Sagrada Família de Nazaré

Todos os anos celebramos a Sagrada Família de Nazaré no último domingo do ano. Mas muitas vezes nos esquecemos de que celebramos com pompa os fatos mais pobres e delicados dessa Família. Obrigada a dar à luz em uma caverna, perseguida de imediato, tendo que emigrar em meio a tantos perigos para um país estrangeiro para sobreviver, e isso com um bebê e sem nenhum recurso. Mas tudo foi um evento de graça, permitido por Deus, o Pai, e anunciado nas Escrituras.
Vamos ler a bela história que o próprio Dom Bosco contou aos meninos de sua época.

A triste anunciação. – O massacre dos inocentes. – A sagrada família partiu para o Egito.
O anjo do Senhor disse a José: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo”. Mt 2,13.
“Um clamor se ouve em Ramá, de lamento, de choro, de amargura. É Raquel que chora seus filhos e recusa ser consolada, porque eles já não existem!” Jr 31,15.

            A tranquilidade da sagrada família [após o nascimento de Jesus] não seria de longa duração. Assim que José retornou à casa pobre em Nazaré, um anjo do Senhor apareceu a ele em um sonho e lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo”.
            E isso era a pura verdade. O cruel Herodes, enganado pelos magos e furioso por ter perdido uma oportunidade tão boa, a fim de se livrar daquele que ele considerava um concorrente ao trono, concebeu o projeto infernal de mandar matar todas as crianças do sexo masculino com menos de dois anos de idade. Essa ordem abominável foi executada.
            Um grande rio de sangue correu pela Galileia. Então, o que Jeremias havia predito se tornou realidade: “Um clamor se ouve em Ramá, de lamento, de choro, de amargura. É Raquel que chora seus filhos e recusa ser consolada, porque eles já não existem!”. Esses pobres inocentes, cruelmente assassinados, foram os primeiros mártires da divindade de Jesus Cristo.
            José reconheceu a voz do anjo, mas não se permitiu qualquer reflexão sobre a partida apressada que tiveram que fazer, sobre as dificuldades de uma viagem tão longa e perigosa. Ele deve ter se lamentado de ter deixado seu pobre lar para atravessar os desertos e buscar asilo em um país que não conhecia. Sem esperar pelo dia de amanhã, no momento em que o anjo desapareceu, ele se levantou e correu para acordar Maria. Maria preparou apressadamente uma pequena provisão de roupas e mantimentos para levarem com eles. Enquanto isso, José preparou a jumenta, e eles partiram sem lamentação da cidade para obedecer à ordem de Deus. Aqui está, portanto, um pobre ancião, que torna vãs as horríveis conspirações do tirano da Galileia; é a ele que Deus confia o cuidado de Jesus e Maria.

Viagem desastrosa – Uma tradição.
Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra. Mt 10,23.

            Dois caminhos se apresentavam ao viajante que desejava ir ao Egito por terra. Uma delas passava por desertos povoados por animais ferozes, e os caminhos eram incômodos, longos e pouco movimentados. O outro passava por um país pouco visitado, mas os habitantes do lugar eram muito hostis aos judeus. José, que temia especialmente os homens nessa fuga precipitada, escolheu o primeiro desses dois caminhos como o mais escondido.
            Tendo partido de Nazaré no mais escuro da noite, os cautelosos viajantes, cujo itinerário exigia que passassem primeiro por Jerusalém, percorreram os caminhos mais tristes e tortuosos por algum tempo. Quando era necessário atravessar alguma grande estrada, José, deixando Jesus e sua mãe no abrigo de uma rocha, observava o caminho para se certificar de que a saída não era guardada pelos soldados de Herodes. Tranquilizado por essa precaução, voltava para buscar seu precioso tesouro, e a sagrada família continuava sua jornada, entre ravinas e colinas. De vez em quando, faziam uma breve parada à beira de um riacho claro e, depois de uma refeição frugal, descansavam um pouco do esforço da viagem. Quando a noite chegava, era hora de se resignar a dormir sob o céu aberto. José tirou o manto e cobriu Jesus e Maria com ele para preservá-los da umidade da noite. Então, amanhã, ao amanhecer, a árdua jornada começaria novamente. Os santos viajantes, depois de passarem pela pequena cidade de Anata, seguiram para o lado de Ramla para descer às planícies da Síria, onde agora estariam livres das armadilhas de seus ferozes perseguidores. Contra seu costume, eles continuaram caminhando, apesar de já estar anoitecendo, a fim de chegarem mais cedo a um lugar seguro. José estava quase sondando o chão à frente dos outros. Maria, toda trêmula por causa dessa corrida noturna, lançava seus olhares inquietos para as profundezas dos vales e as sinuosidades das rochas. De repente, em uma curva, um grupo de homens armados apareceu para interceptar seu caminho. Era um bando de bandidos que estava assolando a região, cuja fama assustadora se estendia até bem longe. José prendeu a montaria de Maria e orou ao Senhor em silêncio, pois qualquer resistência era impossível. No máximo, alguém poderia ter a esperança de salvar a própria vida. O líder dos bandidos se separou de seus companheiros e avançou em direção a José para ver com quem tinha que lidar. A visão daquele velho sem armas, daquela criancinha dormindo no peito da mãe, tocou o coração sanguinário do bandido. Longe de fazer-lhes qualquer mal, ele estendeu a mão a José, oferecendo hospitalidade a ele e à sua família. Esse líder se chamava Dimas. A tradição nos diz que, trinta anos depois, ele foi preso por soldados e condenado a ser crucificado. Ele foi colocado na cruz do Calvário ao lado de Jesus, e é o mesmo que conhecemos pelo nome de bom ladrão.

Chegada ao Egito – Prodígios que ocorreram na entrada deles nessa terra – Aldeia de Matari – Moradia da Sagrada Família.
“Vede o Senhor, montado em nuvem veloz, invadindo o Egito! À sua presença, vacilam os deuses do Egito”. Is 19,1.

            Assim que amanheceu, os fugitivos, agradecendo aos bandidos que haviam se tornado seus anfitriões, retomaram sua jornada cheia de perigos. Diz-se que Maria, ao partir, disse estas palavras ao líder daqueles bandidos: “O que você fez por esta criança, um dia será amplamente recompensado”. Depois de passar por Belém e Gaza, José e Maria desceram para a Síria e, tendo encontrado uma caravana que partia para o Egito, juntaram-se a ela. Desse momento até o fim da viagem, eles não viram nada à sua frente além de um imenso deserto de areia, cuja aridez era interrompida apenas em raros intervalos por alguns oásis, ou seja, alguns trechos de terra fértil e verdejante. O cansaço deles foi redobrado durante a corrida por essas planícies ardentes pelo calor do sol. A comida era escassa, e muitas vezes faltava água. Quantas noites José, que era velho e pobre, foi empurrado para trás quando tentou se aproximar da fonte em que a caravana havia parado para matar a sede!
            Finalmente, após dois meses de uma jornada muito difícil, os viajantes entraram no Egito. De acordo com Sozomeno, desde o momento em que a Sagrada Família tocou essa terra antiga, as árvores baixaram seus galhos para adorar o Filho de Deus; os animais ferozes se reuniram ali, esquecendo seus instintos; e os pássaros cantaram em coro os louvores do Messias. De fato, se acreditarmos no que nos é dito por autores confiáveis, todos os ídolos da província, reconhecendo o vencedor do paganismo, caíram em pedaços. Assim, as palavras do profeta Isaías foram literalmente cumpridas quando ele disse: “Vede o Senhor, montado em nuvem veloz, invadindo o Egito! À sua presença, vacilam os deuses do Egito”.
            José e Maria, desejosos de chegar logo ao fim de sua jornada, não fizeram mais do que passar por Heliópolis, consagrada ao culto do sol, para ir a Matari, onde pretendiam descansar de suas canseiras.
            Matari é uma bela vila sombreada por sicômoros, a cerca de duas léguas do Cairo, a capital do Egito. José pretendia se estabelecer ali. Mas esse ainda não era o fim de seus problemas. Ele precisava buscar acomodação. Os egípcios não eram nada hospitaleiros, de modo que a sagrada família foi forçada a se abrigar por alguns dias no tronco de uma grande árvore velha. Finalmente, após uma longa busca, José encontrou um cômodo modesto, no qual colocou Jesus e Maria.
            Essa casa, que ainda pode ser vista no Egito, era uma espécie de caverna, com seis metros de comprimento e três metros de largura. Também não havia janelas; a luz tinha de entrar pela porta. As paredes eram de um tipo de barro preto e sujo, cuja idade trazia a marca da miséria. À direita havia uma pequena cisterna, da qual José tirava água para o serviço da família.

Dores. – Consolação e fim do exílio.
Com ele estou na tribulação. Sl 90,15.

            Assim que entrou nessa nova moradia, José retomou seu trabalho normal. Começou a mobiliar a casa: uma pequena mesa, algumas cadeiras, um banco, tudo obra de suas mãos. Depois, foi de porta em porta procurando trabalho para sustentar sua pequena família. Sem dúvida, ele sofreu muitas rejeições e passou por muitos desprezos humilhantes! Ele era pobre e desconhecido, e isso foi suficiente para que seu trabalho fosse recusado. Por sua vez, Maria, embora tivesse mil cuidados com seu Filho, corajosamente se entregou ao trabalho, ocupando uma parte da noite para compensar os ganhos pequenos e insuficientes de seu marido. No entanto, em meio a suas tristezas, quanta consolação para José! Foi para Jesus que ele trabalhou, e o pão que a criança divina comeu foi ele quem o comprou com o suor de seu rosto. E quando ele voltava à noite, exausto e oprimido pelo calor, Jesus sorria ao vê-lo chegar e o acariciava com suas mãozinhas. Muitas vezes, com o preço das privações que impunha a si mesmo, José conseguia obter algumas economias, e que alegria ele sentia por poder usá-las para suavizar a condição da criança divina! Ora eram algumas tâmaras, ora alguns brinquedos adequados para sua idade, que o piedoso carpinteiro trouxe para o Salvador dos homens. Oh, como eram doces as emoções do bom velhinho ao contemplar o rosto radiante de Jesus! Quando chegava o sábado, dia de descanso e consagrado ao Senhor, José tomava a criança pela mão e guiava seus primeiros passos com uma solicitude verdadeiramente paternal.
            Enquanto isso, o tirano que reinava sobre Israel morreu. Deus, cujo braço todo-poderoso sempre pune os culpados, enviou-lhe uma doença cruel, que rapidamente o levou à sepultura. Traído por seu próprio filho, comido vivo por vermes, Herodes morreu, levando consigo o ódio dos judeus e a maldição da posteridade.

O novo anúncio. – Retorno à Judeia. – Uma tradição relatada por São Boaventura.
Do Egito chamei o meu filho de volta. (Os 11,1).

            Há sete anos José estava no Egito, quando o Anjo do Senhor, o mensageiro ordinário da vontade do Céu, apareceu-lhe novamente durante o sono e disse-lhe: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois já morreram aqueles que queriam matar o menino”. Sempre atento à voz de Deus, José vendeu sua casa e seus móveis e organizou tudo para partir. Em vão os egípcios, encantados com a bondade de José e a gentileza de Maria, fizeram pedidos sinceros para retê-lo. Em vão lhe prometeram a abundância de tudo o que era necessário para a vida, José foi inflexível. As lembranças de sua infância, os amigos que tinha na Judeia, a atmosfera pura de sua terra natal, falavam muito mais ao seu coração do que a beleza do Egito. Além disso, Deus havia falado, e nada mais era necessário para que José decidisse retornar à terra de seus antepassados.
            Alguns historiadores são da opinião de que a sagrada família fez parte da viagem por mar, porque levava menos tempo e eles tinham um grande desejo de rever sua terra natal em breve. Assim que desembarcaram na Ascalônia, José soube que Arquelau havia sucedido seu pai Herodes no trono. Essa era uma nova fonte de inquietação para José. O anjo não lhe havia dito em que parte da Judeia ele deveria se estabelecer. Ele deveria fazer isso em Jerusalém, na Galileia ou em Samaria? José, cheio de ansiedade, orou ao Senhor para que lhe enviasse seu mensageiro celestial durante a noite. O anjo ordenou que ele fugisse de Arquelau e se retirasse para a Galileia. José, então, não teve mais o que temer e tomou calmamente o caminho de Nazaré, que havia abandonado sete anos antes.
            Que nossos dedicados leitores não se arrependam de ouvir o seráfico Doutor São Boaventura sobre esse ponto da história: “Eles estavam no ato de partir: e José foi primeiro com os homens, e sua mãe foi com as mulheres (que tinham vindo, elas e eles, como amigos da sagrada família para acompanhá-los durante um trecho do caminho). E quando estavam fora da porta, José fez com que os homens voltassem e não os deixou mais acompanhá-lo. Então alguns daqueles bons homens, compadecidos da pobreza deles, chamaram o Menino e lhe deram algum dinheiro para as despesas. O Menino tinha vergonha de recebê-los; mas, por causa da pobreza, estendeu a mão e recebeu o dinheiro com vergonha e agradeceu. E o mesmo fizeram outras pessoas. Aquelas honradas matronas o chamaram novamente e fizeram o mesmo; a mãe não ficou menos envergonhada do que a criança, mas ainda assim agradeceu humildemente.”
            Tendo se despedido daquela companhia cordial e renovado seus agradecimentos e saudações, a sagrada família voltou seus passos em direção à Judeia.




Parece-me de estar no paraíso. A primeira missa de Natal em Valdocco

A primeira missa de Natal celebrada por Dom Bosco em Valdocco foi em 1846. Depois de obter permissão para celebrá-la na pobre capela Pinardi, ele começou a preparar as mentes de seus meninos, ensinando-os a fazer a Sagrada Comunhão, a visitar o Santíssimo Sacramento e a aprender algumas canções devotas. É o que nos conta o P. Lemoyne.

            “A festa da Imaculada Conceição era uma preparação para a do Santo Natal. Dom Bosco nutria uma grande fé por todos os mistérios de nossa santa religião. Assim, para externar, com toda a sua alma, a devoção que sentia pela Encarnação do Verbo Divino e para estimulá-la e promovê-la cada vez mais nos outros, tinha pedido à Santa Sé a faculdade de administrar a Sagrada Comunhão à meia-noite de Natal, na Capela do Oratório, durante a solene missa cantada. Pio IX concedeu-lhe essa permissão por três anos. Anunciou aos meninos a alegre notícia, preparou e ensinou a seus cantores uma Missa simples e algumas pequenas canções que ele tinha composto em honra do Menino Jesus. Ao mesmo tempo, procurou adornar o melhor que podia a sua igrejinha. Além dos meninos, convidou também outros fiéis e começou a novena. O Arcebispo o havia autorizado dar a bênção do Santíssimo sempre que desejasse. Porém, somente nessas ocasiões poderia conservar a Santa Eucaristia no sacrário.
            Grande foi a afluência. Ele soube infundir no ânimo de seus pequenos amigos sentimentos de grande ternura para com o Menino Deus. Como não havia outros Sacerdotes, à noite dos nove dias, confessava muitos que queriam comungar no dia seguinte. Pela manhã, descia cedo para a igreja a fim de oferecer esta comodidade aos jovens que deviam ir para o trabalho na cidade. Celebrava a Santa Missa, distribuía a Santíssima Eucaristia, pregava e, depois do canto das profecias por alguns catequistas preparados por ele, dava a bênção com o Santíssimo Sacramento.
            Naquela inesquecível noite de Natal, depois de ter confessado até 11 horas, cantou uma missa e administrou a Comunhão a várias centenas de pessoas. Ao terminar, comovido até às lágrimas, repetia: – Que consolação! Parece-me que estou no paraíso! – Depois da função, ofereceu uma pequena ceia aos meninos e os despediu para irem repousar em suas casas.
            Depois de poucas horas de sono, ele voltava à igreja, esperando a multidão ainda mais numerosa que não tinha podido assistir à solenidade da noite, confessava e celebrava as outras duas Missas, dava a comunhão e depois retomava as suas múltiplas ocupações dos dias santos.
            Assim, foram celebradas, por vários anos, a novena e a festa do Natal, enquanto Dom Bosco não pôde dispor de outros Sacerdotes.
            No entanto, essas primeiras festas do Natal se revestiam de um caráter inesquecível, porque marcavam como definitiva a tomada de posse da prometida Casa Pinardi. Afinal, tudo estava organizado para o desenvolvimento regular do Oratório. Confirmaram-se as promessas dos futuros grandes edifícios que contariam para as futuras gerações a bondade do Senhor.
            Nesse dia, ao celebrar o ofício divino, com a mente repleta de seus ideais, com que afeto Dom Bosco terá exclamado: “Recordamos, ó Deus, a tua misericórdia no interior do teu templo. Como o teu nome, ó Deus, assim teu louvor se estenda até os confins da terra! A tua mão direita está repleta de justiça! (MB II, 582-585 – MBp II, 485-486)”.

            De agora em diante, até os últimos anos de sua vida, as missas na noite do Santo Natal serão celebradas por Dom Bosco com uma alegria especial que brilhava em seu rosto.
            Mas não era somente essa alegria que despertava uma viva devoção em todos, mas também as exortações que fazia aos seus pequenos amigos para que se preparassem bem para o Natal. Ele dizia:

            “Amanhã começa a novena do Santo Natal. Conta-se que um dia um devoto do Menino Jesus, viajando por uma floresta em dia de inverno, ouviu um como gemido de uma criança e embrenhou-se mata a dentro na direção do lugar de onde ouvia brotar aquela voz e viu um belíssimo menino que chorava. Movido de compaixão, disse:
– Pobre menino, como é que estás aqui, abandonado nesta neve?
E o menino respondeu:
– Como posso não chorar, no estado em que me vês assim abandonado por todos? Ninguém tem pena de mim?
Isto dito, desapareceu. Então, aquele bom viajor compreendeu que era o Menino Jesus que se lamentava da ingratidão e da frieza dos homens.
Contei este fato para que procuremos que Jesus não tenha de lamentar-se também de nós. Por isso, preparemo-nos para fazer bem esta novena. Pela manhã, durante a missa, haverá o canto das profecias, poucas palavras de sermão e, depois, a bênção. Eu lhes aconselho duas coisas nestes dias, para que vivam santamente esta novena:
            1ª. Lembrem-se muitas vezes de Jesus Menino, do amor que ele tem por vocês e das provas, que em seu amor, Ele deixou, até morrendo por vocês. De manhã levantem-se ligeiro quando o sino tocar e, sentindo frio, lembrem-se do Menino Jesus que tremia de frio sobre a palha. Ao longo do dia, animem-se a estudar bem a lição, a fazer bem a tarefa, a ficar atentos na aula, tudo por amor a Jesus. Não esqueçam que Jesus progredia em sabedoria, em idade e em graça diante de Deus e diante dos homens. Acima de tudo, por amor a Ele, cuidem-se para não cometer nenhuma falta que possa entristecê-lo.
            2ª. Vão visitá-lo diversas vezes. Nós temos inveja dos pastores que foram à choupana em Belém, que o contemplaram logo depois de nascido, que lhe beijaram a pequenina mão e lhe ofereceram seus presentes. Felizes aqueles pastores, podemos dizer. Se bem que nada temos para invejá-los, porque a mesma sorte deles é também a nossa. O mesmo Jesus, que foi visitado pelos pastores em sua gruta, encontra-se aqui no tabernáculo. A única diferença está em que os pastores o viram com os olhos do corpo e nós só o vemos com os olhos da fé. Não há coisa mais agradável para Ele do que visitá-lo muitas vezes. E de que jeito ir visitá-lo?
            Primeiramente com a comunhão frequente. No Oratório, especialmente durante esta novena, sempre houve um grande empenho, um grande fervor na comunhão. Eu espero que vocês façam a mesma coisa neste ano. Outra maneira é a de ir à igreja algumas vezes durante o dia, mesmo que seja por um minutinho, e rezando um Glória ao Pai. Entenderam?
Portanto, duas coisas nós faremos para santificar esta novena. Quais são elas? Quem sabe repetir?
Lembrar-nos muitas vezes do Menino Jesus: fazer a Comunhão e visitá-lo na igreja (MB VI, 351-352 – MBp VI, 337-338).

As palavras de Dom Bosco também são válidas hoje. Se elas deram frutos no passado, também podem dar frutos hoje, se as seguirmos com fé viva.




Generosidade missionária na África do Sul

A África do Sul ou África Austral, oficialmente a República da África do Sul, é um país multicultural, um dos poucos países do mundo com 11 idiomas oficiais, falados por muitos grupos étnicos. É um país que sofreu por mais de 40 anos com a segregação racial, que foi instituída em 1948 pelo governo étnico branco do país e permaneceu em vigor até 1991. Chamada de apartheid, era uma política de segregação racial que foi oficialmente condenada pelas Nações Unidas em 1973, quando declarou o apartheid um crime contra a humanidade.
Hoje, muitos anos depois, negros, brancos, mestiços e asiáticos vivem juntos, embora as mentalidades segregacionistas ainda possam ser sentidas. Há cerca de 20 anos, um salesiano paraguaio, o padre Alberto Higínio Villalba, hoje ecônomo inspetorial e diretor da casa salesiana de Johannesburgo, chegou a este país como missionário. Pedimos a ele que nos contasse um pouco sobre a realização de seu sonho missionário.

Nasci em Assunção, a capital do Paraguai, um pequeno país da América do Sul, cercado pela Argentina, Brasil e Bolívia. Venho de uma família de seis filhos, três meninos e três meninas. Sou o segundo filho. Toda a minha família está no Paraguai; meus pais ainda estão vivos, embora com alguns problemas de saúde relacionados à idade. O desejo de ser missionário vem de muito longe; quando jovem, junto com o Movimento Juvenil Salesiano, fui fazer apostolado em vilarejos e estações suburbanas, ajudando crianças na catequese e em atividades oratorianas. Depois, quando eu era um pré-noviço salesiano, conheci um padre espanhol, P. Martín Rodríguez, que compartilhou comigo sua experiência como missionário no Chaco paraguaio: naquele momento, o desejo de ser missionário se fortaleceu.
Mas foi graças ao Reitor-Mor, P. Vecchi, que decidi partir: seu apelo missionário a todas as inspetorias me atraiu e, conversando com meu provincial, P. Cristóbal López, hoje cardeal e arcebispo de Rabat, decidi participar da expedição missionária de 2000.

É claro que não foi fácil, desde o início me deparei com vários choques culturais que tive de superar com paciência e empenho. Antes de chegar à África, fui enviado à Irlanda para aprender inglês: tudo era muito novo para mim, muito desafiador. Quando aterrissei na África do Sul, não havia mais um idioma novo que eu não entendia, mas muitos outros! De fato, a África do Sul tem onze idiomas oficiais e o inglês é apenas um deles. Por outro lado, a recepção dos salesianos foi muito calorosa e gentil.

Eu sempre digo que para se tornar um missionário não é preciso deixar seu país, sua cultura, sua família e tudo o mais. Ser missionário significa levar Jesus às pessoas onde quer que estejamos; e podemos fazer isso em nossas famílias, em nossas comunidades, onde trabalhamos. No entanto, tornar-se missionário “ad gentes” significa responder à generosidade de Deus, que compartilhou seu Filho conosco por meio dos missionários que evangelizaram nossos continentes, e à generosidade de Dom Bosco, que enviou seus missionários para compartilhar conosco o carisma salesiano. Se houve tantas pessoas que deixaram seus países e culturas para compartilhar Cristo e Dom Bosco conosco, então nós também podemos responder a esse amor e bondade para compartilhar os mesmos dons com os outros.

Falando da África do Sul, a Visitadoria da África Meridional inclui três países: a África do Sul, onde os salesianos chegaram em 1896, o reino de Eswatini (chegaram há 75 anos) e o reino de Lesoto. Muitas mudanças ocorreram ao longo dos anos: passamos de centros técnicos a escolas, paróquias e agora projetos. Atualmente, temos sete comunidades, a maioria delas com algumas paróquias e centros de formação ou oratórios ligados às comunidades.
Tendo estado na África por mais de 20 anos, eu diria que a melhor experiência da minha vida salesiana foi em Eswatini, trabalhando para a Manzini Youth Care. Quando me pediram para cuidar do projeto, o MYC estava em uma situação financeira muito difícil e a organização tinha vários meses de salários atrasados. No entanto, as pessoas que trabalhavam nos projetos nunca reclamaram e todos os dias vinham com o mesmo entusiasmo e energia para dar o melhor de si e contribuir para a vida dos jovens para os quais o MYC estava trabalhando.
É aqui que você pode realmente ver o comprometimento de nossos colaboradores leigos e é um prazer trabalhar com eles.
Queremos fazer muito, mas, do ponto de vista vocacional, estamos diminuindo e precisamos da ajuda dos salesianos que se oferecem de bom grado para nos ajudar a difundir a Boa Nova e a espiritualidade salesiana aqui no sul da África. Muitos salesianos e muitas inspetorias continuam a mostrar generosidade, disponibilizando seus recursos humanos, enviando missionários aos nossos países de origem. Portanto, somos convidados a compartilhar a mesma generosidade e esperamos que ela se transforme em uma espiral de crescimento. Para os filhos de Dom Bosco, é um dever fazer com que as pessoas saibam quem é o nosso pai Dom Bosco e a rica espiritualidade do carisma salesiano.

Marco Fulgaro




Apelo Missionário 2024

Prezados irmãos,
Uma saudação fraterna da nossa Casa-Mãe de Valdocco,

Hoje, 18 de dezembro, como já é tradição há alguns anos, é o dia em que Dom Bosco fundou a nossa “Pia Sociedade de São Francisco de Sales” em 1859, e é uma boa oportunidade para enfatizar o espírito missionário como elemento essencial do carisma de Dom Bosco, enviando-lhes o meu apelo missionário anual.

Em 2024, celebraremos o segundo centenário do sonho dos nove anos de João Bosco. Dom Pietro Stella disse que esse é o sonho que “condicionou todo o modo de viver e de pensar de Dom Bosco”. Para nós, hoje, seguir a reflexão sobre o sonho de nove anos de Dom Bosco exige que enfatizemos sua confiança na Providência: «A seu tempo tudo compreenderás». O sonho do menino de nove anos nos ensina que Deus fala de muitas maneiras, realiza grandes coisas com “instrumentos simples”, também no fundo do nosso coração, por meio dos sentimentos que nos movem. Hoje, o sonho de nove anos continua a nos fazer sonhar e a nos convidar a pensar sobre quem somos e para quem somos.

E interessante notar que, em seu quinto sonho missionário, que ocorreu enquanto ele visitava os salesianos em Barcelona na noite de 9 para 10 de abril de 1886, Dom Bosco viu uma profunda conexão com seu sonho de nove anos. Em seu quinto e último sonho missionário, ele viu uma grande multidão de meninos correndo em sua direção, gritando: “Estávamos esperando por você. Esperamos tanto tempo por você. Agora você finalmente está aqui. Você está entre nós e não escapará de nós!” A pastora que conduzia um imenso rebanho de cordeiros o ajudou a entender o significado perguntando: “Você se lembra do sonho que teve quando tinha dez anos?”, depois traçou uma linha de Valparaíso a Pequim para destacar o imenso número de jovens que esperam pelos salesianos. De fato, hoje, em todos os continentes, há jovens que precisam ser transformados de “lobos” em “cordeiros”.

Hoje Dom Bosco precisa de salesianos que se coloquem à disposição como “simples instrumentos” para realizar o seu sonho missionário. Com esta carta, faço um apelo aos irmãos que sentem no fundo do coração, através dos sentimentos que os movem, o chamado de Deus, dentro da nossa comum vocação salesiana, para que se tomem disponíveis como missionários com um compromisso vitalício (ad vitam), onde quer que o Reitor-Mor os envie.

Ao meu apelo de 18 de dezembro de 2022, 42 salesianos responderam enviando-me suas cartas de disponibilidade missionária. Após cuidadoso discernimento, 24 foram escolhidos como membros da 154a expedição missionária em setembro passado. Os outros continuam seu discernimento. Espero que o mesmo número, ou até mais, responda generosamente este ano.

Convido os Inspetores, com seus Delegados para a Animação Missionária (DIAM), a serem os primeiros a ajudar os irmãos a facilitar seu discernimento, convidando-os, depois de um diálogo pessoal, a se colocarem à disposição do Reitor-Mor para responder às necessidades missionárias da Congregação. Em seguida, o Conselheiro Geral para as Missões, em meu nome, continuará o discernimento que levará à escolha dos missionários para a 155a expedição missionária, que se realizará, se Deus quiser, no domingo, 29 de setembro de 2024, na Basílica de Maria Auxiliadora, em Valdocco, como tem sido feito desde os tempos de Dom Bosco.

O diálogo com o Conselheiro Geral para as Missões e a reflexão compartilhada no Conselho Geral me permitem especificar as urgências identificadas para 2024, para as quais eu gostaria que fosse enviado um número significativo de irmãos:
– nas novas fronteiras do continente africano: Botsuana, Níger, norte da África, etc.
– nas novas presenças que iniciaremos na Grécia e em Vanuatu;
– na Albânia, Roménia, Alemanha, Eslovênia e outras fronteiras do Projeto Europa;
– no Azerbaijão, Nepal, Mongólia, África do Sul e Yakutia;
– em presenças com os povos indígenas do continente americano.

Confio este meu último apelo missionário à intercessão da nossa Mãe Imaculada e Auxiliadora para que nós, salesianos, possamos manter vivo o ardor missionário de Dom Bosco.

Saúdo-os, queridos irmãos, com verdadeiro afeto,

Prot. 23/0585
Turim Valdocco, 18 de dezembro de 2023




Casa Salesiana de Châtillon

Localizada em uma bela área montanhosa aos pés dos Alpes, perto da Suíça, a Casa salesiana de Châtillon tem uma história especial e bem-sucedida.

Na região do Vale d’Aosta, há um município chamado Châtillon (o nome vem do latim “Castellum”), localizado entre o Monte Zerbion, ao norte, e o Monte Barbeston, ao sul; é o terceiro município mais populoso da região.
Em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, uma empresa, a Soie de Châtillon (português: “Seda de Châtillon”), foi fundada nessa localidade e começou a trabalhar no campo das tecnofibras com tecnologia moderna. A presença de usinas hidrelétricas próximas que forneciam a eletricidade condicionou a escolha do local para a empresa, pois ainda não havia redes elétricas extensas para transportar eletricidade.
Em 1942, a empresa passou a ser propriedade da Società Saifta (Società Anonima Italiana per le Fibre Tessili Artificiali S.p.A.[Sociedade Anônima Italiana de Fibras Têxteis Artificiais S.A.]).
Após a Segunda Guerra Mundial, a Sociedade Saifta, que administrava a fábrica “Soie” de Châtillon, inicialmente destinada a um internato para operárias, chamou os salesianos e colocou esses prédios à disposição para acolher órfãos de guerra e filhos de funcionários da “Soie” como internos. Assim começou o Instituto Orfanato Salesiano “Dom Bosco” de Châtillon, nome que permanece até hoje, embora não haja mais órfãos por lá.
No final de agosto de 1948, 33 meninos iniciavam um curso de Treinamento Profissional Industrial nas duas especializações de Mecânicos-Ajustadores e Carpinteiros-Marceneiros: a última especialização era muito útil na área montanhosa e rica de bosques.
Alguns meses depois, em 5 de fevereiro de 1949, foi inaugurado oficialmente o Orfanato “Dom Bosco”, destinado a acolher os jovens pobres do Vale d’Aosta e iniciá-los no aprendizado de uma profissão.
Com a introdução da escolaridade obrigatória em 1965, a Escola Profissionalizante foi substituída pela Escola Média, e a Escola Técnica pelo Instituto Profissional da Indústria e do Artesanato (IPIA), nas duas especializações: Montadores Mecânicos e Marceneiros e Fabricantes de Móveis.
No final da década de 1970, a empresa Saifta entrou em crise, parou de apoiar financeiramente o orfanato e colocou à venda a estrutura do “Soie”. Em maio de 1980, a Região do Vale d’Aosta, percebendo a importância e o valor da obra – que havia se desenvolvido muito nesse meio tempo – comprou toda a estrutura educacional e a ofereceu aos Salesianos para gerenciamento.
As atividades educacionais continuam, evoluindo para a escola profissional, resultado da colaboração dos salesianos com empresas locais.
Desde 1997, o Centro de Treinamento Profissional (CFP) oferece cursos para carpinteiros, mecânicos e gráficos.
Em 2004, o CFP ofereceu cursos para instaladores elétricos e também cursos de aperfeiçoamento.
Desde 2006, há cursos para instaladores elétricos, mecânicos, cursos de aperfeiçoamento e mecânica de automóveis.
A partir do ano letivo de 2010-2011, com a reforma Gelmini, o Instituto Profissional passou de um curso de três anos para um de cinco anos.

Atualmente, a Casa Salesiana, chamada Instituto Orfanato Salesiano “Dom Bosco”, tem várias áreas educativas:
– um Centro de Formação Profissional: um curso de três anos em mecânica e carroceria de automóveis; cursos para trabalhadores e empresas (cursos diurnos de treinamento inicial pós-diploma e cursos noturnos de atualização para os empregados), que fazem parte da federação CNOS/FAP da Região do Vale d’Aosta, criada em julho de 2001;
– um Instituto Profissional para a Indústria e o Artesanato (IPIA), com duas terminalidades: MAT (Manutenção e Assistência Técnica Mecânica); PIA (Produção e Artesanato Industrial em madeira –Fabricado na Itália);
– uma Escola Média, uma escola secundária paritária de primeiro grau, que recebe meninos e meninas do médio e baixo vale;
– um Internato Dom Bosco, reservado para os alunos que frequentam o IPIA, que acolhe, de segunda a sexta-feira, jovens provenientes do vizinho Piemonte ou das valadas.

A preparação desses jovens é confiada a uma comunidade educativa, cujos protagonistas principais são a comunidade salesiana, os professores leigos, os educadores, os colaboradores e também os pais e os grupos da família salesiana (cooperadores, ex-alunos).

No entanto, o foco educativo não se limitou à preparação humana e profissional para formar cidadãos íntegros, mas também para formar bons cristãos.
Embora os espaços da casa – por serem muito pequenos – não permitam atividades de formação cristã, foi encontrada uma solução para essas atividades e para celebrações importantes. Mais acima e a uma curta distância da Casa Salesiana de Châtillon está a antiga paróquia de São Pedro (documentada desde o século XII), que tem uma igreja grande. O acordo com a paróquia trouxe muitos frutos, inclusive a propagação da devoção à Nossa Senhora de Dom Bosco, Maria Auxiliadora, uma invocação querida para os salesianos. O fruto dessa devoção se manifestou também na recuperação da saúde de várias pessoas (Martina Blanchod, Ema Vuillermoz, Paulina Pession etc.), atestada pelos escritos da época.

O desejo sincero de fazer o bem por parte de todos aqueles que contribuíram para o desenvolvimento levou ao sucesso dessa obra salesiana.
Em primeiro lugar, os empresários que compreenderam a necessidade e a importância da educação de crianças em situação de risco e, ao mesmo tempo, promoveram a formação de possíveis futuros funcionários. Eles não apenas ofereceram suas instalações, mas também apoiaram financeiramente as atividades educativas.
Além disso, houve a sabedoria das autoridades locais, que compreenderam a importância do trabalho realizado por mais de 30 anos e imediatamente se ofereceram para continuar dando apoio às crianças e também às empresas da região, fornecendo-lhes, assim, trabalhadores qualificados.
Por último, mas não menos importante, deve-se reconhecer o trabalho realizado pelos salesianos e seus colaboradores de todos os tipos, que fizeram o máximo para garantir que a esperança do futuro não se extinguisse: os jovens e sua educação integral.
Esse profissionalismo na preparação dos jovens, juntamente com o cuidado com as estruturas logísticas (salas de aula, laboratórios, ginásios, pátios), a manutenção cuidadosa e constante das instalações, a conexão com o território, levaram a um amplo reconhecimento que também se reflete no fato de que uma rua e uma praça de Châtillon são dedicadas a São João Bosco.

Quando os homens buscam sinceramente o bem e se esforçam para consegui-lo, Deus dá sua bênção.




Você já pensou em sua vocação? São Francisco de Sales poderia ajudar você (10/10)

(continuação do artigo anterior)

10. Vamos planejar?

Quando era jovem estudante, Francisco de Sales (ele tinha 22 anos) percebeu que os perigos para a alma e para o corpo ameaçam a todo momento; com a ajuda de seu confessor, Padre Possevino, ele esboçou um Programa de Vida ou Plano Espiritual para saber como deveria se comportar a cada dia e em cada ocasião. Ele o escreveu e o lia com frequência. É o seguinte:

1. Todas as manhãs, fazer o Exame de Previsão: que consiste em pensar em que trabalho, que reuniões, que conversas e ocasiões especiais podem surgir naquele dia e planejar como se comportar em cada um desses momentos.

2. Ao meio-dia, visitar o Santíssimo Sacramento em alguma igreja e fazer o Exame Particular sobre meu defeito dominante, para ver se estou lutando contra ele e se estou tentando praticar a virtude contrária a ele.
Há um detalhe interessante aqui: durante 19 anos, seu Exame Particular será sobre o “mau gênio”, aquele defeito muito forte que é sua inclinação para ficar com raiva. Quando alguém, já bispo e maravilhosamente gentil e bom, perguntar a ele o que fez para chegar a um grau tão elevado de autodomínio, ele responderá: “Durante 19 anos, dia após dia, examinei-me cuidadosamente quanto à minha intenção de não tratar ninguém com dureza”. Esse Exame Particular foi uma prática extremamente seguida por Santo Inácio de Loyola, com verdadeiro sucesso espiritual. É como um eco daquele ensinamento de Kempis: “Se a cada ano você atacar seriamente uma de suas faltas, chegará à santidade”.

3. Nenhum dia sem meditação.
Durante meia hora, dedico-me a pensar nos favores que Deus me concedeu, na grandeza e na bondade de Nosso Senhor, nas verdades que a Bíblia Sagrada ensina ou nos exemplos e ensinamentos dos santos. E, no final da meditação, escolho alguns pensamentos para repassá-los em minha mente durante o dia e faço uma breve resolução sobre como me comportarei nas próximas 12 horas.

4. Rezar o Santo Rosário todos os dias
Não descuidar de rezá-lo em nenhum dia de minha vida.
Essa é uma Promessa que ele fez à Santíssima Virgem num momento de grande angústia e, durante toda a sua vida, ele a cumpriu à risca. Mais tarde, porém, ele diria a seus discípulos que nunca fizessem esse tipo de promessa durante toda a vida, porque elas podem trazer angústia. Tomar resoluções sim, mas promessas não.

5. Em minhas relações com os outros, ser gentil, mas moderado.
Estar mais preocupado em fazer com que os outros falem sobre o que lhes interessa do que eu falar. O que eu digo eu já sei. Mas o que eles dizem pode me ajudar a crescer espiritualmente. Ao falar, não aprendo nada; ao ouvir com atenção, posso aprender muito.

6. Durante o dia, pensar na presença de Deus.
“Os teus olhos me veem, teus ouvidos me ouvem. Se eu for até os confins da terra, lá estás, meu Deus. Se eu me esconder na mais terrível escuridão, ali a tua luz me vê como se fosse de dia” (Cf. Salmo 138). “O Senhor pagará a cada um de acordo com suas obras. Todos terão de comparecer diante do Tribunal de Deus para prestar-lhe contas do que fizeram, das coisas boas e das coisas ruins” (Cf. São Paulo).

7. Todas as noites, antes de me deitar, farei o Exame do Dia: lembrarei se comecei meu dia recomendando-me a Deus.
Se durante minhas ocupações eu me lembrei de Deus muitas vezes para oferecer a Ele minhas ações, pensamentos, palavras e sofrimentos. Se tudo o que fiz hoje foi por amor ao bom Deus. Se tratei bem as pessoas. Se não procurei, em minhas ações e palavras, agradar ao meu amor-próprio e orgulho, mas agradar a Deus e fazer o bem ao meu próximo. Se fui capaz de fazer algum pequeno sacrifício. Se me esforcei para ser fervoroso em meu discurso. E pedirei perdão ao Senhor pelas ofensas que lhe causei neste dia; tomarei a resolução de me tornar melhor de agora em diante; e implorarei ao céu que me conceda forças para ser sempre fiel a Deus; e recitando minhas três Ave-Marias, me entregarei pacificamente ao sono.

Escritório de Animação Vocacional




Zatti: bom samaritano, para os doentes, médicos e enfermeiros (vídeos)

Hospital-Zatti
Zatti e o hospital eram um binômio inseparável. O padre Entraigas se lembra de que, quando havia uma chamada telefônica, o coadjutor quase gritava: “Zatti-Hospital”. Sem perceber, ele expressava a realidade inseparável entre sua pessoa e o hospital. Ele se tornou responsável pelo hospital em 1913, após a morte do Padre Garrone e a saída de Jacinto Massini da Congregação; assumiu gradualmente todas as tarefas, mas era, antes de tudo e inequivocamente, o “enfermeiro” do São José. Ele não continuou a sua preparação de qualquer jeito; mas tentou aperfeiçoar o que havia aprendido empiricamente por meio do estudo pessoal. Ele continuou a estudar durante toda a sua vida e, acima de tudo, adquiriu uma grande experiência em seus 48 anos de prática no São José. O Dr. Sussini, que estava entre aqueles que trabalharam por mais tempo no São José, depois de afirmar que Zatti tratava os doentes “com santa vocação”, acrescenta: “Até onde sei, o Sr. Zatti, desde que o conheci, sendo um homem maduro, já treinado, não havia negligenciado sua cultura geral, nem seu conhecimento de enfermagem e preparação farmacêutica”.
O Padre De Roia fala sobre a formação profissional de Zatti da seguinte maneira: “Sobre a questão da formação cultural e profissional, lembro-me de ter visto livros e publicações sobre medicina e perguntei-lhe uma vez quando ele os lia, e ele respondeu que o fazia à noite ou durante a hora da sesta dos pacientes, assim que terminava suas tarefas no hospital. Ele também me disse que o Dr. Sussini às vezes lhe emprestava alguns livros e vi que ele consultava com frequência o «Vademecum e Receituários»”.
O Dr. Pedro Echay afirma que, para Zatti, “o Hospital era um Santuário”. O Padre Feliciano López descreve a posição de Zatti no hospital da seguinte forma, após uma longa convivência com ele: “Zatti era um homem de governo, sabia expressar claramente o que queria, mas acompanhava suas ações com gentileza, respeito e alegria. Nunca perdia a calma; na verdade, ele minimizava as coisas com bom humor, mas seu exemplo de diligência era impressionante, e mais do que um diretor, sem título, ele se tornou uma espécie de trabalhador universal. Além disso, ele avançou rapidamente na competência profissional, até ganhar também o respeito dos médicos e, mais ainda, dos subordinados. Por isso, nunca ouvi dizer que naquele pequeno mundo de 60 ou 70 pacientes internados, nos primeiros tempos várias freiras, mulheres que prestavam seus serviços e algumas enfermeiras, nem sempre reinava a paz e, mesmo que, como é lógico, às vezes houvesse brigas, estas não degeneravam graças à prudência de Zatti, que sabia remediar os desvios”.
O Hospital São José era um santuário especial do sofrimento humano, onde Artêmides, em cada irmão e irmã necessitados, abraçava e curava a carne sofredora de Cristo, dando significado e esperança ao sofrimento humano. Zatti – e com ele muitos homens e mulheres de boa vontade – encarnou a parábola do Bom Samaritano: ele se aproximou, estendeu a mão, levantou e cuidou. Para ele, cada pessoa doente era como um filho a ser amado. Homens e mulheres, grandes e pequenos, ricos e pobres, inteligentes e ignorantes, todos eram tratados com respeito e amor, sem incomodar ou rejeitar os insolentes e desagradáveis. Ele costumava dizer: “Às vezes, pode acontecer alguém com um rosto simpático, outras vezes alguém antipático; mas diante de Deus somos todos iguais”.
Se havia pobreza de recursos, e se muitos dos que estavam hospitalizados eram pobres, mesmo assim Zatti, no hospital, dados os tempos, os lugares e as situações de todos os hospitais, mesmo os nacionais da época, seguia as regras corretas de saúde e higiene. Naquela época, eles procediam com critérios mais amplos, mas não há nenhuma evidência de que o salesiano coadjutor, como enfermeiro, tenha faltado com a justiça e a caridade para com os doentes. Era bem instruído para sua tarefa e bem experiente, sabia o que tinha de fazer e os limites de sua competência, e não há lembrança de qualquer erro, qualquer negligência ou qualquer acusação contra ele. O Dr. Sussini disse: “Em suas intervenções com os doentes, ele sempre respeitou os regulamentos legais, sem ultrapassar seus poderes […]. Gostaria de salientar que, em todas as suas intervenções, ele consultava algum médico entre aqueles que estavam sempre ao seu lado para apoiá-lo. Até onde sei, ele fez isso de forma correta. Até onde sei, ele não realizou nenhuma intervenção difícil […]. É certo que ele seguia as prescrições higiênicas estabelecidas, embora às vezes, devido à sua grande fé, as considerasse excessivas. O cenário socioeconômico no qual o Sr. Zatti realizava seu trabalho era principalmente de baixa renda e instrução. Em seu trabalho dentro do hospital, ele colocava em prática os conhecimentos bem estabelecidos de higiene e técnica que já conhecia e outros que aprendia perguntando aos profissionais. Fora do hospital, sua ação era mais difícil, pois mudar o ambiente existente era muito difícil e estava além de seus esforços”.
Luís Palma expande sua consideração: “Era de conhecimento geral em Viedma a discrição e a prudência do comportamento do Sr. Zatti; por outro lado, qualquer abuso nessa questão se tornaria rapidamente de conhecimento geral em uma pequena população como Viedma e nunca se ouviu falar nada. O Sr. Zatti nunca excedeu sua competência. Não acredito que ele tenha realizado operações difíceis. Se tivesse havido algum abuso, os médicos teriam relatado, mas eles apenas elogiaram o trabalho do Sr. Zatti […]. O Sr. Zatti tomou as devidas precauções higiênicas. Sei disso porque ele me tratou em várias ocasiões: injeções ou pequenos cuidados com toda a diligência”.
Para um homem que dedicou toda a sua vida com enorme sacrifício aos doentes, que era procurado por eles como uma bênção, que conquistou a estima de todos os médicos que colaboraram com ele e contra o qual nunca se poderia levantar uma voz de acusação, seria injusto ter contra ele algumas liberdades que sua experiência e prudência poderiam lhe permitir em alguma circunstância particular: o sublime exercício da caridade, mesmo nesse caso, valia mais do que a observância de uma prescrição formal.

Com o coração de Dom Bosco
Em Zatti se realizou o que Dom Bosco havia recomendado aos primeiros missionários salesianos que partiam para a Argentina: “Cuidai de modo especial dos doentes, meninos, velhos e pobres, e ganhareis as bênçãos de Deus e a benevolência dos homens”. Como um bom samaritano, Zatti acolheu na hospedaria de seu coração e no Hospital São José, em Viedma, os pobres, os doentes e os rejeitados pela sociedade. Em cada um deles visitou Cristo, cuidou de Cristo, alimentou Cristo, vestiu Cristo, abrigou Cristo, honrou Cristo. Como testemunhou um médico do hospital: “O único milagre que vi em minha vida foi o Sr. Zatti, devido à extraordinariedade de seu caráter, sua capacidade de servir ao próximo e sua extraordinária paciência com os doentes”.
Zatti era capaz de reconhecer um presente em cada irmão, em cada irmã, em cada pessoa especialmente pobre e necessitada que encontrava: ele era capaz de ver em cada um deles o rosto brilhante de Jesus. Quantas vezes ele exclamava ao receber uma pessoa pobre ou doente: “Jesus vem! – Cristo está chegando!”. Manter o olhar fixo em Jesus, especialmente na hora da provação e na noite do espírito, será a força que lhe permitirá não cair prisioneiro de seus próprios pensamentos e medos.
No exercício dessa caridade, Zatti fez transparecer o abraço de Deus por cada ser humano, especialmente pelos últimos e pelos que sofrem, envolvendo o coração, a alma e todo o seu ser, porque vivia com os pobres e para os pobres. Não era um mero serviço, mas uma manifestação tangível do amor de Deus, reconhecendo e servindo nos pobres e nos doentes a face do Cristo sofredor com a doçura e a ternura de uma mãe. Vivendo com os pobres, ele praticou a caridade com espírito de pobreza. Não era um funcionário ou um burocrata, um prestador de serviços, mas um autêntico trabalhador da caridade: e ao ver, reconhecer e servir a Cristo nos pobres e excluídos, ele também educava os outros. Quando pedia alguma coisa, ele a pedia para Jesus: “Dê-me alguma roupa para um Jesus idoso”; “Dê-me alguma roupa para um Jesus de 12 anos!”.
Impossível não se lembrar de suas aventuras ciclísticas, de suas incansáveis pedaladas, com seu clássico jaleco branco de pontas atadas e amarrado na cintura, saudado com ternura por todos os que encontrava em seu caminho. Na lenta marcha de sua bicicleta, ele tinha tempo para tudo: o cumprimento afetuoso, a palavra cordial, o conselho ponderado, alguma indicação terapêutica, a ajuda espontânea e desinteressada: seus grandes bolsos estavam sempre cheios de remédios, que distribuía aos necessitados com as mãos cheias. Ele estendia pessoalmente a mão a quem o chamava, esbanjando não só o conhecimento médico que possuía, mas também a confiança, o otimismo e a fé que irradiavam de seu sorriso constante, largo e doce e da bondade de seu olhar; o doente grave que recebia a visita do Sr. Zatti sentia o alívio imponderável que recebia da pessoa que estava ao seu lado; o doente que morria na presença de Zatti o fazia sem angústia ou espasmos. A caridade dispensada com tanta generosidade nas ruas lamacentas de Viedma bem merecia que Artêmides Zatti fosse lembrado na cidade com uma rua, um hospital e um monumento em seu nome.
Exercia um apostolado humilde que dava a medida de sua caridade, mas que lhe exigia muito tempo, trabalho, dificuldades e aborrecimentos. Como sua bondade e boa vontade em servir aos outros era conhecida por todos, todos o procuravam para as mais diversas coisas. Os diretores salesianos das casas da Inspetoria lhe escreviam para pedir conselhos médicos, enviavam-lhe irmãos para pedir ajuda e confiavam ao seu hospital pessoas incapacitadas para o serviço. As Filhas de Maria Auxiliadora não eram menos assíduas do que os salesianos no pedido de favores. Os emigrantes italianos pediam ajuda, escreviam para a Itália, solicitavam práticas. Os que haviam sido bem atendidos no hospital, como se fosse uma expressão de gratidão, enviavam parentes e amigos para pedir ajuda, por causa da estima que tinham por ele. As autoridades civis muitas vezes tinham pessoas incapacitadas para cuidar e recorriam a Zatti. Os prisioneiros e outras pessoas, ao vê-lo em boas relações com as autoridades, recomendavam que ele pedisse clemência para eles ou resolvesse seus problemas.
Um fato que expressa bem o poder de autoridade de Zatti para impactar a vida das pessoas com seu testemunho evangélico e sua palavra persuasiva é a conversão de Lautaro Montalva. Ele, chamado de chileno por seu país de origem, era um revolucionário, explorado pelos agitadores políticos habituais. Difundia revistas antirreligiosas. Finalmente, abandonado por todos, caiu na pobreza e chegou ao fim da vida, com uma família numerosa. Somente Zatti teve a coragem de entrar em seu casebre de madeira, resistir à sua primeira reação de rebeldia e conquistá-lo com sua caridade. O revolucionário se amansou e pediu para ser batizado: seus filhos também foram batizados. Zatti o internou no hospital. Pouco antes de sua morte, ele pediu ao pároco: “Dê-me os sacramentos que um cristão deve receber!” A conversão de Montalva foi uma conquista da caridade e da coragem cristã de Zatti.
Zatti faz da missão a serviço dos doentes o seu espaço educativo, onde encarna cotidianamente o Sistema Preventivo de Dom Bosco – razão, religião, amorosidade – na proximidade e na assistência aos necessitados, ajudando-os a compreender e a aceitar as situações dolorosas da vida, no testemunho vivo da presença do Senhor.

Zatti enfermeiro
O perfil profissional de Artêmides Zatti, que começou com uma promessa, estava enraizado na confiança na Providência e se desenvolveu quando ele se recuperou de sua doença. A frase “Acreditei, Prometi, Sarei”, lema de sua canonização, mostra a dedicação total que Zatti tinha por seus irmãos e irmãs doentes, pobres e necessitados.
Esse compromisso ele manteve diariamente até sua morte no hospital São José, fundado pelos primeiros salesianos que chegaram à Patagônia, e o reiterou em cada visita domiciliar, urgente ou não, que fazia aos doentes que precisavam dele.
Em sua bicicleta, no escritório de administração, na sala de cirurgia, no pátio durante o recreio com seus “parentes” pobres, nas enfermarias do hospital que visitava todos os dias, era sempre um enfermeiro; um santo enfermeiro dedicado a cuidar e aliviar, levando o melhor remédio: a presença alegre e otimista da empatia.

Uma pessoa e uma equipe que fazem o bem
Era a fé que impulsionava Artêmides Zatti a uma atividade incansável, mas razoável. Sua consagração religiosa o havia introduzido direta e completamente no cuidado dos pobres, dos doentes e daqueles que necessitavam da salvação misericordiosa e do consolo de Deus.
O Sr. Zatti trabalhou no mundo da saúde ao lado de médicos, enfermeiros, pessoal de saúde, Filhas de Maria Auxiliadora e de muitas pessoas que colaboraram com ele no apoio ao hospital São José, o primeiro da Patagônia argentina, em Viedma, na primeira metade do século XX.
A tuberculose que contraiu aos 20 anos de idade não foi um obstáculo para perseverar em sua escolha profissional. Ele encontrou na figura do salesiano coadjutor o estilo de compromisso para trabalhar diretamente com os pobres. Sua consagração religiosa, vivida em sua profissão de enfermeiro, foi a combinação de sua vida dedicada a Deus e a seus irmãos. Naturalmente, isso se manifestou em uma personalidade peculiar, única e irrepetível. Artêmides Zatti era uma pessoa boa, que trabalhava diretamente com os pobres, fazendo o bem.

O contato direto com os pobres tinha como objetivo a saúde, ou seja, aliviar a dor, suportar o sofrimento, acompanhar os últimos momentos de suas vidas, oferecer um sorriso diante do irreversível, dar uma mão com esperança. Por esse motivo, Zatti se tornou uma “presença-remédio”: ele curava diretamente com sua presença agradável.
Seu principal biógrafo, o salesiano Raul Entraigas, fez uma descoberta original. Ele identificou a síntese da vida de Artêmides Zatti na frase de um morador do lugar: ele parece ser “o parente de todos os pobres”. Zatti via o próprio Jesus nos órfãos, nos doentes e nos indígenas. E ele os tratava com tanta proximidade, apreço e amor, que parecia que todos eram seus parentes.

Formação para ajudar
Vendo as necessidades da cidadezinha, Zatti aperfeiçoou sua profissão. Gradualmente, ele se tornou diretor do hospital, estudou e validou seu conhecimento com o Estado quando lhe foi solicitado. Os médicos que trabalharam com Artêmides, como o Dr. Molinari e o Dr. Sussini, testemunham que Zatti possuía um grande conhecimento médico, resultado não apenas de sua experiência, mas também de seus estudos.
O P. De Roia acrescenta: “Quanto à sua formação cultural e profissional, lembro-me de ter visto livros e publicações sobre medicina e, perguntando-lhe uma vez quando os lia, ele me disse que o fazia à noite ou durante o descanso dos pacientes à tarde, logo que terminava todas as suas tarefas no hospital”.
A esse respeito, há um documento, “Credenciais Profissionais”, emitido pela Secretaria de Saúde Pública da Nação Argentina com o número de registro profissional 07253. Trata-se de seus estudos na Universidade Nacional de La Plata em 1948, aos 67 anos de idade. A isso se soma uma certificação anterior, em 1917, como “Idôneo” em Farmácia.
Seu estilo de vida o levou a um compromisso no qual ele se encontrava diretamente com os pobres, os doentes e os mais necessitados. É por isso que a profissão de enfermeiro tinha um valor agregado: sua presença era um testemunho da bondade de Deus. Essa maneira simples de ver a realidade pode ajudar a entender melhor a vida de Zatti, prestando atenção especial ao termo “diretamente”.
Nessa perspectiva, encontramos o que há de mais genuíno em Zatti, que enfatiza o que é chamado de “vida religiosa” ou “consagração”. É por isso que Artêmides é um salesiano santo. Ele é um enfermeiro santo. Esse é o legado que ele deixou para todos. E este é o desafio que ele lança a todos e os convida a aceitar.

1908
Depois de recuperar a saúde, Zatti entrou para a Congregação Salesiana como coadjutor. Ele começou a trabalhar na farmácia do hospital São José, o único em Viedma.
1911
Após a morte do P. Evásio Garrone, diretor do hospital, Zatti permaneceu no comando da farmácia e do hospital, o primeiro da Patagônia. Ele trabalhou lá por quarenta anos.
1917
Ele obteve o título de “Idôneo em Farmácia” pela Universidade de La Plata.
1941
O prédio do hospital é demolido. Os pacientes e profissionais se mudam com Zatti para a escola agrícola “Santo Isidoro”.
1948
Zatti obteve seu registro como enfermeiro na Universidade de La Plata.

Zatti com os médicos: ele era pai!
Entre os principais colaboradores de Zatti no Hospital São José estavam os médicos. As relações eram delicadas, pois um dos médicos era o diretor do hospital do ponto de vista jurídico e tinha responsabilidade profissional pelos pacientes. Zatti tinha responsabilidade organizacional e de enfermagem, e podiam surgir desentendimentos. Depois dos primeiros anos, vários médicos vieram para Viedma, a capital de Rio Negro, e Patagones; e Zatti teve de usar suas especializações no hospital sem despertar rivalidade. Agiu de forma a conquistar a estima de todos por sua bondade e competência. Na documentação, encontramos os nomes dos diretores Dr. Ricardo Spurr e Dr. Francisco Pietrafraccia; depois, Antônio Gumercindo Sussini, Ferdinando Molinari, Pedro Echay, Pasqual Atílio Guidi e João Cadorna Guidi, que testemunharão a santidade de Zatti; e, finalmente, Harosteguy, Quaranta e Cessi. Certamente havia outros, mais de passagem, porque, após um período de aprendizado, os médicos aspiravam a locais mais centrais e desenvolvidos. É unanimemente reconhecido que Zatti, como enfermeiro, era submisso às instruções e regras dos médicos: ele tinha grande prestígio junto a todos por causa de sua bondade e não suscitava reclamações sobre os cuidados que dava aos pacientes doentes em sua casa. O Dr. Sussini, que o acompanhou até a morte, declarou: “Todos os médicos, sem exceção, demonstravam-lhe afeto e respeito por suas virtudes pessoais, sua bondade, sua misericórdia e sua fé pura, sincera e desinteressada”[i] .
O Dr. Pasqual Atílio Guidi especificou: “Ele sempre foi correto, seguia as instruções dos médicos. Lembro-me de que o Dr. Harosteguy, que era bastante «contestador», nervoso, quando eu estava presente durante uma operação, às vezes culpava o Sr. Zatti por seus problemas; mas, no final da operação, ele lhe dava um tapinha nas costas e pedia desculpas. Dessa forma, entendíamos que não havia tanta mágoa contra Zatti. Zatti era uma pessoa respeitada por todos”[ii] . A filha do Dr. Harosteguy e o Dr. Echay confirmam o caráter forte de Harosteguy e as explosões injustificadas contra Zatti, que o conquistou com sua tolerância. De fato, foi justamente o Dr. Harosteguy, quando adoeceu, que só permitiu que Zatti o visitasse, apreciando sua presença e proximidade.
O Dr. Molinari testemunhou: “O Sr. Zatti respeitava o corpo médico e seguia rigorosamente suas instruções. Mas, devido ao grande número de pacientes que exigiam exclusivamente sua intervenção, ele teve que agir muitas vezes espontaneamente, mas sempre com base em seu grande conhecimento, sua experiência e de acordo com seu próprio conhecimento médico. Ele nunca se atreveu a uma cirurgia difícil. Ele sempre chamava o médico. Nós, médicos, tínhamos carinho, respeito e admiração pelo Sr. Zatti. Esse sentimento era geral […] eu diria que os pacientes «adoravam» o Sr. Zatti e tinham uma confiança cega nele”[iii] .
O Dr. Echay faz esta observação singular: “Com toda a equipe do hospital, Zatti era um pai; mesmo conosco, médicos mais jovens, ele era um bom conselheiro”[iv] . Com relação às visitas que Zatti fazia à cidade, o Dr. Guidi diz: “Os médicos nunca viram esse trabalho de Zatti de forma negativa, mas como uma colaboração. […]. Os pacientes que ele atendia ergueriam um monumento a ele”[v] .
Mesmo as pessoas de fora sempre viram relações estreitas de colaboração e estima entre Zatti e os médicos, como testemunha o Padre López: “O comportamento do Sr. Zatti com os médicos era considerado por eles como cordial. Todos os médicos com quem conversei eram, sem exceção, seus admiradores”[vi] . E o próprio Padre López: “Sempre houve a reputação da amabilidade de Zatti para com os médicos, sua tolerância e humanidade diante da rudeza típica de muitos médicos; em particular, o Dr. Harosteguy era um homem violento e a virtude de Zatti para com ele pode ser deduzida porque ele se tornou um admirador de Zatti, com tons de veneração”[vii] . Oscar Garcia usa uma expressão significativa: “Os médicos colaboravam com o hospital em boa parte porque o Sr. Zatti estava lá com uma caridade que comovia os corações”[viii] . Sua vida abalou a indiferença religiosa de alguns deles: “Quando vejo Zatti, minha descrença vacila”[ix] . Em não poucos casos, houve conversões e início de vida cristã.

Zatti e as enfermeiras: ele era tudo para nós!
O maior grupo que prestava serviços ao hospital era a equipe feminina. O São José tinha até 70 leitos em alguns momentos, e é natural que fossem necessárias enfermeiras treinadas profissionalmente, ajudantes de cozinha, lavadeiras e engomadeiras, faxineiras e outros funcionários. Para as ocupações mais humildes e comuns, não era difícil encontrar pessoal, porque a população tinha muitos elementos pobres e um estágio no hospital parecia particularmente desejável e seguro. Mais difícil foi encontrar as enfermeiras para as quais, talvez em todo o país e certamente na Patagônia, não havia escolas de preparação. Zatti teve que prover sozinho: escolher, treinar, organizar, auxiliar as enfermeiras, obter os meios de trabalho, pensar no pagamento, a tal ponto que ele foi o iniciador no treinamento da equipe feminina do hospital.
A Providência trouxe para o hospital várias jovens boas, mas pobres, que depois de serem assistidas e curadas estavam procurando um lugar na vida. Zatti se deu conta da bondade e da disponibilidade delas; mostrou, com seu exemplo e sua palavra, como era belo servir ao Senhor nos irmãos e irmãs doentes; e então fez a discreta proposta de ficarem com ele e compartilharem a missão no hospital. As melhores moças sentiram a grandeza e a alegria desse ideal e ficaram no São José. Zatti assumiu a responsabilidade de prepará-las profissionalmente e, como bom religioso, cuidou de sua formação espiritual. Assim, elas passaram a constituir-se como grupo numa espécie de congregação sem votos, de almas escolhidas que optaram por servir aos pobres. Zatti lhes dava tudo o que precisavam para a vida, mesmo que normalmente não lhes pagasse, e pensava em uma boa acomodação caso quisessem deixar o serviço hospitalar. Não devemos pensar que a situação naquela época exigia todas as garantias que as instalações hospitalares exigem hoje. Para essas moças, a solução oferecida por Zatti, do ponto de vista material, era invejável, tanto quanto do ponto de vista espiritual. De fato, elas eram felizes e quando o Hospital São José foi fechado, ou antes, não foi difícil para nenhuma delas encontrar uma boa acomodação. Em conjunto elas sempre expressaram sua gratidão.
O padre Entraigas recorda 13 nomes de funcionárias que trabalharam no hospital em diferentes épocas. Entre os documentos estão os relatórios das enfermeiras: Noélia Morero, Teodolinda Acosta, Felisa Botte, Andrea Rafaela Morales, Maria Danielis. Noelia Morero conta sua história, que foi idêntica à de várias outras enfermeiras. Ela chegou doente ao São José: “Aqui eu estive doente e depois comecei a trabalhar até o final de 1944, quando me mudei para o Hospital Nacional Regional em Viedma, que foi inaugurado em 1945 […]. Zatti era muito amado e respeitado por todos os funcionários e pacientes; ele era o “lenço de lágrimas” de todos. Não me lembro de nenhum tipo de reclamação contra ele. Quando Zatti entrava nos quartos, parecia que “o próprio Deus!” estava entrando. Eu não saberia como dizer isso. Para nós, ele era tudo. Eu não tive nenhuma dificuldade especial; como doente, nunca me faltou nada: nem comida, nem remédios, nem roupas. O Sr. Zatti se preocupava especialmente com a formação moral da equipe. Lembro-me de que ele nos fazia aprender com aulas práticas, acompanhando-o quando visitava os doentes e, depois de uma ou duas vezes, ele nos mandava fazer o mesmo especialmente nos casos mais graves”[x] .

Filme visto antes da conferência



Vídeo da conferência: Zatti, o Bom Samaritano, para os doentes, médicos e enfermeiros
Palestra proferida pelo Pe. Pierluigi CAMERONI, Postulador Geral da Sociedade Salesiana São João Bosco de Valdocco, em 15.11.2023.




[i] Depoimento do Dr. Antônio Gumercindo Sussini. Positio – Summarium, p. 139, § 561.

[ii] Depoimento de Atílio Guidi, farmacêutico. Ele conheceu Zatti de 1926 a 1951. Positio – Summarium, p. 99, § 386.

[iii] Depoimento do Dr. Ferdinando Molinari. Ele conheceu Zatti de 1942 a 1951. Tornou-se médico no Hospital São José e o tratou durante sua última doença. Ele fez o discurso oficial na inauguração do monumento a Zatti. Positio – Summarium, p. 147, § 600.

[iv] Depoimento do Dr. Pedro Echay. Positio – Informatio, p. 108.

[v] Depoimento de Atílio Guidi. Positio – Summarium, p. 100, § 391.

[vi] Testemunho do Padre Feliciano López. Positio – Summarium, p. 171, § 694.

[vii] Ibid., p. 166, § 676.

[viii] Depoimento de Oscar García, funcionário da polícia. Ele conheceu Zatti em 1925, mas lidou com ele principalmente depois de 1935, tanto como líder de ex-alunos quanto como membro do Círculo Operário. Positio – Summarium, p. 111, § 440.

[ix] Depoimento do Padre Feliciano López. Positio – Summarium, p. 181, § 737.

[x] Depoimento de Noélia Morero, enfermeira. Positio – Informatio, p. 112.




O grande dom de santidade de Artêmides Zatti, salesiano coadjutor (vídeos)

            A crônica do colégio salesiano de Viedma recorda que, segundo o costume, no dia 15 de março de 1951, pela manhã, o sino anunciou a fuga para o céu do irmão coadjutor Artêmides Zatti, e comunicou estas palavras proféticas: “Um irmão a menos na casa e um santo a mais no céu”.
            A canonização de Artêmides Zatti, em 9 de outubro de 2022, é um dom da graça; o testemunho de santidade que o Senhor nos dá por meio desse irmão que viveu sua vida na docilidade ao Espírito Santo, no espírito de família típico do carisma salesiano, encarnando a fraternidade para com seus coirmãos e a comunidade salesiana, e a proximidade para com os pobres e os doentes e todos aqueles que encontrou em seu caminho, é um evento abençoado que deve ser acolhido e feito frutificar.
            Santo Artêmides Zatti se revela modelo, intercessor e companheiro de vida cristã, próximo de todos. De fato, sua aventura o apresenta a nós como uma pessoa que experimentou a labuta diária da existência com seus sucessos e fracassos. Basta lembrar a separação de seu país natal para emigrar para a Argentina; a doença da tuberculose que irrompeu como um furacão em sua jovem existência, destruindo todos os sonhos e todas as perspectivas de futuro; ver demolido o hospital que ele havia construído com tantos sacrifícios e que havia se tornado um santuário do amor misericordioso de Deus. Mas Zatti sempre encontrou no Senhor a força para se reerguer e continuar seu caminho.

Testemunho de esperança
            Para os tempos dramáticos que estamos vivendo, marcados pela pandemia, por tantas guerras, pela emergência climática e, acima de tudo, pela crise e pelo abandono da fé de tantas pessoas, Artêmides Zatti nos encoraja a viver a esperança como uma virtude e como uma atitude de vida em Deus. Sua história nos lembra como o caminho para a santidade muitas vezes exige uma mudança de rumo e de visão. Artêmides, em diferentes estágios de sua vida, descobriu na Cruz a grande oportunidade de renascer e começar de novo:
            – quando, ainda menino, no trabalho duro e cansativo do campo, aprendeu imediatamente a enfrentar as dificuldades e as responsabilidades que sempre o acompanhariam em sua maturidade;
            – quando, aos 17 anos, emigrou com sua família para a Argentina em busca de maior fortuna;
            – quando um jovem aspirante à vida salesiana é atingido pela tuberculose, infectado por um jovem padre que ele estava ajudando porque estava muito doente. O jovem Zatti experimenta em sua própria carne o drama da doença, não apenas como fragilidade e sofrimento do corpo, mas também como algo que toca o coração, que gera medos e multiplica as perguntas, fazendo emergir com preponderância a questão do significado de tudo o que acontece e do futuro que o espera, ao ver que aquilo com que sonhava e almejava, de repente, fracassa. Com fé, ele se volta para Deus, busca um novo significado e uma nova direção para a existência, para a qual não encontra respostas imediatas nem fáceis. Graças à presença sábia e encorajadora do Padre Cavalli e do Padre Garrone, e lendo as circunstâncias da vida em um espírito de discernimento e obediência, ele amadureceu sua vocação salesiana como coadjutor, dedicando toda a sua vida ao cuidado material e espiritual dos doentes e à assistência aos pobres e necessitados. Decidiu ficar com Dom Bosco, vivendo plenamente a vocação original de coadjutor;
            – quando teve de enfrentar provações, sacrifícios e dívidas para cumprir sua missão em favor dos pobres e dos doentes, administrando o hospital e a farmácia, sempre confiando na ajuda da Providência;
            – quando viu o hospital, ao qual havia dedicado tanta energia e recursos, ser demolido para a construção de um novo;
            – quando, em 1950, caiu de uma escada e surgiram os sintomas de um tumor, que ele mesmo diagnosticou com lucidez, e que o levaria à morte, ocorrida em 15 de março de 1951: mesmo assim, continuou a cumprir a missão à qual havia se consagrado, aceitando os sofrimentos desse último período de sua vida.

O êxodo pascal: de Bahía Blanca a Viedma
            É bem provável que Artêmides tenha chegado a Bahía Blanca, vindo de Bernal, na segunda metade de fevereiro de 1902. A família o recebeu com a tristeza e o carinho que se pode imaginar. Acima de tudo, sua mãe se dedicou a ele com muito amor para que recuperasse a força e a saúde, dada a extrema fraqueza em que se encontrava, e ela mesma queria curá-lo. Quem se opunha a essa solução era o próprio Artêmides, que, sentindo-se agora intimamente ligado aos salesianos, queria obedecer ao que os superiores de Bernal haviam decidido e ir a Junín de los Andes para cuidar de sua saúde. O pensamento dominante e não mais renunciável para ele era o desejo de seguir a vocação para a qual havia se proposto, de se tornar um sacerdote salesiano e, apesar da escuridão sobre seu futuro, por isso enfrentaria todas as dificuldades e sacrifícios: pretendia renunciar até mesmo ao cuidado de sua mãe e de sua família, temendo que elas pudessem impedi-lo em sua determinação. Ele havia conhecido Jesus, ouvido seu chamado e queria segui-lo, mesmo que não fosse da maneira que ele pensava e desejava.
            Os pais, a fim de resolver o problema do filho, recorreram ao conselheiro da família, Padre Carlos Cavalli, que absoluta e providencialmente desaconselhou o envio de Artêmides para Junín, um lugar muito distante para sua fraca força. Em vez disso, como foi exatamente naquela época que a reputação do padre Evásio Garrone como médico havia se estabelecido em Viedma, o padre Cavalli, muito sabiamente, achou melhor confiar a ele uma boa cura. Mesmo a distância de apenas 500 km, com os meios de transporte da época, fez com que essa solução valesse a pena. A família concordou, o bom pároco pagou a viagem na “Galera” do Sr. Mora e Artêmides, convencido por seu diretor espiritual, partiu para Viedma.
            A “Galera”, uma espécie de carruagem puxada por cavalos, era o único transporte público na época que viajava de Bahía Blanca para Viedma, cruzando o Rio Colorado. Houve também o contratempo de a “Galera” ter perdido o rumo, o que fez com que os viajantes tivessem que dormir no tempo e chegassem na terça-feira e não na segunda-feira, como planejado. A viagem deve ter sido muito dolorosa, embora Artêmides “cubra tudo com o otimismo de um santo, com fome e sede de imolação. Mas o que o pobre homem sofreu só Deus sabe”.

            Aqui está o texto da carta escrita por Artêmides para sua família imediatamente após sua chegada a Viedma.

Queridos pais e irmãos
            Viedma, 5.3.902

Cheguei a Viedma ontem de manhã, depois de uma feliz viagem de “Galera”, e hoje aproveito a oportunidade de escrever-lhes para dizer-lhes que fui bem, como já disse, porque a “Galera” não estava muito cheia de gente e de mercadorias. Só lhes digo que deveríamos ter chegado na segunda-feira a Patagones, mas ter errado o caminho, dormimos em campo aberto e chegamos na terça-feira de manhã, onde, com grande alegria, encontrei meus irmãos salesianos. Quanto à minha saúde, fui examinado pelo médico R. P. Garrone e me prometeu que em um mês eu estaria perfeitamente saudável. Com a ajuda da Santíssima Virgem Maria, nossa boa Mãe, e de D. Bosco, espero sempre o melhor. Rezem por mim e eu rezarei por vocês e assino como seu

            ARTÊMIDES ZATTI
            Adeus a todos

            Esta carta é uma obra-prima de esperança, uma condensação de otimismo evangélico: é uma parábola da vida em que, apesar do espectro da morte pairar e do caminho perdido, há um horizonte que se abre para o infinito. Naquela noite, passada nos campos da Patagônia, contemplando as estrelas, o jovem Artêmides emerge de sua agitação, de seu desânimo. Livre de olhar apenas para baixo, ele pode erguer os olhos e olhar para o céu para contar as estrelas; livre da tristeza e do medo de não ter futuro, livre do medo de ficar sozinho, do medo da morte, ele tem a experiência de que a bondade de Deus é tão imensa quanto um céu estrelado e que as graças podem ser infinitas, como as estrelas. Assim, pela manhã, ele chega a Viedma como se estivesse na terra prometida, onde “com grande júbilo” é acolhido por aqueles que já considera coirmãos, onde ouve palavras e promessas que falam de cura, onde, com plena confiança “na ajuda de Maria, nossa Boa Mãe, e de Dom Bosco”, chega à cidade onde prodigalizará sua caridade pelo resto da vida. Tendo passado pelos vaus das enchentes do Rio Colorado, ele também renasceu com esperança em sua saúde e em seu futuro.

O parente de todos os pobres
            Artêmides Zatti consagrou sua vida a Deus a serviço dos doentes e dos pobres, que se tornaram seus tesouros. Responsável pelo Hospital São José, em Viedma, ampliou o círculo de pessoas de quem cuidava, chegando, em sua inseparável bicicleta, a todos os doentes da cidade, especialmente aos mais pobres. Ele consegue muito dinheiro, mas sua vida é muito pobre: para a viagem à Itália por ocasião da canonização de Dom Bosco, teve de pedir emprestado terno, chapéu e mala. Ele é amado e estimado pelos doentes; amado e estimado pelos médicos que lhe dão a máxima confiança e se rendem à ascendência que flui de sua santidade. O segredo de tanta ascendência? Aqui está: para ele, cada pessoa doente era o próprio Jesus. Ao pé da letra! De sua parte, não há dúvidas: ele trata a todos com a mesma ternura com que teria tratado o próprio Jesus, oferecendo seu próprio quarto em casos de emergência, ou até mesmo colocando um cadáver ali em momentos de necessidade. Ele continua incansavelmente sua missão entre os doentes com serenidade, até o fim de sua vida, sem nunca descansar.
            Com sua atitude íntegra, ele nos devolve a visão salesiana de “saber permanecer” em nossa terra de missão para iluminar aqueles que correm o risco de perder a esperança, para fortalecer a fé daqueles que se sentem fracassados, para ser um sinal do amor de Deus quando “parece” que Ele está ausente da vida cotidiana.
            Tudo isso o levava a reconhecer a singularidade de cada pessoa doente, com sua dignidade e fragilidade, sabendo que a pessoa doente é sempre mais importante do que a doença, e é por isso que ele se preocupava em ouvir os pacientes, sua história, suas ansiedades e seus medos. Ele sabia que, mesmo quando não é possível curar, sempre é possível cuidar, sempre é possível consolar, sempre é possível fazer com que se sinta uma proximidade que demonstra interesse pela pessoa antes de sua doença. Ela para, ouve, estabelece uma relação direta e pessoal com o doente, sente empatia e comoção por ele, deixa-se envolver por seu sofrimento a ponto de assumi-lo como serviço.
Artêmides vivenciou a proximidade como uma expressão do amor de Jesus Cristo, o Bom Samaritano, que com compaixão se aproximou de cada ser humano ferido pelo pecado. Ele se sentiu chamado a ser misericordioso como o Pai e a amar, em particular, seus irmãos e irmãs doentes, fracos e sofredores. Zatti estabeleceu um pacto entre ele e aqueles que precisavam de cuidados, um pacto baseado na confiança e no respeito mútuos, na sinceridade, na disponibilidade, de modo a superar todas as barreiras defensivas, colocando a dignidade da pessoa doente no centro. Esse relacionamento com a pessoa doente tinha para Zatti sua fonte inesgotável de motivação e força na caridade de Cristo.
            E ele viveu essa proximidade, além de pessoalmente, em forma comunitária: de fato, ele gerou uma comunidade capaz de cuidar, que não abandona ninguém, que inclui e acolhe especialmente os mais frágeis. O testemunho de Artêmides de ser um bom samaritano, de ser misericordioso como o Pai, era uma missão e um estilo que envolvia todos aqueles que, de alguma forma, se dedicavam ao hospital: médicos, enfermeiros, cuidadores, religiosos, voluntários que doavam um tempo precioso àqueles que estavam sofrendo. Na escola de Zatti, o serviço ao lado dos doentes, realizado com amor e competência, tornou-se uma missão. Zatti sabia e inculcava a consciência de que as mãos de todos aqueles que estavam com ele tocavam a carne sofredora de Cristo e deveriam ser um sinal das mãos misericordiosas do Pai.

Salesiano Coadjutor
            A figura simpática de Artêmides Zatti é um convite a propor aos jovens o fascínio da vida consagrada, a radicalidade do seguimento de Cristo obediente, pobre e casto, a primazia de Deus e do Espírito, a vida fraterna em comunidade, o despender-se totalmente pela missão. A vocação do salesiano coadjutor faz parte da fisionomia que Dom Bosco quis dar à Congregação Salesiana. Ela floresce mais facilmente onde se promovem as vocações apostólicas leigas entre os jovens e se oferece a eles um testemunho alegre e entusiasta de consagração religiosa, como o de Artêmides Zatti.

Artêmides Zatti santo!
            Seguindo os passos de São Francisco de Sales, defensor e promotor da vocação à santidade para todos, o testemunho de Artêmides Zatti nos lembra, como afirma o Concílio Vaticano II, que: “todos os fiéis de todos os estados e condições são chamados pelo Senhor, cada um a seu modo, a uma santidade, cuja perfeição é a do próprio Pai celeste”. Tanto São Francisco de Sales quanto Dom Bosco e Artêmides fazem da vida cotidiana uma expressão do amor de Deus, recebido e retribuído. O testemunho de Artêmides Zatti nos ilumina, nos atrai e também nos desafia, porque é a “Palavra de Deus” encarnada na história e próxima de nós.
            Através da parábola da vida de Artêmides Zatti, sua experiência do amor incondicional e gratuito de Deus se destaca acima de tudo. Em primeiro lugar, não estão as obras que ele realizou, mas o espanto de descobrir-se amado e a fé nesse amor providencial em cada época da vida. É a partir dessa certeza vivida que flui a totalidade da entrega ao próximo por amor a Deus. O amor que ele recebe do Senhor é o poder que transforma sua vida, expande seu coração e o predispõe a amar. Com o mesmo Espírito, o Espírito de santidade, o amor que cura e nos transforma Artêmides:
            – desde menino, ele faz escolhas e pratica atos de amor em todas as situações e com todos os irmãos e irmãs que encontra, porque se sente amado e tem força para amar;
            – ainda adolescente na Itália, experimenta as dificuldades da pobreza e do trabalho, mas lança as bases de uma sólida vida cristã, dando as primeiras provas de sua generosa caridade;
            – emigrando com a família para a Argentina, sabe conservar e fazer crescer a sua fé, resistindo a um ambiente muitas vezes imoral e anticristão e amadurecendo, graças ao encontro com os salesianos e ao acompanhamento espiritual do padre Carlos Cavalli, a aspiração à vida salesiana, aceitando voltar aos bancos escolares com meninos de doze anos, ele que já tinha vinte;
            – ele se ofereceu prontamente para ajudar um sacerdote doente de tuberculose e contraiu a doença, sem pronunciar uma palavra de queixa ou recriminação, mas vivendo a doença como um tempo de provação e purificação, suportando suas consequências com fortaleza e serenidade;
            – curado de modo extraordinário, por intercessão de Maria Auxiliadora, depois de ter feito a promessa de dedicar sua vida aos doentes e aos pobres, vive sua consagração apostólica como salesiano coadjutor com radicalismo evangélico e alegria salesiana;
            – vive o ritmo ordinário de seus dias de modo extraordinário: prática fiel e edificante da vida religiosa em alegre fraternidade; serviço sacrificado em todas as horas e com todos os serviços mais humildes aos doentes e aos pobres; luta contínua contra a pobreza, na busca de recursos e de benfeitores para saldar as dívidas, confiando exclusivamente na Providência; pronta disponibilidade para todas as desgraças humanas que pediam a sua intervenção; resistência a toda dificuldade e aceitação de toda situação adversa; autodomínio e serenidade alegre e otimista que se comunica a todos os que se aproximam dele.

Setenta e um anos dessa vida diante de Deus e diante dos homens: uma vida entregue com alegria e fidelidade até o fim, encarnada na vida cotidiana, nos corredores do hospital, em sua bicicleta pelas ruas de Viedma, nos trabalhos da vida concreta para atender às exigências e às necessidades de todo tipo, vivendo as coisas cotidianas com espírito de serviço, com amor e sem clamor, sem reivindicar nada, com a alegria da doação, abraçando com entusiasmo a sua vocação de salesiano coadjutor e tornando-se um reflexo luminoso do Senhor.

Filme visto antes da conferência



Vídeo da conferência: O grande dom da santidade de Artemide Zatti
Palestra proferida pelo Pe. Pierluigi CAMERONI, Postulador Geral da Sociedade Salesiana de São João Bosco em Turim-Valdocco, em 14.11.2023.






O exercício da “boa morte” na experiência educacional de Dom Bosco (5/5)

(continuação do artigo anterior)

4. Conclusão
            No epílogo da vida de Francisco Besucco, Dom Bosco explicita o cerne de sua mensagem:

             “Gostaria que chegássemos juntos a uma conclusão, que seria vantajosa para mim e para ti. É certo que, mais cedo ou mais tarde, a morte chegará para nós dois, e talvez esteja mais perto do que podemos imaginar. Também é certo que, se não fizermos boas obras durante nossa vida, não poderemos colher o fruto delas no momento da morte, nem podemos esperar qualquer recompensa de Deus. […] Coragem, leitor cristão, coragem para fazer boas obras enquanto há tempo; os sofrimentos são breves, e o que é desfrutado dura para sempre. […] Que o Senhor te ajude, me ajude, a perseverar na observância de seus preceitos durante os dias da vida, para que possamos um dia desfrutar no céu desse grande bem, o bem supremo para todo o sempre. Que assim seja”.[1]

            É para esse ponto, de fato, que convergem os discursos de Dom Bosco. Tudo o mais parece funcional: sua arte de educar, seu acompanhamento afetuoso e criativo, os conselhos que oferecia e o programa de vida, a devoção mariana e os sacramentos, tudo é orientado para o objeto primário de seus pensamentos e preocupações, a grande tarefa da salvação eterna.[2]
            Portanto, na prática educativa do santo de Turim, o exercício mensal da boa morte dá continuidade a uma rica tradição espiritual, adaptando-a à sensibilidade de seus jovens e com uma marcante preocupação educativa. De fato, a revisão mensal da própria vida, o relato sincero ao confessor e diretor espiritual, o incentivo a colocar-se em estado de constante conversão, a reconfirmação do dom de si a Deus e a formulação sistemática de propósitos concretos, orientados para a perfeição cristã, são seus momentos centrais e constitutivos. Até mesmo as ladainhas da boa morte não tinham outro objetivo senão alimentar a confiança em Deus e oferecer um estímulo imediato para se aproximar dos sacramentos com especial consciência. Eram também – como mostram as fontes narrativas – uma ferramenta psicológica eficaz para tornar familiar o pensamento da morte, não de forma angustiante, mas como um incentivo para valorizar construtiva e alegremente cada momento da vida em vista da “esperança bem-aventurada”. A ênfase, de fato, estava na vida virtuosa e alegre, no “servite Domino in laetitia[servi ao Senhor com alegria].


[1] Bosco, Il pastorello delle Alpi, 179-181.

[2] É assim que termina a Vida de Domingos Sávio: “Então, com a alegria no semblante e a paz no coração, iremos ao encontro de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos acolherá benignamente para nos julgar segundo sua grande misericórdia, e para nos levar, como espero para mim e para ti, querido leitor, das tribulações desta vida para a bem-aventurada eternidade, onde louyvaremos e bendiremos a Deus por todos os sérculos dos séculos. Assim seja”, Bosco, Vida do jovem Domingos Sávio, 136.




O exercício da “boa morte” na experiência educacional de Dom Bosco (4/5)

(continuação do artigo anterior)

3. A morte como um momento de encontro alegre com Deus
            Como todas as considerações e instruções em o Jovem Instruído, a meditação sobre a morte é marcada por uma preocupação didática acentuada.[1] O pensamento da morte como um momento que fixa toda a eternidade deve estimular o propósito sincero de uma vida boa e virtuosa que seja frutífera:

             “Considera que do instante da morte depende a tua eterna salvação ou eterna perdição. […] Compreendes bem o que te digo? Quero dizer que daquele momento depende ir para o Céu ou para o inferno; ser para sempre feliz ou para sempre infeliz; para sempre filho de Deus ou para sempre escravo do demônio; para sempre gozar com os anjos com os santos no céu ou gemer e arder para sempre com os condenados no inferno!
Teme grandemente pela tua alma e pensa que do viver bem depende uma boa morte e uma eternidade de glória. Por isso, não difiras por mais tempo e prepara-te desde já para fazer uma boa confissão e dispor bem as coisas da tua consciência, prometendo a Nosso Senhor perdoar os teus inimigos, reparar os escândalos dados, santificar os dias de guarda, cumprir os deveres do teu estado. E agora, põe-te na presença de teu Deus e dize-Lhe de coração: “Meu Deus, desde este momento eu me converto a Vós; amo-Vos, quero amar-Vos e servir-Vos até a morte.virgem santíssima, minha Mãe, ajudai-me naquele terrível momento.Jesus, José e Maria, expire em paz entre vós a minha alma”.[2]

            No entanto, a mais completa e também a mais expressiva das visões e dos quadros culturais de Dom Bosco sobre o tema da morte encontramos em seu primeiro texto narrativo, composto em memória de Luís Comollo (1844). Ali ele relata a morte de seu amigo “no ato de pronunciar os nomes de Jesus e Maria, sempre sereno e com o rosto risonho, movendo um doce sorriso como quem se surpreende ao ver um objeto maravilhoso e exultante, sem fazer nenhum movimento”.[3] Mas a morte plácida descrita de forma tão sucinta foi precedida por uma descrição detalhada de uma doença final atormentada: “Uma alma tão pura e adornada de tão belas virtudes, como era a de Comollo, diríamos que ele não tinha nada a temer quando a hora da morte se aproximasse. No entanto, ele também sentia grande apreensão”.[4] Luís havia passado a última semana de sua vida “sempre triste e melancólico, absorto no pensamento dos julgamentos divinos”. Na noite do sexto dia, “ele foi acometido por um ataque de febre convulsiva tão forte que o privou do uso da razão. No início, ele soltou um gemido alto, como se tivesse sido aterrorizado por algum objeto assustador; em meia hora, recuperando os sentidos e olhando fixamente para os espectadores, ele exclamou: ‘Oh, julgamento! Em seguida, começou a se debater com tanta força que cinco ou seis de nós, que estávamos presentes, mal conseguíamos mantê-lo na cama”.[5] Depois de três horas de delírio, ele “voltou a ter plena consciência de si mesmo” e confidenciou ao amigo Bosco o motivo de sua agitação: parecia estar diante de um inferno escancarado, ameaçado por “um bando inumerável de monstros”, mas fora resgatado por uma equipe “de fortes guerreiros” e, depois, conduzido pela mão de “uma mulher” (“que julgo ser nossa mãe comum”), encontrara-se “em um jardim muito agradável”, razão pela qual agora se sentia calmo. Assim, “por maior que fosse o medo e o pavor de comparecer diante de Deus, muito mais alegre ele parecia depois e ansioso para que esse momento chegasse; não havia mais tristeza ou melancolia em seu rosto, mas um aspecto totalmente alegre e jovial, de tal forma que ele sempre queria cantar salmos, hinos ou louvores espirituais”.[6]
            A tensão e a angústia são resolvidas em uma experiência espiritual alegre: é a visão cristã da morte, sustentada pela certeza da vitória sobre o inimigo infernal, por meio do poder da graça de Cristo, que abre as portas da bendita eternidade, e pela assistência materna de Maria. É sob essa luz que o relato de Comollo deve ser interpretado. O “abismo profundo, semelhante a uma fornalha”, perto do qual ele se encontra, a “hoste de monstros de formas assustadoras” que tentam lançá-lo no abismo, os “fortes guerreiros” que o libertam “de tal situação”, a longa escadaria que leva ao “maravilhoso jardim”, defendido “por muitas serpentes prontas para devorar quem quer que suba”, a Mulher “vestida com a maior pompa” que o toma pela mão, o guia e o defende: Tudo remete àquele imaginário religioso que engloba, na forma de símbolos e metáforas, uma sólida teologia da salvação, a convicção do destino pessoal à eternidade feliz e a visão da vida como uma jornada rumo à felicidade, minada por inimigos infernais, mas sustentada pela ajuda onipotente da graça divina e pelo patrocínio de Maria. O gosto romântico, que impregna o fato da fé com intensa emotividade e dramaticidade, faz uso espontâneo do simbolismo popular tradicional, mas o horizonte é o de uma visão de fé amplamente otimista e historicamente operativa.
            Mais adiante, Dom Bosco relata um extenso discurso de Luís. É quase um testamento no qual emergem dois temas principais inter-relacionados. O primeiro é a importância de cultivar ao longo da vida o pensamento sobre a morte e o julgamento. Os argumentos são os da pregação atual e da publicidade devota: “Não sabes ainda se os dias de tua vida serão curtos ou longos; mas, seja qual for a incerteza da hora, sua chegada é certa; portanto, cuida para que toda a tua vida não seja nada além de uma preparação para a morte, para o Juízo”. A maioria dos homens não pensa seriamente sobre isso, “portanto, quando a hora se aproxima, eles permanecem confusos, e aqueles que morrem em confusão, na maioria das vezes, ficam eternamente confusos! Felizes são aqueles que passam seus dias em obras santas e piedosas e se encontram preparados para esse momento”.[7]
            O segundo tema é a ligação entre a devoção mariana e a boa morte. “Enquanto estivermos neste mundo de lágrimas, não teremos patrocínio mais poderoso do que o da Bem-Aventurada Virgem Maria […]. Oh, se os homens pudessem ser persuadidos da alegria que lhes traz, na hora da morte, o fato de terem sido devotos de Maria, todos estariam competindo para encontrar novas maneiras de oferecer-lhe honras especiais. Ela será aquela que, com seu Filho em seus braços, tomará nossa defesa contra o inimigo de nossa alma na última hora; mesmo que o inferno se arme contra nós, com Maria em nossa defesa, a vitória será nossa”. É claro que essa devoção deve ser correta: “Cuidado, porém, para não ser daqueles que, por recitar algumas orações a Maria, por oferecer-lhe algumas mortificações, acreditam que são protegidos por ela, enquanto levam uma vida completamente livre e desregrada. […] Sê sempre verdadeiro devoto de Maria, imitando suas virtudes, e experimentarás os doces efeitos de sua bondade e de seu amor”.[8] Essas razões estão próximas daquelas apresentadas por Luís-Maria Grignion de Montfort (1673-1716) no terceiro capítulo do Traité de la vraie dévotion à la sainte Vierge [Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem] (que, no entanto, nem Comollo nem João Bosco poderiam conhecer).[9] Toda a mariologia clássica, transmitida por pregações e livros ascéticos, insistia em tais aspectos: nós os encontramos em Santo Afonso (Glórias de Maria);[10] antes dele nos escritos dos jesuítas João Crasset e Alexandee Diotallevi,[11] de cuja obra Comollo se teria inspirado para a invocação feita diante da morte “com voz clara”:

             “Virgem santa, mãe benigna, mãe amada do meu amado Jesus, vós que, entre todas as criaturas, fostes a única digna de carregá-lo em vosso seio virginal e imaculado, oh, por aquele amor com que o amamentastes, o apertastes carinhosamente em vossos braços, por aquilo que sofrestes quando lhe fostes sua companheira em sua pobreza, quando o vistes em meio aos flagelos, cuspes e açoites, e finalmente morrendo ofegante na Cruz; Por tudo isso, obtende-me o dom da fortaleza, da fé viva, da esperança firme, da caridade inflamada, com sincera dor pelos meus pecados, e aos favores que me obtivestes durante toda a minha vida, acrescentai a graça de que eu tenha uma morte santa. Sim, querida Mãe misericordiosa, assisti-me neste momento em que estou prestes a apresentar minha alma ao juízo divino, apresentai-a vós nos braços de vosso Divino Filho; que se me prometeis isso, eis que com espírito ousado e franco, apoiado em vossa clemência e bondade, apresento esta minha alma por vossas mãos àquela Suprema Majestade, cuja misericórdia espero alcançar”.[12]

            Esse texto mostra a solidez da estrutura teológica subjacente ao sentimento religioso com o qual a história está imbuída, e revela uma devoção mariana “regulamentada”, uma espiritualidade austera e muito concreta.
            A vida do clérigo Luis Comollo, com toda a sua tensão dramática, representa a sensibilidade de João Bosco como seminarista e aluno do Colégio Eclesiástico. Nos anos posteriores, à medida que crescia sua experiência educativa e pastoral entre adolescentes e meninos, o Santo preferiu destacar apenas o lado alegre e reconfortante da morte cristã. Vemos isso especialmente nas biografias de Domingos Sávio, Miguel Magone e Francisco Besucco; mas encontramos exemplos disso já no Jovem Instruído, onde, narrando a santa morte de Luís Gonzaga, ele afirma: “As coisas que podem nos perturbar no momento da morte são especialmente os pecados da vida passada e o medo dos castigos divinos para a outra vida”; mas se o imitarmos levando uma vida virtuosa, “verdadeiramente angelical”, poderemos receber com alegria o anúncio da morte como ele fez, cantando o Te Deum cheio de “alegria” – “Oh, que alegria, estamos partindo: Laetantes imus” – e “no beijo de Jesus crucificado expirou placidamente. Que bela morte!”.[13]
            As três Vidas concluem com o convite a estar preparados para fazer uma boa morte. Na pedagogia de Dom Bosco, como já foi mencionado, o tema era tratado com acentos particulares, em função da conversão “franca e resoluta”[14] do coração e do dom total de si a Deus, que gera uma vida ardente, fecunda de frutos espirituais, de empenho ético e ao mesmo tempo jubiloso. É nesta perspectiva que, nessas biografias, Dom Bosco apresenta o exercício da boa morte:[15] é um excelente instrumento para educar à visão cristã da morte, para estimular uma revisão eficaz e periódica do próprio estilo de vida e das próprias ações, para favorecer uma atitude de constante abertura e cooperação com a ação da graça, fecunda em obras, para dispor positivamente a alma ao encontro com o Senhor. Não é por acaso que os capítulos finais retratam as últimas horas dos três protagonistas como uma fervorosa e calma expectativa do encontro. Dom Bosco relata os diálogos serenos, as “incumbências” confiadas aos moribundos[16], as despedidas. O instante da morte é então descrito quase como um êxtase feliz.
            Nos últimos momentos de sua vida, Domingos Sávio teve as orações da boa morte lidas para ele por seu pai:

             “Repetia cuidadosa e distintamente cada palavra; mas, no final de cada parte, ele queria dizer a si mesmo: “Ó misericordioso Jesus, tende piedade de mim». Chegando às palavras: «Quando finalmente minha alma comparecer diante de vós e vir pela primeira vez o esplendor imortal de vossa majestade, não a expulseis de vossa presença; mas dignai-vos receber-me no seio amoroso de vossa misericórdia, para que eu cante eternamente os vossos louvores», “Bem”, acrescentou ele, “é exatamente isso que eu desejo. Oh, querido papai, cantar eternamente os louvores do Senhor!” Então ele pareceu ficar um pouco sonolento novamente, como alguém que está pensando seriamente em algo de grande importância. Pouco tempo depois, ele acordou e com uma voz clara e risonha: “Adeus, querido papai, adeus: o reitor ainda queria me dizer outra coisa, e eu não consigo mais me lembrar… Oh! que coisa mais linda estou vendo…”. Dizendo isso e sorrindo com um ar de paraíso, expirou com as mãos cruzadas diante do peito, sem fazer o menor movimento”.[17]

            Miguel Magone faleceu “placidamente”, “com a serenidade normal de seu rosto e com o sorriso nos lábios”, depois de beijar o crucifixo e invocar: “Jesus, José e Maria, coloco minha alma em suas mãos”.[18]
            Os últimos momentos da vida de Francisco são caracterizados por fenômenos extraordinários e por um ardor incontido: “Parecia que uma beleza brilhava em seu rosto, um esplendor tão grande que fazia desaparecer todas as outras luzes da enfermaria”; “levantando um pouco a cabeça e estendendo as mãos o máximo que podia, como quem aperta a mão de um ente querido, começou a cantar com uma voz alegre e sonora: Louvai a Maria […]. Depois disso, fez vários esforços para erguer-se mais alto, que de fato estava se elevando, enquanto estendia as mãos unidas de forma devota, e novamente começou a cantar assim: Ó Jesus de amor ardente […]. Ele parecia ter se tornado um anjo com os anjos do paraíso”.[19]

(continua)


[1] Cf. João Bosco, O Jovem Instruído, 40-43 (consideração para a terça-feira: Morte).

[2] Ibid., 42-43.

[3] [João Bosco], Cenni storici sulla vita del chierico Luigi Comollo morto nel Seminario di Chieri ammirato da tutti per le sue singolari virtù. Scritti da un suo collega, Torino, Tipografia Speirani e Ferrero, 1844, 70-71.

[4] Ibid., 49.

[5] Ibid., 52-53.

[6] Ibid., 53-57.

[7] Ibid., 61.

[8] Ibid., 62-63.

[9] A obra de Grignion de Monfort só foi descoberta em 1842 e publicada em Turim pela primeira vez quinze anos depois: Trattato della vera divozione a Maria Vergine del ven. servo di Dio L. Maria Grignion de Montfort. Versão do francês de C. L., Turim, Tipografia P. De-Agostini, 1857.

[10] Segunda parte, capítulo IV (Vários obséquios de devoção à divina Mãe com suas práticas), onde o autor afirma que para obter a proteção de Maria “são necessárias duas coisas: a primeira é que lhe ofereçamos nossos obséquios com nossas almas limpas de pecados […]. A segunda condição é que perseveremos em sua devoção” (Le glorie di Maria di sant’Alfonso Maria de’ Liguori, Torino, Giacinto Marietti, 1830, 272).

[11] Jean Crasset. La vera devozione verso Maria Vergine stabilita e difesa. Venezia, nella stamperia Baglioni, 1762, 2 vols.; Alessandro Diotallevi, Trattenimenti spirituali per chi desidera d’avanzarsi nella servitù e nell’amore della Santissima Vergine, dove si ragiona sopra le sue feste e sopra gli Evangelii delle domeniche dell’anno applicandoli alle meditoli alla medesima Vergine con rari avvenimenti, Venezia, presso Antonio Zatta,

1788, 3 vols.

[12] [Bosco], Cenni storici sulla vita del chierico Luigi Comollo, 68-69; cf. Diotallevi, Trattenimenti spirituali…, vol. II, pp. 108-109 (Trattenimento XXVI: Colloquio dove l’anima supplica la B. Vergine che voglia esserle Avvocata nella gran causa della sua salute).

[13] Bosco. Il giovane provveduto, pp. 70-71.

[14] Cf. Bosco. Cenno biografico sul giovanetto Magone Michele, 24.

[15] Por exemplo, cf. Bosco. Vida do jovem Domingos Sávio, 106-107: “Na manhã de sua partida, ele fez com seus companheiros o exercício da boa morte com tanta devoção, confessando-se e comungando, que eu, que o presenciei, não sei como expressá-lo. É necessário, dizia ele, que eu faça bem esse exercício, porque espero que seja realmente para mim o da minha boa morte”.

[16] “Mas antes de deixá-lo partir para o paraíso, gostaria de incumbi-lo de uma tarefa […]. Quando você estiver no paraíso e tiver visto a grande Virgem Maria, dê a ela uma saudação humilde e respeitosa da minha parte e da parte dos que estão nesta casa. Peça para que ela se digne nos dar sua santa bênção; que ela nos receba a todos sob sua poderosa proteção, e nos ajude de tal forma que nenhum dos que estão aqui, ou que a divina Providência enviará a esta casa, venha a se perder”, Bosco, Cenno biografico sul giovanetto Magone Michele, 82.

[17] Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico, 118-119.

[18] Bosco, Cenno biografico sul giovanetto Magone Michele, 83. O P. Zattini, vendo aquela morte serena, não conteve a emoção e pronunciou estas graves palavras: “Ó morte, tu não és um flagelo para as almas inocentes; para elas tu és a maior benfeitora; tu abres a porta para o gozo de bens que nunca mais se perderão. Por que não posso estar em teu lugar, ó amado Miguel?” (ibiId., 84).

[19] João Bosco, Il pastorello delle Alpi ovvero vita del giovane Besucco Francesco d’Argentera, Turim, Tip. dell’Orat. di S. Franc. di Sales, 1864, 169-170.