rir, pular, correr, cantar, tocar trombeta, bater tambores era o nosso entretenimento. – Um pouco mais tarde (1846), foi acrescentada a escola dominical e, em seguida (1847), as escolas noturnas. – O primeiro oratório é este onde estamos agora, chamado de São Francisco de Sales. Depois desse, foi aberto outro em Porta Nova; mais tarde, outro em Vanchiglia e, alguns anos depois, o de São José em São Salvano.
            Benv. Você me conta a história dos Oratórios festivos, e eu gosto muito disso; mas gostaria de saber algo sobre essa casa. Em que condições os jovens são recebidos nessa casa? Em que eles se ocupam?
            Crat. Posso explicar-lhe. Entre os jovens que frequentam os Oratórios, e também de outras regiões, há alguns que, ou porque são totalmente abandonados, ou porque são pobres ou são carentes de bens, os aguardaria um triste futuro, se uma mão benévola não cuidasse deles como um pai, não os acolhesse, e não lhes desse o necessário para viver.
            Benv. Pelo que você me diz, parece que esta casa é destinada a jovens pobres, e enquanto isso eu vejo todos vocês tão bem vestidos que me parecem filhinhos de papai.
            Crat. Veja, Benvindo, em vista da festa extraordinária que fazemos hoje, cada um pegou tudo o que tinha ou podia ter de mais bonito, e assim podemos ter, se não uma apresentação majestosa, pelo menos compatível.
            Benv. Vocês são muitos nesta casa?
            Crat. Somos cerca de oitocentos.
            Benv. Oitocentos! Oitocentos! E como saciar o apetite de tantos destruidores de pães?
            Crat. Isso não nos diz respeito; o padeiro se encarrega disso.
            Benv. Mas como fazer frente às despesas necessárias?
            Crat. Dê uma olhada em todas essas pessoas que gentilmente nos ouvem, e você saberá quem e como elas nos sustentam com o que precisamos para alimentação, roupas e outras coisas que são necessárias para esse propósito.
            Benv. Mas o número de oitocentos me surpreende! Com o que todos esses jovens podem estar ocupados dia e noite?
            Crat. É muito fácil ocupá-los à noite. Cada um dorme em sua cama e permanece disciplinado, em ordem e silêncio até de manhã.
            Benv. Mas você está brincando.
            Crat. Digo isso para responder à brincadeira que você propôs. Se quiser saber quais são nossas ocupações diárias, eu lhe direi em poucas palavras. Os meninos são divididos em duas categorias principais – uma de artesãos e outra de estudantes. – Os artesãos se dedicam aos ofícios de alfaiates, sapateiros, ferreiros, carpinteiros, encadernadores, compositores, impressores, músicos e pintores. Por exemplo, essas litografias e essas pinturas são obra de nossos companheiros. Este livro foi impresso aqui e encadernado em nossa oficina.
            Em geral, portanto, todos são estudantes, porque todos têm de frequentar a escola noturna, mas aqueles que demonstram mais capacidade e melhor conduta geralmente são encaminhados exclusivamente a seus estudos por nossos superiores. É por isso que temos o consolo de ter entre nossos companheiros alguns médicos, notários, advogados, professores, catedráticos e até mesmo párocos.
            Benv. E toda essa música vem dos jovens dessa casa?
            Crat. Sim, os jovens que acabaram de cantar ou tocar são jovens desta casa; de fato, a composição musical em si é quase toda obra do Oratório; pois todos os dias, em um horário específico, há uma escola especial, e cada um, além de um ofício ou estudo literário, pode avançar na ciência da música.
            Por essa razão, temos o prazer de ter vários companheiros nossos que exercem luminosos cargos civis e militares para a ciência literária, enquanto não poucos são designados para a música em vários regimentos, na Guarda Nacional, no mesmo Regimento de Sua Alteza, o Príncipe Amadeu.
            Benv. Isso me agrada muito; assim, aqueles meninos brindados pela natureza com um gênio perspicaz podem cultivá-lo, e não são forçados pela miséria a deixá-lo ocioso, ou a fazer coisas contrárias às suas inclinações. – Mas diga-me mais uma coisa: quando entrei aqui, vi uma igreja já construída, e você me disse que é preciso construir outra: qual a necessidade disso?
            Crat. O motivo é muito simples. A igreja que estávamos usando até agora foi especialmente planejada para os jovens externos que vinham nos dias festivos. Mas, devido ao número cada vez maior de jovens acolhidos, a igreja ficou apertada, e os externos ficaram quase totalmente excluídos. Assim, podemos calcular que nem mesmo um terço dos jovens que frequentavam a igreja podia ser acomodado. – Quantas vezes tivemos de mandar embora multidões de jovens e permitir que eles fossem mendigar nas praças pelo simples fato de que não havia mais espaço na igreja!
            Deve-se acrescentar que, da igreja paroquial de Borgo Dora até São Donato, há uma multidão de casas e muitos milhares de habitantes, no meio dos quais não há igreja, nem capela, nem pouco ou muito espaço: nem para as crianças, nem para os adultos que as frequentam. Portanto, havia a necessidade de uma igreja espaçosa o suficiente para acomodar as crianças e que também oferecesse espaço para os adultos. A construção da igreja que é o objeto de nossa festa busca atender a essa necessidade pública e grave.
            Benv. As coisas assim expostas me dão uma boa ideia dos Oratórios e do propósito da igreja, e acredito que isso também seja do agrado desses senhores, que assim sabem onde vai acabar sua caridade. Lamento muito, no entanto, que eu não seja um orador eloquente ou um poeta talentoso para improvisar um discurso esplêndido ou um poema sublime sobre o que você me disse com alguma expressão de gratidão e agradecimento a esses senhores.
            Teod. Eu também gostaria de fazer o mesmo, mas mal sei que, na poesia, o comprimento das linhas deve ser igual e não mais do que isso; portanto, em nome de meus companheiros e de nossos amados Superiores, direi apenas a Sua Alteza, o Príncipe Amadeu, e a todos os outros senhores que ficamos encantados com essa bela festa; que faremos uma inscrição em letras douradas na qual diremos:

Viva eterno este dia!
            Antes que o sol do Ocaso
            Possa retornar ao seu Oriente;
            Cada rio à sua nascente

Antes volte para trás,
            Do que apagar de nossos corações
            Este dia que entre os mais belos
            Entre nós sempre será.

            Em particular, digo a Vossa Alteza Real que lhe dedicamos grande afeição, e que nos fez um grande favor ao vir nos visitar, e que sempre que tivermos a sorte de vê-lo na cidade ou em outro lugar, ou ouvir falar de Vossa Alteza, isso sempre será para nós um objeto de glória, honra e verdadeiro prazer. Entretanto, antes de nos falar, permita-me, em nome de meus amados Superiores e de meus queridos companheiros, pedir-lhe um favor: que se digne vir nos visitar em outras ocasiões para renovar a alegria deste belo dia. E, Excelência, continue com a benevolência paternal que nos demonstrou até agora. E o Senhor Prefeito, que de tantas maneiras participou do nosso bem, continue a nos proteger e obtenha para nós o favor de que a rua Cottolengo seja retificada em frente à nova igreja; e nós lhe asseguramos que redobraremos nossa profunda gratidão a Vossa Excelência. Senhor Cura, digne-se nos considerar sempre não apenas como paroquianos, mas como filhos queridos que sempre reconhecerão no senhor um pai terno e benevolente. Recomendamos a todos os senhores que continuem a ser, como foram no passado, distintos benfeitores, especialmente para concluir o santo edifício que é objeto da solenidade de hoje. Ele já começou, já está se erguendo acima da terra e, com este fato, ele mesmo estende a mão aos caridosos para que o levem a termo. Por fim, enquanto lhes asseguramos que a lembrança deste belo dia permanecerá grata e indelével em nossos corações, oramos unanimemente à Rainha do Céu, a quem o novo templo é dedicado, para que ela lhes obtenha do Doador de todos os bens uma vida longa e dias felizes.

(continua)




São Francisco de Sales, promotor da cultura

Como pastor de uma diocese cuja grande maioria era composta por aldeões e montanheses analfabetos, herdeiros de uma cultura ancestral e prática, Francisco de Sales também foi o promotor de uma cultura erudita entre a elite intelectual.Para transmitir a mensagem que lhe interessava, percebeu que precisava conhecer seu público e levar em conta suas necessidades e gostos.Quando falava com as pessoas e, especialmente, quando escrevia para pessoas instruídas, seu método era o que ele estabeleceu no Prefácio de seu “Tratado sobre o Amor de Deus”: “É claro que levei em consideração a condição das mentes deste século, e tinha que fazê-lo: é muito importante considerar a época em que se escreve”.

Francisco de Sales e a cultura popular
            Nascido numa família nobre com fortes laços com a terra, Francisco de Sales nunca foi alheio à cultura popular. O ambiente em que cresceu já o colocava em contato próximo com as pessoas comuns, a ponto de ele mesmo seguir de bom grado os costumes dos montanheses quando se levantavam pela manhã. Durante suas visitas pastorais, ele usava o patoá [dialeto local] para se fazer entender melhor. De qualquer modo, é certo que o contato direto com o conjunto da população dava à sua experiência pastoral uma tonalidade concreta e calorosa.
            Por outro lado, os autores que se interessaram pela transmissão da cultura popular naquela época sublinham que não havia limites rigorosos entre a mensagem religiosa e a cultura popular, pois os elementos estranhos se fundiam espontaneamente com a religião ensinada oficialmente. Como se sabe, a cultura popular é muito mais bem expressa na forma de narrativa do que na escrita. É preciso lembrar que certa porcentagem da população não sabia ler e a maioria não sabia escrever. De modo geral, os velhos, os sábios e os homens sabiam ler, enquanto as crianças, o povo simples e as mulheres eram analfabetos.
            No entanto, começavam a aparecer os livros expostos nas livrarias ou os dos vendedores ambulantes, não apenas nas cidades, mas também nos vilarejos. Essa produção de livretos baratos deve ter sido bastante variada, com a maioria, sem dúvida, proveniente da literatura popular que transmitia uma sensibilidade ainda medieval: vidas de santos, romances de cavalaria, histórias de bandidos ou almanaques com suas previsões do tempo e conselhos para homens e animais. Mas estavam chegando também produções mais modernas: romances, talvez até manuais de boa educação, ou ainda obras de piedade na linha do Concílio de Trento.
            Mas a cultura popular também era transmitida por meio de encontros cotidianos e de festas, quando as pessoas saíam para comer e beber juntas em tabernas e restaurantes, especialmente por ocasião de casamentos, batizados, funerais e irmandades, durante os bailes e festivas cantigas de roda, nas feiras e nos mercados. Talvez Francisco de Sales tenha prestado um bom serviço à sociedade não banindo sistematicamente todas as formas de convívio e divertimentos públicos, limitando-se a impor algumas restrições aos eclesiásticos, que eram obrigados a certa reserva.

Sabedoria e habilidade
            Observador simpático da natureza e das pessoas, Francisco de Sales aprendeu muito por meio de seu contato com elas. Foram os agricultores e os que lavravam a terra que lhe disseram que, “quando neva no inverno, a colheita será melhor no ano seguinte”. Quanto aos pastores e criadores montanheses, o cuidado com seus rebanhos e seu gado é um exemplo de zelo “pastoral”.
            No mundo das profissões, muitas vezes Francisco de Sales pôde observar de perto as admiráveis habilidades: “Os lavradores só semeiam os campos depois tê-los arado e limpado os arbustos espinhosos; os pedreiros só usam as pedras depois de cortá-las; os serralheiros só trabalham o ferro depois de batê-lo; os ourives só cinzelam o ouro depois de tê-lo purificado no cadinho”.
            Em certas histórias por ele contadas não falta uma pitada de humorismo. Desde os tempos antigos, os barbeiros têm a fama de serem grandes faladores; quando um deles perguntou a um rei: “Como gostaria que eu fizesse sua barba? O rei respondeu: «Sem dizer uma palavra»”. Se alguém “se ufana de estar vestido com elegância”, “quem não sabe que essa glória (se houver glória nisso) é do alfaiate e do sapateiro?” Com seu trabalho, o carpinteiro realiza pequenos milagres e “alguém que não entende nada de entalhe, ao ver troncos retorcidos na oficina de um marceneiro, ficaria estupefato ao ouvir dizer que daquela madeira se possa produzir uma obra-prima”. Os fabricantes de vidro também são surpreendentes, criando maravilhas com o sopro de suas bocas.
            Além disso, a arte da tipografia era objeto de sua grande admiração, mesmo que para ele os motivos religiosos prevalecessem em relação com qualquer outra consideração; é o que emerge de uma carta escrita em italiano ao Núncio de Turim, em maio de 1598: “Entre outras coisas necessárias, deveria haver um tipógrafo em Annecy. Os hereges estão publicando livros muito perniciosos o tempo todo, enquanto muitas obras católicas permanecem nas mãos de seus autores porque não podem ser enviadas com segurança para Lião e eles não têm um impressor à sua disposição”.

A arte e os artistas
            Nas artes, o triunfo da Renascença brilhava em obras inspiradas na antiguidade. Francisco de Sales pôde contemplá-las durante sua permanência na Itália e na França. Em Roma, durante sua viagem em 1599, ele admirou a grande cúpula da Basílica de São Pedro, concluída apenas alguns anos antes: “Grande o palácio, a basílica, o monumento de São Pedro”.
            Escrevia Francisco de Sales: A escultura clássica era então objeto de tal admiração que até “pedaços de estátuas antigas são conservados para lembrar a antiguidade”. Ele mesmo nomeia vários escultores antigos, começando por Fídias, o artista que “não representava nada tão perfeitamente como as divindades”. Veja Policleto, “o meu Policleto, que me é tão querido”, afirmava, que com sua “mão de mestre” transfigurava o bronze. Recorda também o colosso de Rodes, símbolo da providência divina, na qual “não há mudança nem sombra de variação”.
            E agora os famosos pintores mencionados por Plínio e Plutarco: Arélio, um homem “que pintava todos os rostos de seus retratos à semelhança das mulheres que ele amava”; Apeles, pintor “único”, preferido por Alexandre Magno; Timante que cobria a cabeça de Agamenon, frustrado por não poder expressar a consternação do seu rosto à vista da filha Efigênia”; Zêuxis, que pintou uvas tão magistralmente que “os pássaros criam que a uva pintada fosse de verdade, tanto a arte tinha imitado a natureza”.
            Percebe-se em Francisco de Sales um verdadeiro apreço pela beleza da obra de arte enquanto tal, e ao mesmo tempo a capacidade de comunicar suas emoções aos leitores. A pintura não seria talvez uma arte divina? A palavra de Deus não se situa apenas no plano da audição, mas também no plano da visão e da contemplação estética: “Deus é o pintor, a nossa fé é a pintura, as cores são a palavra de Deus, o pincel é a Igreja”.
            Francisco se sentia especialmente atraído pela pintura religiosa, que foi fortemente recomendada por seu ex-diretor espiritual Possevino, que lhe enviou sua “obra encantadora” De poesi et pictura [Poesia e pintura].  Ele mesmo se considerava um pintor, porque, como escreveu no prefácio de sua Filoteia, “Deus quer que eu pinte no coração das pessoas não apenas as virtudes comuns, mas também a sua muito querida e amada devoção devida a ele”.
            Amava também o canto e a música. Sabemos que ele mandava cantar hinos durante as aulas de catecismo, mas gostaríamos de saber o que era cantado em sua catedral. Certa vez, numa carta, no dia seguinte a uma cerimônia em que foi cantado um texto do Cântico dos Cânticos, ele exclamou: “Ah! Como tudo isto foi bem cantado ontem em nossa igreja e em meu coração!” Ele conhecia e sabia distinguir os sons dos diferentes instrumentos: “Entre os instrumentos, os tambores e as trombetas fazem mais barulho, mas os alaúdes e as espinetas produzem melodia melhor; o som de uns é mais alto, o outro é mais suave e espiritual”.

A Academia Florimontana (1606)

            “A cidade de Annecy”, escrevia pomposamente seu sobrinho Carlos Augusto de Sales, “era semelhante à de Atenas sob um tão grande bispo como Francisco de Sales e sob um grande presidente como Antônio Favre, e era habitada por um grande número de doutores, teólogos ou jurisconsultos, e de insignes literatos”.
            As pessoas têm-se perguntado como Francisco de Sales teve a ideia de fundar uma academia com seu amigo Antônio Favre no final de 1606, que eles chamaram de “Florimontana”, “porque as musas floresceram nas montanhas da Saboia”. Provavelmente seus contatos com a Itália não eram estranhos a essa realização. Nascidas na Itália no final do século XIV, as academias tiveram uma grande expansão. Entre elas distinguia-se a Academia Platônica de Florença, animada por Marcílio Ficino, cujo influxo é reconhecível no autor de Teótimo. Em Turim havia a Academia “Papiniana”, da qual tinha participado Antônio Favre.  Não se deve esquecer que os calvinistas em Genebra tinham a sua própria academia, e isso deve ter desempenhado um papel importante na criação de uma “rival” católica.
            A Academia Florimontana tinha seu próprio emblema: uma laranjeira, admirada por Francisco de Sales porque era cheia de flores e de frutas durante quase todo o ano (flores fructusque perennes). De fato, explicava Francisco, “na Itália, na costa de Gênova, e mesmo em regiões da França, como na Provença, ao longo das costas, pode-se vê-las cobertas de folhas, flores e frutos em todas as estações”.
            O programa das reuniões tinha um caráter enciclopédico, pois, de acordo com os Estatutos, “as lições versarão sobre teologia, política, filosofia, retórica, cosmografia, geometria ou aritmética”. De qualquer modo, reservava-se uma atenção especial às letras e à beleza formal. Um dos artigos dos Estatutos dizia: “O estilo na fala e na leitura, será sério, refinado, elegante e evitará qualquer forma de pedantismo”.
            A Academia era formada por cientistas e mestres reconhecidos, mas eram previstos também cursos públicos que a tornavam uma pequena universidade popular. De fato, as assembleias gerais podiam ser frequentadas por “todos os competentes mestres das artes honestas, como pintores, escultores, carpinteiros, arquitetos e afins”.
            Pode-se intuir que o objetivo dos dois fundadores era reunir a elite intelectual de Saboia e colocar a literatura, as ciências e as artes a serviço da fé e da piedade, de acordo com o ideal do humanismo cristão. As reuniões eram realizadas na casa de Antônio Favre, na qual sua esposa e filhos ajudavam a receber os convidados. Portanto, havia uma atmosfera familiar. De fato, como dizia um artigo, “todos os acadêmicos serão unidos entre si por amor mútuo e fraterno”.
            Entre os acadêmicos ou membros ou membros correspondentes da Academia destacava-se o abade comendador de Hautecombe, Afonso Delbene, descendente de uma grande família de Florença, amigo de Justo Lipsio e de Ronsard, que lhe dedicou a sua Arte Poética; foi qualificado como uma ponte entre a cultura italiana e a cultura francesa.
            Os inícios da Academia foram brilhantes e promissores. Segundo Carlos Augusto de Sales, o primeiro ano se abriu com “o curso de matemática com a Aritmética de Jacques Pelletier, os Elementos de Euclides, a esfera e a cosmografia com suas partes, a geografia, a hidrografia e a topografia; seguiu-se a arte de navegar e a teoria dos planetas, por fim, a música teórica”. Quanto ao mais, é bem pouco o que se sabe.
            Em 1610, não mais do que três anos após seu início, Antônio Favre foi nomeado Presidente do Senado da Saboia e partiu para Chambéry. O bispo, por sua vez, não conseguia manter a Academia por conta própria, e ela declinou e desapareceu. Mas, embora sua existência tenha sido curta, sua influência foi duradoura. O projeto cultural que lhe deu origem foi retomado pelos Barnabitas, que chegaram ao Colégio de Annecy em 1614.

Um caso Galileu em Annecy?
            O Colégio de Annecy era famoso pela pessoa do padre Redento Baranzano. Esse barnabita do Piemonte, que adotou as novas teorias científicas, era um professor brilhante que despertava a admiração e até mesmo o entusiasmo de seus alunos. Em 1617, sem a permissão de seus superiores, seus discípulos publicaram um resumo de suas palestras, com o título de Uranoscopia, nas quais ele desenvolvia o sistema planetário de Copérnico e as ideias de Galileu. O livro em questão imediatamente causou tanto alvoroço que o autor foi chamado de volta a Milão por seus superiores. Em setembro de 1617, Francisco de Sales escreveu uma carta em italiano ao superior geral do barnabitas, para defender o interessado do ponto de vista pessoal, sem acenar às suas ideias, a fim de que retomasse as suas funções.
            O desejo do bispo foi atendido e o P. Baranzano retornou a Annecy no final de outubro daquele mesmo ano. No final de novembro, o bispo manifestou sua satisfação ao superior geral. Em 1618, o padre Baranzano publicou um novo opúsculo, como sinal de boa vontade, mas não há evidências de que ele tenha renunciado às suas ideias.
            Em 1619, ele publicou Novae opiniones physicae [Novas teorias da física] em Lião, o primeiro volume da segunda parte de uma ambiciosa Summa philosophica anneciensis [Suma Filosófica de Annecy]. O bispo tinha dado a sua aprovação oficial a “essa obra erudita de um homem erudito” e tinha autorizado sua impressão. O cônego que, a pedido do bispo, tinha examinado a obra, tinha considerado que não continha “nada contrário à fé, aos ensinamentos da Igreja Católica e aos bons costumes”; esta obra apresentava “a todos os amantes da filosofia uma doutrina filosófica muito digna, de alto valor pela clara articulação, pela singular exatidão, pela agradável brevidade, pela erudição incomum e na sua matéria bastante rara”.
            Deve-se observar que Baranzano adquiriu uma reputação internacional e entrou em contato com Francisco Bacon, o promotor inglês da reforma das ciências, com o astrônomo alemão João Kepler e com o próprio Galileu. Era a época em que imprudentemente foi instaurado um processo contra Galileu com a finalidade de salvaguardar a autoridade da Bíblia, que se considerava comprometida pelas novas teorias sobre a rotação da Terra em torno do Sol. Enquanto o Cardeal Belarmino estava preocupado com os perigos das novas teorias, para Francisco de Sales não poderia haver contradição entre razão e fé. E não era o sol o símbolo do amor celestial, em torno do qual tudo se move, e o centro da devoção?

Poesia religiosa
            A Renascença havia reabilitado a poesia antiga e pagã, que Francisco havia estudado na escola e da qual os jesuítas haviam expurgado as passagens mais perturbadoras para a sensibilidade dos jovens. Quando jovem, ele foi seduzido pela poesia bíblica do Cântico dos Cânticos e dos Salmos, que o acompanhariam por toda a vida. Ele mesmo escreveu vários poemas religiosos que chegaram até nós.
            O fato é que não foram alguns versos um tanto desajeitados que garantiram sua reputação literária, que, durante sua vida, foi suficientemente estabelecida para que escritores e poetas buscassem contato com ele. Esse foi o caso do magistrado e poeta provençal João de la Ceppède, um dos grandes expoentes da poesia religiosa barroca, que lhe enviou uma cópia de seus Théorèmes sur le sacré mystère de la Rédemption [Teoremas sobre o sagrado mistério da Redenção]. O que mais o encantou nos versos desse poeta foi o fato de ele ter conseguido “transformar as musas pagãs em cristãs, retirá-las desse velho Parnaso e alojá-las no novo e sagrado Calvário”.
            Francisco de Sales conhecia e admirava o poder da poesia, “pois é maravilhoso o poder que o discurso comprimido nas leis do verso tem de penetrar nos corações e subjugar a memória”. Em 1616, o poeta Lyonnais René Gros de Saint-Joyre enviou-lhe o manuscrito de La mire de vie à l’amour parfait [O guia da vida para o amor perfeito], um poema em verso francês dividido em estrofes de oito linhas, dedicado à abadessa do mosteiro beneditino de São Pedro de Lião.
            Do poeta e humanista nascido na Basca, Jean de Sponde, ele cita não os Sonnets d’amour [Sonetos de amor] ou as Stances sur la mort [Posturas sobre a morte] mas a Réponse au Traité des marques de l’Église de Théodore de Bèze [Resposta ao tratado das marcas da Igreja de Teodoro de Beza] e a Déclaration sur les motifs de la conversion [Declaração sobre os motivos da conversão] desse ex-calvinista, que ele considerava uma “grande mente”. Ele também estava em contato com o poeta e memorialista borgonhês João de Lacurne, que era considerado “o deleite de Apolo e de todas as musas”, e a quem ele declarou: “Eu gosto muito de seus escritos”.

A cultura erudita e a teologia
            Além disso, Francisco também se mantinha informado sobre os livros de teologia que estavam aparecendo. Depois de ter “visto com extremo prazer” um projeto de Suma de teologia de um padre cisterciense, enviou ao autor alguns conselhos por escrito. Sua opinião era que era necessário cortar todas as palavras “metódicas”, “supérfluas” e “importunas”, para evitar que a Suma se tornasse demasiadamente “grande” e para garantir que ela fosse “totalmente suco e polpa”, tornando-a “mais nutritiva e apetitosa”, e para não ter medo de usar o “estilo afetivo”, isto é, capaz de emocionar. Mais tarde, escrevendo para um de seus padres que estava envolvido em trabalhos literários e científicos, fez mais ou menos as mesmas recomendações: “Devo dizer-lhe que o conhecimento que vou adquirindo cada dia mais a respeito dos humores do mundo me leva a augurar-me apaixonadamente que a divina Bondade inspire algum de seus servos a escrever ao gosto deste pobre mundo”.
            Escrever “ao gosto deste pobre mundo” significava concordar em usar certos meios capazes de despertar o interesse do leitor da época:

De fato,Senhor, somos pescadores, e pescadores de homens.Devemos, portanto, usar não apenas cuidados, trabalhos e vigilância nessa pesca, mas também a isca, as indústrias, as abordagens e, se for lícito dizer, as santas astúcias.O mundo está se tornando tão delicado que, de agora em diante, só nos atreveremos a tocá-lo com luvas perfumadas, ou a tratar suas feridas com emplastros de civeta; mas o que importa, desde que os homens sejam finalmente curados e salvos definitivamente?Nossa rainha, a caridade, faz tudo por seus filhos.

            Outra falha, especialmente entre os teólogos, era a falta de clareza, a ponto de lhe dar a vontade de escrever na primeira página de certas obras: Fiat lux [Faça-se luz]. Seu amigo, Dom Camus, lembra-se deste comentário de seu herói sobre a obra de um autor ininteligível: “Esse homem deu vários livros ao público, mas não sei se algum deles trouxe luz. É uma grande pena ser tão culto e ainda assim não conseguir se expressar. É como aquelas mulheres que estão grávidas de vários filhos e não conseguem dar à luz nenhum deles. Ele acrescentou com convicção: “Acima de tudo, viva a clareza; sem ela, nada pode ser agradável”. De acordo com Camus, as obras de Francisco de Sales certamente contêm dificuldades, mas a obscuridade é um defeito que nunca foi encontrado em sua pena.

Um escritor cheio de projetos
            No final de sua vida, sua mente ainda estava ocupada com vários projetos. Miguel Favre declarou que Francisco planejava escrever um tratado Sobre o amor ao próximo, bem como uma História teândrica em quatro volumes: uma tradução em linguagem popular dos quatro evangelhos em forma de concordância; uma demonstração dos principais pontos da fé da Igreja Católica; uma instrução sobre os bons costumes e sobre a prática das virtudes cristãs; enfim, uma história dos Atos dos Apóstolos. Também tinha em mente um Livro sobre os quatro amores, no qual queria ensinar como deveríamos amar a Deus, amar a nós mesmos, amar nossos amigos e amar nossos inimigos.
            Nenhuma dessas obras jamais será publicada. “Morrerei como aquelas mulheres grávidas”, escreveu ele, “sem dar à luz o que tinham concebido”. Sua “filosofia” era essa: “É preciso assumir mais do que sabe fazer, como se fosse viver muito tempo; mas sem se preocupar em fazer mais do que alguém faria, sabendo que iria morrer no dia seguinte”.




“Curso Respiro” 2024.Curso de Renovação Missionária Salesiana

O Setor Missionário da Congregação Salesiana, com sede em Roma, organizou um curso de renovação missionária, chamado Breath Course, em inglês, para missionários que já estão em missão há muitos anos e que desejam renovação e atualização espiritual.O curso, que começou Colle Dom Bosco em 11 de setembro de 2024, foi concluído com sucesso em Roma em 26 de outubro de 2024.

O Curso Respiro contou com a participação de 24 pessoas de 14 países: Azerbaijão, Botsuana, Brasil, Camboja, Eritreia, Índia, Japão, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Samoa, Sudão do Sul, Tanzânia e Turquia. Embora os participantes do curso viessem de diferentes países, com diferentes origens culturais e pertencessem a diferentes ramos da Família Salesiana, rapidamente estabelecemos um forte vínculo entre nós e todos nos sentimos à vontade na companhia uns dos outros.

Uma das características especiais do Curso Respiro foi o fato de ser um curso missionário do qual participaram, pela primeira vez, vários membros da Família Salesiana: 16 Salesianos de Dom Bosco (SDB), 3 Irmãs da Caridade de Jesus (ICJ), 2 Irmãs Missionárias de Maria Auxiliadora (MSMHC), 2 Irmãs da Visitação de Dom Bosco (VSDB) e 1 Salesiano Cooperador. Outro aspecto positivo foi a experiência com alguns dos membros menos conhecidos e menores da Família Salesiana.

As sete semanas do Curso Respiro foram um tempo de renovação espiritual que nos permitiu aprofundar nosso conhecimento sobre Dom Bosco, a história, o carisma, o espírito e a espiritualidade salesiana, e conhecer melhor os diferentes membros da Família Salesiana. A Lectio Divina salesiana, as peregrinações aos lugares ligados à vida e ao apostolado de Dom Bosco nos Becchi, Castelnuovo Don Bosco, Chieri e Valdocco, os dias passados em Annecy e Mornese, a peregrinação nas pegadas de São Paulo Apóstolo em Roma, a participação na audiência geral do Papa Francisco no Vaticano, a visita à Basílica do Sagrado Coração construída por Dom Bosco e à Casa Geral dos Salesianos, a partilha de experiências missionárias por parte de todos os participantes do curso, a participação no solene “Envio Missionário” da Basílica de Maria Auxiliadora em Valdocco, o tempo dedicado diariamente à oração e à reflexão pessoal, a celebração eucarística comum e assim por diante, tudo isso nos ajudou muito a personalizar e aprofundar os nossos valores salesianos e a nossa vocação missionária. Também os dias passados em Roma, refletindo sobre os vários aspectos da teologia da missão, as sessões sobre a pastoral juvenil salesiana, o discernimento pessoal, a formação permanente, a catequese missionária, a literatura emocional, o voluntariado missionário, a animação missionária da Congregação, etc., ajudaram-nos a personalizar e aprofundar a nossa vocação missionária. A peregrinação a Assis, o lugar santificado por São Francisco de Assis, com o tema “agradecer”, “repensar” e “relançar”, foi uma oportunidade de agradecer a Deus por nossa vocação missionária e pedir a Ele a graça de retornar às nossas terras de missão com mais entusiasmo para fazer melhor no futuro. Outra característica especial do Curso Respiro foi o fato de não ter sido de natureza acadêmica, com créditos, teses, exames e avaliações, mas enfatizou a Palavra de Deus, o compartilhamento de experiências, a reflexão, a oração e a contemplação, com um mínimo de abordagem teórica.

Como participantes do Curso Respiro, tivemos o privilégio especial de testemunhar o 155º “Envio Missionário” da Basílica de Maria Auxiliadora em Valdocco, Turim, em 29 de setembro de 2024. Um total de 27 salesianos, praticamente todos muito jovens, partiram para diferentes países como missionários, depois de receber a cruz missionária do P. Stefano Martoglio, Vigário do Reitor-Mor. Esse evento memorável nos fez lembrar de nossa própria recepção da cruz missionária e da partida para as missões há muitos anos. Também tomamos consciência do ininterrupto “envio missionário” de Valdocco desde 1875 e do compromisso perene da Congregação Salesiana com o carisma missionário de Dom Bosco.

Um aspecto muito enriquecedor do Curso Respiro foi o compartilhamento de histórias vocacionais e experiências missionárias por todos os participantes. Todos se prepararam com antecedência e compartilharam suas histórias vocacionais e experiências missionárias de maneira criativa. Enquanto alguns compartilharam suas experiências na forma de simples palestras, outros usaram fotos, vídeos e apresentações em PowerPoint. Houve bastante tempo para interagir com cada missionário para esclarecer dúvidas e obter mais informações sobre sua vocação missionária, país e cultura. Esse compartilhamento foi um excelente exercício espiritual, pois cada um de nós teve a oportunidade de refletir profundamente sobre nossa vocação missionária e descobrir a mão de Deus atuando em nossas vidas. Essa jornada interior foi muito formativa e nos permitiu fortalecer nossa vocação missionária e nos comprometermos mais generosamente com a Missio Dei (Missão de Deus).

Durante o Curso Respiro, por meio da partilha de nossas experiências missionárias, ficamos mais uma vez profundamente convencidos de que a vida de um missionário não é fácil. A maioria dos missionários trabalha em “periferias” de vários tipos (geográficas, existenciais, econômicas, culturais, espirituais e psicológicas), e um bom número deles em condições muito difíceis, em circunstâncias desafiadoras e com muitas privações. Em muitos contextos, não há liberdade religiosa para pregar o Evangelho abertamente. Em outros lugares, há governos com ideologias extremistas que se opõem ao cristianismo e têm leis anticonversão em vigor. Há países em que não se pode revelar sua identidade sacerdotal ou religiosa. Há também lugares em que nem a instituição católica nem o pessoal religioso podem exibir símbolos religiosos cristãos, como a cruz, a Bíblia, estátuas de Cristo ou de santos, ou roupas religiosas. Há territórios em que os missionários não podem se agrupar para reuniões ou exercícios espirituais ou levar uma vida comunitária. Há nações que não permitem que nenhum missionário cristão estrangeiro entre em seu país e bloqueiam toda assistência financeira vinda do exterior para instituições cristãs. Há terras de missão que não têm vocações suficientes para a vida sacerdotal e religiosa e, como resultado, o missionário fica sobrecarregado com muitos trabalhos e responsabilidades. Depois, há situações em que encontrar recursos financeiros para cobrir as despesas normais de administração de instituições como escolas, internatos, institutos técnicos, centros juvenis, dispensários e assim por diante é uma grande preocupação para os missionários. Há missões que não têm recursos financeiros para construir a infraestrutura tão necessária ou pessoas qualificadas para ensinar nas escolas e institutos técnicos ou para fornecer serviços básicos de saúde aos pobres. Essa lista de problemas enfrentados pelos missionários não é exaustiva. Mas o lado bom dos missionários é que eles são pessoas de fé profunda e felizes com sua vocação missionária. Eles estão felizes por estarem com as pessoas e contentes com o que têm e, confiando na Providência de Deus, prosseguem com seu trabalho missionário apesar dos muitos desafios e dificuldades. Alguns missionários são exemplos brilhantes de santidade cristã que fazem de suas vidas uma poderosa proclamação do Evangelho. Esses valentes missionários merecem nosso apreço, incentivo e apoio espiritual e material para continuarem seu trabalho missionário.

Uma palavra especial de agradecimento a todos os membros do Setor de Missões que trabalharam arduamente e fizeram muitos sacrifícios para organizar o Curso Respiro 2024 . Espero que o Setor das Missões continue a oferecer esse curso todos os anos e, se possível, em diferentes idiomas e com a participação de mais membros da Família Salesiana, especialmente os menores e menos conhecidos. O curso certamente dará aos missionários a oportunidade de ter uma renovação espiritual, uma atualização teológica, um descanso físico e mental, que são essenciais para oferecer um serviço missionário e pastoral de melhor qualidade nas missões e para estabelecer laços mais estreitos entre os membros da Família Salesiana.

P. José Kuruvachira, sdb




Dom Bosco e a música

            Para a educação de seus jovens, Dom Bosco fazia grande uso da música. Desde menino, ele gostava de cantar. Como tinha uma bela voz, o Sr. João Roberto, chefe dos cantores da paróquia, ensinou-lhe a cantar. Em poucos meses, João pôde fazer parte da cantoria e executar peças musicais com excelentes resultados. Ao mesmo tempo, começou a aprender a espineta, que era um instrumento de cordas dedilhadas com teclado, e também o violino (cf. MBp I, 190).
            Sacerdote em Turim, atuou como professor de música para seus primeiros oratorianos, formando gradualmente verdadeiros corais que atraíam a simpatia dos ouvintes com seus cantos.
            Após a abertura do internato, ele iniciou uma escola de canto gregoriano e, com o tempo, também levou seus jovens cantores a igrejas da cidade e fora de Turim para apresentar seu repertório.
            Ele mesmo compôs cânticos sacros, como aquele para o Menino Jesus, “Ah, se cante em som do júbilo…”. Ele também encaminhou alguns de seus discípulos ao estudo da música, entre eles o P. João Cagliero, que mais tarde se tornou famoso por suas criações musicais, conquistando a estima dos especialistas. Em 1855, Dom Bosco organizou a primeira banda instrumental no Oratório.
            No entanto, Dom Bosco não agia impensadamente! Já na década de 1860, ele incluiu num Regulamento um capítulo sobre escolas noturnas de música, no qual dizia, entre outras coisas:
“De cada aluno de música se exige a promessa formal de não ir cantar ou tocar nos teatros públicos, nem em outras diversões em que se possam comprometer a religião e os bons costumes” (MBp VII, 888).

A Música dos meninos
            A um religioso francês que havia fundado um Oratório festivo e que lhe perguntou se era apropriado ensinar música aos meninos, ele respondeu: “Um Oratório sem música é um corpo sem alma!”(MBp V, 300).
            Dom Bosco falava francês bastante bem, embora com certa liberdade gramatical e de expressão. Nesse sentido, uma de suas respostas sobre a música dos meninos ficou famosa. O P. Mendre, vigário paroquial de São José em Marselha, lhe dedicava grande afeto. Um dia, estava sentado ao seu lado durante uma academia no Oratório de São Leão. Os pequenos músicos de vez em quando desafinavam. O Padre, que era bom conhecedor da música, se irritava e reclamava de cada desafinada. Dom Bosco sussurrou-lhe ao ouvido, com o seu francês: “Monsieur Mendre, la musique de les enfants elle s’écoute avec le coeur et non avec les oreilles” (Senhor P. Mendre, a música dos jovens deve ser ouvida com o coração e não com os ouvidos). Mais tarde, o padre recordou essa resposta inúmeras vezes, revelando a sabedoria e a bondade de Dom Bosco (cf. MBp XV, 76, n.2).
            Tudo isso não significa, porém, que Dom Bosco colocava a música acima da disciplina no Oratório. Ele era sempre amável, mas não ignorava facilmente as faltas de obediência. Durante alguns anos, ele permitiu que os jovens membros da banda saíssem para passear e almoçar no campo na festa de Santa Cecília. Mas em 1859, devido a incidentes, ele começou a proibir esse tipo de entretenimento. Os jovens não protestaram abertamente, mas metade deles, incitados por um líder que lhes havia prometido obter permissão de Dom Bosco, e esperando impunidade, decidiu deixar o Oratório de qualquer maneira e organizar um almoço por conta própria antes da festa de Santa Cecília. Eles tomaram essa decisão pensando que Dom Bosco não perceberia e não tomaria providências. Assim, nos últimos dias de outubro, foram almoçar em um restaurante próximo. Depois do almoço, voltaram a passear pela cidade e, à noite, jantaram no mesmo lugar, retornando a Valdocco meio bêbados, já tarde da noite. Somente o Sr. Buzzetti, convidado no último momento, recusou-se a se juntar àqueles desobedientes e advertiu Dom Bosco. Este, calmamente, declarou a banda dissolvida e ordenou a Buzzetti que recolhesse e trancasse todos os instrumentos e pensasse em novos alunos para iniciar a música instrumental. Na manhã seguinte, ele mandou chamar todos os músicos indisciplinados, um por um, lamentando a cada um deles o fato de o terem forçado a ser muito rigoroso. Em seguida, mandou-os de volta para seus parentes ou responsáveis, recomendando alguns mais necessitados para as oficinas da cidade. Apenas um desses meninos travessos foi aceito mais tarde, porque o P. Rua assegurou a Dom Bosco que ele era um menino inexperiente que se deixara enganar por seus companheiros. E Dom Bosco o manteve sob vigilância por algum tempo!
            Mas com as tristezas não se deve esquecer as consolações. O dia 9 de junho de 1868 foi uma data memorável na vida de Dom Bosco e na história da Congregação. A nova Igreja de Maria Auxiliadora, que ele havia construído com imensos sacrifícios, foi finalmente consagrada. Aqueles que estavam presentes nas celebrações solenes ficaram profundamente comovidos. Uma multidão transbordante lotou a bela igreja de Dom Bosco. O arcebispo de Turim, Dom Riccardi, realizou o rito solene da consagração. No ofício da tarde do dia seguinte, durante as Vésperas solenes, o coral de Valdocco entoou a grande antífona musicada pelo P. Cagliero: Sancta Maria succurre miseris [Santa Maria, socorrei os pobres]. A multidão de fiéis ficou emocionada. Três poderosos corais a executaram com perfeição. Cento e cinquenta tenores e baixos cantavam na nave perto do altar de São José, duzentos sopranos e contraltos estavam no alto, ao longo da grade sob a cúpula, e um terceiro coro, formado por outros cem tenores e baixos, estava na orquestra que dava vista para os fundos da igreja. Os três corais, conectados por um dispositivo elétrico, mantinham a sincronia ao comando do maestro. O biógrafo, presente na apresentação, escreveu mais tarde:
            “No instante em que todos os corais se uniam numa única harmonia, sentiu-se uma espécie de encanto. As vozes se juntaram, e o eco as levava em todas as direções, assim que o ouvinte se sentia como que imergido num mar de vozes, que o circundavam sem poder distinguir como e de onde vinham”. As exclamações que se ouviam então indicavam como todos se sentiam subjugados por tão grande maestria. O próprio Dom Bosco não conseguia conter sua intensa emoção. E ele, que nunca na igreja, durante a oração, se permitia dizer uma palavra, voltou os olhos úmidos de lágrimas para um cônego amigo seu e em voz baixa lhe disse: “Caro Anfossi, não lhe parece estar no Paraíso?” (MBp IX, 296).




Beato Miguel Rua.A consagração da nossa Pia Sociedade ao Sagrado Coração de Jesus

Em 24 de outubro passado, o Santo Padre quis renovar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus por meio da publicação da encíclica Dilexit nos, na qual explicou as razões dessa escolha:

Há quem se interrogue se isto atualmente tenha um significado válido. Porém, é necessário recuperar a importância do coração quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência, temos necessidade de recuperar a importância do coração”.

Nós também queremos enfatizar o valor dessa devoção, profundamente enraizada na tradição salesiana. Dom Bosco, inspirado pela espiritualidade de São Francisco de Sales, estava profundamente ciente da devoção ao Sagrado Coração, promovida por uma das filhas de São Francisco, a visitandina Santa Margarida Maria Alacoque. Essa devoção foi uma fonte contínua de inspiração para ele, e propomos explorá-la em uma série de artigos futuros. Por enquanto, basta lembrar o brasão salesiano, no qual Dom Bosco queria incluir o Sagrado Coração, e a basílica romana dedicada ao Sagrado Coração de Jesus, que ele mesmo se encarregou de construir em Roma, gastando tempo, energia e recursos.

Seu sucessor, o Beato Miguel Rua, continuou na esteira do fundador, cultivando a devoção e consagrando a Congregação Salesiana ao Sagrado Coração de Jesus.

Neste mês de novembro, queremos recordar sua carta circular, escrita há 124 anos, em 21 de novembro de 1900, para preparar essa consagração, que apresentamos aqui na íntegra.

“A consagração de nossa Pia Sociedade ao Sagrado Coração de Jesus

Caríssimos irmãos e filhos,

                Há muito tempo e de muitos lugares me pedem com grande insistência que consagre nossa Pia Sociedade ao Sagrado Coração de Jesus, por meio de um ato solene e peremptório. Nossas Casas de Noviciado e de Estudantado, unidas em uma santa aliança, e a querida memória de nosso inesquecível Irmão, P. André Beltrami, insistiram especialmente nisso. Depois de uma longa demora, que me foi recomendada pela prudência, considero oportuno atender a essas petições, agora que o século XIX está chegando ao fim e o século XX está avançando, feliz com muitas esperanças.
                Já em muitas circunstâncias recomendei aos meus filhos e coirmãos salesianos e às nossas Irmãs, as Filhas de Maria Auxiliadora, a devoção ao Sacratíssimo Coração de Jesus e, certo de que isso traria grande bem espiritual a cada um de nós, no ano passado pedi que cada salesiano se consagrasse a Ele. Essas recomendações foram bem recebidas por todos; minhas ordens foram escrupulosamente cumpridas, e os bens que eu esperava vieram em abundância.
                Agora pretendo que cada um se consagre novamente, de modo muito especial, a este Sacratíssimo Coração; de fato, desejo que cada Diretor consagre inteiramente a Ele a Casa que preside, e convide os jovens a fazer essa santa oferta de si mesmos, instrua-os sobre o grande ato que estão prestes a realizar e dê-lhes comodidade para que se preparem adequadamente para ele.
                Podemos dizer aos cristãos sobre o Coração de Jesus o que São João Batista disse aos judeus ao falar do divino Salvador: “Entre vós está alguém que vós não conheceis”. E podemos muito bem repetir, a esse respeito, as palavras de Jesus à mulher samaritana: “Ah, se conhecesses o dom de Deus!” Que amor e confiança maiores nossos membros e nossos jovens sentirão em relação a Jesus se forem bem instruídos nessa devoção!
                O Senhor concedeu graças a cada um de nós, concedeu-as a cada uma das Casas, mas foi ainda mais generoso em seus favores com a Congregação que é nossa mãe. A nossa Pia Sociedade foi e é continuamente beneficiada de modo muito especial pela bondade de Jesus, que vê o quanto precisamos de graças extraordinárias para vencer a tibieza, para renovar o nosso fervor e para realizar a grande tarefa que Deus nos confiou: é justo, portanto, que a nossa Pia Sociedade seja total e inteiramente consagrada a esse Sacratíssimo Coração. Apresentemo-nos todos juntos a Jesus, e lhe seremos queridos como quem lhe oferece não só todas as flores do seu jardim, mas o próprio jardim; não só os vários frutos da árvore, mas a própria árvore. Pois se a consagração de indivíduos é aceitável a Deus, mais aceitável deve ser a consagração de uma comunidade inteira, sendo como uma legião, uma falange, um exército que se oferece a Ele.
                E parece-me que este é realmente o momento desejado pela Providência divina para realizar o ato solene. A circunstância se apresenta a nós como muito propícia e oportuna. Parece-me belo e, eu diria, sublime, no momento que divide dois séculos, apresentar-nos a Jesus, almas expiatórias pelos erros de um, e apóstolos para conquistar o outro para seu amor. Oh, como Jesus abençoado lançará então um olhar benigno sobre nossas várias casas, que se tornaram como tantos altares nos quais oferecemos a Ele a contrição de nossos corações e o melhor de nossas energias físicas e morais; como Ele abençoará nossa Sociedade, que reúne esses holocaustos espalhados pelo mundo em um único e grandioso, para se prostrar aos pés de Jesus e exclamar em nome de Seus filhos: “Oh Jesus! obrigado, obrigado; perdão, perdão; ajuda, ajuda!” E dizer a Ele: “Nós, Jesus, já somos vossos por direito, tendo sido comprados por Vós com o vosso preciosíssimo Sangue, mas também queremos ser vossos por eleição e consagração espontânea e absoluta: nossas Casas já são vossas por direito, pois Vós sois o dono de todas as coisas, mas queremos que sejam vossas, e somente vossas, também por nossa espontânea vontade; nós as consagramos a Vós: nossa Pia Sociedade já é vossa por direito, pois Vós a inspirastes, a fundastes, Vós a fizestes surgir, por assim dizer, de vosso próprio Coração; pois bem, queremos confirmar esse vosso direito; queremos que ela, por meio da oferta que vos fazemos, se torne um templo no meio do qual possamos dizer com verdade que nosso Salvador Jesus Cristo nela habita como senhor, mestre e rei! Sim, Jesus, vencei todas as dificuldades, reinai, imperai em nosso meio: Vós tendes direito, Vós o mereceis, nós o queremos”.
                Esses são os votos, os suspiros, as resoluções de nosso coração: procuremos nos inspirar continuamente neles e revigorá-los no amor de Deus nesta ocasião tão especial.
                Portanto, caríssimos, é chegado o grande momento de tornar pública e solene a nossa consagração e a de toda a nossa Pia Sociedade ao Divino Coração de Jesus: é chegado o momento de realizar o ato externo e peremptório, tão desejado, pelo qual declaramos que nós e a Congregação permanecemos consagrados ao Divino Coração. Agora é necessário estabelecer algumas regras práticas capazes de regular essa grande função.
                Pretendo, em primeiro lugar, que essa solene Consagração seja preparada por um devoto tríduo de orações e pregações, que começará convenientemente na noite dos Santos Inocentes, 28 de dezembro, dia em que morreu São Francisco de Sales, nosso grande Titular.
                Em segundo lugar, pretendo que o Ato de Consagração seja feito por todos juntos, jovens, noviços, coirmãos, superiores de todas as casas, bem como pelo maior número de cooperadores que puderem ser reunidos. Os coirmãos que, por alguma circunstância, se encontrarem fora da própria comunidade e não puderem voltar a ela, procurem ir à casa salesiana mais próxima e ali se unam aos outros coirmãos nesse ato. Aqueles que não puderem ir convenientemente a uma de nossas casas façam também essa consagração da melhor maneira que as circunstâncias permitirem.
                Em terceiro lugar, estabeleço que esse serviço seja realizado na igreja, na noite de 31 de dezembro para 1º de janeiro, no momento solene que divide os dois séculos. Vós sabeis que o Santo Padre, também para este ano, dispôs que à meia-noite do dia 31 de dezembro a Santa Missa poderia ser celebrada solenemente, com o Santíssimo Sacramento exposto. Agora, em nosso caso, seria melhor se, reunidos na igreja meia hora antes, o Santíssimo Sacramento fosse exposto e, depois de pelo menos um quarto de hora de adoração, todos os votos batismais fossem renovados, os irmãos também renovassem seus votos religiosos e, em seguida, fosse feita a consagração de si mesmos, de suas casas e de todo o consórcio humano ao Sagrado Coração de Jesus, com o formulário prescrito pelo Santo Padre no ano passado. Nesse mesmo momento, eu, com o Superior do Capítulo, farei a Consagração de toda a Congregação, usando um formulário especial.
                Depois disso, a Santa Missa será celebrada em cada casa, seguida da Bênção com o Santíssimo Sacramento, após o canto do Te Deum, e de outras práticas que o Santo Padre ou cada um dos Bispos possam ordenar para a ocasião.
                Nos Oratórios festivos, e onde, por qualquer circunstância, não for possível ou conveniente realizar esse serviço à meia-noite, ele pode ser realizado na manhã seguinte, em uma hora mais adequada, tendo o Santo Padre concedido permissão para manter o Santíssimo Sacramento exposto da meia-noite ao meio-dia de 1º de janeiro, conferindo uma indulgência plenária àqueles que fizerem uma hora de adoração nesse período.
                Eu não gostaria que essa Consagração fosse um ato estéril: ela deve ser uma fonte de grande bem para nós e para o nosso próximo. O ato de consagração é breve, mas o fruto deve ser imperecível. E para conseguir isso, creio que seja oportuno recomendar-lhes algumas práticas especiais, aprovadas e recomendadas pela Igreja, e enriquecidas pela mesma Igreja com muitas indulgências, que, ao mesmo tempo em que manterão viva a memória desse grande ato, servirão também para estimular cada vez mais essa devoção em nós, nos jovens e nos fiéis confiados aos nossos cuidados.
                Proponho, portanto, que a festa do Sagrado Coração de Jesus seja solenizada em toda parte como uma das principais festas do ano.
                Em todas as casas, a primeira sexta-feira do mês deve ser comemorada com um serviço especial, e seja recomendado a cada irmão e jovem a receber a comunhão reparadora nesse dia.
                Todos os irmãos devem se inscrever na associação conhecida como Prática dos Nove Ofícios, e deve se esforçar para desempenhar verdadeiramente o ofício que lhe cabe.
                Cada casa deve estar associada à Irmandade da Guarda de Honra e deve exibir o quadrante; e cada irmão e jovem deve fixar o horário especial em que pretende manter sua hora de guarda, conforme prescrito pela referida Irmandade.
                Nas casas de noviciado e de estudantado, quem estiver em condições fará a Hora Santa, de acordo com as normas estabelecidas para a prática dessa devoção.
                Uma vez que nada pode contribuir melhor para a realização proveitosa do ato de consagração acima mencionado e para a boa prática da devoção ao Sagrado Coração de Jesus do que saber em que ela consiste, compilei e, a seguir, apresento a vocês uma instrução adequada. Desse modo, espero que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus seja mais apreciada e desejada por todos nós e também por nossos bons alunos.

                Intimamente convencido de que este ato solene que estamos prestes a realizar será agradável ao Sacratíssimo Coração de Jesus e que produzirá um grande bem para a nossa Pia Sociedade, enquanto os saúdo e os abençoo, peço-lhes novamente que se unam a mim para agradecer a este Divino Coração pelos grandes favores que já nos concedeu e para rezar pelo novo século, enquanto será um consolo e uma ajuda para nós, mas que seja verdadeiramente o século do triunfo de Jesus, o Redentor, para que Ele, nosso querido Jesus, possa vir a reinar nas mentes e nos corações de todas as pessoas do mundo, e que possa em breve ser repetido em toda a extensão de seu significado: Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat.

Vosso afeiçoadíssimo no Coração de Jesus
P. MIGUEL RUA

INSTRUÇÃO SOBRE A DEVOÇÃO AO SACRATÍSSIMO CORAÇÃO DE JESUS
Jesus, nosso compassivo Redentor, tendo vindo à terra para salvar todos os homens, colocou em sua Igreja uma riqueza inestimável de bens, que deveriam servir para esse fim. E, no entanto, não contente com essa providência universal e generosa, sempre que surgia uma necessidade especial, ele desejava oferecer aos homens uma ajuda ainda mais eficaz. Para esse fim, certamente por inspiração do Senhor, muitas solenidades divinas foram gradualmente instituídas; para esse fim, o Senhor fez com que muitos santuários fossem construídos em todas as partes do mundo, e, para tal fim ainda foi instituída na Igreja, de acordo com as necessidades, tanta santidade de práticas religiosas.

N. 22, Turim, 21 de novembro de 1900,
Festa da Apresentação de Maria no Templo




A vida conforme o espírito em Mamãe Margarida (1/2)

            O P. Lemoyne, em seu prefácio à vida de Mamãe Margarida, deixa-nos um retrato verdadeiramente singular: “Não descreveremos eventos extraordinários ou heroicos, mas retrataremos uma vida simples, constante na prática do bem, vigilante na educação de seus filhos, resignada e previdente nas ansiedades da vida, resoluta em tudo o que o dever lhe impunha. Não era rica, mas tinha um coração de rainha; não foi instruída em ciências profanas, mas educada no santo temor de Deus; foi privada em tenra idade daqueles que deveriam ser seu apoio, mas segura com a energia de sua vontade, apoiada na ajuda celestial, pôde cumprir com alegria a missão que Deus lhe havia confiado”.
            Com essas palavras, nos são oferecidas as peças de um mosaico e uma tela sobre a qual podemos construir a aventura do Espírito que o Senhor concedeu a essa mulher que, dócil ao Espírito, arregaçou as mangas e enfrentou a vida com fé laboriosa e caridade maternal. Acompanharemos as etapas dessa aventura com a categoria bíblica do “êxodo”, expressão de uma autêntica jornada na obediência da fé. Mamãe Margarida também experimentou seu “êxodo”, ela também caminhou em direção a “uma terra prometida”, atravessando o deserto e superando as provações. Vemos essa jornada refletida à luz de seu relacionamento com o filho e de acordo com duas dinâmicas típicas da vida no Espírito: uma menos visível, constituída pelo dinamismo interior da mudança de si mesma, condição prévia e indispensável para ajudar os outros; a outra mais imediata e documentável: a capacidade de arregaçar as mangas para amar o próximo em carne e osso, indo em auxílio dos necessitados.

1. Êxodo de Capriglio para a propriedade Biglione
            Margarida foi educada na fé, viveu e morreu na fé. “Deus estava na vanguarda de todos os seus pensamentos. Ela sentia que vivia na presença de Deus e expressava essa convicção com a afirmação que era comum para ela: ‘Deus te vê’. Tudo lhe falava da paternidade de Deus e grande era sua confiança na Providência, demonstrando gratidão a Deus pelos dons que havia recebido e gratidão a todos aqueles que eram instrumentos da Providência. Margarida passou sua vida em uma busca contínua e incessante pela vontade de Deus, o único critério operacional para suas escolhas e ações.
            Aos 23 anos, casou-se com Francisco Bosco, viúvo aos 27 anos, com seu filho Antônio e sua mãe semiparalisada. Margarida se torna não apenas esposa, mas mãe adotiva e ajuda a sogra. Esse passo é o mais importante para o casal, pois eles sabem muito bem que ter recebido o sacramento do matrimônio de forma santa é para eles uma fonte de muitas bênçãos: para a serenidade e a paz na família, para os futuros filhos, para o trabalho e para superar os momentos difíceis da vida. Margarida vive seu casamento com Francisco Bosco de forma fiel e frutífera. Suas alianças serão o sinal de uma fecundidade que se estenderá à família fundada por seu filho João. Tudo isso despertará em Dom Bosco e em seus filhos um grande sentimento de gratidão e amor por esse casal de santos esposos e pais.

2. O êxodo da propriedade Biglione para os Becchi
            Somente depois de cinco anos de casamento, em 1817, seu marido Francisco morreu. Dom Bosco recorda que, ao sair do quarto, sua mãe, em lágrimas, “pegou-me pela mão” e o conduziu para fora. Aqui está o ícone espiritual e educacional dessa mãe. Ela pega o filho pela mão e o leva para fora. Já a partir desse momento, há esse “pegar pela mão”, que unirá mãe e filho tanto na jornada vocacional quanto na missão educacional.
            Margarida se encontra em uma situação muito difícil do ponto de vista emocional e econômico, inclusive com uma pretensa disputa promovida pela família Biglione. Há dívidas a pagar, trabalho árduo no campo e uma terrível fome a enfrentar, mas ela vive todas essas provações com muita fé e confiança incondicional na Providência.
            A viuvez lhe abre uma nova vocação como educadora atenta e carinhosa de seus filhos. Ela se dedicou à família com tenacidade e coragem, recusando uma proposta vantajosa de casamento. “Deus me deu um marido e o tirou de mim; quando ele morreu, confiou-me três filhos, e eu seria uma mãe cruel se os abandonasse quando eles mais precisavam de mim… O tutor… é um amigo, eu sou a mãe dos meus filhos; nunca os abandonarei, mesmo que quisessem me dar todo o ouro do mundo”.
            Ela educa seus filhos com sabedoria, antecipando a inspiração pedagógica do Sistema Preventivo. Ela é uma mulher que escolheu a Deus e sabe como transmitir a seus filhos, em suas vidas cotidianas, o senso da presença Dele. Ela o faz de maneira simples, espontânea e incisiva, aproveitando cada pequena oportunidade para educá-los a viver à luz da fé. Faz isso antecipando aquele método “da palavra ao ouvido” que Dom Bosco usaria mais tarde com os meninos para chamá-los à vida da graça, à presença de Deus. Ela faz isso ajudando-os a reconhecer nas criaturas a obra do Criador, que é um Pai providencial e bom. Faz isso contando os fatos do Evangelho e a vida dos santos.
            Educação cristã. Ele prepara seus filhos para receber os sacramentos, transmitindo-lhes um senso vívido da grandeza dos mistérios de Deus. João Bosco recebeu sua Primeira Comunhão na Páscoa de 1826: “Filho querido, este foi um grande dia para você. Estou convencida de que Deus realmente tomou posse de seu coração. Agora prometa a Ele que fará tudo o que puder para se manter bom até o fim de sua vida”. Essas palavras da Mamãe Margarida fazem dela uma verdadeira mãe espiritual de seus filhos, especialmente de João, que imediatamente se mostrará sensível a esses ensinamentos, que têm o sabor de uma verdadeira iniciação, uma expressão da capacidade de introduzir ao mistério da graça numa mulher iletrada, mas rica da sabedoria das crianças.
            A fé em Deus se reflete na exigência de retidão moral que ela pratica consigo mesma e inculca em seus filhos. “Ela declarou guerra perpétua contra o pecado. Ela não apenas abominava o mal, mas também se esforçava para afastar a ofensa do Senhor até mesmo daqueles que não pertenciam a ela. Assim, ela estava sempre alerta contra o escândalo, cautelosa, mas resoluta e à custa de qualquer sacrifício”.
            O coração que anima a vida de Mamãe Margarida é um imenso amor e devoção à Santíssima Eucaristia. Ela experimentou seu valor salvífico e redentor em sua participação ao santo sacrifício e na aceitação das provações da vida. A essa fé e a esse amor ela educa seus filhos desde a mais tenra idade, transmitindo-lhes aquela convicção espiritual e educativa que encontrará em Dom Bosco um sacerdote apaixonado pela Eucaristia e que fará dela um pilar de seu sistema educativo.
            A fé encontrava expressão na vida de oração e, em particular, na oração em comum na família. Mamãe Margarida encontrou a força de uma boa educação em uma vida cristã intensa e cuidadosa. Ela lidera pelo exemplo e orienta pela palavra. Em sua escola, Joãozinho aprende assim o poder preventivo da graça de Deus em uma forma vital. “A instrução religiosa, que a mãe transmite por meio da palavra, do exemplo, comparando a conduta do filho com os preceitos específicos do catecismo, faz com que a prática da religião se torne normal e o pecado seja rejeitado por instinto, assim como a bondade é amada por instinto. Ser bom se torna um hábito, e a virtude não custa muito esforço. Uma criança educada dessa forma precisa se violentar para se tornar má. Margarida conhecia o poder dessa educação cristã e como a lei de Deus, ensinada no catecismo todas as noites e frequentemente relembrada mesmo durante o dia, era o meio seguro de tornar as crianças obedientes aos preceitos da mãe. Portanto, ela repetia as perguntas e respostas tantas vezes quantas fossem necessárias para que as crianças as aprendessem de cor”.

            Testemunha de caridade. Em sua pobreza, ela praticava a hospitalidade com alegria, sem fazer distinções ou exclusões; ajudava os pobres, visitava os doentes, e seus filhos aprenderam com ela a amar desmedidamente os últimos. “Ela tinha um caráter muito sensível, mas essa sensibilidade era tão transformada em caridade que ela podia ser chamada, com razão, de mãe dos necessitados”. Essa caridade se manifestava em uma capacidade marcante de entender as situações, de lidar com as pessoas, de fazer as escolhas certas no momento certo, de evitar excessos e de manter um grande equilíbrio durante todo o tempo: “Uma mulher de muito bom senso” (P. Jacinto Ballesio). A razoabilidade de seus ensinamentos, sua coerência pessoal e firmeza sem raiva tocam a alma das crianças. Provérbios e ditados florescem com facilidade em seus lábios e neles condensa preceitos da vida: ‘Uma lavadeira ruim nunca encontra uma boa pedra’; ‘Quem aos vinte anos não sabe, aos trinta não faz e tolo morrerá’; ‘A consciência é como as cócegas; alguns as sentem, outros não’.
            Em particular, deve-se enfatizar que João Bosco será um grande educador de meninos, “porque ele teve uma mãe que educou sua afetividade. Uma mãe boa, simpática e forte. Com muito amor, ela educou seu coração. Não se pode entender Dom Bosco sem Mamãe Margarida. Não dá para entendê-lo”. Mamãe Margarida contribuiu com sua mediação materna para a obra do Espírito na modelagem e formação do coração de seu filho. Dom Bosco aprendeu a amar, como ele mesmo declarou, dentro da Igreja, graças à Mamãe Margarida e com a intervenção sobrenatural de Maria, que lhe foi dada por Jesus como “Mãe e Mestra”.

3. O êxodo dos Becchi para a propriedade Moglia
            Um momento de grande provação para Margarida é o difícil relacionamento entre seus filhos. “Os três filhos de Margarida, Antônio, José e João, eram diferentes em temperamento e inclinações. Antônio era grosseiro nos modos, com pouca ou nenhuma delicadeza de sentimentos, um exagerado maníaco, um verdadeiro retrato do Nem te ligo! Ele vivia de prepotência. Muitas vezes ele se deixava levar a bater em seus irmãos menores, e Mamãe Margarida tinha que correr para livrá-los de suas mãos. No entanto, ela nunca usou a força para defendê-los e, fiel à sua máxima, nunca tocou num fio de cabelo de Antônio. Pode-se imaginar o domínio que Margarida tinha sobre si mesma para conter a voz do sangue e do amor intenso que ela nutria por José e João. Antônio foi colocado na escola e aprendeu a ler e escrever, mas se gabava de nunca ter estudado ou ido à escola. Ele não tinha aptidão para os estudos, fazia o trabalho no campo”.
            Por outro lado, Antônio estava em uma situação particularmente difícil: maior de idade, ele foi ferido em sua dupla condição de órfão de pai e de mãe. Apesar de seus excessos, ele era geralmente submisso, graças à atitude de Mamãe Margarida, que conseguia dominá-lo com sua bondade racional. Infelizmente, com o tempo, aumentará sua intolerância em relação a Joãozinho, em particular, pois este não se deixava subjugar facilmente; e suas reações em relação à Mamãe Margarida também se tornarão mais duras e, às vezes, mais pesadas. Em particular, Antônio não aceita que Joãozinho se dedique aos estudos e as tensões chegarão ao clímax: “Quero acabar com essa gramática. Eu cresci grande e forte, nunca vi esses livros”. Antônio é uma criança de seu tempo e de sua condição de camponês e não consegue entender nem aceitar que seu irmão possa se dedicar aos estudos. Todos ficam chateados, mas quem mais sofre é Mamãe Margarida, que estava pessoalmente envolvida e vivia a guerra em casa dia após dia: “Minha mãe estava angustiada, eu chorava, o capelão se afligia”.
            Diante do ciúme e da hostilidade de Antônio, Margarida buscou uma solução para o conflito familiar, enviando Joãozinho para a propriedade Moglia por cerca de dois anos e, em seguida, diante da resistência de Antônio, ela providenciou inflexivelmente a divisão da propriedade para permitir que João estudasse. É claro que é apenas João, de doze anos, que sai de casa; mas a mãe também experimenta esse profundo distanciamento. Não nos esqueçamos de que Dom Bosco, em suas Memórias do Oratório, não fala desse período. Tal silêncio sugere uma experiência difícil de ser processada, sendo que naquela época era um menino de doze anos, forçado a sair de casa porque não podia viver com seu irmão. João sofria em silêncio, esperando a hora da Providência e, com ele, mamãe Margarida, que não queria fechar o caminho do filho, mas abri-lo por vias especiais, confiando-o a uma boa família. A solução tomada pela mãe e aceita pelo filho foi uma escolha temporária em vista de uma solução definitiva. Foi a confiança e o abandono em Deus. Mãe e filho vivem um período de espera.

(continua)




Grande santo, grande gerente

            Não é fácil escolher entre as centenas de cartas inéditas de Dom Bosco que conseguimos recuperar nas últimas décadas, aquelas que mais merecem ser apresentadas e comentadas. Desta vez nós pegamos uma muito simples, mas que em poucas linhas resume todo um projeto de trabalho educacional salesiano e nos oferece muitas outras notícias interessantes. Trata-se daquela escrita em 7 de maio de 1877 a uma pessoa de Trento, um tal Daniel Garbari, que em nome de dois irmãos lhe havia perguntado repetidamente como poderia fundar um instituto educacional em sua terra, como aqueles que Dom Bosco estava fundando em toda a Itália, França e Argentina.

Prezado Sr. Garbari,

Minha ausência de Turim foi a causa do atraso na resposta às suas cartas, que eu tenho recebido regularmente. Estou muito satisfeito que nossa instituição seja bem recebida em suas cidades. Quanto mais se torna conhecida, mais ela será bem recebida pelos próprios governos; quer eles gostem ou não, os fatos nos asseguram que é preciso ajudar os jovens em perigo a fim de torná-los bons cidadãos ou então mantê-los desonrados nas prisões.
Quanto à criação de um instituto semelhante a este na cidade ou cidades de Trento, não é preciso muito para começar:
1° Um local capaz de acolher certo número de crianças, mas que tenham suas respectivas oficinas ou laboratórios em seu interior.
2° Algo que possa fornecer um pouco de pão para o diretor e as outras pessoas que o ajudam na assistência e na direção.
Os meninos são sustentados:
1° por aquele pouco de pensão mensal que alguns deles podem pagar, ou são pagos por parentes ou outras pessoas que os recomendam.
2° por um pouco de renda que o trabalho proporciona.
3° por subsídios dos municípios, do governo, de congregações caritativas e pelas ofertas de particulares. É assim que todas as nossas casas de aprendizes são administradas e, com a ajuda de Deus, temos progredido bastante. Entretanto, deve ser tomado como base que nós sempre estivemos, e sempre estaremos desvinculados de tudo o que se refere à política.
Nosso principal objetivo é reunir crianças em situação de risco para torná-las bons cristãos e cidadãos honestos. Esta é a primeira coisa a ser deixada clara para as autoridades civis e governamentais.
Como padre, então, eu devo estar de pleno acordo com a autoridade eclesiástica; portanto, quando se trata de concretizar o assunto, eu escreveria diretamente ao Arcebispo de Trento, que certamente não oporá nenhuma dificuldade.
Eis o meu pensamento preliminar. Continuando as tratativas e ocorrendo alguma novidade, lhe escreverei. Por favor, agradeça em meu nome a todas aquelas pessoas que me manifestam benevolência.
Eu mesmo quis escrever com minha letra feia; na próxima vez vou entregar a caneta ao meu secretário, para que seja mais fácil de ler o que está escrito.

Creia-me com a máxima estima e gratidão com que tenho a honra de professar-me de Vossa Senhoria Ilustríssima,

Humilde servidor, P. João Bosco.
Turim, 7 de maio de 1877.

Imagem positiva do trabalho salesiano
            Em primeiro lugar, a carta nos informa como Dom Bosco, após a aprovação pontifícia da congregação salesiana (1874), a abertura da primeira casa salesiana na França (1875) e a primeira expedição missionária à América Latina (1875), estava sempre ocupado visitando e apoiando suas obras já existentes e aceitando ou não as muitas que lhe eram propostas naqueles anos de todos os lados. Na época da carta ele tinha a ideia de abrir as primeiras casas das Filhas de Maria Auxiliadora além da de Mornese – até seis no período de dois anos de 1876-1877 – e acima de tudo ele estava interessado em se estabelecer em Roma, onde ele vinha tentando sem sucesso há mais de 10 anos ter uma sede. Nada conseguiu. Outro autêntico piemontês como Dom Bosco, um “sacerdote do movimento” como ele, não era bem-vindo às margens do Tibre, na capital Roma já cheia de piemonteses invisíveis, por algumas autoridades pontifícias e por parte clero romano. Por três anos ele teve que “contentar-se” com a “periferia” romana, ou seja, Castelli Romani e Magliano Sabino.

            Paradoxalmente o oposto aconteceu com as administrações municipais e as mesmas autoridades governamentais do Reino da Itália, onde Dom Bosco contou, se não com amigos – suas ideias eram muito divergentes – pelo menos com grandes admiradores. E por uma razão muito simples, pela qual todos os governos estavam interessados: administrar a Itália, um país recém-nascido, com cidadãos honestos, trabalhadores e cumpridores da lei, ao invés de povoar as prisões com “criminosos” vagabundos, incapazes de sustentar a si mesmos e a suas famílias com o próprio trabalho digno. Três décadas depois, em 1900, o famoso antropólogo e criminologista judeu César Lombroso teria dado plena razão a Dom Bosco quando escreveu: “Os institutos salesianos representam um esforço colossal e engenhosamente organizado para prevenir o crime, aliás o único realmente criado na Itália”. Como bem diz a carta em questão, a imagem dos trabalhos salesianos nos quais, sem se filiar a qualquer partido político, os meninos eram educados para se tornarem “bons cristãos e honestos cidadãos” foi positiva, e isto até no Império Austro-Húngaro, ao qual Trento e Veneza pertenciam nessa época.

Tipologia de uma casa salesiana
            Na continuação da carta, Dom Bosco passou a apresentar a estrutura de uma casa de educação: ambientes em que os meninos poderiam ser alojados (e ele focalizou pelo menos cinco coisas: pátio para brincar, salas para estudar, refeitório para comer, dormitório para dormir, igreja para orar) e “oficinas ou laboratórios” onde se poderia ensinar um ofício com o qual os jovens poderiam viver e ter um futuro quando deixassem o instituto. No que diz respeito aos recursos econômicos, ele indicou três ativos: a pensão mínima mensal que os pais dos meninos poderiam pagar, a pequena renda das oficinas de artesanato, subsídios da caridade pública (governo, prefeituras) e, acima de tudo, caridade privada. Foi exatamente a experiência de Valdocco. Mas Dom Bosco não falou aqui de uma coisa importante: a consagração total à missão educativa do diretor e de seus colaboradores próximos, padres e leigos, que pelo preço de um pedaço de pão e uma cama passavam 24 horas por dia no trabalho, na oração, no ensino e na assistência. Pelo menos era assim que se fazia nas casas salesianas da época, muito apreciadas pelas autoridades civis e religiosas, em primeiro lugar pelos bispos, sem cuja aprovação não era evidentemente possível fundar uma casa que “educava pela evangelizando e evangelizava pela educando” como era a casa salesiana.

Resultado
            Nós não sabemos se houve um seguimento a esta carta. O projeto de fundação salesiana do Sr. Garbari certamente não foi adiante. Assim como dezenas de outras propostas de fundações. Mas é historicamente verificado que muitos outros professores, padres e leigos, em toda a Itália, foram inspirados pela experiência de Dom Bosco, fundando obras similares, inspiradas por seu modelo educacional e seu sistema preventivo.
            O Sr. Garbari teve que se considerar satisfeito, porém: Don Bosco tinha sugerido uma estratégia que funcionava em Turim e em outros lugares… e então ele tinha em mãos o seu autógrafo, que, por mais difícil que fosse “decifrar”, era sempre o de um santo. Tanto é verdade que ele o preservou ciosamente e hoje é guardado no Arquivo Central Salesiano em Roma.




Eu a matei por um pedaço de pão

Um senhor que não entrava em uma igreja há vinte anos aproximou-se hesitante de um confessionário. Ele se ajoelhou e, após um momento de hesitação, disse em meio às lágrimas: “Tenho sangue em minhas mãos. Foi durante a retirada na Rússia. Todo dia morria alguém do meu povo. A fome era terrível. Disseram-nos para nunca entrar nas isbás sem um rifle nas mãos, prontos para atirar ao primeiro sinal de… Onde eu havia entrado, havia um homem idoso e uma garota loira com olhos tristes: “Pão! Me dê um pouco de pão!”. A menina se abaixou. Achei que ela estava pegando uma arma, uma bomba. Disparei de forma decisiva. Ela caiu no chão.
Quando cheguei mais perto, vi que a menina estava segurando um pedaço de pão na mão. Eu havia matado uma garota de 14 anos, uma garota inocente que queria me oferecer pão. Comecei a beber para esquecer: mas como?
Deus pode me perdoar?”.

Quem anda por aí com um rifle carregado acaba atirando. Se a única ferramenta de que você dispõe é um martelo, acaba vendo todos os outros como pregos. E passa o dia dando marteladas.