O testamento de Dom Bosco

            Como sabemos, com o testamento, uma pessoa dispõe de seus bens para o tempo após sua morte. Não se pode pensar, portanto, que o assunto que estamos prestes a tratar seja muito simpático. No entanto, ele serve para nos fazer apreciar melhor a grande serenidade e prudência de Dom Bosco. Mesmo quando jovem, ele sempre tinha o pensamento da morte diante de si e falava dela com frequência.
            Vários manuscritos sucessivos de seu testamento hológrafo estão conservados no arquivo central salesiano (ASC 112 – FdB n. 73).
            Em Turim, em 1846, ficou tão doente que se temia por sua vida. Nos anos 50 houve quem tentasse assassiná-lo. E Dom Bosco sempre se manteve preparado para qualquer acontecimento.
            O primeiro testamento hológrafo de Dom Bosco que possuímos data de 26 de julho de 1856, quando Dom Bosco estava prestes a completar 41 anos de idade e sua mãe ainda vivia. Começava com estas palavras: “Na incerteza de vida em que todo homem que vive neste mundo se encontra…, etc.”.
            Ele deixava o usufruto de suas posses em Turim para o P. Vitório Alasonatti, ecônomo da Casa de Valdocco, e a propriedade para o clérigo Miguel Rua, que já era seu braço direito na época.
            Ele deixou a propriedade de Castelnuovo para seus parentes, tendo em mente que sua mãe, ainda viva, permaneceria como usufrutuária da mesma. Quando sua mãe morreu, em novembro daquele ano, ele corrigiu o que havia escrito: “Tudo o que possuo em Castelnuovo d’Asti, deixo para meu irmão José…”.

Os manuscritos posteriores
            Em fevereiro de 1858, Dom Bosco partiu para Roma pela primeira vez a fim de ter uma audiência com o Papa Pio IX e apresentar-lhe seu plano para a Sociedade Salesiana. Ele havia decidido ir até lá por mar e voltar por terra através da Toscana, dos Estados de Parma, Piacenza, Módena e Lombardia-Vêneto. Partiu na madrugada de 18 de fevereiro, depois de uma noite gelada, em que nevara, acompanhado por seu fiel clérigo Miguel Rua.
            Ele fez apenas o trecho Turim-Gênova de trem. Em seguida, teve de embarcar no Aventino, um barco a vapor que ia até Civitavecchia. De Civitavecchia a Roma, ele viajou de ônibus postal. Em 21 de fevereiro, chegou à cidade dos papas, onde foi hóspede do conde De Maistre na Rua do Quirinal 49, nas Quatro Fontes, enquanto o padre Rua ficou com os Rosminianos (MB V, 809-818 – MBp V, 690-699).
            Mas antes de iniciar aquela viagem, Dom Bosco havia providenciado não apenas o passaporte, mas fez também seu testamento.
            Outra cópia do testamento de Dom Bosco traz a data de 7 de janeiro de 1869. Nele ele constituía seu herdeiro universal e executor testamentário, no que diz respeito aos bens salesianos, o P. Miguel Rua e, no caso de sua morte, o P. João Cagliero.
            Em 29 de março de 1871, reconfirmou o P. Rua e o P. Cagliero como seus herdeiros; para as propriedades de Castelnuovo, seus parentes. No mesmo ano, durante sua doença em Varazze, ele escreveu uma confirmação de seu testamento anterior em 22 de dezembro de 1871 (MB X, 1334-1335 – MBp X, 1129-1130).

O testamento de 1884
            Em 1884, Dom Bosco estava prestes a partir para a França pela décima vez em busca de dinheiro para a Basílica do Sagrado Coração em Roma. Ele estava com a saúde debilitada. O Dr. Albertotti, que havia sido chamado para dissuadi-lo da viagem, depois de examiná-lo, disse:
– Se conseguir chegar vivo a Nice, será um milagre.
            – “Se eu não voltar mais, paciência”!
respondeu Dom Bosco, “significa que vamos acertar as coisas antes de irmos, mas temos que ir” (MB XVII, 34).
            E assim fez. Na tarde de 29 de fevereiro, mandou chamar um tabelião e testemunhas e ditou o seu testamento, como se estivesse prestes a partir para a eternidade. Depois, chamando o P. Rua e o P. Cagliero, e apontando para a escritura notarial sobre a mesa, ele lhes disse:
– Aqui está meu testamento… Se eu não retornar mais, como o médico teme, vocês já saberão como estão as coisas.
            O P. Rua saiu do quarto com o coração apertado. O santo fez sinal para que o P. Cagliero parasse e lhe deixou de presente uma caixinha com a aliança de casamento de seu pai.
            Em 7 de dezembro daquele ano, o P. Cagliero era consagrado Bispo titular de Magida e partia de novo para a América em 3 de fevereiro de 1885, como Vigário Apostólico na Patagônia.

O testamento espiritual de Dom Bosco
            O Arquivo Salesiano Central também contém um manuscrito das Memórias de Dom Bosco que cobrem os anos 1841-1886, conhecido na tradição salesiana como o Testamento Espiritual de Dom Bosco. Citamos uma passagem particularmente significativa dele:
“Expressei assim os pensamentos de um Pai em relação a seus filhos amados; volto-me agora para mim mesmo para invocar a misericórdia do Senhor sobre mim nas últimas horas de minha vida.
            – Pretendo viver e morrer na santa religião católica que tem como chefe o Romano Pontífice, Vigário de Jesus Cristo sobre a Terra.
            – Creio e professo todas as verdades da fé que Deus revelou à santa Igreja.
            – Peço humildemente o perdão de Deus por todos os meus pecados, especialmente por todo escândalo dado ao meu próximo em todas as minhas ações, em todas as palavras ditas em momentos inoportunos;
peço especialmente seu perdão pelo cuidado excessivo que tive comigo mesmo, sob o pretexto ilusório de preservar minha saúde…
            – Sei que vocês, meus amados filhos, me amam, e esse amor, essa afeição não se limita ao luto após minha morte; mas rezem pelo repouso eterno de minha alma…
            – Que suas orações sejam dirigidas com especial propósito ao Céu, para que eu possa encontrar misericórdia e perdão no primeiro momento em que me apresentar à tremenda majestade do meu Criador”
(F. MOTTO, Memorie…, Piccola Biblioteca dell’ISS, n. 4, Roma, LAS, 1985, p. 57-58).
            É um documento que dispensa comentários!




O sonho dos 9 anos. Gênese de uma vocação

O sonho do menino de 9 anos apresentado em dez pontos, síntese de uma vocação celestial, confirmada pelos frutos que produziu, apresentado na 42ª Jornada de Espiritualidade Salesiana em Valdocco, Turim.

Há duzentos anos, um menino de nove anos, pobre e sem outro futuro que não fosse o de ser agricultor, teve um sonho. Ele o contou pela manhã para sua mãe, avó e irmãos, que riram dele. A avó concluiu: “Não dê atenção aos sonhos”. Muitos anos depois, aquele menino, João Bosco, escreveu: “Eu era da opinião de minha avó, mas nunca consegui tirar aquele sonho da cabeça”. Porque não era apenas mais um sonho e ele não morreu ao amanhecer.

Primeiro: é uma ordem imperiosa
O P. Lemoyne, o primeiro historiador de Dom Bosco, resume o sonho da seguinte forma: “Pareceu-lhe ver o Divino Salvador vestido de branco, radiante com a mais esplêndida luz, no ato de conduzir uma multidão inumerável de jovens. Virando-se para ele, disse: ‘Venha cá: coloque-se à frente desses jovens e conduza-os você mesmo’. – Mas eu não sou capaz, respondeu João. O Divino Salvador insistiu imperiosamente até que João se colocou à frente daquela multidão de rapazes e começou a liderá-los de acordo com a ordem que lhe havia sido dada. Como o “Segue-me” de Jesus.

Segundo: é o segredo da alegria
Esse sonho se repetiu várias vezes. Com uma carga de energia avassaladora. Era uma fonte de segurança alegre e força inesgotável para João Bosco. A fonte de sua vida.
No processo diocesano para a causa de beatificação de Dom Bosco, o P. Rua, seu primeiro sucessor, testemunhou: “Lúcia Turco, membro de uma família onde Dom Bosco costumava entreter-se frequentemente com os irmãos dela, me contou que numa manhã eles o viram chegar mais alegre do que de costume. Perguntado sobre a causa, ele respondeu que durante a noite tivera um sonho que o animara”.

Terceiro: a resposta
A pergunta para todos é: “Você quer uma vida comum ou quer mudar o mundo?”
Viktor Frankl enfatiza a diferença entre “sentido da vida” e “sentido na vida”. O sentido da vida está associado a perguntas como: Por que estou aqui? Qual é o significado de tudo isso? Qual é o sentido da vida? Muitas pessoas procuram as respostas na religião ou em uma missão nobre para o bem maior, como combater a pobreza ou acabar com o aquecimento global. Muitas vezes, é difícil encontrar o sentido da vida; a luta para compreender esse conceito pode ser exaustiva, especialmente em momentos de dificuldade, quando lutamos até mesmo para chegar ao fim do dia. Por outro lado, é muito mais fácil encontrar significado na vida: nas coisas comuns que fazemos por hábito, no momento presente, nas atividades cotidianas em casa ou no trabalho. É exatamente o significado na vida que é o meio preferido para experimentar o bem-estar espiritual.

Quarto: um sinal do Alto
No seminário, Dom Bosco escreveu uma página de admirável humildade como motivação para a sua vocação: “O sonho de Morialdo sempre me impressionou; na verdade, ele se renovou muito mais claramente em outras ocasiões”. Podemos ter certeza: ele tinha reconhecido o Senhor e sua Mãe. Apesar de sua modéstia, ele não duvidava de forma alguma de que havia sido visitado pelo Céu. Tampouco duvidava de que essas visitas tinham a finalidade de revelar-lhe seu futuro e o da sua obra. Ele mesmo o disse: “A Congregação Salesiana não deu um passo sem que um fato sobrenatural o aconselhasse. Ela não chegou ao ponto de desenvolvimento em que se encontra sem uma ordem especial do Senhor”.

Quinto: assistência contínua
“Soube então por meio de outros que ele perguntou: – Como vou cuidar de tantas ovelhas? E de tantos cordeiros? Onde encontrarei pastagens para mantê-los? A Senhora lhe respondeu: – Não tema, eu o ajudarei. E depois desapareceu”.

Sexto: uma Mestra
Uma mãe.

Sétimo: uma missão 
“Aqui está o teu campo, aqui é onde deves trabalhar”, continuou a Senhora. “Torna-te humilde, forte, robusto: e o que vês acontecendo com esses animais neste momento, tu deves fazer por meus filhos”. 

Oitavo: um método
“Não com pancadas, mas com a mansidão e a caridade, deves conquistar esses teus amigos”.

Nono: os destinatários
“Quando olhei, vi que todas aquelas crianças haviam fugido e, em seu lugar, vi uma multidão de cabritos, cachorros, gatos, ursos e vários outros animais”.

Décimo: uma Obra
“Abatido pelo cansaço, eu queria me sentar à beira de uma estrada próxima, mas a pastorinha me convidou a continuar meu caminho. Depois de um curto percurso, encontrei-me em um vasto pátio com um pórtico ao redor, no final do qual havia uma igreja. Então percebi que quatro quintos daqueles animais haviam se tornado cordeiros. Seu número se tornou então muito grande. Naquele momento, vários pastores chegaram para cuidar deles. Mas eles se detinham um pouco e logo iam embora. Então aconteceu uma maravilha. Muitos cordeiros se transformavam em pastores e, à medida que cresciam, cuidavam dos outros. Eu queria ir embora, mas a pastorinha me convidou para dar uma olhada para o sul. “Olhe de novo”, disse ela, e eu olhei novamente. Então vi uma igreja linda e alta. Na parte interna da igreja havia uma faixa branca, na qual estava escrito em letras garrafais: Hic domus mea, inde gloria mea[Aqui é minha casa; daqui sairá a minha glória].
É por isso que, quando entramos na Basílica de Maria Auxiliadora, entramos no sonho de Dom Bosco.

O testamento de Dom Bosco
O próprio Papa pediu a Dom Bosco que escrevesse o sonho para seus filhos. Ele começou assim: “Para que servirá então este trabalho? Servirá como norma para superar as dificuldades futuras, tirando uma lição do passado; servirá para dar a conhecer como o próprio Deus guiou tudo em todos os tempos; servirá aos meus filhos como um agradável divertimento, quando puderem ler as coisas em que seu pai participou, e as lerão com muito mais boa vontade quando, chamado por Deus a prestar contas de minhas ações, eu não estiver mais entre eles”.
É por isso que as Constituições Salesianas começam com um “ato de fé”: “Com sentimento de humilde gratidão, cremos que a Sociedade de São Francisco de Sales não nasceu apenas de projeto humano, mas por iniciativa de Deus”.




O sonho de nove anos de Dom Bosco. Núcleos teológico-espirituais

            Um comentário sobre os temas teológico-espirituais presentes no sonho dos nove anos poderia ter desdobramentos tão amplos que incluiria um tratado completo da “salesianidade”. Lido, de fato, a partir de sua história dos efeitos, o sonho abre inúmeros caminhos para aprofundar os traços pedagógicos e apostólicos que caracterizaram a vida de São João Bosco e a experiência carismática que dele se originou. Optamos por nos concentrar em cinco caminhos de reflexão espiritual que dizem respeito, respectivamente, (1) à missão oratoriana, (2) ao chamado ao impossível, (3) ao mistério do Nome, (4) à mediação materna e, finalmente, (5) ao poder da mansidão.

1. A missão oratoriana
            O sonho de nove anos está repleto de meninos. Eles estão presentes desde a primeira cena até a última e são os beneficiários de tudo o que acontece. Sua presença é caracterizada pela alegria e pela brincadeira, típicas de sua idade, mas também pela desordem e pelo comportamento negativo. As crianças não são, portanto, no sonho de nove anos, a imagem romântica de uma idade encantada, intocada pelos males do mundo, nem correspondem ao mito pós-moderno da condição da juventude como uma época de ação espontânea e disposição perene para mudanças, que deve ser preservada em uma adolescência eterna. Os meninos do sonho são extraordinariamente “reais”, tanto quando aparecem com sua fisionomia como quando são representados simbolicamente na forma de animais. Eles brincam e brigam, divertem-se rindo e se arruínam dizendo palavrões, exatamente como fazem na realidade. Eles não parecem ser inocentes, como uma pedagogia espontaneísta os imagina, nem capazes de ensinar a si mesmos, como Rousseau pensava sobre eles. Desde o momento em que aparecem, em um “pátio muito espaçoso”, que pressagia os grandes pátios dos futuros oratórios salesianos, eles invocam a presença e a ação de alguém. O gesto impulsivo do sonhador, porém, não é a intervenção correta; é necessária a presença de um Outro.
            Entrelaçada à visão das crianças está a aparição da figura de Cristo, como agora podemos chamá-lo abertamente. Aquele que disse no Evangelho: “Deixai vir a mim as crianças” (Mc 10,14), vem indicar ao sonhador a atitude com a qual as crianças devem ser abordadas e acompanhadas. Ele aparece majestoso, viril, forte, com traços que destacam claramente seu caráter divino e transcendente; seu modo de agir é marcado pela confiança e pelo poder e manifesta um senhorio total sobre as coisas que acontecem. O senhor venerável, no entanto, não instila medo, mas traz paz onde antes havia confusão e agitação; ele manifesta compreensão benevolente para com João e o direciona para um caminho de mansidão e caridade.
            A reciprocidade entre essas figuras – os meninos, de um lado, e o Senhor (mais tarde acompanhado pela Mãe), de outro – define os contornos do sonho. As emoções que João sente na experiência do sonho, as perguntas que ele faz, a tarefa que ele é chamado a realizar, o futuro que se abre diante dele estão totalmente ligados à dialética entre esses dois polos. Talvez a mensagem mais importante que o sonho transmite a ele, aquela que ele provavelmente entendeu primeiro porque ficou presa em sua imaginação, mesmo antes de entendê-la de forma reflexiva, é que essas figuras se referem umas às outras e que ele não poderá mais dissociá-las pelo resto da vida. O encontro entre a vulnerabilidade do jovem e o poder do Senhor, entre sua necessidade de salvação e sua oferta de graça, entre seu desejo de alegria e sua dádiva de vida deve agora se tornar o centro de seus pensamentos, o espaço de sua identidade. A partitura de sua vida será toda escrita na tonalidade que esse tema gerador lhe dá: modulá-la em todo o seu potencial harmônico será sua missão, na qual ele deve derramar todos os seus dons de natureza e graça.

            O dinamismo da vida de João aparece, portanto, na visão do sonho como um movimento contínuo, uma espécie de ir e vir espiritual, entre os meninos e o Senhor. Do grupo de meninos em cujo meio ele se lançou impetuosamente, João deve se permitir ser atraído pelo Senhor que o chama pelo nome e, em seguida, afastar-se d’Aquele que o envia e ir liderar seus companheiros de uma maneira muito diferente. Mesmo que ele receba socos tão fortes dos meninos em seus sonhos que ainda sinta a dor deles quando acorda, e que ouça as palavras do Senhor venerável que o deixam sem palavras, seu ir e vir não é uma agitação inconclusiva, mas um caminho que gradualmente o transforma e traz aos jovens uma energia de vida e amor.
            O fato de tudo isso acontecer em um pátio é altamente significativo e tem um claro valor proléptico, já que o pátio oratoriano se tornará o lugar privilegiado e o símbolo exemplar da missão de Dom Bosco. Toda a cena se passa nesse ambiente, ao mesmo tempo vasto (pátio muito espaçoso) e familiar (perto de casa). O fato de a visão vocacional não ter como pano de fundo um lugar sagrado ou um espaço celestial, mas o ambiente em que os meninos vivem e brincam, indica claramente que a iniciativa divina assume o mundo deles como o lugar do encontro. A missão confiada a João, mesmo que seja claramente direcionada em um sentido catequético e religioso (“para instruí-los sobre a fealdade do pecado e a preciosidade da virtude”), tem como habitat o universo da educação. A associação da figura cristológica com o espaço do pátio e a dinâmica da brincadeira, que um menino de nove anos certamente não pode ter “construído”, constitui uma transgressão do imaginário religioso mais comum, cuja força inspiradora é igual à profundidade de seu mistério. De fato, ela sintetiza em si toda a dinâmica do mistério da encarnação, por meio da qual o Filho assume nossa forma para nos oferecer a Sua, e destaca como não há nada humano que deva ser sacrificado para dar lugar a Deus.
            O pátio fala, portanto, da proximidade da graça divina ao “sentimento” dos jovens: para acolhê-la não é preciso sair da própria idade, negligenciar suas necessidades, forçar seus ritmos. Quando Dom Bosco, já adulto, escrevia no Jovem Instruído que um dos truques do diabo é fazer com que os jovens pensem que a santidade é incompatível com o seu desejo de alegria e com o frescor exuberante da sua vitalidade, ele estava apenas devolvendo em forma madura a lição intuída no seu sonho e que depois se tornou um elemento central do seu magistério espiritual. Ao mesmo tempo, o pátio fala da necessidade de entender a educação a partir de seu núcleo mais profundo, que diz respeito à atitude do coração em relação a Deus. Ali, ensina o sonho, não está apenas o espaço de uma abertura original à graça, mas também o abismo da resistência, no qual se escondem a fealdade do mal e a violência do pecado. É por isso que o horizonte educacional do sonho é francamente religioso, e não apenas filantrópico, e encena o simbolismo da conversão, e não apenas o do autodesenvolvimento.
            No pátio do sonho, cheio de crianças e habitado pelo Senhor, é revelado a João o que será a futura dinâmica pedagógica e espiritual dos pátios oratorianos. Gostaríamos ainda de enfatizar dois traços, claramente evocados nas ações realizadas no sonho, primeiro pelas crianças e depois pelos cordeiros mansos.
            A primeira característica é encontrada no fato de que os meninos “deixando de brigar, de gritar e de blasfemar, reuniram-se todos em torno daquele que falava”. Esse tema do “reunir-se” é uma das matrizes teológicas e pedagógicas mais importantes da visão educacional de Dom Bosco. Em uma famosa página escrita em 1854, a Introdução ao Plano de Regulamento do Oratório Masculino de São Francisco de Sales em Turim, na região de Valdocco, ele apresenta a natureza eclesial e o sentido teológico da instituição oratoriana citando as palavras do evangelista João: “Ut filios Dei, qui erant dispersi, congregaret in unum” [para reunir os filhos de Deus dispersos] (Jo 11,52). A atividade do Oratório é, portanto, colocada sob o signo da reunião escatológica dos filhos de Deus, que constituiu o centro da missão do Filho de Deus:

As palavras do santo Evangelho que nos revelam que o divino Salvador veio do céu à terra para reunir todos os filhos de Deus, dispersos nas várias partes da terra, parecem-me se aplicar literalmente aos jovens de nossos dias.

            A juventude, “essa porção mais delicada e preciosa da sociedade humana”, muitas vezes se encontra dispersa e desgarrada devido ao desinteresse educacional dos pais ou à influência de maus companheiros. A primeira coisa a ser feita para proporcionar a educação desses jovens é justamente “reuni-los, deixá-los falar, moralizá-los”. Nessas palavras da Introdução ao Plano de Regulamento, o eco do sonho, amadurecido na consciência do educador já adulto, está presente de forma clara e reconhecível. O oratório é apresentado ali como uma alegre “reunião” de jovens em torno da única força tranquilizadora capaz de salvá-los e transformá-los, a do Senhor: “Esses oratórios são certas reuniões nas quais os jovens são mantidos em uma recreação agradável e honesta, depois de terem participado das funções sagradas da igreja”. Desde a infância, de fato, Dom Bosco compreendeu que “essa era a missão do filho de Deus; isso é o que só sua santa religião só pode fazer”.
            O segundo elemento que se tornará um traço identificador da espiritualidade oratoriana é aquele que no sonho se revela através da imagem dos cordeiros correndo “para fazer festa àquele homem e àquela senhora”. A pedagogia da festa será uma dimensão fundamental do sistema preventivo de Dom Bosco, que verá nas numerosas festas religiosas do ano a oportunidade de oferecer aos meninos a chance de respirar profundamente a alegria da fé. Dom Bosco saberá envolver com entusiasmo a comunidade juvenil do Oratório na preparação de eventos, peças teatrais, recepções que proporcionariam uma distração a respeito do trabalho enfadonho do dia a dia, para valorizar os talentos dos meninos para a música, a representação, a ginástica, para dirigir a imaginação deles na direção de uma criatividade positiva. Se levarmos em conta que a educação proposta nos círculos religiosos do século XIX geralmente tinha um teor bastante austero, que parecia apresentar o ideal pedagógico a ser alcançado como o da compostura devota, a saudável alegria festiva do oratório se destaca como uma expressão de um humanismo aberto para compreender as necessidades psicológicas do menino e capaz de satisfazer seu protagonismo. A alegria festiva que se segue à metamorfose dos animais do sonho é, portanto, o que a pedagogia salesiana deve buscar.

2. O chamado ao impossível
            Enquanto para os meninos o sonho termina em comemoração, para João termina em desânimo e até em lágrimas. Esse é um resultado que não pode deixar de ser surpreendente. É comum pensar, de fato, com alguma simplificação, que as visitas de Deus são exclusivamente portadoras de alegria e consolo. É paradoxal, portanto, que para um apóstolo da alegria, para aquele que, como seminarista, fundará a “sociedade da alegria” e que, como sacerdote, ensinará a seus filhos que a santidade consiste em “ser muito alegre”, a cena vocacional termine em choro.
            Isso certamente pode indicar que a alegria de que se fala não é puro lazer e simples despreocupação, mas uma ressonância interior da beleza da graça. Como tal, ela só pode ser alcançada por meio de exigentes batalhas espirituais, cujo preço Dom Bosco terá de pagar em grande parte para o benefício de seus meninos. Assim, ele reviverá em si mesmo aquela troca de papéis que se enraíza no mistério pascal de Jesus e que se prolonga na condição dos apóstolos: “nós, insensatos por causa de Cristo, vós, sábios em Cristo; nós, fracos, vós, fortes; vós, honrados, nós, desprezados” (1Cor 4,10), mas, ao mesmo tempo, “colaboradores da vossa alegria” (2Cor 1,24).
            O tumulto com o qual o sonho se encerra, porém, lembra sobretudo a vertigem que os grandes personagens bíblicos sentem diante da vocação divina que se manifesta em suas vidas, direcionando-as para um rumo totalmente imprevisível e desconcertante. O Evangelho de Lucas afirma que até mesmo Maria, diante das palavras do anjo, teve uma sensação de profunda agitação interior (“diante dessas palavras, ela ficou muito perturbada” – Lc 1,29). Isaías havia se sentido perdido diante da manifestação da santidade de Deus no templo (Is 6). Amós havia comparado ao rugido de um leão (Am 3,8) o poder da Palavra divina pela qual ele havia sido tomado, enquanto Paulo experimentaria na estrada para Damasco a reviravolta existencial que vem do encontro com o Ressuscitado. Embora testemunhando o fascínio de um encontro com Deus que seduz para sempre, no momento do chamado, os homens bíblicos parecem mais hesitar temerosos diante de algo que os ultrapassa do que se lançar de cabeça na aventura da missão.
            A perturbação que João experimenta no sonho parece ser uma experiência semelhante. Ela se origina da natureza paradoxal da missão que lhe foi designada, que ele não hesita em descrever como “impossível” (“Quem é o Senhor que me ordena o que é impossível?”). O adjetivo pode parecer “exagerado”, como às vezes são as reações das crianças, especialmente quando expressam um sentimento de inadequação diante de uma tarefa desafiadora. Mas esse elemento da psicologia infantil não parece ser suficiente para iluminar o conteúdo do diálogo do sonho e a profundidade da experiência espiritual que ele comunica. Tanto mais que João tem uma verdadeira qualidade de liderança e uma excelente memória, o que lhe permitirá, nos meses seguintes ao sonho, começar imediatamente a fazer um pouco de oratório, entretendo seus amigos com jogos de acrobacia e repetindo o sermão do pároco para eles na íntegra. Por essa razão, nas palavras com as quais ele declara sem rodeios que é “incapaz de falar sobre religião” com seus companheiros, é bom ouvir o eco distante da objeção de Jeremias à vocação divina: “Não sei falar, porque sou jovem” (Jr 1,6).
            Não é no nível das aptidões naturais que a demanda pelo impossível se desenrola aqui, mas sim no nível do que pode ser incluído no horizonte do real, do que pode ser esperado com base na própria imagem do mundo, do que está dentro dos limites da experiência. Além dessa fronteira, abre-se a região do impossível, que é, no entanto, biblicamente, o espaço da ação de Deus. É “impossível” para Abraão ter um filho de uma mulher estéril e idosa como Sara; “impossível” para a Virgem conceber e dar ao mundo o Filho de Deus feito homem; aos discípulos parece que a salvação é “impossível”, se é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. No entanto, ouve-se Abraão responder: “Existe alguma coisa impossível para o Senhor?” (Gn 18,14); o anjo diz a Maria que “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37); e Jesus responde aos discípulos incrédulos que “o que é impossível aos homens é possível a Deus” (Lc 18,27).
            O lugar supremo em que surge a questão teológica do impossível, porém, é o momento decisivo da história da salvação, ou seja, o drama pascal, no qual a fronteira do impossível a ser superada é o próprio abismo tenebroso do mal e da morte. É nesse espaço gerado pela ressurreição que o impossível se torna realidade efetiva, é nele que o venerável homem do sonho, resplandecente de luz pascal, pede a João que torne possível o impossível. E ele o faz com uma fórmula surpreendente: “Como essas coisas te parecem impossíveis, tu deves torná-las possíveis pela obediência”. Isso soa como as palavras com as quais os pais pedem aos filhos, quando eles estão relutantes, que façam algo que não se sentem capazes de fazer ou que não têm vontade de fazer.
“Obedece e verás que serás bem-sucedido”, dizem a mãe ou o pai: a psicologia do mundo infantil é perfeitamente respeitada. Mas elas são também, e muito mais, as palavras com as quais o Filho revela o segredo do impossível, um segredo que está todo escondido em sua obediência. O venerável homem que manda uma coisa impossível sabe, por meio de sua experiência humana, que a impossibilidade é o lugar onde o Pai trabalha com seu Espírito, desde que abra a porta para ele com sua obediência.
            João, é claro, permanece perturbado e atônito, mas essa é a atitude que o homem experimenta quando se depara com o impossível pascal, quando se depara com o milagre dos milagres, do qual todos os outros eventos salvíficos são sinais. Portanto, não é de surpreender que, no sonho, a dialética do possível-impossível esteja entrelaçada com a outra dialética, a da clareza e da obscuridade. Ela caracteriza, em primeiro lugar, a própria imagem do Senhor, cujo rosto é tão brilhante que João não consegue fitá-lo. Nessa face brilha, de fato, uma luz divina que, paradoxalmente, produz escuridão. Depois, há as palavras do homem e da mulher que, embora expliquem claramente o que João deve fazer, ainda assim o deixam confuso e assustado. Por fim, há uma ilustração simbólica, por meio da metamorfose de animais, que, no entanto, leva a uma incompreensão ainda maior. João só pode pedir mais esclarecimentos: “Eu implorei àquele homem que falasse de modo que eu pudesse entender, pois eu não sabia o que queria dizer”. Mas a resposta que ele recebe da mulher de aparência majestosa adia ainda mais o momento da compreensão: “No devido tempo tudo compreenderás”.
            Isso certamente significa que somente por meio da execução do que já é apreensível do sonho, ou seja, por meio da possível obediência, o espaço para esclarecer sua mensagem será aberto mais amplamente. De fato, ele não consiste simplesmente em uma ideia a ser explicada, mas em uma palavra performativa, uma locução eficaz, que justamente ao realizar seu poder operativo manifesta seu significado mais profundo.

3. O mistério do Nome
            Tendo chegado a esse ponto de reflexão, estamos mais aptos a interpretar melhor outro elemento importante da experiência do sonho. É o fato de que no centro da dupla tensão entre possível e impossível e entre conhecido e desconhecido, e também, materialmente, no centro da narrativa do sonho, está o tema do misterioso Nome do homem venerável. O denso diálogo da seção III é, de fato, entrelaçado com perguntas que reiteram o mesmo tema: “Quem sois vós que me ordenais coisas impossíveis?”; “Quem sois vós que falais dessa maneira?”; e, finalmente: “Minha mãe me diz para não me associar com os que não conheço, sem a permissão dela; portanto, dizei-me o vosso nome”. O Senhor venerável diz a João para perguntar o nome à sua mãe, mas, na verdade, ela não lhe dirá. Ele permanece envolto em mistério até o fim.
            Já mencionamos, na parte dedicada à reconstrução do contexto bíblico do sonho, que o tema do Nome está intimamente relacionado ao episódio da vocação de Moisés na sarça ardente (Ex 3). Essa página constitui um dos textos centrais da revelação do Antigo Testamento e estabelece as bases para todo o pensamento religioso de Israel. André LaCoque propôs chamá-la de “revelação das revelações”, porque constitui o princípio de unidade da estrutura narrativa e prescritiva que qualifica a narrativa do Êxodo, a célula-mãe de toda a Escritura.[i] É importante notar como o texto bíblico articula em estreita unidade a condição de escravidão do povo no Egito, a vocação de Moisés e a revelação teofânica. A revelação do Nome de Deus a Moisés não se dá como a transmissão de uma informação a ser conhecida ou de um dado a ser adquirido, mas como a manifestação de uma presença pessoal, que pretende suscitar uma relação estável e gerar um processo de libertação. Nesse sentido, a revelação do Nome divino é orientada na direção da aliança e da missão. “O Nome é ao mesmo tempo teofânico e performativo, uma vez que aqueles que o recebem não são simplesmente introduzidos no segredo divino, mas são os destinatários de um ato de salvação”.[ii]
            O Nome, de fato, diferentemente do conceito, não designa apenas uma essência a ser pensada, mas uma alteridade a ser referida, uma presença a ser invocada, um sujeito que se propõe como verdadeiro interlocutor da existência. Ao mesmo tempo em que implica a proclamação de uma riqueza ontológica incomparável, a do próprio Ser, que nunca pode ser adequadamente definida, o fato de Deus se revelar como um “Eu” indica que somente por meio de um relacionamento pessoal com Ele será possível acessar Sua identidade, o Mistério do Ser que Ele é. A revelação do Nome pessoal é, portanto, um ato de fala que desafia o receptor, pedindo que ele se situe em relação ao falante. Somente assim é possível compreender seu significado. Além disso, essa revelação se estabelece explicitamente como o fundamento da missão libertadora que Moisés deve cumprir: “Eu sou me enviou a vós” (Ex 3,14). Ao se apresentar como um Deus pessoal, e não como um Deus vinculado a um território, e como o Deus da promessa, e não apenas como o Senhor da repetição imutável, Javé será capaz de sustentar a jornada do povo, sua jornada rumo à liberdade. Ele tem, portanto, um Nome que se torna conhecido na medida em que suscita aliança e move a história.
            “Dizei-me vosso nome”: essa pergunta de João não pode ser respondida simplesmente por uma fórmula, um nome entendido como um rótulo externo da pessoa. Para saber o nome daquele que fala no sonho, não basta receber uma informação, mas é preciso se posicionar diante de seu ato de falar. Ou seja, é necessário entrar naquele relacionamento de intimidade e entrega que os Evangelhos descrevem como uma “permanência” com Ele. É por isso que, quando os primeiros discípulos questionam Jesus sobre sua identidade – “Mestre, onde moras?” ou, literalmente, “onde ficas?” – ele responde: “Vinde e vede” (Jo 1,38s). Somente “permanecendo” com ele, habitando em seu mistério, entrando em seu relacionamento com o Pai, é que se pode realmente saber quem ele é.
            O fato de o personagem do sonho não responder a João com um nome, como nós faríamos ao apresentar o que está escrito em nossa carteira de identidade, indica que seu Nome não pode ser conhecido como uma designação puramente externa, mas só mostra sua verdade quando sela uma experiência de aliança e missão. João, portanto, conhecerá esse mesmo Nome atravessando a dialética do possível e do impossível, da clareza e da obscuridade; ele o conhecerá realizando a missão oratoriana que lhe foi confiada. Ele o conhecerá, portanto, carregando-o dentro de si, graças a uma história vivida como uma história habitada por ele. Um dia Cagliero testemunhará de Dom Bosco que o seu modo de amar era “terno, grande, forte, mas todo espiritual, puro, verdadeiramente casto”, tanto que “dava uma ideia perfeita do amor que o Salvador tinha pelas crianças” (Cagliero 1146r). Isso indica que o Nome do homem venerável, cujo rosto era tão brilhante que cegava a visão do sonhador, realmente entrou na vida de Dom Bosco como um selo. Ele teve a experientia cordis [experiência do coração] por meio da jornada da fé e do seguimento. Essa é a única forma pela qual a pergunta do sonho poderia ser respondida.

4. Mediação materna
            Na incerteza sobre Aquele que o envia, o único ponto firme ao qual João pode se apegar no sonho é a referência a uma mãe, na verdade, a duas: a do senhor venerável e da sua própria. As respostas às suas perguntas, de fato, soam assim: “Eu sou o filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia” e, em seguida, “meu nome pergunta-o a Minha Mãe”.
            O fato de o espaço do esclarecimento possível ser mariano e materno é, sem dúvida, algo que merece reflexão. Maria é o lugar no qual a humanidade percebe a mais alta correspondência com a luz que vem de Deus e o espaço da criatura no qual Deus entregou ao mundo sua Palavra feita carne. Também é indicativo que, ao despertar do sonho, quem melhor entende seu significado e escopo é Margarida, a mãe de João. Em níveis diferentes, mas de acordo com uma analogia real, a Mãe do Senhor e a mãe de João representam a face feminina da Igreja, que se mostra capaz de intuição espiritual e constitui o ventre no qual as grandes missões são gestadas e dadas à luz.
Portanto, não é de surpreender que as duas mães estejam justapostas uma à outra e exatamente no ponto em que se trata de chegar ao fundo da questão que o sonho apresenta, ou seja, o conhecimento Daquele que confia a João a missão de uma vida inteira. Assim como no pátio perto da casa, assim também com a mãe, na intuição do sonho os espaços da experiência mais familiar e cotidiana se abrem e mostram uma profundidade insondável em suas dobras. Os gestos comuns de oração, a saudação angélica que era habitual três vezes ao dia em todas as famílias, de repente aparecem pelo que são: diálogo com o Mistério. João descobre, assim, que na escola de sua mãe ele já havia estabelecido um vínculo com a majestosa Mulher, que pode lhe explicar tudo. Assim, já existe uma espécie de canal feminino que permite superar a aparente distância entre “uma criança pobre e ignorante” e o homem “nobremente vestido”. Essa mediação feminina, mariana e materna, acompanhará João por toda a sua vida e desenvolverá nele uma disposição especial para venerar a Virgem com o título de Auxílio dos Cristãos, tornando-se seu apóstolo para seus filhos e para toda a Igreja.
            A primeira ajuda que Nossa Senhora lhe oferece é a que uma criança naturalmente precisa: a de uma mestra. O que ela tem a lhe ensinar é uma disciplina que torna a pessoa verdadeiramente sábia, sem a qual “toda sabedoria se torna tolice”. Essa é a disciplina da fé, que consiste em dar crédito a Deus e obedecer mesmo diante do impossível e do obscuro. Maria a transmite como a mais alta expressão de liberdade e como a mais rica fonte de fecundidade espiritual e educacional. Levar dentro de si o impossível de Deus e caminhar na escuridão da fé é, de fato, a arte na qual a Virgem se sobressai acima de toda criatura.
            Ela fez disso um árduo aprendizado em sua peregrinatio fidei [peregrinação da fé], marcado não raramente por escuridão e mal-entendidos. Basta pensarmos no episódio do encontro de Jesus, aos doze anos, no Templo (Lc 2,41-50). À pergunta de sua mãe: “Filho, por que fizeste isso conosco? Eis que teu pai e eu, angustiados, estávamos te procurando”, Jesus responde de forma surpreendente: “Por que estáveis procurando por mim? Não sabíeis que eu devia cuidar das coisas de meu Pai?” E o evangelista observa: “Mas eles não entenderam o que ele lhes havia dito”. É muito menos provável que Maria tenha entendido quando sua maternidade, solenemente anunciada do alto, foi, por assim dizer, expropriada dela para que se tornasse a herança comum da comunidade dos discípulos: “Todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12,50). Depois, aos pés da cruz, quando a escuridão se abateu sobre toda a terra, o “eis-me aqui” pronunciado no momento do chamado assumiu os contornos de uma renúncia extrema, de uma separação do Filho em cujo lugar deveria receber os filhos pecadores, pelos quais deixaria que seu coração fosse atravessado pela espada.
            Portanto, quando a majestosa mulher do sonho começa sua tarefa como mestra e, colocando a mão na cabeça de João, diz a ele: “No devido tempo tudo compreenderás”, ela tira essas palavras das entranhas espirituais da fé que, aos pés da cruz, fez dela a mãe de todos os discípulos. Sob sua disciplina, João terá de permanecer por toda a vida: como jovem, como seminarista, como sacerdote. De modo especial, ele terá de permanecer ali quando sua missão assumir contornos que ele não podia imaginar no momento de seu sonho; isto é, quando ele terá de se tornar, no coração da Igreja, o fundador de famílias religiosas destinadas à juventude de todos os continentes. Então João, que agora se tornou Dom Bosco, compreenderá também o significado mais profundo do gesto com que o venerável senhor lhe deu a mãe como “mestra”.
            Quando um jovem entra em uma família religiosa, encontra para acolhê-lo um mestre de noviciado, a quem é confiado para introduzi-lo no espírito da Ordem e ajudá-lo a assimilar aquele espírito. Quando se trata de um Fundador, que deve receber do Espírito Santo a luz original do carisma, o Senhor dispõe que seja sua própria mãe, a Virgem do Pentecostes e modelo imaculado da Igreja, que seja a sua mestra. De fato, somente ela, a “cheia de graça”, compreende todos os carismas a partir de dentro, como uma pessoa que conhece todas as línguas e as fala como se fossem sua própria língua.
            De fato, a mulher do sonho sabe como indicar a ele, de maneira precisa e apropriada, as riquezas do carisma oratoriano. Ela não acrescenta nada às palavras do Filho, mas as ilustra com a cena dos animais selvagens que se tornaram mansos cordeiros e com a indicação das qualidades que João deverá amadurecer para cumprir sua missão: “humilde, forte, robusto”. Nesses três adjetivos, que designam o vigor do espírito (humildade), do caráter (força) e do corpo (robustez), há uma grande concretude. Esse é o conselho que se daria a um jovem noviço que tem uma longa experiência no oratório e sabe o que exige o “campo” em que se deve “trabalhar”. A tradição espiritual salesiana guardou cuidadosamente as palavras desse sonho que se referem a Maria. As Constituições Salesianas fazem clara alusão a ela quando afirmam: “A Virgem Maria indicou a Dom Bosco seu campo de ação entre os jovens”,[iii] ou recordam que “guiado por Maria, que lhe foi Mestra, Dom Bosco viveu, no encontro com os jovens do primeiro Oratório, uma experiência espiritual e educativa a que chamou de Sistema Preventivo”.[iv]
            Dom Bosco reconheceu em Maria um papel decisivo em seu sistema educativo, vendo em sua maternidade a mais alta inspiração do que significa “prevenir”. O fato de Maria ter intervindo desde o primeiro momento de sua vocação carismática, de ter desempenhado um papel tão central nesse sonho, fará com que Dom Bosco perceba para sempre que ela pertence às raízes do carisma e que, onde esse papel inspirador não é reconhecido, o carisma não é compreendido em sua genuinidade. Dada como Mestra a João nesse sonho, ela deve sê-lo também para todos aqueles que compartilham sua vocação e missão. Como os sucessores de Dom Bosco não se cansaram de afirmar, a “que sem o concurso materno e ininterrupto de Maria, a Vocação Salesiana é inexplicável, no seu nascimento, no seu desenvolvimento, e sempre.”.[v]

5. O poder da mansidão
            “Não com pancadas, mas com a mansidão e a caridade, deverás ganhar estes teus amigos”. Estas palavras são, sem dúvida, a expressão mais conhecida do sonho de nove anos, aquela que de alguma forma resume sua mensagem e transmite sua inspiração. São também as primeiras palavras que o venerável homem diz a João, interrompendo seus esforços violentos para pôr fim à desordem e à blasfêmia de seus companheiros. Não se trata apenas de uma fórmula que transmite uma sentença sapiencial sempre válida, mas de uma expressão que especifica o modo de execução de uma ordem (“ele me ordenou que ficasse à frente daquelas crianças acrescentando estas palavras”) com a qual, como dissemos, o movimento intencional da consciência do sonhador é redirecionado. A ânsia das pancadas deve se tornar o ímpeto da caridade; a energia decomposta de uma intervenção repressiva deve dar lugar à mansidão.
            O termo “mansidão” passa a ter um peso considerável aqui, o que é ainda mais impressionante quando se considera que o adjetivo correspondente será usado no final do sonho para descrever os cordeiros que fazem festa ao redor do Senhor e de Maria. A justaposição sugere uma observação que não parece sem relevância: para que aqueles que eram animais ferozes se tornem cordeiros “mansos”, seu educador deve, antes de tudo, tornar-se manso. Ambos, embora de pontos de partida diferentes, devem passar por uma metamorfose para entrar na órbita cristológica da mansidão e da caridade. Para um grupo de meninos bagunceiros e briguentos, é fácil entender o que essa mudança exige. Para um educador, talvez isso seja menos óbvio. Ele, na verdade, já se coloca do lado da bondade, dos valores positivos, da ordem e da disciplina: que mudança pode ser exigida dele?
            Surge aqui um tema que terá um desenvolvimento decisivo na vida de Dom Bosco, antes de tudo em nível de estilo de ação e, em certa medida, também em nível de reflexão teórica. Trata-se da orientação que leva Dom Bosco a excluir categoricamente um sistema educativo baseado na repressão e no castigo, para escolher com convicção um método que se baseia todo na caridade e que Dom Bosco chamará de “sistema preventivo”. Além das diversas implicações pedagógicas que derivam dessa escolha, para as quais remetemos à rica bibliografia específica, interessa aqui destacar a dimensão teológico-espiritual que subjaz a essa orientação, da qual as palavras do sonho constituem, de algum modo, a intuição e o gatilho.
            Ao se colocar do lado do bem e da “lei”, o educador pode ser tentado a definir sua ação com os meninos de acordo com uma lógica que visa a reinar a ordem e a disciplina essencialmente por meio de regras e normas. No entanto, até mesmo a lei traz em si uma ambiguidade que a torna insuficiente para guiar a liberdade, não só por causa dos limites que toda regra humana traz em si, mas por causa de um limite que é, em última análise, de ordem teológica. Toda a reflexão paulina é uma grande meditação sobre esse tema, pois Paulo havia percebido em sua experiência pessoal que a lei não o havia impedido de ser “blasfemo, perseguidor e violento” (1Tm 1,13). A própria Lei dada por Deus, ensina a Escritura, não é suficiente para salvar o homem, a menos que haja outro Princípio pessoal que a integre e internalize no coração humano. Paul Beauchamp resume com alegria essa dinâmica quando afirma: “A Lei é precedida por um És amado e seguida por um Amarás. És amado: fundamento da Lei, e Amarás: sua superação”.[vi] Sem esse fundamento e sem essa superação, a lei traz em si os sinais de uma violência que revela sua inadequação para gerar o bem que, no entanto, ela ordena que se cumpra. Voltando à cena do sonho, os socos e pancadas que João dá em nome do mandamento sacrossanto de Deus, que proíbe a blasfêmia, revelam a insuficiência e a ambiguidade de qualquer impulso moralizador que não seja interiormente reformado do alto.
            Portanto, também é necessário que João e aqueles que aprenderão com ele a espiritualidade preventiva se convertam a uma lógica educacional sem precedentes, que vai além do regime da lei. Esta lógica só é possível graças ao Espírito do Ressuscitado, derramado em nossos corações. Somente o Espírito, de fato, torna possível passar de uma justiça formal e exterior (seja a clássica da “disciplina” e da “boa conduta”, seja a moderna dos “procedimentos” e dos “objetivos alcançados”) a uma verdadeira santidade interior, que realiza o bem porque é atraída e conquistada interiormente. Dom Bosco demonstrou ter essa consciência quando, no seu escrito sobre o Sistema Preventivo, declarou claramente que tudo se baseava nas palavras de São Paulo: “Charitas benigna est, patiens est; omnia suffert, omnia sperat, omnia sustinet[a caridade é benigna, é paciente; tudo sofre, tudo espera, tudo suporta].
            É claro que “ganhar” os jovens dessa forma é uma tarefa muito exigente. Implica não ceder à frieza de uma educação baseada apenas em regras, nem à leniência de uma proposta que renuncia a denunciar a “feiura do pecado” e a apresentar a “preciosidade da virtude”. Conquistar para o bem simplesmente mostrando o poder da verdade e do amor, testemunhado por meio da dedicação “até o último suspiro”, é a figura de um método educacional que é, ao mesmo tempo, uma verdadeira espiritualidade.
            Não é de se admirar que João, no sonho, resista a entrar nesse movimento e peça para entender bem quem é que o transmite. Quando ele tiver entendido, porém, fazendo daquela mensagem primeiro uma instituição oratoriana e depois também uma família religiosa, ele pensará que contar o sonho em que aprendeu aquela lição será a maneira mais bela de compartilhar com os seus filhos o significado mais autêntico de sua experiência. Foi Deus quem guiou tudo, foi Ele mesmo quem imprimiu o movimento inicial do que viria a ser o carisma salesiano.

P. André Bozzolo, sdb, Reitor da Universidade Pontifícia Salesiana


[i] A. LACOCQUE. La révélation des révélations: Exode 3,14, em P. RICOEUR – A. LACOCQUE. Penser la Bible. Seuil, Paris 1998, 305.

[ii] A. BERTULETTI. Dio, il mistero dell’unico [Deus, o mistério do uno]. Queriniana, Brescia 2014, 354.

[iii] Const. Art. 8.

[iv] Const. Art. 20.

[v] E. VIGANÒ. Maria renova a Família Salesiana de Dom Bosco, ACG 289 (1978) 1-23, 15.

[vi] P. BEAUCHAMP. La legge di Dio [A lei de Deus]. Piemme, Casale Monferrato 2000, 116.




Maravilhas da Mãe de Deus invocada sob o título de Maria Auxiliadora (2/13)

(continuação do artigo anterior)

Capítulo II. Maria demonstrou ser o auxílio dos cristãos pelo Arcanjo Gabriel no ato de proclamá-la Mãe de Deus.
            As coisas até agora expostas foram coletadas do Antigo Testamento e aplicadas pela Igreja à Bem-aventurada Virgem Maria; agora vamos nos voltar para o significado literal de acordo com o que está escrito no Santo Evangelho.
            O evangelista São Lucas, no capítulo I de seu Evangelho, relata que o Arcanjo Gabriel, tendo sido enviado por Deus para anunciar a Maria Santíssima a dignidade de Mãe de Jesus, disse-lhe: Ave, gratia plena, Dominus tecum, benedicta tu in mulieribus. Deus te salve, ó cheia de graça, o Senhor é contigo, bendita és tu entre as mulheres.
            O Arcanjo Gabriel, ao saudar Maria, chama-a de cheia de graça. Portanto, Maria possui a plenitude da graça.
            Santo Agostinho, comentando as palavras do Arcanjo, assim saúda Maria: Deus te salve, ó Maria, cheia de graça, o Senhor é contigo; Tu no coração, Tu no ventre, Tu nas entranhas, Tu no auxílio. Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum, tecum in corde, tecum in ventre, tecum in utero, tecum in auxilio. (August. in Serm. de nat. B. M.).
            O doutor angélico Santo Tomás diz, a respeito das palavras Gratia plena, que Maria deve ter tido realmente a plenitude das graças e raciocina assim: quanto mais próximo de Deus, mais se participa da graça de Deus. De fato, os anjos no céu que estão mais próximos do trono divino são mais favorecidos e mais ricos do que os outros. Ora, Maria, a mais próxima de Jesus, porque lhe deu a natureza humana, devia ser enriquecida com a graça. (D. Tomás 3, p., qu. 27, ato 5).
            O Anjo Gabriel disse muito bem, proclamando Maria, cheia de graça, observa São Jerônimo, porque essa graça, que é comunicada apenas em parte a outros santos, foi prodigalizada a Maria em toda a sua plenitude.
Dominus tecum. O Arcanjo, para confirmar essa plenitude de graça em Maria, explica e amplia as primeiras palavras gratia plena, acrescentando Dominus tecum, o Senhor é contigo. Aqui, toda a dúvida sobre o exagero das palavras anteriores desaparece. Não é mais apenas a graça de Deus que vem em toda a sua abundância em Maria, mas é o próprio Deus que vem para enchê-la de Si mesmo e estabelecer sua morada em seu ventre casto, tornando-o seu templo, santificando assim o Altíssimo seu tabernáculo: Sanctificavit tabernaculum suum Altissimus.
            Assim também, de acordo com o sentido da Igreja, comentam Santo Tomás de Aquino, São Lourenço Justiniani e São Bernardo.
            E como Maria, em sua profunda humildade, ficou perturbada e pediu uma explicação para uma anunciação tão extraordinária, o Arcanjo Gabriel confirmou o que havia dito e desenvolveu seu significado. Ne timeas, Maria, disse Gabriel, invenisti enim gratiam apud Deum: Ecce concipies in utero et paries filium et vocabis nomen eius Jesum. Não temas, ó Maria, porque achaste graça diante de Deus: Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. E querendo explicar como o mistério aconteceria, ele acrescentou: Spiritus Sanctus superveniet in te et virtus Altissimi obumbrabit tibi, ideoque et quod nascetur ex te Sanctum vocabitur Filius Dei. O Espírito Santo descerá sobre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra, e por isso também o Santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus.
            Vamos agora ouvir Santo Antonino, arcebispo de Florença, explicando essas palavras do Evangelho.
            “A partir dessas palavras (invenisti gratiam), é revelada a excelência de Maria. O Anjo, ao dizer que Maria encontrou a graça, não quer dizer que ela a tenha encontrado somente naquele momento, enquanto Maria já tinha a graça antes da Anunciação do Anjo; ela a tinha desde o nascimento; portanto, ela nunca a perdeu, mas a encontrou em nome de toda a raça humana que a havia perdido com o pecado original. Adão, com seu pecado, perdeu a graça para si mesmo e para todos e, com a penitência que fez depois, só recuperou a graça para si mesmo. Maria, então, a encontrou para todos, porque por meio de Maria todos tiveram a graça virtualmente, assim como por meio de Maria tivemos Jesus que nos trouxe a graça”. (D. Antoninus part. tit. 15, § 2).
            Portanto, é inquestionável o que os santos Padres ensinam, ou seja, que Maria, encontrando essa graça, restituiu à humanidade tanto bem, quanto o mal que Eva nos trouxe ao perder a graça.
            Portanto, o cardeal Hugo, tomando a palavra em nome dos homens, humildemente se apresenta a Maria e lhe diz: “Não deves esconder essa graça que encontraste, porque ela não é tua, mas deves colocá-la em comum para que aqueles que a perderam possam recuperá-la, como é justo. Portanto, que aqueles que, pecando, perderam a graça corram para a Virgem e, encontrando-a com Maria, digam com humildade e confiança: ‘Devolve-nos, Mãe, a nossa propriedade, que encontraste’. E não poderá negar tê-la encontrado, pois o Anjo dá testemunho disso, dizendo: Invenisti, tu a encontraste, não a compraste, pois isso não seria graça, mas a recebeste livremente; portanto invenisti, tu a encontraste”.
            A mesma verdade se deduz das palavras que Santa Isabel disse a Maria. Quando a Santíssima Virgem foi visitar Santa Isabel, esta, logo que a viu, ficou cheia do Espírito Santo, e tão cheia que começou a profetizar de maneira inspirada: Benedicta tu inter mulieres, et benedictus fructus ventris tui.
            Não devemos confessar que Maria havia recebido a missão de santificar? Sim, foi precisamente Maria que realizou essa santificação de Isabel, pois São Lucas diz precisamente: Et factum est ut audivit salutationem Mariae Elisabeth exultavit infans in utero eius et repleta est Spiritu Sancto Elisabeth. E aconteceu que, logo que Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança saltou em seu ventre, e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. Precisamente quando Maria entrou em sua casa, ela a saudou e Isabel ouviu a saudação. Orígenes diz que São João não podia sentir a influência da graça antes que aquela que possuía a autoridade da graça estivesse presente a ele. E o cardeal Ugo, observando que Isabel ficou repleta do Espírito Santo e santificou João ao ouvir a saudação de Maria, conclui: “Saudemo-la, portanto, com frequência, para que, em sua saudação, nós também nos sintamos repletos de graça, pois está escrito especialmente sobre ela: A graça é derramada em teus lábios, de modo que a graça flui dos lábios de Maria. Repleta est Spiritu Sancto Elisabeth ad vocem salutationis Mariae: ideo salutanda est frequenter ut in eius salutatione gratia repleamur; de ipsa enim specialiter dietim est: Diffusa est gratia in labiis tuis (Sl 14) Unde gratia ex labiis eius fluit”.
            Santa Isabel, seguindo a inspiração do Espírito Santo, com a qual havia sido repleta, retribuiu a saudação de Maria, dizendo-lhe: Benedicta tu inter mulieres: Bendita és tu entre as mulheres. Com essas palavras, o Espírito Santo, por meio da boca de Isabel, exaltou Maria acima de qualquer outra mulher afortunada, querendo ensinar que Maria havia sido abençoada e favorecida por Deus ao elegê-la para trazer aos homens aquela bênção que havia sido perdida em Eva e que havia sido esperada por quarenta séculos; aquela bênção que, ao remover a maldição, deveria confundir a morte e nos dar a vida eterna. Às felicitações de sua parenta, Maria também respondeu com inspiração divina: Magnificat anima mea Dominum, quia respexit humilitatem ancillae suae, ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes generationes. A minha alma exalta a grandeza do Senhor… Porque olhou para a humildade de sua serva, pois eis que desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada. (Lc 1,46 e ss).
            Por que todas as gerações a chamariam de bem-aventurada? Essa palavra não abrange apenas todos os homens que viveram naquela época, mas também aqueles que ainda viriam depois, até o fim do mundo. Ora, para que a glória de Maria se estendesse a todas as gerações, e para que a chamassem bem-aventurada, era necessário que algum bem extraordinário e eterno viesse de Maria a todas essas gerações; de modo que, sendo perpétua nelas a razão de sua gratidão, seria razoável a perpetuidade do louvor. Ora, esse benefício contínuo e admirável não pode ser outro senão a ajuda que Maria presta aos homens. Ajuda que deve abranger todos os tempos, estender-se a todos os lugares, a todos os tipos de pessoas. Santo Alberto Magno diz que Maria é chamada de bem-aventurada por excelência, assim como quando dizemos o Apóstolo nos referimos a São Paulo.
            Antônio Gistandis, escritor dominicano, faz a pergunta: como Maria pode ser considerada bem-aventurada por todas as gerações, enquanto nunca o foi pelos judeus e maometanos? E ele responde que isso foi dito em um sentido figurado para indicar que, de cada geração, alguns a louvariam. Pois, como diz Lirano, em todas as gerações houve convertidos à fé de Cristo que louvaram a Virgem; e no próprio Alcorão, que é o livro escrito por Maomé, encontramos muitos louvores a Maria (Ant. Gistandis Fer. 6, 4 Temp. adv.). Por essa mesma razão, Maria é proclamada bem-aventurada entre todas as gerações: Beatam me dicent omnes generationes.
            Eis com quanta unção e abundância de sentimentos o Cardeal Hugo comenta essa passagem:
            “Todas as gerações me chamarão de bem-aventurada, isto é, dos judeus, dos gentios, isto é, os judeus, os gentios; ou então homens e mulheres, ricos e pobres, anjos e homens, visto que através dela todos receberam o benefício da salvação. Os homens foram reconciliados, e os anjos, reparados; pois Cristo, o Filho de Deus, operou a salvação no meio da terra, isto é, no ventre de Maria, que pode ser chamada de centro da terra. Pois para ela voltam seus olhos os que desfrutam do céu, os que habitam no inferno, isto é, no limbo, e os que lutam no mundo. Os primeiros para serem redimidos, os segundos para serem expiados, os terceiros para serem reconciliados. Portanto, Maria será bendita por todas as gerações”. E aqui ele exclama num transporte da veneração: “Ó Virgem bendita, pois a todas as gerações destes a vida, a graça e a glória: vida aos mortos, graça aos pecadores, glória aos infelizes.” E aplicando a Maria as palavras com as quais Judite foi exaltada, ele lhe diz: Tu gloria Ierusalem, tu laetitia Israel, tu honorificentia populi nostri quia fecisti viriliter [Tu és a exultação de Jerusalém, a glória imensa de Israel, o grande louvor da nossa gente]. Em primeiro lugar, a voz dos anjos vem louvá-la, cuja ruína é reparada por ela; em segundo lugar, a voz dos homens, cuja tristeza é alegrada por ela; depois, a voz das mulheres, cuja infâmia é apagada por sua obra; finalmente, a voz dos mortos no limbo, que, por meio de Maria, são redimidos da escravidão e gloriosamente introduzidos em sua pátria.

(continua)




São Francisco de Sales. Obras completas e concordâncias

São Francisco de Sales foi considerado o fundador de uma nova escola de espiritualidade, que recebeu seu nome: espiritualidade salesiana. Seguindo essa espiritualidade, muitos homens e mulheres chegaram à santidade. Conhecê-la é um dever para aqueles que estão ligados a essa escola de espiritualidade, especialmente para os grupos religiosos de homens e mulheres que, de alguma forma, fazem parte da grande família salesiana.

A palavra espiritualidade significa uma doutrina de vida espiritual, ou seja, uma doutrina que trata dos princípios da perfeição cristã e dos meios para alcançá-la.
Falando da espiritualidade salesiana, o P. Eugênio Ceria escrevia:
“Doutrina da vida espiritual só existe uma, a que está contida nas páginas do Evangelho; entretanto, os desenvolvimentos e as implementações podem variar e de fato variam. Os três conselhos evangélicos, por exemplo, que estão na base da vida religiosa, embora permaneçam sempre os mesmos em substância, assumem, no entanto, formas diferentes na prática, de acordo com a diversidade dos fins particulares desejados pelos fundadores, de acordo com as necessidades e tendências dos tempos. Todos os santos e todas as escolas de santidade que floresceram e florescem na Igreja são substancialmente inspirados pelo Evangelho; mas quantas diferenças acidentais entre eles! Assim, temos a espiritualidade de São Bento, de São Francisco de Assis, de São Domingos, de Santo Inácio, e a consequente espiritualidade beneditina, franciscana, dominicana e inaciana, cada uma com seu próprio caráter inconfundível, mas todas igualmente adequadas para conduzir as almas à perfeição.
Alguns santos, como São João Bosco, não expuseram organicamente por escrito sua própria doutrina de vida espiritual, mas criaram instituições nas quais a encarnaram e a partir do estudo das quais ela pode ser trazida à luz; outros santos, ao contrário, não só deram origem a instituições que professavam uma forma de vida espiritual que correspondia a seus pontos de vista, orientando as almas no caminho da perfeição de acordo com as normas e os métodos que preferiam, mas também formularam deliberadamente as teorias que formavam a base de sua ação espiritual. Um desses últimos é São Francisco de Sales, mestre daquela ascética que é conhecida como salesiana”.

A espiritualidade salesiana produziu seus frutos em muitas pessoas que alcançaram a santidade, e foi confirmada pela canonização de São Francisco de Sales em 1665 (menos de 50 anos após sua morte) e sua proclamação como Doutor da Igreja em 1877.

Graças a Deus e à sua experiência de vida, São Francisco de Sales também deixou um legado escrito, no qual se identificam os princípios informativos da espiritualidade salesiana, principalmente na Filoteia, no Teótimo, nos Entretenimentos e na Correspondência epistolar. Na Filoteia, ele escreve para as pessoas que trilham os caminhos ordinários da santidade; no Teótimo e nos Entretenimentos, escreve para aqueles que desejam progredir nos caminhos da contemplação; e na Correspondência Epistolar, escreve tanto para uns quanto para outros.

Houve vários esforços para conseguir apresentar toda a sua obra francesa em uma edição completa. Podemos mencionar a versão de 4 volumes de Béthune Editeur de 1836, a versão de 9 volumes de Migne de 1861 a 1864, a versão de 10 volumes de Berche et Tralin de 1898, a versão de 12 volumes de Luís Vives de 1899 e, por último, a versão de 27 volumes do Mosteiro de Annecy de 1892 a 1964, que é a mais completa e confiável.

Felizmente, essa última versão do Mosteiro de Annecy está em formato digital e queremos apresentá-la a todos aqueles que podem lê-la em francês.

Tomo Vol. Título Tópico pp. Pub.
I   Controvérsias Defesa da autoridade da Igreja; As Regras da Fé; As Regras de Fé são observadas na Igreja Católica 420 1892
II   Defesa da bandeira da Santa Cruz Sobre a honra e a virtude da verdadeira cruz; Sobre a honra e a virtude da imagem da cruz; Sobre a honra e a virtude do sinal da cruz; Sobre a excelência da honra devida à cruz; Sobre a maneira de honrar a cruz 432 1892
III   Introdução à vida devota (Filoteia) Os conselhos e os exercícios necessários para conduzir a alma desde seu primeiro desejo de uma vida devota até a completa resolução de abraçá-la; vários conselhos para a elevação da alma a Deus por meio da oração e dos sacramentos; vários conselhos para o exercício das virtudes; os conselhos necessários contra as tentações mais comuns; exercícios e conselhos para renovar a alma e confirmá-la na devoção. 574 1893
IV 1 Tratado sobre o Amor de Deus, I (Teótimo) Seis livros: Contendo uma preparação para todo o tratado; História da geração e do nascimento celestial do amor divino; Progresso e aperfeiçoamento do amor; Decadência e ruína da caridade; Dos dois principais exercícios do santo amor, que são realizados por meio da complacência e da benevolência; Exercícios do santo amor na oração. 362 1894
V 2 Tratado sobre o Amor de Deus, II (Teótimo) Sétimo livro: Da união da alma com seu Deus, que é aperfeiçoada na oração; Do amor de conformidade pelo qual unimos nossa vontade à de Deus, que nos é dada por seus mandamentos, conselhos e inspirações; Do amor de submissão pela qual nossa vontade é unida ao beneplácito de Deus; Do mandamento de amar a Deus acima de todas as coisas; Da autoridade soberana que o amor sagrado tem sobre todas as virtudes, ações e perfeições da alma; Contém alguns conselhos para o progresso da alma no amor sagrado. 512 1894
VI   Entretenimentos Espirituais (21) 21 colóquios 480 1895
VII 1 Sermões (autógrafos), I 1593-1602 – 65 sermões 492 1896
VIII 2 Sermões (autógrafos), II 1603-1622 – 95 sermões 448 1897
IX 3 Sermões (coleção), I 1613-1620 – 42 sermões 492 1897
X 4 Sermões (coleção), II 1594-1622 – 30 sermões 480 1898
XI 1 Cartas, I >1593-1598 – 120 cartas 486 1900
XII 2 Cartas, II 1599-1604 – 150 cartas 524 1902
XIII 3 Cartas, III 1605-1608 – 173 cartas 464 1904
XIV 4 Cartas, IV 1608-1610 – 210 cartas 480 1906
XV 5 Cartas, V 1611-1613 – 219 cartas 470 1908
XVI 6 Cartas, VI 1613-1615 – 263 cartas 484 1910
XVII 7 Cartas, VII 1615-1617 – 172 cartas 480 1911
XVIII 8 Cartas, VIII 1617-1619 – 233 cartas 500 1912
XIX 9 Cartas, IX 1619-1620 – 203 cartas 496 1914
XX 10 Cartas, X 1621-1622 – 221 cartas 484 1918
XXI 11 Cartas, XI Cartas sem data – 136 cartas + 5 cartas no volume 26 352 1923
XXII 1 Opúsculos, I Primeira série: Estudos e vida privada e Segunda série: Apostolado – 48 opúsculos 400 1925
XXIII 2 Opúsculos, II Terceira série. Polêmica e Quarta série. Administração episcopal – 35 opúsculos 448 1928
XXIV 3 Opúsculos, III Quarta série. Administração episcopal e Quinta série: Fundações e reformas – 141 opúsculos 568 1929
XXV 4 Opúsculos, IV Quinta série: Fundações e reformas – 20 opúsculos 568 1931
XXVI 5 Opúsculos, V Sexta série: Ascética e mística – 69 opúsculos 506 1932
XXVII   Tabela analítica Índice doutrinário; Índice onomástico; Índice toponímico; Índice bíblico 316 1964

O índice detalhado de todas as Obras Completas pode ser encontrado AQUI.

A versão dos volumes em formato PDF pode ser encontrada AQUI.

Uma concordância das Obras Completas em francês também pode ser encontrada AQUI.

Desejamos a você uma leitura proveitosa.




Laura Vicuña: uma filha que “gera” a própria mãe

Histórias de famílias feridas
            Estamos acostumados a imaginar a família como uma realidade harmoniosa, caracterizada pela presença simultânea de várias gerações e pelo papel orientador dos pais que estabelecem a norma e dos filhos que, ao aprendê-la, são orientados por eles na experiência da realidade. Não obstante, as famílias frequentemente se veem atravessadas por dramas e mal-entendidos, ou marcadas por feridas que atacam a sua configuração ideal e lhes dão uma imagem distorcida, deturpada e falsa.
            A história da santidade salesiana também é atravessada por histórias de famílias feridas: famílias em que falta pelo menos uma das figuras parentais, ou a presença da mãe e do pai se torna, por diferentes razões (físicas, psíquicas, morais e espirituais), penalizadora para os filhos, agora a caminho das honras dos altares. O próprio Dom Bosco, que havia experimentado a morte prematura do pai e o afastamento da família pelo prudente arbítrio de Mamãe Margarida, quis – não por acaso – a obra salesiana particularmente dedicada à “juventude pobre e abandonada” e não hesitou em alcançar os jovens formados em seu oratório com uma intensa pastoral vocacional (demonstrando que nenhuma ferida do passado é obstáculo para uma vida humana e cristã plena). É natural, portanto, que a própria santidade salesiana, que se baseia na vida de muitos dos jovens de Dom Bosco, depois consagrados por meio dele à causa do Evangelho, traga em si – como consequência lógica – traços de famílias feridas.
            Dentre esses meninos e meninas que cresceram em contato com as obras salesianas, apresentamos a Beata Laura Vicuña, nascida no Chile em 1891, órfã de pai e cuja mãe iniciou uma convivência na Argentina com o rico fazendeiro Manuel Mora; Laura, portanto, ferida pela situação de irregularidade moral da mãe, estava pronta a oferecer a vida por ela.

Uma vida breve, mas intensa
            Nascida em Santiago do Chile em 5 de abril de 1891 e batizada em 24 de maio do mesmo ano, Laura era a filha mais velha de José D. Vicuña, um nobre decaído que se havia casado com Mercedes Pino, filha de modestos fazendeiros. Três anos mais tarde, chegou uma irmã mais nova, Júlia Amanda; mas logo seu pai morreu, depois de sofrer uma derrota política que prejudicou sua saúde e comprometeu, junto com o apoio financeiro da família, também sua honra. Privada de qualquer “proteção e perspectiva de futuro”, a mãe desembarca na Argentina, onde recorre à tutela do latifundiário Manuel Mora: um homem “de caráter soberbo e altivo”, que “não dissimula o ódio e o desprezo por qualquer um que se oponha a seus desígnios”. Um homem, em resumo, que só aparentemente garante proteção, mas que na verdade está acostumado a tomar, se necessário pela força, o que quer, explorando as pessoas. Nesse meio tempo, ele paga os estudos no internato das Filhas de Maria Auxiliadora para Laura e sua irmã; e a mãe delas – que está sob a influência psicológica de Mora – vive com ele sem encontrar forças para romper o vínculo. No entanto, quando Mora começa a mostrar sinais de interesse desonesto pela própria Laura e, especialmente, quando esta última embarca no caminho de preparação para sua primeira comunhão, ela subitamente percebe a gravidade da situação. Ao contrário de sua mãe – que justifica um mal (a coabitação) em vista de um bem (a educação das filhas em um colégio interno) – Laura entende que esse é um argumento moralmente ilegítimo, que coloca a alma de sua mãe em grave perigo. Nessa época, Laura também queria se tornar freira de Maria Auxiliadora; mas seu pedido foi rejeitado, porque ela era filha de uma “concubina pública”. E é nesse momento que ocorre uma mudança em Laura – recebida no internato quando “a impulsividade, a facilidade de ressentimento, a irritabilidade, a impaciência e a propensão a aparecer” ainda dominavam nela – que somente a Graça, combinada com o comprometimento da pessoa, pode realizar: ela pede a Deus pela conversão da mãe, oferecendo-se por ela. Naquele momento, Laura não podia se mover nem “para frente” (entrando nas Filhas de Maria Auxiliadora) nem “para trás” (voltando para sua mãe e Mora). Com um gesto então carregado da criatividade típica dos santos, Laura embarcou no único caminho ainda acessível a ela: o da altura e da profundidade. Nas resoluções de sua Primeira Comunhão, ela havia anotado:

Proponho-me a fazer tudo o que sei e posso para […] reparar as ofensas que Vós, Senhor, recebeis todos os dias dos homens, especialmente das pessoas de minha família; meu Deus, dai-me uma vida de amor, mortificação e sacrifício.

            Agora finaliza o propósito no “Ato de Oferecimento”, que inclui o sacrifício da própria vida. O confessor, reconhecendo que a inspiração vem de Deus, mas ignorando as consequências, concorda e confirma que Laura está “ciente da oferta que acabou de fazer”. Ela vive os últimos dois anos com silêncio, alegria e sorriso. E, no entanto, o olhar que ela lança sobre o mundo – como confirmado por um retrato fotográfico, muito diferente da estilização hagiográfica familiar – também fala da consciência dolorosa e da dor que habitam nela. Em uma situação em que lhe falta tanto a “liberdade de” (condicionamento, obstáculos, dificuldades) quanto a “liberdade para” fazer muitas coisas, essa pré-adolescente dá testemunho da “liberdade para”: a da entrega total.
Laura não despreza, mas ama a vida: a sua própria e a de sua mãe. Por isso, ela se oferece. Em 13 de abril de 1902, Domingo do Bom Pastor, ela se perguntou: “Se Ele dá a vida… o que me impede de dar a vida para a mamãe?” Morrendo, ela acrescentou: “Mamãe, estou morrendo, eu mesma pedi a Jesus… por quase dois anos tenho oferecido a Ele minha vida por você…, para obter a graça de seu retorno!
            Essas são palavras desprovidas de arrependimento e reprovação, mas carregadas de grande força, grande esperança e grande fé. Laura aprendeu a aceitar sua mãe como ela é. De fato, ela se oferece para dar a ela a graça de retornar. Na verdade, ela se oferece para dar a ela o que ela sozinha não pode alcançar. Quando Laura morre, mamãe se converte. Assim, Laurita de los Andes, a filha, ajudou a gerar sua mãe na vida de fé e graça.




Estreia 2024. «O sonho que faz sonhar»

Um coração que transforma “lobos” em “cordeiros”

Durante o meu serviço como Reitor-Mor pude constatar que a Estreia de todos os anos é um dos mais belos presentes que Dom Bosco e seus sucessores oferecem à Família Salesiana: ela é uma ajuda para caminhar juntos, chegando capilarmente até os lugares mais distantes, deixando, ao mesmo tempo, a liberdade de a acolher, integrar e valorizar “quando”, “como” e “com quem” cada CEP julgar oportuno.
Neste novo ano de 2024, celebraremos o segundo centenário do «sonho-visão que João teve entre os nove e dez anos de idade na pequena casa dos Becchi»[1] em 1824. Na verdade, ele é bem conhecido em nossa Família Salesiana como o sonho dos nove anos.
Considero que a ocorrência dos 200 anos do sonho que «condicionou todo o modo de viver e de pensar de Dom Bosco e, em particular, o modo de sentir a presença de Deus na vida de cada um e na história do mundo»,[2] merece ser colocado no centro da Estreia, que guiará o ano educativo-pastoral de toda a nossa Família Salesiana. O Sonho poderá ser assumido e aprofundado na missão evangelizadora, nas intervenções educativas e nas ações de promoção social que em todas as partes do mundo se referem à nossa Família, que tem em Dom Bosco o pai inspirador.
«Gostaria de recordar aqui o “sonho dos 9 anos”. De fato, parece-me que essa página autobiográfica ofereça uma apresentação simples, mas ao mesmo tempo profética, do espírito e da missão de Dom Bosco. Nele é definido o campo de ação que lhe é confiado: os jovens; é indicado o objetivo da sua ação apostólica: fazê-los crescer como pessoas por meio da educação; é apresentado o horizonte em que se move todo o seu e o nosso agir: o plano maravilhoso de Deus que, antes de todos e mais do que todos, ama os jovens».[3] Assim escrevia o Reitor-Mor Emérito, P. Pascual Chávez Villanueva, na conclusão da Estreia para 2012, oferecida à Família Salesiana por ocasião do primeiro ano do triênio em preparação ao bicentenário do nascimento de Dom Bosco em 2015.
Uma bela síntese que nos oferece em poucas linhas a essência do que foi e é o sonho dos nove anos em sua simplicidade e profecia, em seu valor carismático e educativo. Um sonho sem dúvida emblemático que, 200 anos depois de ocorrido, tentaremos aproximar do coração e da vida de toda a Família de Dom Bosco. Um sonho definido, às vezes, como «o famosíssimo sonho-visão que seria e ainda é uma importante coluna, quase um mito fundador, no imaginário da Família Salesiana».[4] Ele exige certamente uma contextualização e uma abordagem crítica quanto à redação feita pelo próprio Dom Bosco e que os nossos especialistas em história salesiana sempre fazem com o objetivo de se ter uma sua leitura e interpretação atual, vital e existencial. Todavia, sem dúvida, é um sonho que Dom Bosco reteve na mente e no coração durante toda a vida, como ele mesmo diz: «Nessa idade tive um sonho, que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida».[5] Ou seja, é um sonho que esteve presente nele e em todo o caminho da Congregação Salesiana até hoje (e que de uma forma ou de outra chega, sem dúvida, à nossa Família Salesiana).
Lemos nas palavras do P. Rinaldi, por ocasião do primeiro centenário do sonho: «o seu conteúdo é de tal importância que, nesta memória centenária, se quisermos merecer o nome de filhos de Dom Bosco e perfeitos salesianos, faremos o esforço de aprofundá-lo com uma meditação mais assídua de cada particular para colocar em prática com generosidade os seus ensinamentos».[6] Quanto a nós, estamos a viver o extraordinário evento deste segundo centenário que, sem dúvida, contará com muitas expressões em todo o mundo salesiano. Esperamos que as suas expressões alcancem o mais celebrativo e festivo e também o mais profundo da auspiciosa revisão das nossas vidas e das propostas corajosas aos jovens para ajudá-los a sonhar “grande” em suas vidas com a presença do Senhor Jesus e de mãos dadas com a Mestra, a Senhora nossa Mãe.

1. «TIVE UM SONHO…»: UM SONHO MUITO ESPECIAL
É isso mesmo, há 200 anos, João Bosco teve um sonho que o “marcaria” para por toda a sua vida. Um sonho que deixaria nele uma marca indelével, cujo significado ele só compreendeu plenamente no final da vida. Eis o sonho narrado pelo próprio Dom Bosco, «de acordo com a edição crítica de Antônio da Silva Ferreira, da qual nos afastamos apenas por duas pequenas variantes».[7]
[Quadro inicial] Nessa idade tive um sonho, que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida.
[Visão dos meninos e intervenção de João] No sonho, pareceu-me estar perto de casa, numa área bastante espaçosa, onde uma multidão de meninos estava a brincar. Alguns riam, outros divertiam-se, não poucos blasfemavam. Ao ouvir as blasfêmias, lancei-me de pronto no meio deles, tentando, com socos e palavras, fazê-los calar.
[Aparição do Homem venerando] Nesse momento apareceu um Homem venerando, de aspecto varonil, nobremente vestido. Um manto branco cobria-lhe o corpo; seu rosto, porém, era tão luminoso que eu não conseguia fitá-lo. Chamou-me pelo nome e mandou que me pusesse à frente daqueles meninos, acrescentando estas palavras: “Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a fealdade do pecado e a preciosidade da virtude”. Confuso e assustado, repliquei que eu era um menino pobre e ignorante, incapaz de lhes falar de religião. Senão quando aqueles meninos, parando de brigar, de gritar e blasfemar, juntaram-se ao redor do personagem que estava a falar.
[Diálogo sobre a identidade do personagem] Quase sem saber o que dizer, acrescentei: «Quem sois vós que me ordenais coisas impossíveis?». «Justamente porque te parecem impossíveis, deves torná-las possíveis com a obediência e a aquisição da ciência». «Onde, com que meios poderei adquirir a ciência?». «Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, e sem a qual toda sabedoria se converte em estultice». «Mas quem sois vós que assim falais?» «Sou o filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia». «Minha mãe diz que sem sua licença não devo estar com gente que não conheço; dizei-me, pois, vosso nome». «Pergunta-o a minha Mãe».
[Aparição da Senhora de aspecto majestoso] Nesse momento vi a seu lado uma Senhora de aspecto majestoso, vestida de um manto todo resplandecente, como se cada uma de suas partes fosse fulgidíssima estrela. Percebendo-me cada vez mais confuso em minhas perguntas e respostas, acenou para que me aproximasse e, tomando-me com bondade pela mão, disse: «Olha». Vi então que todos os meninos haviam fugido, e em lugar deles estava uma multidão de cabritos, cães, gatos, ursos e outros animais. «Eis o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte, robusto; e o que agora vês acontecer a esses animais, deves fazê-lo aos meus filhos». Tornei então a olhar, e em vez de animais ferozes apareceram mansos cordeirinhos que, saltitando e balindo, corriam ao redor daquele Homem e daquela Senhora, como a fazer-lhes festa. Neste ponto, sempre no sonho, desatei a chorar, e pedi que falassem de maneira que pudesse compreender, porque não sabia o que significava tudo aquilo. A Senhora descansou a mão em minha cabeça, dizendo: «A seu tempo tudo compreenderás».
[Quadro conclusivo] Após essas palavras, um ruído qualquer me acordou, e tudo desapareceu. Fiquei transtornado. Parecia-me ter as mãos doloridas pelos socos que desferira e doer-me o rosto pelos tapas recebidos; além disso, Aquele Personagem, a Senhora, as coisas ditas e ouvidas de tal modo me encheram a cabeça que naquela noite não pude mais conciliar o sono. De manhãzinha contei logo o sonho, primeiro aos meus irmãos, que se puseram a rir, depois à mamãe e à vovó. Cada um dava o seu palpite. O irmão José dizia: «Vais ser pastor de cabras, de ovelhas e de outros animais». Mamãe: «Quem sabe se um dia não serás sacerdote». Antônio, secamente: «Chefe de bandidos, isso sim». Mas a avó que, de todo analfabeta, entendia muito de teologia, deu a sentença definitiva: «Não se deve fazer caso dos sonhos». Eu era do parecer de minha avó, todavia não pude nunca tirar aquele sonho da minha cabeça. O que vou doravante expor dará a isso alguma explicação. Mantive-me sempre calado; meus parentes não lhe deram importância. Mas quando, em 1858, fui a Roma para falar com o Papa sobre a Congregação Salesiana, ele me fez contar pormenorizadamente tudo quanto tivesse ainda que só a aparência de sobrenatural. Contei então pela primeira vez o sonho que tive na idade de 9 a 10 anos. O Papa mandou-me escrevê-lo literalmente e com pormenores, e deixá-lo como estímulo aos filhos da Congregação, a qual era precisamente o objetivo de minha viagem a Roma.
O mesmo sonho será repetido várias vezes na vida de Dom Bosco; ele mesmo, que narrou nas suas Memórias aquele primeiro evento – cujo bicentenário estamos a celebrar – relata em várias ocasiões, muitos anos depois, aquilo que sonhara. Na verdade, o sonho dos 9 anos não é um sonho isolado, mas faz parte de uma sequência prolongada e complementar de episódios oníricos na vida de Dom Bosco. Ele mesmo conecta, integrando-os, três sonhos fundamentais: o de 1824 (nos Becchi), o de 1844 (no Colégio Eclesiástico) e o de 1845 (nas obras da Marquesa di Barolo); encontram-se neles alguns elementos de continuidade e outros, de novidade, mas sempre se reconhece, em filigrana, o primeiro quadro e a cena da «área bastante espaçosa» dos Becchi, embora com novos detalhes, reações e mensagens ligados à estação da vida, não mais a de João de nove anos, mas a de Dom Bosco no pleno desenvolvimento da sua missão.
Em outra ocasião, muitos anos depois, em 1875, já aos sessenta anos, é o próprio Dom Bosco quem conta o sonho ao P. Barberis. Nessa época, Dom Bosco já assistira ao nascimento da Congregação Salesiana (18 de dezembro de 1859), da Arquiconfraria de Maria Auxiliadora (18 de abril de 1869), do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (5 de agosto de 1872) e da Pia Sociedade dos Cooperadores Salesianos – nome original dado por Dom Bosco –, aprovada em 9 de maio de 1876.
Quando o sonho aconteceu pela última vez, Dom Bosco era, como eu já disse, um homem maduro: vivera muitas situações, enfrentara e superara muitas dificuldades, vira com seus olhos o que a Graça e o Amor da Virgem Maria operaram em seus meninos, vira muitos milagres da Providência e sofrera não pouco. «´Um dia tudo compreenderás`, profetizara-lhe o primeiro sonho; e em 1887, na missa de consagração do templo do Sagrado Coração em Roma, ele ouviu aquela voz ecoando em seus ouvidos e chorou de alegria, chorou ao contemplar os admiráveis efeitos da sua fé invicta».[8]

2. UM SONHO AO QUAL TODOS OS REITORES-MORES SE REFERIRAM
Chama particularmente a minha atenção o fato de todos os Reitores-Mores, à exceção do P. Rua, de quem não consegui nenhuma citação, se referirem ao sonho, a este sonho de Dom Bosco que marcou a nossa Congregação e a Família Salesiana. Valho-me neste momento de um magnífico trabalho de pesquisa feito pelo Sr. Marco Bay.[9]
O P. Paulo Álbera, segundo sucessor de Dom Bosco, referindo-se ao Oratório de Valdocco como o Oratório de Dom Bosco, a Obra primeira e por muitos anos única, refere-se ao Sonho como o misterioso sonho em que a Providência lhe confia a missão:
«A primeira Obra de Dom Bosco, na verdade por muitos anos a única, foi o Oratório Festivo, o seu Oratório Festivo, já vislumbrado por ele no misterioso sonho que teve aos nove anos e nos subsequentes que progressivamente ilustraram a sua mente sobre a Obra da Providência a ele confiada».[10]
O P. Filipe Rinaldi, terceiro sucessor de Dom Bosco, é quem teve a oportunidade de viver o primeiro centenário do sonho, e pretende que a Congregação inteira fique impregnada da graça de viver esse evento. Por isso, ele assim incentiva:
«[…] Na minha circular sobre o Jubileu das nossas Constituições já vos mencionei, meus queridos filhos, o centenário do primeiro sonho de Dom Bosco, convidando-vos a meditar sobre esse sonho e praticá-lo. (…) Releiamos juntos, meus queridos filhos, a página escrita para nossa instrução pelo venerável Pai, em obediência ao Vigário de Jesus Cristo; sim, releiamo-la com grande veneração e fixemos em nossas mentes, palavra por palavra, essa página que nos descreve evangelicamente a origem sobrenatural, a natureza íntima e a forma específica da nossa vocação. Quanto mais for lida, mais nova e luminosa ela será».[11]
No mesmo texto, o P. Rinaldi faz os irmãos entenderem que, assim como Dom Bosco foi chamado para uma missão com o sonho dos nove anos, também nós fomos chamados sob a guia da Santíssima Virgem. E, conduzidos com bondade pela sua mão, a mesma Virgem Santíssima mostra-nos o campo da nossa ação e estimula-nos de mil maneiras a adquirir os dons da humildade, da fortaleza e da saúde. Compreendemos perfeitamente que ele aplica para nós o mandato de ser fortes, humildes e robustos que a Senhora do sonho deixou a Joãozinho Bosco.
«Nós também recebemos o mandato de adquirir os meios necessários para pôr esse método em prática, ou seja, a obediência e a ciência, sob a guia da Virgem, o que fizemos (ou estamos a fazer) durante os anos da nossa formação religiosa e sacerdotal. Durante todos esses felizes anos, a Santíssima Virgem também nos tomou com bondade pela mão e, indicando-nos o futuro campo da nossa ação, estimulou-nos, de todas as maneiras, à aquisição da humildade, da fortaleza e da saúde, qualidades estritamente necessárias a todo verdadeiro filho de Dom Bosco. Nós também veremos multidões de jovens, antes completamente ignorantes das coisas de Deus, e talvez já vítimas infelizes do mal, correrem iluminados, curados e alegres para celebrar Jesus e Maria Santíssima Auxiliadora».[12]
E, quase como um incentivo para celebrar este bicentenário de maneira grandiosa e significativa, cito o Boletim Salesiano da época do Padre Rinaldi, que relata a celebração em Roma que ocorreu na sua presença:
«Por um sonho – escrevia o Corriere d’Italia em 2 de maio passado –, pela beleza ideal de um sonho, milhares de almas que anseiam e aplaudem reuniram-se ontem no grande pátio das Obras de Dom Bosco em Roma com o venerando missionário Cardeal Cagliero, o próprio sucessor de Dom Bosco, P. Rinaldi, e o ministro da Instrução Pública, Pedro Fedele, para prestar uma homenagem sincera ao incomparável Mestre que, na humildade luminosa da Fé, seguira os caminhos irradiantes daquele sonho sublime.
Uma coroa viva de jovens, de meninos e de meninas, alunos de Dom Bosco; uma multidão de homens de todas as classes – trabalhadores, professores, soldados, sacerdotes – todos reunidos em nome do doce Mestre. (…)
Há cem anos (outro Ano Santo, por que esquecer?), Dom Bosco, ainda criança, sonhava o doce e misterioso sonho; ele via, primeiramente, um grupo de meninos de rua brigando uns com os outros, blasfemando e praguejando; e, com um bastão, tentava chamá-los à ordem; em seguida, via uma Senhora e um Senhor que o conduziam a outro grupo, agora de animais, cães e gatos que também brigavam, latindo e zombando – mas, a um sinal arcano dos Dois, transformaram-se em rebanho de pacíficos cordeiros…
Depois de cem anos, este sonho é uma realidade – esplêndida, palpitante, grandiosa –, uma história admirável que já reveste o destino de milhões de criaturas nas Escolas, nas Missões, na vida, na oração, na esperança; todas as criaturas que saudaram e saúdam Dom Bosco, o maior e mais santo mestre de vida que a Igreja e a Itália deram ao mundo em nosso século…».
[13]
O P. Pedro Ricaldone, quarto sucessor de Dom Bosco, vê o germe do Oratório Festivo e de toda a obra salesiana no sonho de Joãozinho aos nove anos de idade. Seguiram-se muitas outras etapas, diz o Padre Ricaldone, muitas estações de uma peregrinação, antes de chegar à casa Pinardi, um terreno seu.
«Não há dúvida de que a primeira semente do Oratório Festivo e de toda a Obra Salesiana deve ser encontrada, como disse há pouco, no sonho profético que Joãozinho teve aos nove anos. Desde então, a Senhora de aspecto majestoso falou ao pastorzinho dos Becchi: “Eis o teu campo. Torna-te humilde, forte, robusto; e o que agora vês acontecer a esses animais, tu deverás fazê-lo aos meus filhos”.
Os Becchi, Moncucco, Castelnuovo, Chieri, são muitas outras etapas e Joãozinho Bosco está apenas a caminho, caminhando para outro objetivo. 8 de dezembro de 1841 é, mais do que um ponto de chegada, outro ponto de partida. Ele deve fazer outras peregrinações antes de chegar ao telheiro Pinardi, a Valdocco, à sua terra prometida. Para voltar à primeira imagem, a pequena e tenra planta encontrou finalmente o seu terreno; de agora em diante, nós a veremos crescer mais forte e maior do que todas as previsões humanas».
[14]
O P. Ricaldone considera até mesmo que o amor e o zelo de Dom Bosco pelas vocações também têm sua origem no sonho dos nove anos:
«O amor e o zelo de Dom Bosco pelas vocações têm a sua primeira origem no sonho profético que ele teve aos nove anos e que se reproduziu de modos substancialmente uniformes por quase vinte anos. (…) De fato, depois daquele sonho, cresceu em João o desejo de estudar para tornar-se sacerdote e consagrar-se à salvação dos jovens».[15]
O P. Renato Ziggiotti, quinto sucessor de Dom Bosco, também evidencia de modo muito particular o grande dom que a Mestra foi para Dom Bosco, pois é o próprio Senhor quem oferece a Joãozinho a sua Mãe, sobretudo como guia. Assim ele se expressa:
«´Eu te darei a Mestra, sob cuja disciplina poderás tornar-te sábio, e sem a qual toda sabedoria se converte em estultice`, é a palavra profética do primeiro sonho, pronunciada pelo personagem misterioso, ´o Filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia`. É Jesus, então, quem dá a Dom Bosco a própria Mãe como Mestra e guia infalível no difícil caminho da sua vida. Como podemos ser suficientemente gratos por esse extraordinário dom feito do Céu à nossa Família?».[16]
E Ela, a Mãe, Nossa Senhora, a Senhora do sonho, será tudo para Dom Bosco. Essa certeza era muito forte e abrangente no P. Ziggiotti que o levava a pretender de cada salesiano:
«Nossa Senhora, a quem ele foi consagrado por sua mãe ao nascer, que iluminou o seu futuro no sonho dos nove anos e depois voltou a confortá-lo e aconselhá-lo de mil maneiras nos sonhos, no espírito profético, na visão interior do estado das almas, nos milagres e graças sem conta que ele operou ao invocá-la; Nossa Senhora é tudo para Dom Bosco; e o salesiano que quiser adquirir o espírito do Fundador deve imitá-lo nessa devoção».[17]
Também o P. Luís Ricceri, sexto sucessor de Dom Bosco, tem algumas expressões admiráveis sobre o significado do sonho dos nove anos. Ele evidencia a importância do sonho para Dom Bosco, a ponto de ficar gravado em seu coração e em sua mente para sempre, e como ele se sentiu chamado por Deus:
«´O sonho dos 9 anos. É o sonho – escreve Dom Bosco nas suas Memórias – que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida` (Memórias do Oratório, p. 29). A impressão indelével deste sonho-visão deve-se ao fato de ter sido como um clarão repentino que esclareceu o significado da sua jovem existência e traçou o seu caminho. Como o pequeno Samuel, Dom Bosco sentiu-se chamado e enviado por Deus para uma missão: salvar os jovens de todos os lugares, de todos os tempos, dos países cristãos e a “multidão” dos que vivem em regiões não cristãs, que ainda estão na expectativa do grande advento do Senhor».[18]
Este é o sonho, diz o Padre Ricceri, em que Dom Bosco, ainda sem plena clareza devido à pouca idade, intui o grande valor de viver para salvar as almas, e essa convicção toma sempre mais forma em sua vida, em sua mente e em seu espírito como dom da graça. E foi por meio desse evento decisivo em sua vida que ele teve a primeira grande intuição daquele que seria no futuro o Sistema Preventivo. «Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar esses teus amigos», escreve Dom Bosco ao narrar o evento, tendo-o ouvido dos lábios da Senhora. Tanto que, no futuro, se poderá falar de uma relação preciosa entre Dom Bosco e a Mãe do Senhor. Assim expressa-se de modo muito belo o P. Ricceri:
«A partir deste sonho, estreita-se entre Dom Bosco e a Mãe de Jesus aquela relação de mão dupla, aquela colaboração permanente, que caracteriza a vida do futuro apóstolo…».[19]
O P. Egídio Viganò, sétimo sucessor de Dom Bosco, oferece-nos outras reflexões não menos estimulantes. Fico feliz ao ver essa magnífica linha de continuidade entre todos os Reitores-Mores quando leem, meditam e interpretam o sonho por excelência, obtendo dele intuições úteis para o momento presente. O P. Viganò confirma, como outros sucessores de Dom Bosco antes dele, que Maria é a verdadeira inspiradora, a Mestra e guia da vocação de João, a vocação do nosso Pai Dom Bosco.
«Parece-me particularmente interessante observar que já aos 9 anos, no famoso sonho (que se há de repetir várias vezes e ao qual Dom Bosco atribui particular incidência na sua vida), Maria se apresente à sua consciência de fé como uma personagem importante interessada diretamente num projeto de missão para a sua vida; é uma Senhora que demonstra particulares preocupações “pastorais” para com a juventude; de fato, ela: apresentou-se a ele “à maneira de uma Pastorinha”. Notamos logo, aqui, que não é Joãozinho que escolhe Maria, mas que é justamente Maria que toma a iniciativa da escolha: a pedido do seu Filho, será a Inspiradora e a Mestra da sua vocação».[20]
A maravilhosa experiência vivida por João faz com que ele tenha um sentido assaz profundo e íntimo de uma relação muito pessoal de Maria (a Senhora do sonho) com ele, e assim, em seu coração e em sua alma, Dom Bosco sentirá durante toda a vida, e sempre mais, um carinho e afeto muito especial e grande por Maria. Trata-se de fato de uma relação realmente particular com a Virgem.
O P. Juan Edmundo Vecchi, oitavo sucessor de Dom Bosco também nota que, como Dom Bosco estava convencido de ter sido enviado aos jovens, tudo há de ser focado nessa única sagrada finalidade, e a eles deve dedicar todas as suas energias:
«Esse é o fio condutor da narração que Dom Bosco, faz da sua vida nas Memórias do Oratório desde o primeiro sonho: “O Senhor enviou-me para os jovens, por isso é preciso que eu me poupe nas outras coisas estranhas e conserve a minha saúde para eles”,[21] sempre convencido de que é instrumento do Senhor e toda a sua vida seja marcada por esse chamado e missão entre os jovens. Outro grande especialista em Dom Bosco no-lo confirma: “A certeza de ser um instrumento do Senhor para uma missão muito especial era nele profunda e sólida. Isso fundamentava nele a atitude religiosa característica do servo bíblico, do profeta que não pode subtrair-se da vontade divina”».[22]
Enfim, o P. Pascual Chávez, nono sucessor de Dom Bosco, em meio a uma riqueza de textos, oferece-nos um que me comove. Trata-se de um hino à figura materna de Mamãe Margarida, que, com a graça de Deus, acompanhou o crescimento de Joãozinho e interpretou e intuiu no sonho dos nove anos que, talvez, o Senhor e a Virgem estivessem chamando o seu filho para uma vocação muito especial. Poder-se-ia falar de Mamãe Margarida, diz o P. Pascual, como uma verdadeira educadora “salesiana”.
«Foi essa arte educativa que permitiu à Mamãe Margarida identificar as energias ocultas em seus filhos, trazê-las à luz, desenvolvê-las e entregá-las quase visivelmente em suas mãos. Isso é especialmente verdadeiro com relação ao seu fruto mais rico: João. Como é impressionante notar em Mamãe Margarida esse consciente e claro senso de “responsabilidade materna” ao acompanhar o próprio filho de maneira cristã e próxima, deixando-o em sua autonomia vocacional, mas acompanhando-o ininterruptamente em todas as etapas da sua vida até a sua própria morte!
O sonho que Joãozinho teve aos nove anos, se foi revelador para ele, certamente também o foi (se não antes) para Mamãe Margarida; foi ela quem teve e manifestou a interpretação: “Quem sabe se um dia não serás sacerdote?”. E alguns anos mais tarde, quando percebeu que o ambiente em casa era negativo para João devido à hostilidade de seu meio-irmão Antonio, ela fez o sacrifício de mandá-lo trabalhar como ajudante no sítio dos Moglia, em Moncucco. Uma mãe que se priva de um filho muito jovem para mandá-lo trabalhar a terra longe de casa faz um verdadeiro sacrifício, mas ela o fez, não apenas para eliminar um dissídio de família, mas também para guiar João pelo caminho que o sonho revelara a ela (e a ele). (…) A Divina Providência concedeu-lhe a graça de ser uma educadora “salesiana”».
[23]

3. O SONHO PROFÉTICO: Uma joia preciosa no carisma da Família de Dom Bosco
Algumas linhas atrás líamos que o P. Filipe Rinaldi convidava os irmãos, e sem dúvida naquele momento, as Filhas de Maria Auxiliadora, os salesianos cooperadores, os devotos de Maria Auxiliadora, e imagino que os ex-alunos e as ex-alunas, a lerem o sonho para aprofundá-lo, interiorizá-lo e sentirem o seu eco no coração. Não tenho dúvidas quanto a isso! Existe certamente unanimidade em todos os tipos de textos – sejam pesquisas históricas, estudos histórico-críticos, reflexões sobre a espiritualidade salesiana ou leituras educativo-pastorais –, de que este sonho é muito mais do que um simples sonho. Ele contém muitíssimos elementos carismáticos que ouso chamá-lo de uma preciosa joia do nosso carisma e um verdadeiro roteiro para a Família de Dom Bosco.
Pode-se realmente dizer que nele nada é supérfluo e nada falta. É a isso que desejo me referir agora.

3.1. Olhando para o Sonho
Para onde olhar neste momento? Em primeiro lugar, para o próprio sonho, pois ele contém uma riqueza carismática surpreendente. Como já disse, não contém uma palavra a mais e também não falta nada. É mais do que evidente o esforço de Dom Bosco na sua redação para nos dizer que não se trata apenas de “um” sonho, mas devemos vê-lo como “o” sonho que marcaria toda a sua vida, embora não pudesse imaginá-lo no momento em que era apenas uma criança. De fato, «Dom Bosco quase aos sessenta anos – sentia-se muito velho e o era para aquele tempo – devia ter-se colocado a questão de dar uma fundamentação histórico-espiritual à sua Congregação, com o objetivo de recuperar as origens providenciais que a justificavam. O que poderia ser melhor do que ´narrar` aos seus filhos como a ´Congregação dos Oratórios`, em sua gênese, desenvolvimento, finalidade e método, foi uma instituição criada por Deus como instrumento para a salvação da juventude nos novos tempos?».[24] De fato, as Memórias do Oratório (MO), onde Dom Bosco narra o sonho, nada mais são do que o sonho desdobrado em sua história de vida, no Oratório e na Congregação. Por isso ele também diz na introdução do seu manuscrito:
«Aqui estou a relatar detalhadamente confidências de família. Poderão servir de luz e proveito à instituição que à Sociedade de São Francisco de Sales dignou-se confiar a Providência divina».[25] E «para que servirá então este trabalho? Servirá de norma para superar as dificuldades futuras, aprendendo as lições do passado; servirá para dar a conhecer como o próprio Deus conduziu todas as coisas a cada momento; servirá de ameno entretenimento para meus filhos quando lerem as aventuras em que andou metido seu pai; e haverão de lê-las com mais gosto quando, chamado por Deus a prestar conta dos meus atos, já não estiver entre eles».[26]
«A narração das Memórias do Oratório (e o sonho dos nove anos como parte delas), tem sido de tal transcendência que envolveu em seu estudo importantes especialistas salesianos durante toda uma vida, colhendo, com o passar dos anos, perspectivas diferentes. Uma demonstração rica e digna de atenção, por exemplo, está nas diversas ênfases que o grande estudioso da pedagogia salesiana, Pietro Braido, fez ao longo de várias décadas. Seria “uma história edificante deixada pelo Fundador aos membros da Sociedade de apóstolos e educadores, que deveriam perpetuar a sua obra e o seu estilo, seguindo as suas diretrizes, orientações e ensinamentos” (1965) ou “uma história do Oratório mais ‘teológica’ e pedagógica do que real, talvez o documento ‘teórico’ de animação mais longamente meditado e desejado por Dom Bosco” (1989); “talvez o livro mais rico de conteúdo e orientações preventivas” que Dom Bosco tenha escrito: um manual de pedagogia e espiritualidade ‘narrada’ em clara perspectiva oratoriana” (1999); ou ainda um texto em que “a parábola e a mensagem” vêm antes e “além da história”, para ilustrar a ação de Deus nas vicissitudes humanas e, assim, alegrando e recriando, “confortar e confirmar os discípulos” em clara perspectiva “oratoriana” (1999)».[27]
Uma das pedras preciosas dessa joia, à qual me refiro, é aquela que permite que nós, que entramos no sonho com coração salesiano, seja qual for o nosso caminho salesiano-cristão ou na Família de Dom Bosco, sejamos questionados em nosso coração: estamos prontos a aprender, estamos dispostos a nos deixar surpreender por Deus que acompanha a nossa vida, assim como guiou a vida de Dom Bosco e a nos sentirmos filhos e filhas diante da imensa paternidade que emana da figura do nosso pai? Porque:
Se não se fizer DISCÍPULO, aluno disposto a aprender, não se conseguirá entrar realmente no espírito das Memórias do Oratório e do sonho.
Se não se fizer mais CRENTE e não se tiver a convicção de que Deus atua na história de Dom Bosco e pessoal de cada um, pouco ou nada entenderá das Memórias do Oratório e do sonho, e tudo não passará de uma “bela história”.
E se não se fizer FILHO ou FILHA, não conseguirá sintonizar-se na frequência habitual com que Dom Bosco comunica tanta paternidade com aquilo que narra neste escrito.
Parece-me que essas três disposições iniciais (fé, filiação e discipulado) são “chaves essenciais” para compreender e assumir, por nós mesmos, o que Dom Bosco narrou e nos deixou como herança espiritual. O que aconteceu em sua vida, que o marcou e iluminou para sempre, Dom Bosco quis que fosse um legado que ajudasse profundamente os seus salesianos e todos nós que, pela graça, nos sentimos e fazemos parte da sua Família.

3.2. Os jovens, protagonistas do sonho…
Desde o primeiro momento do sonho evidencia-se a “missão oratoriana” confiada a Joãozinho Bosco, mesmo que ele não saiba muito bem como agir, nem como expressá-lo. Vemos, porém, que a cena está cheia de meninos, meninos absolutamente reais no sonho de Joãozinho.
Pode-se dizer – parece-me – que os jovens são os protagonistas centrais do sonho e, embora não digam uma palavra, tudo gira ao seu redor; até mesmo os personagens “celestes” e o próprio Joãozinho Bosco estão ali por causa deles. O sonho todo é dos meninos, e para eles. Se excluíssemos os jovens desse sonho, não restaria nada que fosse significativo para a missão.
O interessante, porém, é que os meninos não estão como numa fotografia que fixa a imagem de um determinado momento (e isso certamente nem era possível na época); eles estão em contínuo movimento e ação, quer quando são agressivos (como lobos), quando talvez nem consigam se suportar uns aos outros, quer quando são transformados graças ao milagre do modo de fazer que a Senhora do sonho pede a Joãozinho; com esse modo de fazer, eles serão transformados (como cordeiros) em meninos serenos, simpáticos e cordiais. O mais importante no sonho, que o próprio Dom Bosco aprende e, depois, aprenderão todos os seus seguidores, é a possibilidade do processo de transformação: trata-se de um movimento – permito-me dizer – “pascal”, de mudança e transformação de lobos em cordeiros, de cordeiros em uma – diríamos na linguagem de hoje – comunidade juvenil que celebra Jesus e Maria. Parece-me, certamente, um elemento essencial e central do sonho.

3.3. …onde há um claro chamado vocacional
«Eis o teu campo: torna-te humilde, forte, robusto; e o que vês acontecer aos animais neste momento, deverás fazê-lo para os meus filhos».[28] O que acontece no sonho é, antes de tudo, um chamado, um convite, uma vocação, que parece impossível, inatingível. João Bosco acorda cansado; ele até mesmo chorou; e quando se trata do chamado de Deus (o personagem de aspecto majestoso do sonho é Jesus), a direção que esse chamado pode tomar é imprevisível e desconcertante.
Este chamado é algo muito especial no sonho e de uma riqueza ímpar. Digo-o porque pareceria não haver outro futuro possível e diferente para João a não ser, certamente, viver como um bom agricultor. As causas disso eram a sua idade, a orfandade, a quase total falta de recursos, a pobreza, as contrariedades internas na família, os contrates com o meio-irmão Antonio, as dificuldades de acesso à escola devido a distância e à necessidade do trabalho no campo. Pode parecer-nos um sonho impossível, distante, destinado talvez a outra pessoa, mas não a ele. Mesmo na interpretação familiar do sonho, as palavras da avó parecem confirmá-lo: « Não se deve fazer caso dos sonhos».[29]
Todavia, é exatamente a difícil situação que torna Dom Bosco (no momento, Joãozinho) muito humano, carente de ajuda, mas também forte e entusiasmado. A força de vontade, o caráter, o temperamento, a fortaleza e a determinação de Mamãe Margarita com sua profunda fé e a fé dele mesmo, tornam tudo isso possível. O sonho estará sempre presente, e ele o descobrirá ao longo da vida: fui entendendo, à medida que, pouco a pouco, tudo ia sendo realizado… Não há mágica, não é um sonho de “fadas”, não há predestinação, mas uma vida cheia de significado, de exigências, de sacrifício, mas também de fé e esperança que impulsiona a descobri-la e vivê-la todos os dias.
No sonho, aparece um Homem muito respeitável, de aspecto varonil, que fala com João, questiona-o e coloca-o nas mãos da sua Mãe, a Senhora. Há certamente o envio para uma missão. Uma missão de pastor-educador em que também se indica o método: a mansidão e a caridade. Eis um exemplo da sua resposta vocacional:
«João, fiel desde cedo à inspiração divina, começou a trabalhar no campo que lhe fora indicado pela Providência. Ainda não tinha dez anos e em Murialdo já era um apóstolo entre os conterrâneos. Não será este um Oratório Festivo em linhas gerais, ainda que embrionário, iniciado pelo pequeno João em 1825, servindo-se dos meios compatíveis com a sua idade e instrução? Dotado de memória prodigiosa, amante dos livros, assíduo às pregações, ele faz de tudo um tesouro, instruções, fatos, exemplos, para repeti-los ao seu pequeno público, instilando com admirável eficácia o amor pela virtude em todos aqueles que vêm admirar a sua habilidade nos jogos e ouvir a sua palavra infantil, mas calorosa».[30]

3.4. Ela, Maria, marcará para sempre o sonho de Joãozinho e a vida de Dom Bosco
Chegamos ao momento central do sonho: a mediação materna da Senhora (ligada ao mistério do nome). Para Joãozinho Bosco, a sua mãe e a Mãe d’Aquele que ele saúda três vezes ao dia serão um espaço de humanidade onde repousar, onde encontrar segurança e abrigo nos momentos mais difíceis.
«”Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, e sem a qual toda sabedoria se converte em estultice”. De fato, é Ela que indica tanto o campo onde deverá trabalhar como também a metodologia a utilizar: “Eis o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte, robusto”. Maria é interpelada, desde o início, para o nascimento de um novo carisma, pois é justamente a sua especialidade carregar e dar à luz; por isso, quando se trata de um Fundador, que deve receber do Espírito Santo a luz original do carisma, o Senhor dispõe que seja a sua própria Mãe, a Virgem de Pentecostes e modelo imaculado da Igreja, a ser a sua Mestra. Somente Ela, a “cheia de graça”, compreende todos os carismas a partir de dentro, como uma pessoa que conhece todas as línguas e as fala como se fossem suas».[31]
E o que o Senhor do sonho diz ao jovem Joãozinho Bosco é como se lhe dissesse: “De agora em diante, entende-te com Ela”.
«Notamos logo que não é Joãozinho que escolhe Maria, mas é justamente Maria que toma a iniciativa da escolha: a pedido do seu Filho, será a Inspiradora e a Mestra da sua vocação».[32]
Esta dimensão feminino-materno-mariana talvez seja uma das dimensões mais desafiadoras do sonho. Quando olhamos para a realidade com serenidade, esse aspecto se transforma em algo belo. É o próprio Jesus que lhe dá uma Mestra, que é a sua Mãe, e quanto ao “seu nome deve perguntar para Ela”; Joãozinho deve trabalhar “com os seus filhos”, e será “Ela” que cuidará da continuidade do sonho na vida e o levará pela mão até o fim de seus dias, até o momento em que ele realmente “tudo compreenderá”.
Há uma enorme intencionalidade em querer dizer que, no carisma salesiano em favor dos meninos e das meninas mais pobres, carentes e sem afeto, a dimensão de lidar com a “doçura”, com a mansidão e a caridade, assim como a dimensão “mariana”, são elementos indispensáveis para quem deseja viver esse carisma. A Virgem tem a ver com a formação na “sabedoria do carisma”. Por isso, é difícil entender que no carisma salesiano haja alguém (pessoa, grupo ou instituição) que deixe a presença mariana em segundo plano. Sem Maria de Nazaré, fala-se de outro carisma, mas não do carisma salesiano, nem dos filhos e das filhas de Dom Bosco.
O P. Ziggiotti o diz de maneira admirável na pesquisa que fizemos dos comentários dos Reitores-Mores sobre o sonho:
«Gostaria de persuadir todos os salesianos deste fato muito importante, que ilumina toda a existência do Santo com a luz celeste e, portanto, dá um valor indiscutível a tudo o que ele fez e disse em sua vida: Nossa Senhora, a quem ele foi consagrado por sua mãe ao nascer, que iluminou o seu futuro no sonho dos nove anos e depois voltou para confortá-lo e aconselhá-lo, sob mil formas, nos sonhos, no espírito profético, na visão interior do estado das almas, nos milagres e nas graças sem número, que ele operou invocando-a; Nossa Senhora é tudo para Dom Bosco; e o salesiano que quiser adquirir o espírito do Fundador deve imitá-lo nessa devoção».[33]

3.5. Dócil ao Espírito, confiando na Providência

Certamente, há muito a aprender. Tornar-se humilde, forte e robusto significa preparar-se para o que nos espera. João Bosco deverá ser obediente, dócil à sabedoria do Mestre. Terá de aprender a ver e a descobrir os processos de transformação; a entender que o caminho feito com esses meninos leva à vida e ao encontro com o Senhor do sonho e com a sua mãe, leva a Jesus e Maria. João Bosco descobriu tudo isso.
O que está em jogo é a obediência a Deus, a docilidade ao Espírito. Assim como Maria é aquela do “faça-se”, permitindo que aconteça nela o que Deus pensou e sonhou, a ponto de proclamar, a partir do seu “fiat” a Deus, que o Senhor fez em mim grandes coisas, assim também o salesiano, a filha de Maria Auxiliadora, cada salesiano cooperador, cada devoto de Maria Auxiliadora, cada membro da nossa Família Salesiana, que é a Família de Dom Bosco, deverá aprender e tornar próprio este estilo de docilidade ao Espírito. Acrescento que gostaria que este estilo se tornasse carne e vida em todas as etapas da formação inicial e permanente de cada grupo, congregação e instituição salesiana. E não nos esqueçamos de que os “formadores”, as “formadoras”, deveriam ser, deveríamos ser os primeiros a “deixar-nos formar” pelo Espírito, como Maria.
O sonho oferece, como nenhum outro elemento, como nenhuma outra realidade, o que acredito possa ser chamado de pistas “irrenunciáveis” do DNA do carisma. São essas pistas ou “princípios” que nos podem ajudar a ler, discernir e agir hoje em sintonia com a fidelidade criativa.
E não nos esqueçamos de que essa é uma tarefa comunitária: devemos realizá-la juntos, como Família Salesiana, “de modo sinodal” – poderíamos dizer hoje –, alinhados com os recentes trabalhos sinodais.
Acompanhar Dom Bosco na reflexão sobre o seu sonho aos nove anos é também evidenciar o seu abandono à Providência, colocar-nos, como ele, naquele «a seu tempo tudo compreenderás». O sonho foi para Dom Bosco uma ação da Providência. Essa é a sua convicção radical, a opção fundamental de vida, “a essência da alma de Dom Bosco”, o ponto central, o mais profundo e íntimo. Não resta dúvida de que o abandono à Divina Providência, como aprendeu de sua mãe, foi decisivo para o nosso pai e deve ser para nós a garantia da continuidade da espiritualidade salesiana. É o abandono em Deus, a confiança em Deus, porque o Deus que Dom Bosco aprendeu a amar é um Deus confiável. Ele realmente atua na história, e o fez na história do Oratório, a ponto de Dom Bosco dizer aos diretores salesianos em 2 de fevereiro de 1876:
«As outras Congregações e Ordens Religiosas tiveram em seu início alguma inspiração, alguma visão, algum fato sobrenatural que deu impulso à fundação e garantiu o seu estabelecimento; mas para a maioria a coisa permaneceu em um ou alguns desses fatos. Aqui entre nós, no entanto, as coisas acontecem de maneira bem diferente. Pode-se dizer que não há nada que não tenha sido conhecido antes. Nenhum passo foi dado pela Congregação sem ser aconselhado por algum fato sobrenatural; nenhuma mudança, aperfeiçoamento ou ampliação que não tenha sido precedida por uma ordem do Senhor… Nós, por exemplo, poderíamos ter escrito todas as coisas que nos aconteceram antes que acontecessem e tê-las escrito minuciosamente e com precisão».[34]

3.6. Mas, «não com pancadas». A arte da doçura e a paciência educativa
O sonho fala-nos não só de um passado, mas também nos transporta para um presente, um hoje, que é extremamente atual. O «não com pancadas» que Nossa Senhora diz a Joãozinho também nos desafia hoje e torna mais necessário do que nunca pensar em nosso modo salesiano de educar os jovens, porque aumenta sempre mais o discurso do ódio e da violência. O nosso mundo vai se tornando sempre mais violento e nós, educadores e evangelizadores dos jovens, devemos ser uma alternativa àquilo que tanto angustiou Joãozinho no seu sonho e que hoje tanto nos pesa. Como declarou certa vez o Reitor-Mor P. Pascual Chávez, na Estreia de 2012,[35] devemos, sem dúvida, “enfrentar os lobos” que querem devorar o mundo: o indiferentismo, o relativismo ético, o consumismo que distorce o valor das coisas e das experiências, as falsas ideologias e outras coisas que realmente nos atingem e são verdadeira violência.
Acredito que esta mensagem é tão relevante hoje quanto era quando Joãozinho (o nosso futuro Dom Bosco, pai e mestre) a recebeu.
O «não com pancadas» é um não “absoluto”. É muito claro, e é a única correção, quase uma reprimenda, poderíamos dizer, que João Bosco recebe no sonho. E, antes de tudo, é para nós uma certeza, a grande certeza de que pelo caminho da força e da violência não se vai na boa direção do carisma. As pancadas do sonho podem assumir hoje milhares de formas. Por isso, interessei-me em ler, pensar e detalhar muitas das formas mais ou menos sutis de violência que nos rodeiam e devem ser banidas do nosso mundo salesiano educativo, pastoral, curativo e evangelizador.
Para nós o «não com pancadas» significa combater conscientemente, sem nenhum tipo de justificativa, todo tipo de violência:
Violência física, que prejudica o corpo (violência que dá empurrão, chute, tapa, encurrala ou imobiliza, que atira objetos).
Violência psicológica e verbal, que prejudica a autoestima. Violência que insulta e desqualifica, isola, monitora e controla sem respeito. Violência e abuso psicológico que faz com que algumas pessoas sintam que nunca dão o suficiente de si mesmas; violência que leva as pessoas a sempre se considerarem diferentes e erradas, até mesmo imaturas por pensarem honestamente o que pensam; violência e abuso da parte de quem só se interessa pelo outro quando quer tirar proveito disso.
Violência afetivo-sexual, que prejudica o corpo, o coração e os afetos mais íntimos; que deixa rastros indeléveis de dor. E pode manifestar-se verbalmente ou por escrito, com olhares ou sinais que denotam obscenidade, assédio, bullying e até mesmo abuso.
Violência econômica, quando o dinheiro que serve para fazer o bem é retido, desviado, roubado.
Violência também cibernética (“ciberbulismo” com assédio através da internet, de sites, blogs, mensagens de texto ou e-mails, vídeos).
Violência que nasce da exclusão social de pessoas, alunos, adolescentes excluídos ou humilhados em público sem nenhum respeito.
Violência, enfim, caracterizada por maus-tratos, por verbos como ameaçar, manipular, desvalorizar, negar, questionar, humilhar, insultar, desqualificar, zombar, mostrar indiferença.
Não resta dúvida de que, carismaticamente, possuímos o antídoto para essas situações que prejudicam a vida. É o gênio pastoral de Dom Bosco: «Lembrando, também, que a intervenção de Maria no primeiro sonho de Joãozinho Bosco configurou de início a “índole apostólica” que nos caracteriza na Igreja, convido-vos a juntos concentrarmos a nossa reflexão sobre o projeto que caracteriza a nossa peculiar feição pastoral: o Sistema Preventivo».[36]

3.7. ELA, a Senhora: Mestra e Mãe
A Senhora do sonho é apresentada como Mestra e Mãe. Ela é a Mãe de ambos, do Homem venerando do sonho e do próprio Joãozinho; Mãe – permitam-me a paráfrase – que, tomando-o pela mão, lhe diz:
«Olha»: o importante para nós é saber olhar, e é grave quando não somos capazes de «olhar» os jovens em sua realidade, naquilo que são; incapazes de ver o que há de mais autêntico neles e o mais trágico e doloroso deles e de suas vidas. “Olha” é a primeira palavra dita pela «Senhora de aspecto majestoso, vestida de um manto todo resplandecente, como se cada uma de suas partes fosse fulgidíssima estrela» e que Dom Bosco escreve como primeira palavra que ouve Dela no sonho.
Sem querer “interpretar” demais um único verbo, parece-me que há um sinal “preventivo” do que será, de fato, o caminho que o nosso pai irá percorrer, feito sobretudo de aprendizagem experiencial. Pensemos no quanto contam os olhos na vida de Dom Bosco… É o que ele vê quando chega a Turim – ou melhor, o que Cafasso o ajuda a ver – dando origem à nossa missão. É como cada menino (recordemos os primeiros encontros nas biografias que escreveu): ali está o incipit que é como um milagre ao qual se segue todo o resto, seja para Sávio, para Magone, para Cagliero, para Rua… Há no museu de Chieri uma escultura representando os olhos e os olhares de Dom Bosco, que ficara ao lado do seu altar em 1988. Há algo de único em seu olhar e aquele «olha», dito pela Senhora não é, à sua maneira, menos original e único.
É exatamente em torno desse “olhar” que se pode encontrar uma referência explícita a uma palavra tão fundamental para nós como assistência. E todos nós sabemos o quanto ela é essencial.
A minha atenção, no entanto, não se afasta muito do prado dos sonhos nos Becchi, porque, de fato, sem que Joãozinho perceba, ele será formado eminentemente pela experiência: aprenderá com a vida, especialmente nos momentos de extrema dificuldade e cansaço.
Olha leva a pessoa a descentrar-se, a compreender algo que vai além do próprio horizonte e ultrapassa a própria imaginação, e se torna um convite, um desafio, uma provocação, um apelo e um guia. Porque exige um envolvimento total e completo mediante o qual João se prodigalizará pelo bem dos jovens. A partir disso, também se compreende a importância do ambiente em toda a pedagogia salesiana.
Nada é tirado do cuidado indispensável da interioridade, do silêncio. Somos chamados a elevar o nosso olhar, tanto quando o fixamos no mistério de Deus, como quando passamos pelo homem que desceu de Jerusalém a Jericó e caiu nas mãos de bandidos.
«Aprende», ou seja, torna-te humilde, forte e robusto, porque precisarás de simplicidade (diante de tanta soberba), fortaleza (diante de tanta coisa que deves enfrentar na vida) e aquela robustez que é resiliência (ou capacidade de não se deixar abater, de não deixar baixar os braços como sinal de que nada se pode fazer).
Parece-me formidável ver que aquilo que o torna “doce” (humilde, forte, robusto) são os eventos (a experiência) que a Providência (Maria) coloca no seu caminho…, logo a partir do que lhe acontece algum tempo depois do sonho, quando, em fevereiro de 1828 (ele tinha apenas 12 anos), Margarida deve afastá-lo de casa por causa das desavenças com Antonio. Chega à noite no sítio dos Moglia, onde o aceitam mais por piedade do que por necessidade real – no inverno não se contratavam ajudantes –, longe o suficiente para ser a última porta onde bater, mas ao mesmo tempo perto o suficiente de Moncucco aonde ia aos domingos de manhã; ali vivia um dos melhores párocos da diocese de Turim, o P. Francisco Cottino (sobre quem a nossa literatura salesiana ainda fala muito pouco). Com ele, João encontra-se todos os domingos. É o primeiro “cara a cara”, o primeiro encontro com um verdadeiro guia. Assim, uma temporada que só poderia ser triste e sombria torna-se uma ocasião muito importante para o seu caminho. Sabemos que em 3 de novembro de 1829 o tio Miguel o levará de volta à família, aos Becchi. E que, em 5 de novembro, voltando da missão em Buttigliera, encontrará o P. Calosso.
Acredito ser muito importante evidenciar com toda a força o quão incrível é a direção-acompanhamento da Providência. João corresponde entregando-se livremente com todo o seu ser enquanto acontecimentos e pessoas que se sucedem no momento certo são os artífices daquele «humilde, forte e robusto» indispensável para a missão que, entretanto, amadurece sempre mais.
É evidente o primado da Graça, que se aplica primeiramente a nós, se formos capazes de nos deixar formar, e torna-se muito frutuoso para a missão. Assim, não há mais limites ou dificuldades que impeçam o crescimento em vista da plenitude da vida, da santidade, seja qual for o contexto, mesmo o mais desafiador.
Obviamente, tudo isso não exime de fazer todos os esforços para melhorar as situações e superar as injustiças. De fato, Dom Bosco se “aliará” à Providência sem limitar os seus esforços, os encontros, a redação de “contratos de trabalho” para defender e proteger (e é o primeiro a fazê-lo!) os jovens aprendizes acolhidos no seu primeiro Oratório. Acima de tudo, não lhes tira o céu! Indicando que sempre há “algo a mais”, um objetivo maior ao qual todos podem ter acesso.
Lição análoga foi sugerida por Madre Teresa de Calcutá com a sua incansável dedicação aos moribundos de Calcutá. A propósito, em um cartaz que ela escreveu à mão e pendurou em seu quarto no início da sua nova vida para os mais pobres dos pobres, ela fixou em preto e branco estas palavras: “Da mihi animas cetera tolle”.
«E sejam pacientes», ou seja, demos tempo a tudo e deixemos que Deus seja Deus.

4. UM SONHO QUE FAZ SONHAR
Queridos membros da Família Salesiana, não poderia concluir estas páginas que nos aproximam do segundo centenário do “sonho dos 9 anos” sem expressar alguns sonhos que trago no coração para os jovens e para todos nós. Podem identificar-se com nobres desejos de continuar a crescer na fidelidade carismática; ou com o anseio e a provocação serena diante de mudanças que nos são difíceis, resistências que podem tirar o brilho do nosso carisma; ou, ainda, com aspirações profundas que desejam traduzir em realidade o sonho de Dom Bosco, embora duzentos anos depois!
Compartilho-os com vocês, na esperança de que quem me ler, em qualquer lugar do vasto mundo salesiano, possa sentir que algo do que está escrito aqui também se destina a ele ou ela. Estes, entre muitos outros possíveis, parecem-me ser alguns elementos concretos para a concretização do sonho dos nove anos:
1. Como Dom Bosco nos mostrou ao longo da sua vida, somente as relações autênticas transformam e salvam. O Papa Francisco diz a mesma coisa: «não é suficiente dispor de estruturas; é preciso que nelas se desenvolvam relações autênticas; efetivamente é a qualidade de tais relações que evangeliza».[37] Por isso, exprimo o meu desejo de que cada casa da nossa Família Salesiana no mundo seja espaço verdadeiramente educativo, espaço de relações respeitosas, espaço que ajude as pessoas a crescerem de modo saudável. Acredito que devemos fazer a diferença porque as relações autênticas estão na origem do nosso carisma, na origem do encontro de Dom Bosco com Bartolomeu Garelli, na origem da mesma vocação de Dom Bosco.
2. Cada opção de Dom Bosco fazia parte de um projeto maior: o projeto de Deus para ele. Por isso, para ele, nenhuma escolha era leviana ou trivial. O seu sonho não foi uma historieta em sua vida ou um simples evento, mas uma resposta vocacional, uma opção, um caminho, um programa de vida que foi tomando forma na medida em que era vivido. Eu sonho ver em todos os salesianos, em todos os membros da nossa Família de Dom Bosco, um grupo de pessoas que, por vocação e escolha, se sente desconfortável no conforto e sente na própria pele a dor, o cansaço e a batalha de tantas famílias e tantos jovens que lutam todos os dias para sobreviver ou viver com um pouco mais de dignidade. E que nenhum de nós seja reduzido a espectador passivo ou indiferente à dor e angústia de tantos jovens.
3. «O sonho primordial, o sonho criador de Deus nosso Pai, precede e acompanha a vida de todos os seus filhos».[38] O nosso Deus tem um sonho para cada um de nós, para cada um dos nossos jovens, um projeto concebido, “desenhado” para nós por Ele mesmo. O segredo da tão desejada felicidade de cada pessoa será justamente descobrir a correspondência e o encontro entre esses dois sonhos: o nosso e o de Deus. Perceber qual é o sonho de Deus para cada um de nós é, antes de tudo, perceber que o Senhor nos deu a vida porque nos ama, para além do que somos, inclusive dos nossos próprios limites. Devemos crer, então, que o nosso Deus quer fazer grandes coisas em cada um de nós! Somos muito preciosos, temos um grande valor, porque, sem cada um de nós, alguma coisa não poderá ser realizada. Na verdade, existirão pessoas que só eu poderei amar, palavras que só eu poderei dizer, momentos que só eu poderei compartilhar.
4. Sem sonhos não existe vida. Para os seres humanos, para todos nós, sonhar é projetar-se, é ter um ideal, um sentido na vida. A pior pobreza dos jovens é não os deixar sonhar, é roubar os seus sonhos ou impor-lhes sonhos pré-fabricados. Cada um de nós é um sonho de Deus! Qual é o meu? Por que Ele me sonhou? É importante descobrir qual é o meu sonho, o sonho que Deus tem para mim. E devemos tentar desenvolvê-lo, realizá-lo, porque a nossa felicidade e a felicidade dos nossos irmãos e irmãs dependem disso.
Recordemos que Dom Bosco naquele 16 de maio de 1887 chorou de comoção e alegria quando “viu realizado” o sonho que definia a sua vida, a sua vocação, a sua missão.
5. Deus faz grandes coisas com “instrumentos humildes” e fala-nos de muitas maneiras, também no fundo do nosso coração, através dos sentimentos que se movem no nosso interior, através da Palavra de Deus aceita com fé, aprofundada com paciência, interiorizada com amor, seguida com confiança. Ajudemo-nos e ajudemos os nossos meninos, meninas e jovens a escutar o próprio interior, a decifrar as moções interiores, a dar voz ao que se agita dentro deles e de cada um de nós, a reconhecer quais sinais ou “sonhos” nos revelam a voz de Deus e quais, ao contrário, resultam de escolhas equivocadas.
6. «As dificuldades e fragilidades dos jovens ajudam-nos a ser melhores, as suas exigências desafiam-nos e as suas dúvidas interpelam-nos sobre a qualidade da nossa fé. E precisamos também das suas críticas, porque, não raro, é através delas que ouvimos a voz do Senhor que nos pede a conversão do coração e a renovação das estruturas».[39] O verdadeiro educador sabe descobrir, com inteligência e paciência, o que cada jovem carrega dentro de si e, como tal, colocará em ação uma boa dose de compreensão e afeto, procurando fazer-se amar.[40] Sonho e anseio todos os dias em poder encontrar em cada casa salesiana do mundo salesianos e educadores leigos que acreditam no milagre transformador da educação salesiana.
7. Viver humanamente é um “tornar-se”, desenvolver-se, desfrutar dos mesmos processos pacientes com que Deus age em nossas vidas. Como desejo que a nossa paixão educativa se assemelhe à de Dom Bosco, pai da amorevolezza salesiana! E desejo-o para que em todas as Presenças da nossa Família Salesiana no mundo os jovens e as jovens possam encontrar não só profissionais capacitados, mas verdadeiros educadores-irmãos-amigos-pais ou mães.
8. Dom Bosco, “padre da rua” ad litteram, consumiu-se literalmente nesse projeto. Os salesianos, e quem se inspira em Dom Bosco, são, de fato, “filhos de um sonhador de futuro”, mas de um futuro que se constrói na confiança em Deus e na inserção cotidiana na vida dos jovens trabalhando por eles, em meio às dificuldades e incertezas de cada dia.[41] Por isso, o dom mais precioso que podemos oferecer aos jovens é o encontro com o Senhor da Vida, ajudando-os a descobrir o próprio sonho, o sonho de Deus para cada um deles, e apoiando-os em seu caminho na realização pessoal. Como eu desejo que isso seja realizado em todas as nossas casas!
9. Enquanto o coração de Dom Bosco batia em cada momento, nós, «convencidos de que cada jovem traz inscrito no coração o desejo de Deus, somos chamados a oferecer as oportunidades de conhecer Jesus, fonte de vida e alegria para todo jovem».[42] Hoje, Dom Bosco não poderia tolerar que nas suas casas, os seus filhos e filhas não propusessem às crianças, aos adolescentes e aos jovens – embora na liberdade com que hoje educamos na fé nos mais variados contextos – o encontro com Jesus. Hoje, também, somos chamados a torná-lo conhecido, a descobrir como Ele fascina cada pessoa ajudando os jovens de outras religiões a serem bons crentes a partir da própria fé e dos próprios ideais. Sonho que isso seja uma realidade em todas as casas salesianas do mundo.
10. «A obra salesiana deve visar em todas as partes os jovens mais pobres e necessitados da Sociedade, e usar com eles os milhares de meios previstos pela caridade. Dom Bosco chorava ao ver tantos jovens que cresciam arruinados e incrédulos; e desejava poder estender os seus cuidados a todos os jovens do mundo – vigiando, admoestando, instruindo, em uma palavra, prevenindo –. (…) Por isso, ao aceitar novas fundações, dava preferência aos lugares onde a juventude se arruinava pelo abandono».[43] Eu realmente sonho ver um dia toda a Congregação Salesiana com a mesma dedicação de Dom Bosco aos seus meninos mais pobres. Sonho ver cada um dos meus irmãos dando a vida com alegria em favor dos últimos. Em muitos casos isso já acontece. Sonho que cada uma das nossas casas esteja cheia daquele «cheiro de ovelha» como o Papa Francisco se referia a cada apóstolo de hoje. E desejo-o também para toda a nossa Família Salesiana: ninguém deve sentir-se isento desse apelo.
11. «A vida de João antes da ordenação presbiteral é deveras uma obra-prima de itinerário para a vocação».[44] O Papa Francisco falando aos jovens sobre a vocação diz: «Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. Por conseguinte, devemos pensar que toda a pastoral é vocacional, toda a formação é vocacional e toda a espiritualidade é vocacional».[45] Como Dom Bosco sempre fez, considero como nosso dever ajudar cada jovem, em todas as nossas propostas, a descobrir o que Deus espera dele, ter ideais que o façam voar alto, dar o melhor de si, desejar viver a vida como dádiva e oferenda.
12. Maria resplandece como mãe e cuidadora. Quando, ainda muito jovem, recebeu o anúncio do anjo, não deixou de fazer perguntas. Quando aceitou e disse “sim”, apostou tudo, arriscando-se. Quando a sua prima precisou dela, deixou de lado os próprios projetos e necessidades e partiu sem demora. Quando a dor do Filho chegou até ela foi a mulher forte que o apoiou e acompanhou até o fim. Mãe e Mestra, Ela olha para este povo de jovens que a busca; mesmo havendo no caminho muito ruído e escuridão, Ela fala no silêncio e mantém acesa a luz da esperança.[46]  Sonho, de verdade, que, fiéis a Dom Bosco, possamos fazer os nossos meninos, meninas e jovens serem apaixonados, não menos do que ele, por esta Mãe, porque «Nossa Senhora é tudo para Dom Bosco; e o salesiano que quiser adquirir o espírito do Fundador, deve imitá-lo nesta devoção».[47]

5. DO SONHO DOS NOVE ANOS AO ALTAR DAS LÁGRIMAS

Estou chegando ao fim. Muitas outras coisas poderiam ser acrescentadas, mas creio que já é o suficiente e seja possível que alguma palavra ou frase possa chegar a cada coração. Se for esse o caso, seria uma notícia muito boa.
Desejo simplesmente convidá-los a fazer um instante de interiorização e contemplação diante deste texto das Memórias Biográficas que descreve, em poucas linhas, como o próprio Dom Bosco explica as suas lágrimas diante do altar de Maria Auxiliadora, na recém-consagrada Basílica do Sagrado Coração; elas deviam-se ao fato de que naqueles momentos ele via e ouvia a sua mãe, os seus irmãos e a sua avó avaliarem o sonho, até mesmo questioná-lo, e ali, nesse instante, sessenta e dois anos depois, ele tudo compreende, como a Mestra lhe dissera no sonho. Comoveu-me profundamente e, por isso, ofereço-o a todos.
«Nada menos de 15 vezes durante o divino sacrifício – anotam as Memórias Biográficas – ele deteve-se, tomado pela emoção e derramando lágrimas. Viglietti, que o ajudava, precisou distraí-lo algumas vezes, para que pudesse continuar. (Tendo-lhe perguntado) o que havia causado tal emoção, ele respondeu: – Tinha viva diante dos olhos a cena de quando pelos dez anos sonhei com a Congregação. Eu realmente via e ouvia minha mãe e meus irmãos questionando o sonho…
Nossa Senhora, então, dissera-lhe: “a seu tempo tudo compreenderás”. Passaram-se sessenta e dois anos de trabalho árduo, de sacrifícios e lutas desde aquele dia, quando um súbito fulgor lhe revelou, na construção da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Roma, o coroamento da missão que lhe fora misteriosamente anunciada no início da sua vida».
[48]
Creio realmente que Maria Auxiliadora continua a ser hoje a verdadeira Mãe e Mestra da nossa Família. Estou convencido de que as palavras proféticas do primeiro sonho, que prometia uma Mestra, continuam a ser uma realidade em todos os lugares onde o carisma do nosso Pai, um dom do Espírito, criou raízes. E tenho certeza de que pode ser aplicado a todas as casas, para além dos nossos cansaços e trabalhos o que Dom Bosco dizia sobre o Santuário de Valdocco:
«Cada tijolo é uma graça de Maria Auxiliadora; não há nada que tenhamos feito sem a sua intervenção direta; Ela construiu a sua casa e é uma maravilha aos nossos olhos».
Ela, Imaculada e Auxiliadora, continue a levar-nos pela mão. Amém.

Turim-Valdocco, 8 de dezembro de 2023

dom Ángel Card. Fernández Artime, S.D.B.
Reitor-Mor


[1] F. Motto, Il sogno dei nove anni. Redazione, storia, criteri di lettura, in «Note di pastorale giovanile» 5 (2020), 6.

[2] P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica. 1. Vita e opere, LAS, Roma 1979, 31s.

[3] P. Chávez V., «Conhecendo e imitando Dom Bosco, façamos dos jovens a missão da nossa vida». ACG 412, p. 40-41.

[4] F. Motto, o.c. ,6.

[5] J. Bosco, Memórias do Oratório de S. Francisco de Sales de 1815 a 1855, Brasília, EDB, 2012, p. 28.

[6] Cf. F. Rinaldi, Carta circular publicada em ACS Ano V – N. 26 (24 de outubro de 1924), 312-317.

[7] G. Bosco, Memorie dell’oratorio di san Francesco di Sales dal 1815 al 1855, in Istituto Storico Salesiano, (saggio introduttivo e note storiche a cura di A. da Silva Ferreira), “Fonti”, serie prima, 4, marzo 1991. Cf. A. Bozzolo, Il sogno dei nove anni, 3.1 Struttura narrativa e movimento onirico in A. Bozzolo (a cura di), I sogni di Don Bosco. Esperienza spirituale e sapienza educativa, LAS-Roma, 2017, p. 235. Obs.: o texto do “Sonho” nesta Estreia é tirado de Memórias do Oratório de São Francisco de Sales. Brasília, Editora EDB, 1979, p. 28ss.

[8] R. Ziggiotti, Tenaci, audaci e amorevoli. Lettere circolari ai salesiani di don Renato Ziggiotti, a cura di Marco Bay, LAS, Roma 2015, 575.

[9] O Salesiano Coadjutor Marco Bay foi professor na Pontifícia Universidade Salesiana de Roma e é em Roma (UPS) o atual diretor do Arquivo Central Salesiano. Ele ofereceu-me generosamente a pesquisa que realizara por iniciativa própria sobre as referências que os Reitores-Mores anteriores fizeram do “Sonho dos 9 Anos”.

Aproveito a oportunidade para também agradecer pelas suas anotações e sugestões ao P. Luis Timossi, sdb, do Centro de Formação Permanente de Quito, e ao P. Silvio Roggia, sdb, diretor da comunidade Beato Zeferino Namuncurá de Roma.

[10] P. Álbera, Lettere Circolari di don Paolo Albera ai salesiani, Direzione Generale delle Opere Salesiane, Torino 1965, 123; 315; 339.

[11] F. Rinaldi, Carta circular, ACS Ano V, n. 26 (24 de outubro de 1924), 312-317.

[12] Ibidem.

[13] La commemorazione di un “sogno”, in BS Ano XLIX, 6 (junho de 1925), 147.

[14] P. Ricaldone, ACS, Ano XVII. 24 de março de 1936, n. 74.

[15] P. Ricaldone, o.c., n. 78.

[16] R. Ziggiotti, Tenaci, audaci e amorevoli. Lettere circolari ai salesiani di don Renato Ziggiotti, a cura di Marco Bay, LAS, Roma 2015, 129.

[17] R. Ziggiotti, o.c., 264.

[18] L. Ricceri, La parola del Rettor Maggiore. Conferenze, Omelie Buone notti, v. 9, Ispettoria Centrale Salesiana, Torino 1978, 27.

[19] Ibid, 28.

[20] E. Viganò, Lettere circolari di don Egidio Viganò ai salesiani, vol. 1, Roma, Direzione Generale Opere Don Bosco, 1996, 10. [Maria renova a Família Salesiana de Dom Bosco, ACG 289, p. 10-11]

[21] MB VII, 291. Citado por J. E. Vecchi, Educatori appassionati esperti e consacrati per i giovani. Lettere circolari ai Salesiani di don Juan E. Vecchi. Introduzione, parole chiave e indici a cura di Marco Bay, LAS, Roma 2013, 380.

[22] P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica. Vol. II, p. 32. Citado por J. E. Vecchi, o.c., 381.

[23] P. Chávez Villanueva, Lettere circolari ai salesiani (2002-2014). Introduzione e indici a cura di Marco Bay. Presentazione di don Ángel Fernández Artime, Roma, LAS, 2021, p. 450. [E Jesus crescia em sabedoria, idade e graça (Lc 2,52), Comentário à Estreia de 2006, in ACG 392]

[24] F. Motto, o.c. 8.

[25] Ibid, 10.

[26] G. Bosco, Memorie dell’Oratorio, citado por F. Motto, o.c. 9.

[27] F. Motto, o.c., 10.

[28] Citado em P. Ricaldone, Ano XVII. 24 de março de 1936, n. 74.

[29] J. Bosco, o.c., p. 30.

[30] P. Ricaldone, Ano XX Novembro–Dezembro de 1939, n. 96.

[31] A. Bozzolo (ed), Il Sogno dei nove anni. Questioni ermeneutiche e lettura teologica, LAS, Roma, 2017, 264.

[32] E. Viganò, Lettere circolari di don Egidio Viganò ai salesiani, vol. 1, Roma, Direzione Generale Opere Don Bosco, 1996, p. 10. [ACG 289, p. 11]

[33] R. Ziggiotti, o.c., 264.

[34] F. Motto, o.c., 7.

[35] Cf. P. Chávez Villanueva, «Conhecendo e imitando Dom Bosco, façamos dos jovens a missão da nossa vida». Primeiro ano de preparação ao Bicentenário do seu nascimento. Estreia de 2012, in ACG 412 (2012), p. 3-44.

[36] E. Viganò, Lettere circolari di don Egidio Viganò ai salesiani, vol. 1, Roma, Direzione Generale Opere Don Bosco, 1996, p. 31. [ACG 290, p. 2]

[37] Sínodo dos Bispos, Os jovens, a fé e o discernimento vocacional. Documento final, n. 128.

[38] Francisco, Christus vivit, Exortação Apostólica Pós-sinodal aos jovens e a todo o povo de Deus, 2019, n. 194.

[39] Sínodo dos Bispos, Os jovens… Documento final, n. 116.

[40] Cf. XXIII Capítulo Geral Salesiano, Educar os jovens na fé. Roma, 1990, n. 99.

[41] Cf. F. Motto, o.c. 14.

[42] R. Sala, Il sogno dei nove anni. Redazione, storia, criteri di lettura, in «Note di pastorale giovanile» 5 (2020), 21.

[43] F. Rinaldi, Il sac. Filippo Rinaldi ai Cooperatori ed alle Cooperatrici Salesiane. Un’altra data memoranda, in BS Anno XLIX, 1 (janeiro de 1925), 6.

[44] E. Viganò, Lettere circolari di don Egidio Viganò ai salesiani, vol. 2, Roma, Direzione Generale Opere Don Bosco, 1996, p. 589. [ACG 313]

[45] Francisco, Christus Vivit, n. 254.

[46] Cf. Francisco, o.c., 43-48, 298.

[47] R. Ziggiotti, Tenaci, audaci e amorevoli. Lettere circolari ai salesiani di don Renato Ziggiotti, a cura di Marco Bay, LAS, Roma 2015, 264.

[48] MB XVIII, 341.




Dom Bosco e o diálogo ecumênico

            O ecumenismo é um movimento surgido no início do século XX entre as Igrejas Protestantes, posteriormente compartilhado pelas Igrejas Ortodoxas e pela própria Igreja Católica, que visa à unidade dos cristãos. O Decreto sobre o Ecumenismo do Concílio Vaticano II afirma que, por Cristo, o Senhor, a Igreja foi fundada una e única e que a divisão das Igrejas não só contradiz abertamente a vontade de Cristo, mas também é um escândalo para o mundo. Nossos tempos, portanto, não diferem muito, nesse aspecto, daqueles de Dom Bosco.
            Quando se fala de “protestantes” no Piemonte, pensa-se antes de tudo na Igreja Evangélica Valdense. A história, às vezes trágica e heroica, dessa pequena igreja popular que encontrou refúgio, um lar estável e seu centro religioso nos vales do Pinerolo é bastante conhecida. Menos conhecido é o forte espírito de proselitismo por parte dos valdenses após o Edito de Emancipação, assinado pelo Rei Carlos Alberto em 17 de fevereiro de 1848, que lhes concedeu direitos civis e políticos.
            Entre as iniciativas mais evidentes de sua crescente propaganda anticatólica, no Piemonte e depois em toda a Itália, estava a da imprensa popular, que consequentemente provocou uma reação viva do Episcopado e iniciativas apologéticas correspondentes em defesa da doutrina católica. Nesse campo, por trás das diretrizes da Santa Sé e dos bispos piemonteses, Dom Bosco também se empenhou fortemente em preservar da heresia a juventude e o povo de nossas terras.

As “Leituras Católicas” de Dom Bosco
            Pode-se entender como Dom Bosco sentiu o dever de entrar na luta em defesa da fé entre o povo e a juventude. Ele se engajou em uma ação corajosa na imprensa católica popular porque logo percebeu que os valdenses do Piemonte eram apenas a cabeça de ponte do premeditado cerco protestante à Itália (G. SPINI, Risorgimento e Protestanti, Milão, Ed. Mondadori, 1989, pp. 236-253).
            A esse respeito, um artigo de N. Fabretti apareceu em “Il Secolo XIX” em 30 de janeiro de 1988, intitulado: Dom Bosco, um “jovem” santo, que, entre outras coisas, o declarava: “ortodoxo até o ponto da intolerância, violento contra os protestantes que ele considera, se não se converterem, como filhos do diabo e condenados”, e “um polêmico furioso… que com suas «Leituras Católicas» obsessivamente ofende Lutero e os protestantes e insulta publicamente os valdenses”. Mas essas acusações vulgares não tocam o verdadeiro Dom Bosco.
            As “Leituras Católicas”, cuja publicação começou em março de 1853, eram livretos populares que Dom Bosco imprimia mensalmente para a educação religiosa dos jovens e do povo. Realizando uma catequese simples, muitas vezes em forma de narrativa; ele usava esses periódicos para lembrar seus leitores da doutrina católica sobre os mistérios da fé, a Igreja, os sacramentos e a moral cristã.
            Mais do que polemizar diretamente com os protestantes, ele enfatizava as diferenças que nos separam deles, referindo-se à história e à teologia como eram conhecidas na época. No entanto, será inútil procurar nos livretos que ele imprimiu, como Avisos aos Católicos e O Católico instruído na sua religião (“Leituras Católicas”, 1853, n. 1, 2, 5, 8, 9, 12), os elementos mais enfatizados pela doutrina sobre a Igreja hoje. Em vez disso, eles refletem uma catequese que agora precisaria de esclarecimento e integração. O estilo apologético de Dom Bosco, portanto, espelhava o de autores católicos bem conhecidos nos quais ele se inspirava.
            Hoje, em um clima ecumênico, certas iniciativas podem parecer desproporcionais ao perigo, mas é preciso ter em mente o ambiente da época em que a polêmica partia dos próprios protestantes e “a controvérsia religiosa era sentida como uma necessidade cotidiana para evangelizar o povo” (V. VINAI, Storia dei Valdesi, v. III, Torino, Ed. Claudiana, 1980, p. 46).
            A literatura protestante anticatólica da época, de fato, apresentava o catolicismo como um repositório de pecado, hipocrisia religiosa, superstição e crueldade contra judeus e valdenses. Um conhecido historiador protestante afirma a esse respeito: «Podemos dizer que, em 1847, a Itália estava cercada por uma espécie de assédio protestante, montado em torno dela pelo episcopalismo anglicano, pelo presbiterianismo escocês e pelo evangelismo “livre” de Genebra e Lausanne, com o apoio também do protestantismo americano. Dentro da península, além das comunidades estrangeiras tradicionais, já existem duas cabeças de ponte, os valdenses e os “evangélicos” da Toscana. No exterior, há duas comunidades organizadas com sua própria imprensa em Londres e Malta» (G. SPINI, o. c., p. 226).
            Mas isso não era suficiente. Dom Bosco, além de ataques de origem suspeita sofridos por ele, foi ofendido em vários números das edições de 1853-54 do semanário protestante “La Buona Novella” [A Boa Nova[, com esquemas pesadíssimos contra ele (“La Buona Novella”, Annata 1853-54, Anno III, n. 1, pp. 8-11; n. 5, pp. 69-72; n. 11, pp. 166-168, n. 13, pp. 193-198; n. 27, pp. 423-424).
            Eram tempos de “muro contra muro”!

Dom Bosco intolerante?
            Dom Bosco certamente não merecia tais insultos. Luís Desanctis, sacerdote católico que havia passado para a Igreja valdense, deu grande impulso à evangelização protestante com sua presença em Turim, chegando a polemizar com as publicações de Dom Bosco. Mas quando, devido a desentendimentos internos, ele acabou deixando os valdenses e indo para uma Sociedade Evangélica Italiana, teve muito a sofrer. Foi então que Dom Bosco lhe escreveu convidando-o a ir à sua casa para compartilhar “pão e estudo” com ele. Desanctis respondeu que nunca pensou que encontraria tanta generosidade e bondade em um homem que era abertamente seu inimigo. E acrescentava: “Não vamos fingir. Vossa Senhoria luta contra meus princípios, assim como eu luto contra os seus; mas enquanto luta contra mim, mostra que me ama sinceramente, estendendo-me a mão benéfica no momento da aflição. E assim mostra conhecer a prática daquela caridade cristã, que em teoria é praticada tão bem por tantos…” (ASC, Coleção Original N. 1403-04).
            Mesmo que Desanctis não tenha tido vontade de tirar as consequências lógicas da sua situação, essa carta permanece significativa porque revela o verdadeiro Dom Bosco, certamente não “o ortodoxo até a intolerância” ou o “polêmico furioso”, definido pelo colunista de “Il Secolo XIX”, mas o homem de Deus interessado somente na salvação das almas.




Dom Bosco e os animais

Dom Bosco amava os animais? Eles estão presentes em sua vida? E que relação ele tinha com eles? Algumas perguntas que estão tentando ser respondidas.

Pássaros, cachorros, cavalos etc.
            No estábulo da “Casinha”, para onde Mamãe Margarida havia se mudado com os filhos e a sogra, após a morte inesperada do marido Francisco, havia uma vaquinha, um bezerro e um burrinho. No canto da casa, um galinheiro.
            Assim que pôde, João levava a vaquinha para pastar, mas estava mais interessado nas ninhadas de pássaros. Ele mesmo relembra esse fato em suas «Memórias»: “Eu tinha grande habilidade em caçar passarinhos com arapuca, alçapão, visgo ou laços; era também muito entendido em ninhos.” (MO 30 – MOp 37-38).
            São bem conhecidos os vários incidentes deste seu “ofício”. Lembremos daquela vez em que seu braço ficou preso na fenda de um tronco de árvore, onde ele havia descoberto um ninho de chapim-real; ou daquela outra vez em que ele viu um cuco matar uma ninhada de rouxinóis. Em outra ocasião, ele viu sua pega morrer de gula depois de engolir muitas cerejas, inclusive o caroço. Um dia, para alcançar uma ninhada encontrada em um velho carvalho, ele escorregou e caiu pesadamente no chão. E um dia triste, ao voltar da escola, encontrou seu melro favorito, criado em uma gaiola e treinado para assobiar melodias, morto pelo gato.
            Quanto aos galináceos, remonta àqueles anos o fato da misteriosa galinha deixada sob a peneira na casa de seus avós em Capriglio e libertada por Giovanni em meio a risadas de alívio. Também daqueles anos é o incidente do peru roubado por um malandro e devolvido com coragem e um toque de imprudência infantil. Dos anos de Chieri é o truque do frango com geleia levado à mesa e que saiu da panela vivo e gritando.
            João fez uma verdadeira amizade com um cão em Sussambrino, o cão de caça de seu irmão José. Ele o treinou para abocanhar no ar os pedaços de pão na hora e a não comê-los até que fosse ordenado. Ele o ensinou a subir e descer a escada do celeiro e a fazer saltos e truques de circo. O cão de caça o seguia por toda parte e, quando João o levou de presente para os parentes em Moncucco, o pobre animal, tomado pela saudade, voltou para casa sozinho em busca do amigo perdido.
            Como estudante em Castelnuovo, João também aprendeu a andar a cavalo. No verão de 1832, o reitor P. Dassano, que era seu tutor na escola, confiou a ele os cuidados com o estábulo. João tinha de levar o cavalo para passear e, quando saía da aldeia, pulava em seu lombo e o fazia galopar.
            Como neossacerdote, convidado a pregar em Lauriano, a cerca de 30 km de Castelnuovo, ele partiu a cavalo. Mas a viagem terminou mal. Na colina de Berzano, o animal, assustado por um grande bando de pássaros, se levantou e o cavaleiro acabou caindo no chão.
            Dom Bosco fez muitas outras cavalgadas em suas andanças pelo Piemonte e nos passeios com os meninos. Basta lembrar a triunfante subida a Superga na primavera de 1846 em um cavalo com arreios de alto padrão, enviado a ele em Sassi pelo padre G. Anselmetti.
            Muito menos triunfante foi a travessia dos Apeninos no lombo de um burro na jornada para Salicetto Langhe em novembro de 1857. O caminho era estreito e íngreme, e a neve era alta. O animal tropeçava e caía a cada curva, e Dom Bosco foi obrigado a desmontar e empurrá-lo para frente. A descida foi ainda mais difícil e só o Senhor sabe como ele conseguiu chegar ao vilarejo a tempo para a missão sagrada.
            Essa não foi a última viagem de Dom Bosco em lombo de burro. Em julho de 1862, ele percorreu seis quilômetros de Lanzo a Santo Inácio da mesma forma. E assim, provavelmente, em outras ocasiões.
            Mas uma das viagens mais gloriosas de Dom Bosco foi a de outubro de 1864, de Gavi a Mornese. Ele chegou ao vilarejo tarde da noite, com o som festivo dos sinos. As pessoas saíram de suas casas com lâmpadas acesas e se ajoelharam quando ele passou, pedindo uma bênção. Era o hosana do povo ao santo dos jovens.

Os animais nos sonhos de Dom Bosco
            Se passarmos a considerar os sonhos de Dom Bosco, encontraremos uma grande variedade de animais domésticos e selvagens, mansos e ferozes, representando os jovens e suas virtudes e defeitos, o diabo e suas lisonjas, o mundo e suas paixões.
            No sonho dos 9 anos, quando os meninos desapareceram, uma multidão de cabritos, cachorros, gatos, ursos e outros animais apareceram para Joãozinho, todos eles transformados em mansos cordeiros. No sonho de 16 anos, a majestosa Senhora lhe confiou um rebanho; no de 22 anos, ele viu novamente os jovens transformados em cordeiros; e, finalmente, no de 1844, os cordeiros se transformaram em pastores!
            Em 1861, Dom Bosco teve o sonho de passear no Paraíso. Naquela viagem, os jovens que estavam com ele se depararam com lagos para atravessar. Um deles estava cheio de animais ferozes prontos para devorar qualquer um que tentasse atravessá-lo.
            Na véspera da Festa da Assunção, em 1862, ele sonhou que estava nos Becchi com todos os seus jovens, quando uma cobra de 7 a 8 metros de comprimento apareceu no prado, horripilante. Mas um guia lhe ensinou a pegá-la com uma corda, que mais tarde foi transformada em um rosário.
            Em 6 de janeiro de 1863, Dom Bosco contou aos meninos o famoso sonho do elefante que apareceu no pátio de Valdocco. Ele tinha um tamanho imenso e divertia os meninos de maneira amável. Ele os seguiu até a igreja, mas se ajoelhou na direção oposta, com o focinho voltado para a entrada. Em seguida, saiu novamente para o pátio e, de repente, seu humor mudou e, com farpas assustadoras, atacou os jovens para despedaçá-los. Então a estatueta de Nossa Senhora, ainda hoje colocada sob o pórtico, se animou e abriu seu manto para proteger e salvar aqueles que se refugiaram com ela.
            Em 1864, Dom Bosco teve o sonho dos corvos voando sobre o pátio de Valdocco para bicar os meninos. Em 1865, foi a vez de uma perdiz e de uma codorna, símbolos da virtude e do vício, respectivamente. Depois veio o sonho da águia majestosa descendo para agarrar um menino do Oratório; e novamente o do grande gato com olhos de fogo.
            Em 1867, Dom Bosco teve a impressão de ver um grande sapo nojento, o demônio, entrar em seu quarto. Em 1872, ele contou o sonho do rouxinol. Em 1876, o das galinhas, o do touro furioso e também o da carroça puxada por um porco e um sapo enorme.
            Em 1878, ele viu em um sonho um gato sendo perseguido por dois cães de caça. E assim por diante.
            Deixando para os especialistas a discussão desses sonhos, sabemos, porém, que eles tinham uma grande função pedagógica nas casas de Dom Bosco e que, especialmente em alguns deles, é difícil não ver uma intervenção especial de Deus.

O cachorro cinzento
            Mas se quisermos chegar ao limiar do mistério, devemos nos lembrar do “Cinzento”, aquele cão misterioso que apareceu tantas vezes para proteger Dom Bosco nos momentos em que sua vida corria perigo.
            Em suas “Memórias”, o próprio Dom Bosco escreve sobre ele: “O cão cinzento foi objeto de muita conversa e de várias suposições. Não poucos de vocês o viram e até o acariciaram. Agora, deixando de lado as estranhas histórias que se contam sobre esse cão, vou lhes contar o que é pura verdade” (MO 251. E ele passa a contar sobre os riscos que corria ao voltar para Valdocco tarde da noite na década de 1850 e como esse grande cão frequentemente aparecia de repente ao seu lado e o acompanhava até sua casa.
            Ele conta, por exemplo, sobre aquela noite de novembro de 1854, quando, ao longo da rua que levava da Consolata ao Cottolengo (hoje Rua Consolata e Rua Ariosto, perpendicular ao Corso Regina), ele percebeu que dois ladrões o seguiam e pulavam em cima dele para sufocá-lo, quando o cão apareceu, atacou-os com raiva e obrigou-os a fugir às pressas. Como último ocasião, ele conta sobre o Cinzento que apareceu para ele uma noite na estrada de Morialdo para Moncucco, quando ele, sozinho, estava a caminho, da propriedade Moglia para visitar seus velhos amigos.
            Mas suas “Memórias”, escritas nos anos 1873-75, não puderam mencionar o que realmente parece ter sido a última aparição do Cinzento, que ocorreu na noite de 13 de fevereiro de 1883. Enquanto Dom Bosco, de Ventimiglia, não tendo encontrado nenhuma carruagem, dirigia-se a pé, sob uma chuva torrencial, para a nova casa salesiana de Vallecrosia, justamente quando, com sua visão fraca, não sabia mais onde colocar os pés, seu velho amigo, o fiel Cinzento, que ele não via há vários anos, veio ao seu encontro. O cão se aproximou dele festivamente e, em seguida, precedendo-o, moveu-se pela lama e pela escuridão espessa para guiá-lo. Chegando a Vallecrosia, saudou Dom Bosco com a pata, e desapareceu (MB XVI, 35-36).
            Encontrando-se em Marselha para almoçar na casa de Olive, Dom Bosco contou o fato. A senhora então lhe perguntou como era possível tal aparição, pois o cão já deveria estar velho demais. E Dom Bosco, sorrindo, lhe respondeu: “Deve ter sido um filho ou neto daquele!” (MB XVI, 36-37). Ele então se esquivou de uma pergunta embaraçosa, pois não podia ser um fenômeno natural, mas não disse que era sua imaginação. Era sincero demais para dizer isso.
            De acordo com os testemunhos de José Buzzetti, Carlos Tomatis e José Brosio, que conviveram com Dom Bosco desde os primeiros dias, o Cinza se assemelhava a um cão ovelheiro ou de guarda. Ninguém, nem mesmo Dom Bosco, jamais soube de onde ele veio ou quem era seu dono. Carlos Tomatis disse algo mais: «Era um cão com uma aparência realmente formidável e, às vezes, Mamãe Margarida, ao vê-lo, exclamava: “Oh, que bicho feio!” Parecia quase um lobo, com um focinho alongado, orelhas levantadas, pelo cinza, um metro de altura» (MB IV, 712 – MBp IV, 628). Não é à toa que ele inspirava medo naqueles que não o conheciam. No entanto, o Card. Cagliero testemunha: “Eu vi o simpático animal numa noite de inverno” (MB IV, 716 – MBp IV, 632).
            Simpático animal!!! para os amigos!…
            Certa vez, em vez de acompanhar Dom Bosco em casa, impediu-o de sair. Era tarde da noite e Mamãe Margarida tentou dissuadir o filho de sair, mas ele estava decidido e pensou em pedir a alguns meninos mais velhos que o acompanhassem. No portão da casa, eles encontraram o cachorro deitado. “Oh, Cinzento”, disse Dom Bosco, “levante-se e venha conosco!”. Mas o cão, em vez de obedecer, emitiu um uivo de medo e não se moveu. Duas vezes Dom Bosco tentou passar e duas vezes o Cinzento o impediu de passar. Então Mamãe Margarida interveio: “Se ‘t veule nen scoteme me, scota almeno ‘l can, seurt nen!” (Se não queres me escutar, escuta ao menos o cachorro. Não saias). E o cão venceu. Mais tarde, soube-se que assassinos contratados estavam esperando do lado de fora para tirar sua vida (MB IV, 714 – MBp IV, 630).
            Assim, o Cinzento muitas vezes salvou a vida de Dom Bosco. Mas ele nunca aceitou comida ou qualquer outro tipo de recompensa. Ele aparecia de repente e desaparecia no ar quando a missão estava cumprida.
            Mas então que tipo de cão era o Cinzento? Um dia, em 1872, Dom Bosco foi hóspede dos Barõs Ricci em sua casa de campo em Nossa Senhora do Olmo, perto de Cuneo. A Baronesa Azeglia Fassati, esposa do Barão Carlos, tocou no assunto do Cinzento, e Dom Bosco disse: “Vamos deixar o Gris em paz; já faz algum tempo que não o vejo”. Fazia dois anos que ele havia dito em 1870: “Este cão é realmente uma coisa notável em minha vida! Dizer que ele é um anjo seria motivo de riso; mas também não se pode dizer que ele é um cão comum, pois eu o vi novamente outro dia” (MB X, 387 – MBp X, 337-338). Poderia ter sido essa a ocasião de Moncucco?
            Mas, em outra ocasião, chegou a dizer: “De vez em quando me vinha a ideia de procurar a origem daquele cão… Eu não sei outra coisa a não ser que foi uma verdadeira providência para mim” (MB IV, 718 – MBp IV, 634).
            Como o cão de São Roque! Certos fenômenos passam pela rede da pesquisa científica. Para aqueles que acreditam, nenhuma explicação é necessária; para aqueles que não acreditam, nenhuma explicação é possível.




Luís Variara, fundador fundado

Fundado em um olhar que marcou uma vida inteira
            Luís Variara nasceu em 15 de janeiro de 1875 em Viarigi (Asti). Dom Bosco havia chegado a esse vilarejo em 1856 para pregar uma missão. E foi a Dom Bosco que o pai, em 1º de outubro de 1887, confiou o filho para conduzi-lo a Valdocco. O santo dos jovens morreria quatro meses depois, mas o conhecimento que Luís fez dele foi suficiente para marcá-lo para sempre. Ele mesmo se lembra do evento da seguinte forma: “Era inverno e, certa tarde, estávamos brincando no grande pátio do oratório quando, de repente, um grito veio de um lado para o outro: «Dom Bosco, Dom Bosco!». Instintivamente, todos nós corremos para o local onde apareceu nosso bom pai, que estava sendo levado para passear em sua carruagem. Nós o seguimos até o local onde ele deveria entrar no veículo; imediatamente Dom Bosco foi visto cercado pela multidão de crianças amadas. Eu procurava ansiosamente uma maneira de me colocar em um lugar onde pudesse vê-lo bem, pois desejava conhecê-lo. Cheguei o mais perto que pude e, quando o ajudaram a entrar na carruagem, ele me lançou um olhar afetuoso e seus olhos se fixaram em mim. Não sei o que senti naquele momento… foi algo que não consigo expressar! Aquele dia foi um dos mais felizes para mim; eu tinha certeza de que havia encontrado um santo, e que aquele santo havia lido em minha alma algo que somente Deus e ele poderiam saber.
            Pediu para se tornar salesiano: entrou no noviciado em 17 de agosto de 1891 e o concluiu em 2 de outubro de 1892 com os votos perpétuos nas mãos do Bem-aventurado Miguel Rua, que lhe sussurrou ao ouvido: “Variara, não varie!”. Estudou filosofia em Valsalice, onde conheceu o Venerável P. André Beltrami. Ali, em 1894, passou o P. Miguel Unia, o famoso missionário que havia começado recentemente a trabalhar entre os leprosos em Agua de Dios, na Colômbia. “Qual não foi o meu espanto e alegria”, conta o P. Variara, “quando, entre os 188 companheiros que tinham a mesma aspiração, fixando o olhar em mim, ele disse: «Este é meu»”.
            Ele chegou a Agua de Dios em 6 de agosto de 1894. O leprosário tinha uma população de 2.000 habitantes, dos quais 800 eram leprosos. Ele mergulhou totalmente em sua missão. Dotado de habilidades musicais, organizou uma banda que imediatamente criou uma atmosfera festiva na “Cidade da Dor”. Ele transformou a tristeza do leprosário em alegria salesiana, com música, teatro, esporte e o estilo de vida do oratório salesiano.
            Em 24 de abril de 1898, foi ordenado sacerdote e logo provou ser um excelente diretor espiritual. Entre seus penitentes estavam membros da Associação das Filhas de Maria, um grupo de cerca de 200 meninas, muitas das quais eram leprosas. Foi diante dessa constatação que nasceu nele a primeira ideia de jovens mulheres consagradas, embora leprosas. A Congregação das Filhas dos Sagrados Corações de Jesus e Maria teve início em 7 de maio de 1905. Ele foi “fundador” a partir de sua realidade de “fundado” em total submissão à obediência religiosa e, um caso único na história da Igreja, fundou a primeira comunidade religiosa formada por pessoas afetadas pela hanseníase ou filhas de hansenianos. Ele escrevia: “Nunca me senti tão feliz por ser salesiano como neste ano, e bendigo o Senhor por ter me enviado a este leprosário, onde aprendi a não deixar que me roubem o céu”.
            Dez anos se passaram desde que ele chegara a Agua de Dios: uma década feliz e cheia de realizações, incluindo a conclusão do jardim de infância “P. Miguel Unia”. Mas agora estava começando um período de sofrimento e incompreensões para o generoso missionário. Esse período duraria 18 anos, até sua morte em Cúcuta, na Colômbia, em 1º de fevereiro de 1923, aos 48 anos de idade e 24 de sacerdócio.
            O P. Variara soube combinar em si mesmo tanto a fidelidade ao trabalho que o Senhor lhe pedia quanto a submissão às ordens que seu legítimo superior lhe impunha e que pareciam afastá-lo dos caminhos desejados por Deus. Ele foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 14 de abril de 2002.

Fundado numa amizade espiritual
            Em Turim-Valsalice, o P. Variara conheceu o Venerável André Beltrami, um sacerdote salesiano doente de tuberculose, que se ofereceu como vítima a Deus pela conversão de todos os pecadores do mundo. Nasceu uma amizade espiritual entre o P. Variara e o P. Beltrami; e o P. Variara se inspirou nele quando fundou a Congregação das Filhas dos Sagrados Corações de Jesus e Maria na Colômbia, a quem propôs a “consagração de vítima”.
            O Venerável André Beltrami é o precursor da dimensão vítima-oblativa do carisma salesiano: “A missão que Deus me confia é rezar e sofrer”, disse ele. “Nem curar nem morrer, mas viver para sofrer”, era seu lema. Muito exato em sua observância da Regra, ele tinha uma abertura filial para com seus superiores e um amor ardente por Dom Bosco e pela Congregação. Sua cama se tornou um altar e uma cátedra, onde ele se imolava junto com Jesus e de onde ensinava como amar, como oferecer e como sofrer. Seu pequeno quarto se tornou seu mundo inteiro, de onde ele escrevia e onde celebrava sua missa cruenta: “Ofereço-me como vítima com Ele, pela santificação dos sacerdotes, pelo povo do mundo inteiro”, repetia; mas sua salesianidade também o levava a ter relacionamentos com o mundo exterior. Ele se oferecia como vítima de amor para a conversão dos pecadores e para o consolo dos sofredores. O P. Beltrami compreendeu plenamente a dimensão sacrificial do carisma salesiano, desejado pelo fundador Dom Bosco.
            As filhas do P. Variara escreveram sobre o P. Beltrami da seguinte forma: “Somos pobres jovens atingidas pela terrível doença da lepra, violentamente arrancadas e separadas de nossos pais, privadas em um único momento de nossas esperanças mais vivas e de nossos desejos mais ardentes… Sentimos a mão carinhosa de Deus nos santos encorajamentos e nas indústrias de piedade do P. Luís Variara diante de nossas dores agudas do corpo e da alma. Persuadidas de que essa é a vontade do Sagrado Coração de Jesus e achando-a fácil de realizar, começamos a nos oferecer como vítimas de expiação, seguindo o exemplo do P. André Beltrami, salesiano”.

Fundado nos Corações de Jesus e Maria
            Fundador … fundou o Instituto das Filhas dos Sagrados Corações de Jesus e Maria. Em sua vida, encontrou grandes dificuldades, como em 1901, quando a casa “P. Miguel Unia” estava sendo construída, mas confiou na Virgem, escrevendo: “Agora, mais do que nunca, tenho confiança no sucesso desta obra, Maria Auxiliadora me ajudará”; “Só tenho dinheiro para pagar uma semana, então… Maria Auxiliadora pensará, porque a obra está em suas mãos”. Em momentos dolorosos, o P. Variara renovou sua devoção à Virgem, encontrando assim a serenidade e a confiança em Deus para continuar sua missão.
            Nos grandes obstáculos que encontrou para fundar a Congregação das Filhas dos Sagrados Corações, o P. Variara agiu da mesma forma que em outras vezes. Assim agiu no momento em que teve de deixar Agua de Dios. Da mesma forma, agiu quando lhe disseram que havia contraído lepra. “Alguns dias”, confessou, “o desespero me assalta, com pensamentos que me apresso a banir invocando a Virgem”. E para suas filhas espirituais, distantes e afastadas de sua orientação paterna, ele escreveu: “… Jesus será sua força, e Maria Auxiliadora estenderá seu manto sobre vocês”. “Não tenho ilusões”, escreveu ele em outra ocasião, “deixo tudo nas mãos da Virgem”. “Que Jesus e Maria sejam mil vezes benditos, vivam sempre em nossos corações”.